PREFÁCIO
“N as Sombras Onde Eu Existo ” começou a ser concebido em mais um dos períodos ruins em que eu me encontrava. Períodos relacionados com a mente, relacionados com a vida. Medos, angústias, inseguranças, frustrações, desesperança. Tudo isso me inundava durante, e antes, a escrita desta obra. E, há anos, tudo isso tende a se repetir dentro de mim. Há anos tendem a me fazer procurar respostas impossíveis de serem encontradas.
A protagonista da história, a jornalista Karen, é uma personagem que saiu dessa realidade. Que saiu desse mar de sombras que preenchiam — e ainda preenchem — a minha mente, e que me faz ter dificuldades em enxergar possíveis caminhos.
Karen fez as suas escolhas. Antes da sua perda, fez uma escolha errada. E após, fez uma escolha que a possibilitou seguir em frente. E essa escolha, talvez, não seja das melhores. Mas essa é a questão que busquei trazer aqui, neste livro. Escolhas. As diversas escolhas que precisam ser feitas na vida. Escolhas para querer continuar, por mais que a vida seja um grande nada. Escolhas para superar as dificuldades de encontrar o eco de um reles resquício, em vez de deixar-se afundar em um buraco infinito, sozinho, sem nenhuma saída, em um desesperador abismo. Escolhas para encontrar meios para dar o o seguinte, e, assim, deixar o ado para trás, na época em que ele foi vivido, por mais insano que seja fazer isso.
Escolhas...
Precisam ser feitas constantemente, mesmo que elas não tenham nenhum motivo válido. Mesmo que elas sejam insignificantes. E muitas vezes o resultado não é o esperado, e, consequentemente, não se sabe como reagir. Mas, ainda assim, elas precisam ser feitas, por mais que muitas vezes não se queira.
Escolhas...
Por fim, se este livro, de alguma maneira, por algum meio, trazer-lhe algo de valor, mesmo que seja o mais ínfimo possível, escolha o que fazer com isso.
SUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Créditos
PREFÁCIO
PARTE 1
CAPITULO 1. KAREN
CAPITULO 2
CAPITULO 3
CAPITULO 4
CAPITULO 5
CAPITULO 6
CAPITULO 7. DUAS FLORES PERDIDAS
CAPITULO 8. AMY
CAPITULO 9
CAPITULO 10
CAPITULO 11
CAPITULO 12. SAM
CAPITULO 13
CAPITULO 14
CAPITULO 15
CAPITULO 16. CÉU SILENCIOSO
CAPITULO 17
CAPITULO 18
CAPITULO 19. AMY E SAM
CAPITULO 20
CAPITULO 21. MEMÓRIAS
CAPITULO 22. PESADELO
PARTE 2
CAPITULO 23 . MEU PRESENTE PARA VOCÊ
CAPITULO 24. MELANCOLIA
CAPITULO 25
CAPITULO 26
CAPITULO 27. SILÊNCIO.... É A LUA NO MEIO DA ESCURIDÃO
CAPITULO 28. UMA SOMBRA AINDA BRILHA
CAPITULO 29. AMY E KAREN
CAPITULO 30
CAPITULO 31. SARAH...
CAPITULO 32. KAREN ROSE HEART:PARTE I
CAPITULO 33. O ANJO QUE CAIU DO ALTAR
CAPITULO 34
CAPITULO 35. SCAR
CAPITULO 36. KAREN ROSE HEART: PARTE II
CAPITULO 37
CAPITULO 38. DISSONÂNCIA
CAPITULO 39. NOITE DISTORCIDA
CAPITULO 40
CAPITULO 41. JASMIM
CAPITULO 42. JASMIM: PARTE II
CAPITULO 43. AGONIA
CAPITULO 44. ELIZABETH ELRIC GILLIAN
CAPITULO 45. KAREN ROSE HEART:PARTE III
CAPITULO 46. POR UM BREVE MOMENTO
CAPITULO 47. AGONIA...
CAPITULO 48. SOFIA
CAPITULO 49
CAPITULO 50
PARTE FINAL
CAPITULO 51. PROMESSAS
CAPITULO 52. MORTE
CAPITULO 53
CAPITULO 54. SOMBRAS QUE HÁ EM NÓS
CAPITULO FINAL. OLÁ, KAREN! SEJA BEM-VINDA!
EPILOGO I
EPILOGO II
EPILOGO FINAL
POSFACIO
Landmarks
Capa
Folha de Rosto
Página de Créditos
Sumário
PARTE 1
CAPITULO 1. KAREN
Já faz oito anos... Oito anos desde que eu a matei.
Eu me lembro até hoje, e lembrarei até o último dia em que eu caminhar por este planeta, pois jamais a esquecerei.
Sinto como se eu estivesse afogando, desesperada para poder respirar, mas sem conseguir sair de uma profundeza escura. E tudo isso por causa de uma escolha. Uma escolha errada, sem calcular as transparentes consequências, sem me preocupar com quem fosse ser atingido. Sem me preocupar com... ela.
Hoje eu vejo essa estrada, mas, lá atrás, isso era impossível. “Nada pode me parar”, era o que eu pensava. Eu iria sempre em frente, sem limites, sem os hesitantes... era o que eu acreditava. No fim, eu estava errada.
Havia algo... alguém, sim, que poderia ter me mostrado o caminho correto, verdadeiro, mas que, no fim, eu escolhi ignorá-lo. Esse alguém era uma criança... uma menina... uma irmã. A minha pequena...
Sarah.
Hoje, posso afirmar que eu nunca imaginei que tudo aquilo pudesse acontecer.
De maneira alguma, a sua ida...
A minha perda.
Às vezes, penso que se eu acreditasse no diabo, diria que o enfrentei em vida e consegui sair andando — com as pernas tortas, é claro. E além da dor de perdêla, eu tive que engolir a minha derrota, igual a um boxeador que não consegue mais ficar em pé no ringue e que precisa aceitar a vitória que vem do outro lado. Por isso, se eu puder... se eu tiver mais uma chance, com certeza, colocarei tudo em seu devido lugar.
Se bem que, talvez, ele não lembre mais da promessa que me foi prometida.
Já ou tanto tempo, mas ainda aguardo miseravelmente, enquanto a minha angústia, o meu desespero, o meu vazio e a minha solidão permitirem. Pois, assim que ele voltar, nada mais importará. Nem esta droga de existência que sou obrigada a carregar nas costas todos os dias... Nem esta bosta de vida que eu finjo ar...
No momento, vivo na cidade de Agonia — onde eu nasci. É uma cidade de porte médio, localizada na região sul do país. Uma cidade igual a todas as outras, mas, ainda assim, tão diferente. Há várias pessoas correndo, de um lado ao outro, incansavelmente. Carros e mais carros em um frenesi inável. Mas há algumas coisas por aqui que a tornam única. Por exemplo, o lago Kimbley, localizado ao norte, escondido dos olhos da cidade. Famoso por sua água misteriosa, que mais parece petróleo, de tão escura que é. Mas as pessoas não nadam por lá. Não por medo ou pavor, apenas por um respeito estranho, por algo tão belo e encantador.
Há também, aqui em Agonia, uma imensa floresta — Floresta Negra é como costuma ser chamada —, tão vasta e densa que é impossível enxergar a sua dimensão infinita. As árvores são tão altas que parecem tocar o céu, e as folhas negras, da única espécie que há, faz a cidade parecer uma enorme sombra, quando vista por cima. E o sol pouco pode fazer, pois Agonia é o recanto da desolação, cedendo pouco espaço à luz.
E nessa mesma floresta, várias histórias circundam-na. Há quem diga que bruxas vivem no seu interior, fazendo sacrifícios humanos para deuses pagãos. Que há canibais fazendo orgias de sangue, e assassinos insanos escondidos da lei. Porém, são apenas histórias, pois, até agora, nada foi encontrado ou provado — se bem que ninguém nunca a adentrou. Até mesmo eu, durante algum tempo, fiquei intrigada, mas jamais fui ver se tudo isso era verdade. Até mesmo eu...
Eu sou uma insignificante jornalista que trabalha em um dos quatro jornais impressos da cidade.
São sete horas da manhã e estou indo ao trabalho, caminhando mesmo. Tenho um carro deixado por meu... Prefiro andar com este clima calmo do amanhecer, sem a gritaria dos automóveis me rodeando, pois eles são ináveis.
Eu sigo por um caminho pouco movimentado.
Por onde eu ando, há árvores vistosas e os pássaros me fazem companhia. Este caminho é bem tranquilo, o que é bom, pois me ajuda a pensar nos erros que eu cometi, e nas pessoas que eu perdi. Costumo olhar muito para o ado, e isso é uma tortura, uma dilaceração fodida em minha carne. Várias opções, caminhos...
Escolhas.
Um milhão de possibilidades, todas am e ream, incessantemente, na minha cabeça, mas, no fim, sempre retorno àquele dia. É como uma sombra que não aceita desaparecer, mesmo na mais vasta escuridão. Qualquer lugar que eu olhe, lá está ela, esperando-me com o seu sorriso sarcástico e a sua perturbação insana. Ainda assim, às vezes, eu paro por um momento e tento enxergar outras formas de viver. Mas não consigo e também não quero. Pois eu não posso...
Por elas.
Eu me chamo Karen.
Estou vestindo uma jaqueta moletom preta por cima de uma camisa preta de manga comprida; também visto uma calça jeans e um tênis velho. Procuro me vestir assim, igual ao meu...
Sou uma bela (ou era?) mulher de vinte e sete anos — farei vinte e oito em um mês —, e tenho longos e sedosos cabelos ruivos — deixo-os soltos mesmo. O vento os faz balançarem como se dançassem ao olhar do dia. A pouca luz que o sol emana, nesta cidade caquética, ilumina a minha branca e suave pele. Os meus lábios são pequenos e macios, e os meus olhos dourados parecem duas pepitas de ouro. Só que toda essa “beleza” está cansada, gasta, pois é destruída por minha infeliz vida vazia. Infeliz e autodepreciativa.
Atualmente, gasto o meu tempo, além do trabalho, com várias porcarias. Comendo lixos engordurados, enchendo o rabo de álcool e fumando até a minha boca ficar tão amarga que ninguém iria querer beijá-la. Por falar nisso, o álcool e
o cigarro, como de costume, são os meus “amigos” mais próximos. E a minha face é fria, mas, também, triste, solitária, sozinha. Tenho o hábito de olhar para ela, pois gosto do nada que vejo no reflexo.
E enquanto eu caminho, com um cigarro que eia por minha boca, recordo, repetidamente, de tudo o que eu jamais tive. E enquanto eu caminho, esperando pelo dia vindouro que anseio, eu revejo as minhas lembranças invisíveis.
Recordar... Lembrar... Memórias...
Eu me lembro da minha infância, em que estou correndo por todos os lados, com uma falsa chama queimando em meu coração. Nas manhãs geladas, eu, sem conseguir sentir a singela paz do vento me abraçando. Nas tardes simpáticas, eu, brincando com outras crianças, onde nós estamos sorrindo, alegres. Elas sim. Eu... Eu... Eu sempre me senti deslocada, como se eu não pertencesse aqui, a este mundo. Eu não me encaixo. Eu pareço um esboço inacabado, que foi deixado em cima da mesa, sem ânimo para ser finalizado.
Eu também vejo a minha mãe dando os seus divertidos gritos para que eu fosse logo almoçar. Eu ava correndo por ela, toda suada, e via a sua satisfação estampada no largo sorriso que o seu rosto fazia questão de demonstrar. Eu também vejo o meu pai, com aquele seu jeito particular, querendo que eu fosse para sempre a sua filhinha — ou a sua estrelinha, que brilhava no céu, como gostava de me chamar. Uma coisa que ele tinha, e adorava, era o singelo hábito de explicar qualquer coisa que achasse minimamente interessante a se pensar.
Tudo isso ainda está aqui dentro, enterrado, escondido, asfixiado, perdido...
Abandonado.
Mesmo assim, essas lembranças, bravamente, tentam me defender das reais, das verdadeiras, das que importam. É como se fossem os meus cavaleiros brilhantes que jamais me deixarão cair. Mas elas não conseguem, pois não possuem força suficiente para tal milagre.
E eu também não quero.
Pois toda a desgraça que eu carrego, toda a desgraça que me consome, fui eu quem criou, com a minha indiferença, com o meu desprezo, com o meu abismo. Não tenho certeza, exatamente, de quando comecei a ver o mundo de uma maneira diferente. Quando criança? Na adolescência? Já adulta? Após a morte do meu pai? Assim que eu nasci? Provavelmente, essa última aí.
Os meus pais...
Nunca fui uma pessoa capaz de me conectar. Mas com os meus pais, eu, ao menos, tentava, e, por que não, conseguia. A minha mãe e o meu pai...
amos bons momentos juntos.
Com eles as minhas risadas eram coloridas, não porcarias artificiais. Porém, eu já alimentava a minha ausência de empatia, a minha ausência de humanidade. E ainda jovem, graças à anomalia que sempre habitou em mim, comecei a querer ser, cada vez mais, o meu próprio mundo, com as minhas próprias regras e leis,
com um único personagem. Porém, antes de me desligar de tudo, os meus pais tiveram outra filha, outra menina. Um milagre chamado Sarah...
A minha irmã.
Eu não sei dizer o que eu senti, mas ela pôde frear, por um confortável tempo, esta minha angústia faminta, esta minha ânsia infinita. Porém, eu voltaria a segui-las, e, dessa vez, não haveria um milagre para impedi-las. Contudo, durante uma breve fase, eu pude ser a sua professora, apontando os erros e acertos que cometia pelo caminho. Foi uma época interessante, inusitada, até eu foder com tudo...
Até não sobrar nada.
O meu pai morreu antes de ver o meu erro, mas a minha mãe pôde presenciar. Ela não me culpou, nem apontou o dedo. Não me xingou, nem me bateu. Na verdade, apenas calou-se em um perturbador silêncio...
E isso foi o suficiente.
Eu, naquela cama, daquele quarto de hospital, pude ver no fundo dos seus olhos que eu não era mais a sua filha. Não a que ela conhecera. Não a que eu era. E eu pude ver toda a dor que ela odiava ar.
A minha mãe sempre foi forte, íntegra e apaixonada. Uma mulher determinada e bondosa, que não merecia ter ado por mim. A minha avó, que sempre sabia
o que dizer, provavelmente ficaria sem palavras para consolá-la. Foi com ela que a minha mãe aprendeu o que fazer nos momentos certos. E o que dizer nos momentos certos. E, também, o que não dizer nos momentos certos. Por isso, preferiu não me culpar. Preferiu não me acusar — não com palavras, pelo menos. Penso que ela ainda queria manter a sua filha viva. Não para ela, mas...
Para mim.
Porém, o seu rosto me disse tudo. Eu não era mais nada para ela, apenas uma estranha que roubara o lugar da sua Karen. Apenas uma aberração que engolira a sua filha. Ela foi embora sem se despedir, e eu fiquei ainda mais sozinha.
Eu não sabia mais o que fazer. A cada dia que ava, antes de eu desaparecer, eu tentava acomodar a minha mente para não pensar nela, mas jamais consegui tal êxito.
Ainda sinto, estranhamente, a sua falta.
Eu, de alguma forma, consegui ir ao enterro da minha irmã. Sarah foi enterrada ao lado do túmulo do nosso pai. E lá, no cemitério, eu só pude ver o adeus da nossa mãe em meio às lágrimas. E como um bom clichê, chovia naquele dia. Apenas uma garoa, mas já era o suficiente. O céu estava cinza, e o dia negro. Fazia bastante frio e ventava muito. A minha mãe chorava mais do que na morte do seu amado marido. Eu apenas assisti de longe, atrás de uma merda de árvore, escondida, covardemente, sentada na lama. Eu não podia aparecer na sua frente, pois a sua dor seria muito maior. Não para mim, mas para...
Sarah.
Então, ali, foi a última vez que pude vê-la: destruída em frente ao túmulo da sua filha, que descansava ao lado do túmulo do nosso pai, o seu marido. Minha mãe partiu...
E eu também.
Eu não soube o que houve com ela. Eu ainda não sei o que houve com ela. E, sinceramente, não tenho coragem de saber. Não sei se ela ainda vive em Agonia... Talvez, quem sabe, tenha voltado para Melancolia... Espero que ela esteja bem, seja lá o que isso signifique. Mas ainda procuro olhar para o seu rosto para que eu consiga fazer a escolha certa.
Escolhas...
Lembro-me dos momentos únicos com o meu pai. De jogar futebol com ele no campinho que havia perto da nossa casa. Curioso que ele, um adulto, sempre tentava me defender das brincadeiras que, de vez em quando, os meninos e as meninas faziam comigo, pedindo para eles pararem. Mas não precisava. Eu não me importava com as piadas. Mas eu ito: ser protegida e querida por ele era bom.
Também me lembro das vezes em que eu me atrasava, chegando tarde à casa, depois da escola, e presenciava o seu alívio ao ver que a sua filha estava bem, que estava segura. E de como ele adorava em me levar para comer pizza, cachorro-quente, pastel e sorvete, em qualquer horário, em qualquer dia, em qualquer lugar.
Lembro-me do seu forte abraço que, às vezes, me machucava, mas que era a sua maior demonstração de afeto. E ele nunca gritava, nunca batia. Quando chateado ou triste, por alguma idiotice que eu fazia, apenas calava-se, esperando o tempo levar a sua mágoa. Depois voltava ao normal... Ao nosso normal.
Pude ficar pouco tempo ao seu lado.
O meu pai não precisou ver o que eu fiz à Sarah. Essa dor não o absorveu. Apenas a da merda do câncer que o derrubou. Não sofreu muito, pois, em poucas semanas, a sua vida se esvaiu. Foi muito rápido. Ele ainda era novo, e não devia ter morrido.
Pai...
Eu quis acreditar, durante um tempo, que ter sido uma espectadora da sua iminente morte, talvez, tenha me afetada para o que eu viria a ser: algo não humano. Mas não foi sua culpa, pois eu sempre fui assim... Eu sempre fui isso.
A sua morte deveria ter me transformada sim, mas em algo melhor. Algo que ele sempre dizia todas às noites, sentado ao meu lado, na minha cama, antes de ir dormir e de me dar um beijo na testa e um aconchegante abraço.
— Nunca deixe de ser quem você é, Karen. Por que você já é o melhor que alguém poderia ser.
Eu não era... Eu não fui... Eu não sou...
Estranho que no seu enterro eu não derramei uma única lágrima. Não quero acreditar que o meu vazio tenha sido o motivo. Eu já tinha nove anos e me lembro de estar com a minha pequena irmã no colo, ainda com dois aninhos, enquanto ela me olhava, sorrindo. Os seus grandes olhos verde-escuros eram as únicas coisas que brilhavam no meio de todo o preto e cinza que a morte traz. Talvez isso tenha me mantida em pé, firme, por meu pai, pelo que ele queria que eu fosse...
Pelo que ele achava que eu era.
Lembro-me de estar sentada na praça, tomando sorvete com a minha pequena e bondosa irmã. Ela já não era mais tão pequena assim, tenho que itir, mas ainda era a minha irmãzinha. As suas pernas, que ainda não alcançavam o chão, balançavam alegremente, enquanto ela lambia o seu sorvete cheio de balinhas e coberturas coloridas. Parecia uma boneca de tão linda que era. Eu apenas observava, em silêncio, a sua completa paixão por existir. Eu já não era mais a mesma, tinha perdido as poucas peças pelo caminho. Mas ela continuava igual, sem nenhum erro, sem nenhum equívoco.
Sarah também adorava ler livros, por isso não parava de comprá-los. Bastava a nossa mãe dar algum dinheiro e pronto! Ela já buscava mais um. Essa era uma — entre tantas outras — parte que moldava o seu mundo. O mundo de uma garotinha inocente e pura... Amorosa e única... Alegre e sorridente...
Que seria morta por mim.
Sarah era muito nova para ver a imensa dor da nossa mãe que perdera o marido. Porém, sozinha, teve que lidar com o desespero, com o choro, com a angústia,
com o medo, com a morte, em algum lugar obscuro, em um pesadelo maligno.
Ela não pôde se despedir de ninguém, apenas do monstro que tomou a sua vida. Uma vida tão curta e imediata, ageira e espontânea que, às vezes, eu imagino ter sido apenas um sonho. Um daqueles sonhos que não queremos acordar e que nos faz querer viver nele para sempre... Para todo o sempre.
Se ela puder me ver, só quero que saiba que ainda vive dentro de mim, por mais imundo que seja o meu interior. E por mais perdida que eu esteja, a sua presença ainda brilha dentro deste vácuo podre. Isso é o que me faz seguir em frente, até o meu destino, até a minha promessa, até o meu desejo...
— Sarah, você não merecia...
Eu acabo de chegar ao jornal. Jogo o cigarro fora.
Preciso entregar a minha matéria para o meu chefe, Afonso. Ele já é um senhor, mas ainda tem muito cabelo (branco) na cabeça e um bigode cômico. E branco como nuvens pacíficas, e não tão alto, ele costuma me deixar levantar as próprias pautas. Somente eu tenho essa permissão, e eu sei bem a razão: sou a sua melhor jornalista.
Afonso já está com sessenta e cinco anos e é um jornalista renomado — era amigo do meu pai. Começou a sua carreira ainda bem jovem, mas foi graças a um religioso de merda que ele conseguiu ser quem é — ele não tinha nem vinte anos, se eu não me engano. Do outro lado do país, devido a um grande caso que revelou, teve a sua projeção em nível nacional.
Mas é melhor partir do início.
Tudo começou com uma mulher que acusara uma figura religiosa muito poderosa. O crime: ela teve o seu filho abusado, várias e várias vezes por ele. Desesperada, ela foi à polícia, mas saiu sem ter o mínimo de atenção. Então, tentou espalhar para todos os veículos de comunicação a sua história, mas não teve êxito, pois o religioso escroto detinha o controle de todos os meios.
Inicialmente, com medo das ameaças de morte que ele fazia, a mulher preferiu esconder essa dor durante alguns dias. Até que, cansada de viver nesse poço de sofrimento, além de sentir-se culpada pelo pesadelo do filho, resolveu denunciálo. Mas ela era uma mulher pobre, de uma realidade miserável, e que morava em um bairro asqueroso, sem nenhuma condição de enfrentá-lo. E mesmo sabendo que sairia vitorioso, o inescrupuloso pastor, bispo, padre, ou qualquer outra merda, decidiu atacar. Ele foi a todos os programas de televisão, principalmente os sensacionalistas, para afirmar a sua inocência, acusando-a de ser uma aproveitadora que só queria tirar dinheiro dele, e que a mulher era a reencarnação de Satã.
Nos programas de rádio, a sua voz era ouvida diariamente, quase como uma pregação divina. Os policiais saíram em sua defesa; a justiça e os políticos também. E óbvio que a sua corja religiosa imunda veio atrás — o desgraçado nem precisava disso.
As emissoras eram corruptas. A polícia era corrupta. Os políticos eram corruptos. A justiça era corrupta. E sem esperanças, a mulher, ao ver que jamais conseguiria provar a sua história, estava prestes a acabar com tudo. Com a própria vida, com o próprio filho. Porém, em um dia qualquer, onde o bater das asas dos pássaros sobrevoava as cabeças de todos, Afonso bateu à sua porta. A mulher estava pronta para atear fogo em sua humilde e pequena casa...
Mas não fez.
Ela decidiu, por alguma razão, não acender o único palito de fósforo que restava na caixa e jogá-lo na gasolina que preenchia todo o interior do seu lar. Pode ter sido uma intervenção dos deuses, uma lembrança para nós, meros mortais, de que Deus ainda nos conduz. Para quem acredita nisso, deve ser um excelente pilar de excrementos para segurar-se. Para mim foi apenas a escolha dela.
Então, a mulher abriu a porta e percebeu que alguém escutara. Afonso não se assustou com o que ela iria fazer. Ele também ara por uma dor imensa quando criança, e sabia o que era sofrer.
Afonso costumava dizer que nada podia abalá-lo. Foi neste dia que isso mudou.
Após apresentar-se como sendo um jornalista — que não fizera nada de excepcional, até então —, ele a convenceu a seguir frente.
Cansado de toda a corrupção e maldade que pairava pela cidade, Afonso, que sempre foi perspicaz e persuasivo, inteligente e capaz, sabia que não teria aliados, ali, na cidade dominada pelo ego de um único homem. Porém, já havia visto alguém igual. Uma pessoa que irava o poder mais do que tudo. Que não sabia ouvir um “não”.
E que o bateu em sua infância.
Assim, Afonso, tomado pela dor das suas lembranças e pelo sofrimento da mulher e do filho, criou o plano mais simples que poderia criar: usar a sua irmã, Isabel — que ou pelo mesmo sofrimento do irmão —, como isca para atrair o religioso até um quarto qualquer. E apesar de o porco preferir garotinhos, não teria como ele recusar uma bela senhorita, afinal, Isabel era atraente, com um corpo escultural — normal para uma jovem de vinte e dois anos.
Isabel conseguiu seduzir o nojento religioso. Soube persuadi-lo e, sem necessitar do prazer que só a carne é capaz de dar, o lixo estúpido começou a falar a respeito do que fizera com o pobre menino. Disse que não fora o primeiro e que não seria o último. Histórias dos abusos cometidos e das dores infligidas. Todo orgulhoso, falou também das meninas. E ele, desejando se deliciar nas coxas da moça e se afundar no corpo sensual da jovem mulher, falava mais, cada vez mais. Das atrocidades que cometera com as crianças que não o deixava tocá-las. Da punição que traria aos seus pais se fosse impedido de possuí-las. Ele também contava onde os corpos, dos que desobedeciam, estavam enterrados. Dos ossos escondidos nas mais profundas valas, das mais profundas matas.
Era mais do que os irmãos esperavam. Afonso, aliás, que estava escondido, pôde gravar tudo não apenas com a câmera. Sempre imaginou ter ado pelo inferno quando criança, mas após ouvir o religioso de merda todo orgulhoso, contando a respeito das suas “conquistas” e “vitórias”, desesperos e angústias impostas, não se segurou e derrubou uma lágrima, uma única lágrima. Essa lágrima nem mesmo o seu pai fora capaz de derrubar. Afonso, então, ficou imóvel, sem entender o que era aquela gota úmida e solitária que escorria por seu rosto. No fim, ele descobriu. Descobriu que não chorava apenas pelas vítimas. Chorava, também, por causa da dor que ainda guardava em seu coração, mas que nunca fora sentida. Enquanto isso, Isabel, cada vez mais enojada com as palavras do porco repulsivo, queria apunhalá-lo bem no coração, para ver o sangue das vítimas se libertarem da existência nefasta que ele possuía.
E eles conseguiram isso.
Apesar da dificuldade de ter que enfrentar aquilo, mas já em posse da prova necessária, Afonso e Isabel, junto da mulher e do filho, foram em todas as emissoras de rádio e televisão possíveis — não só as da cidade —; e em todos os jornais impressos. Os donos dos meios de comunicação quiseram refutar, mas diante do tamanho das provas traíram o seu Deus maldito e resolveram expor toda a porcaria que ele cometera. Afonso, mesmo sem confiar neles, sabia que tudo seria resolvido. E mais do que salvá-los, Afonso queria mostrar a todos o tipo de lixo que os governava. O tipo de lixo que os guiava. O tipo de lixo que os dominava. E, dessa vez, o êxito foi atingido.
Tudo foi muito rápido e ninguém pôde desviar o olhar.
Afonso ficou satisfeito com o que eles fizeram. Não por causa da fama que conseguiu, nem do sucesso que foi conquistado. Mas pela esperança, paz e sorriso que trouxera de volta às famílias. Famílias que tanto sofreram nas mãos imundas daquele desgraçado miserável.
Hoje em dia, Afonso é uma lenda — não só em Agonia. Já teve oportunidades de ir embora para outros jornais, outros países, mas sempre quis ficar nesta cidade corrosiva. Ele já me falou que ama Agonia mais do que tudo, apesar de não ser natural daqui. Ele é uma boa pessoa e que, a sua maneira, tenta me ajudar a lidar com tudo o que eu fiz, mesmo que eu não queira.
CAPITULO 2
Quando voltei à Agonia, após dois anos invisíveis, eu estava destruída.
De volta à cidade, ei um longo período no apartamento de uma amiga, trancada em um quarto. Eu ficava o dia inteiro deitada no escuro, pois era o lugar que eu merecia estar. O lugar que eu tinha que estar. O lugar que eu precisava estar.
Eu não queria saber de mais nada, apenas ficar sofrendo, imóvel, quieta, calada.
Os dias avam e eu persistia em ficar enfurnada no quarto, deitada na cama, coberta por sombras e lembranças. A minha amiga, a minha querida Sofia, batia à porta, preocupada, a toda hora. Coitada, ainda prezava por algum tipo de educação. Porém, eu não queria vê-la, eu não queria que ela me visse — não daquele jeito —, mas eu não tinha como impedi-la. E ela fazia questão de cuidar de mim. As refeições que ela me dava, os banhos que ela me dava. Banhos, aliás, que demorei a tomar. Durante dias, fiquei abraçada com a minha imundice. E aquele quarto fedia, era nojento, sujo.
Mas não era assim quando eu chegara.
Era limpo e agradável. Qualquer pessoa iria sentir-se em casa, e confortável. Fui eu quem contaminou tudo com a minha presença, com a minha vida, com o meu caos.
Após algum tempo, o Afonso apareceu. A minha amiga, extremamente preocupada comigo, lembrou-se de que eu ainda tinha um “amigo”, e foi avisá-lo que eu estava na cidade. A última vez que nos vimos havia sido no hospital. Ele também apareceu por lá, de cabeça erguida, sério, mesmo sabendo o que eu fizera.
Lá, no apartamento da minha amiga, ele batia à porta, chamando por mim. Eu podia ouvi-lo xingar e reclamar. Mas ele não estava nervoso ou bravo. Na verdade, esse era (é) o seu jeito. Não aceita ver ninguém se sentindo um lixo.
Afonso teve uma infância difícil, pois o seu pai batia nos dois filhos.
A mãe se matava de trabalhar em dois empregos, enquanto o pai era um alcoólatra agressivo, uma merda de um bêbado. Ela tentou fugir com eles, mas o imbecil não a deixava. Dizia que se ela fosse embora, acharia e mataria todos. Mas isso nunca aconteceu, pois foi ela quem fez assim. Com vários golpes de faca no peito do canalha, ela deu um fim ao seu tormento e ao dos seus filhos — porém, acabou presa. A última vez que o Afonso a viu foi no enterro da mesma. Ela matou-se, pois não ou ficar longe dos filhos, espremida em uma prisão fodida. Após isso, Afonso e Isabel foram morar com uma tia desconhecida — e o seu marido. E os irmãos, que temiam ar por tudo aquilo de novo, na verdade, pela primeira vez, conheceram o que era um lar. Nada mais de surras e gritos, medo e dor. E apesar de todo o amor que recebera da mãe, Afonso me falou que não sabia o que era uma família. Ter uma família. Ser uma família. Mas isso, enfim, acabara de encontrar uma saída.
Os dias de desespero foram ando com o tempo, com a vida.
Afonso cresceu e estudou jornalismo. Isabel tornou-se uma respeitada advogada. E os seus tios se tornaram os seus pais. Porém, Afonso nunca esqueceu a sua mãe. De todo o amor que ela pôde lhe dar. De toda a esperança que ela pôde lhe dar. Nunca se esqueceu da mulher que lutou para protegê-lo do ódio daquele que deveria tê-lo amado.
Afonso me disse, certa vez, que, todas às noites, antes de dormir, conversa com a Isabel pelo telefone. Falam, durante um bom tempo, a respeito das suas vidas. Perguntam como as coisas estão. Perguntam a respeito da esposa, a respeito do marido. E durante um bom tempo relembram, e fazem questão disso, das dores que sentiram na infância, pois não querem esquecê-las, por ela, pela mulher que os amou.
E depois que desliga o telefone e se despede da irmã, faz o mesmo ritual que fez no enterro da sua mãe. Então, Afonso, que até hoje se lembra do sorriso triste que buscava romper uma vida de dor, fecha os seus olhos e olha para os dela, que sempre o acompanham em seu coração, e diz:
— Eu te amo. Logo estarei com você.
CAPITULO 3
Acabei de entregar a minha matéria, que terminei dias antes, e sigo para a minha sala, pois tenho que pesquisar o que farei a seguir. Neste tempo, enquanto procuro um novo caso, costumo pensar onde aquele animal, que me ajudou a destruir a minha vida, possa estar.
Isso me consome.
Não que eu não e, mas, às vezes, fica mais pesado do que eu consigo carregar, pois a minha mente vive em uma espiral sem fim, em um turbilhão caótico. Comidas, bebidas e cigarros, todos esses lixos me ajudam a conviver com este meu martírio eterno.
Enquanto pesquiso por algo, a minha colega de trabalho, Laura, bate à minha porta. Eu posso vê-la, pois a porta tem uma parte de algum material transparente — vidro, provavelmente. Laura é uma jovem (é mais nova do que eu) jornalista. Tem vinte e um anos, mas começou cedo por aqui, com apenas dezoito.
Bonita, Laura tem uma estatura mediana. É magra, mas o seu corpo é sensual; e os seus olhos de um mágico castanho-claro. Branca como a neve, os seus cabelos dourados parecem fios de ouro — lembram os da Sofia. Os seus seios são delicados, combinando perfeitamente com a sua graciosidade angelical — nada de exageros, afinal.
Ela costuma ser gentil com as pessoas, inclusive comigo. Talvez por eu ter arrumado esse emprego para ela. E a sua determinação é algo que chama atenção, assim como o fato de sair cantando toda vez que finaliza uma matéria.
Essa sua alegria me lembra de alguém...
Laura é uma garota humilde que tentou sair de uma vida interiorana de merda. Pois ela sempre sonhou em ser alguém, em viver como alguém.
Parece que conseguiu.
Deixou para trás todo o pesar e a miséria que os seus pais lhe deram, e foi para algo melhor. Um lugar melhor. Uma vida melhor.
Ainda me lembro de quando me contou a sua história.
Contou que, ainda pequena, constantemente ava por dias terríveis na sua vida que se iniciava. E que para a fome que a acometia, quase todos os dias, tinha uma maneira de á-la. Todas às noites, ao deitar na cama, fechava os seus olhos e com um grande sonho costumava sonhar.
Ela também falou a respeito do seu pai, um homem terrível, que adorava despejar palavras duras para uma criancinha ter que ouvir. E que sempre a pegava pelos braços, arrastando-a até o fundo da sua casa. Uma casa simples, apenas uma sala, apenas um lar. Não tinham nenhum pertence que pudessem orgulhar-se. A mais pura e honesta pobreza. Mas o que o seu pai gostava mesmo
era de humilhá-la. O seu prazer era em poder ver a própria filha chorar, enquanto a esperança dela era quebrada. Ele mostrava a vida que ela sempre teria e que jamais poderia escapar. Laura esperava esses momentos arem, sentada em um chão de terra batida, ouvindo pacientemente as cruéis palavras proferidas, enquanto os seus olhos choravam lágrimas e mais lágrimas, até não terem mais o que chorar.
Para fugir dessa realidade fodida, Laura se concentrava em estudar. Estudar e estudar, por que sabia que, ali, estaria a sua fuga daquele poço de tormento. Na escola, era a aluna mais pobre, mas também a melhor, porém ainda havia outro problema. Laura tentava não dar atenção aos xingamentos que os seus “amigos” faziam. Eles a chamavam de suja, burra, imunda, porca repugnante, fedida, barata nojenta. Um pedaço de merda que deveria voltar para a fossa, para o chiqueiro, pois lá era o seu lar. Ela me falou que não era fácil ouvir tudo isso e não ficar abalada. Mas nada era pior do que ela recebia na própria casa, dos seus próprios pais.
Laura também era vítima da sua mãe. Uma mulher amargurada que, em certo dia, decidiu dar um fim em tudo. Pegou um fio, amarrou em uma árvore que havia em frente da casa, e decidiu enforcar-se. Era de madrugada e não havia mais ninguém — na verdade, até havia: Laura e mais uma pessoa que ela odiava ter que pensar. Não queria ajuda dele, por isso procurou alternativas.
Foi em vão.
E para variar, como tudo sempre fora sofrido em sua vida, teve que ceder e do seu pai precisou naquele momento, naquele simples momento.
Ao ver a sua mãe pendurada, flutuando com a morte em sua companhia, correu para a única pessoa que poderia. Ela o chamou, empurrando-o com cuidado, e
falou o que estava acontecendo. O pai levantou-se enfurecido, disposto a matar tudo o que pudesse aparecer em seu caminho; e correu desesperado. E ao se deparar com a cena desgraçada, pegou a esposa com carinho e a levou de volta ao interior da casa. Colocou-a na cama que ambos dormiam e começou a chorar. Laura viu essa cena sem conseguir entender nada.
— Como pode o meu pai, um homem que para cada cem palavras que saem da sua boca, noventa e nove são ódio e desprezo, estar sofrendo? Sofrendo pela morte da mulher que ele jamais falou: “Eu te amo”? — Laura disse que se indagou naquele momento. Ela nunca o tinha visto falar algo bonito para a esposa, nem para a filha, nem para si mesmo. Apenas as suas lamúrias e frustrações, pesadelos e decepções.
“Como pode esse homem estar chorando?”, Laura pensou. “Como pode esse homem amar alguém?”, Laura pensou. Ela ficou atrás da porta, observando-o, assustada, sem reação. O seu pai implorava a Deus para que a sua esposa pudesse voltar, pois, sem condições de levá-la a um hospital, só restava rezar. E ele rezou como qualquer pessoa desesperada faria.
A sua mãe, então, partiu, e com aquele lixo a deixou.
O enterro foi feito e a vida continuou igual, até que, certo dia, algo ocorreu.
Esperta, Laura sabia que não poderia mais viver naquela casa. Não poderia mais viver com o homem que ela era obrigada a chamar de pai. Desesperada, mas esperançosa, pegou as suas poucas roupas, os seus cadernos e livros, e colocou tudo dentro da sua mochila surrada, cheia de buracos, forçando até onde podia, pois não queria deixar nada para trás, apenas uma única coisa que já não amava mais.
Era de noite e uma leve, fria e desconhecida garoa decidira aparecer, após um inexistente tempo ausente.
— Era como se o céu chorasse por mim — ela me falou.
O seu pai dormia, apagado, após várias garrafas e quantidades exorbitantes de álcool. E diante da possibilidade, Laura correu como nunca em busca da sua liberdade. Abriu a velha porta de madeira, destrancou o enferrujado portão de latão e, finalmente, libertou-se. Estava livre daquela prisão que chamara de lar durante tanto tempo. E embaixo de um céu negro choroso, que a abraçava, Laura abriu os braços, olhou para cima e, por complacência, retribuiu com lágrimas. Mas não era um choro de tristeza, de perda ou de dor. Era um choro de vida, de que, ali, a partir daquele momento, ela poderia tudo, poderia qualquer coisa. Então, soltou o grito mais forte, mais alto e mais verdadeiro que uma garotinha magricela poderia soltar. Ninguém ouviu...
E não eram para escutar.
Pois o grito era para si mesma. Para lembrá-la de que a sua vida valia algo, que não era apenas mais uma insignificância largada entre tantas outras. Que ela poderia, queria e iria ser vista — e, atrás disso, Laura foi.
Para alguns, talvez, saber que uma menina de doze anos, sozinha na mais vasta escuridão da noite, na mais isolada cidade, poderia soar como um pesadelo, o fim da estrada, o ponto final. Mas para Laura era apenas o início, pois ainda havia muito que fazer. Muito que viver. Ela não se acovardou perante a solidão. Isso, na verdade, deu-lhe coragem, afinal, sabia o que queria, sabia o que buscava. E apesar da pouca idade, já era madura, devido ao que ara. E
disposta em ir à busca do seu destino, almejando ser alguém, não pararia até conseguir.
E parece que nunca parou.
Enfrentou muitas lutas e dificuldades. Os dias foram árduos e às noites avassaladoras. Perigos a espreitavam. Por isso, sempre mantinha a atenção redobrada. E durante anos, Laura teve que ar essa vida, até que a própria a libertou. Depois de tudo isso, ela conseguiu uma luz, uma alegria, um sorriso. E a felicidade, enfim, não é mais um estranho desconhecido.
Hoje em dia, ela é uma grande jornalista — em ascensão, para ser sincera — que busca ajudar as pessoas, pois ninguém nunca a ajudou. Aliás, teve uma sim. Eu fui a primeira que, por razão nenhuma, disse-lhe:
— Pode deixar comigo — por que eu fiz isso? Não faço a menor ideia.
Ela me disse que foi a primeira vez que ouviu isso de alguém, sem quererem algo em troca. Eu até me lembro do seu rosto e dos seus olhos. Ambos pareciam não acreditar. Eu lembro porque contrastou com a minha aparência morta. Ela, então, abriu um doce sorriso e me abraçou. Fiquei parada, sem reação. Não esperava por isso. Foi algo que me mostrou, e que me lembrou...
Da droga de pessoa que eu sou.
Digo à Laura para entrar.
A sua educação a faz abrir a porta com cuidado. Ela não gosta de provocar nenhuma situação que possa me irritar — já falei a ela que isso não é necessário.
Laura está usando uma camisa branca, sem marcas ou desenhos, e uma calça toda moderna. O seu iluminado cabelo está solto, e o brilho é reluzente e o cheiro é macio. Com um sorriso agridoce, a sua presença se faz radiante e encantadora.
Ela vem até mim e pergunta se eu tenho mais conselhos (ela usa essa palavra) para dar. Ela anda fazendo bastante isso, ultimamente. Hummm... Parece que as minhas dicas anteriores, pelo jeito, não surtiram efeito.
— Vou te dar uma nova — digo a ela. — Não entre em contato com certas figuras, pois pode ser muito perigoso — afinal, foi o que o meu ado me ensinou.
Ela não fala nada, apenas me olha de um jeito curioso. Parece querer entender o motivo para eu ter falado isso. Ela sabe do meu ado, mas parece que ainda tem dificuldades para compreender o que eu sou.
Ela me falou que, ainda longe de Agonia, desconhecia o que acontecia fora do seu mundo, fora da sua realidade. Laura ainda morava na sua cidade natal. Uma cidade quieta, renegada, hostilizada pela presença quase que infinita de fortes ventos, que insistiam em querer preservar tamanha irrelevância. Pela presença de pequenas árvores que, com o seu verde opaco, teimavam em extinguir a mais ínfima possibilidade de vida presente naquela morbidez árida. Pela presença da terra seca que não queria trazer esperança aos pés que nela pisavam. Pela presença do céu desbotado e que já não recordava mais de quando fora azul. Pela
presença do estúpido sol que gostava de queimar aquela paisagem sépia e quebrada.
Laura ainda estava na mesma cidade que conhecia desde sempre.
Apesar de já ser uma adolescente que trabalhava e se cuidava sozinha, ela não tinha o a nada, pois às notícias não chegavam por lá da mesma maneira que em uma grande metrópole. E por mais que a minha história tenha repercutido em todo o país, Laura permanecia isolada em uma pequena parte desta nação, aonde poucos chegam e quase nenhum sai.
Em uma cidade afastada de tudo, inclusive da vida.
Nascer lá significava — e significa — estar preso em uma bolha impenetrável de absolutamente nada. Mas indo contra todas as circunstâncias, todas as certezas, nesse pedaço de mundo uma vida teimava em existir, teimava em lutar. Ela queria ser vista, ser ecoada, mostrar para a galáxia que, sim, era real. Que era algo. Que era alguém. Laura é, talvez, a única prova de que lá exista algo maior do que o esquecimento, do que o abandono, do que o tempo. Ela é a prova de que um coração que bate, um coração que pulsa, é o suficiente para continuar acreditando, e assim, seguir lutando, até não poder mais.
Mas nem todos conseguem fazer desse jeito...
— Laura? — o que eu disse teve o efeito contrário. Ela está interessada em ir atrás do que eu falei para não ir. Eu insisto para que deixe de lado, mas ela não me ouve. É determinada e persistente, mas também é teimosa. E depois de tudo o que ou, não será uma colega do trabalho que a impedirá de seguir adiante.
Não foi por mim que ela soube o que eu fiz.
Foi bombardeada por todos os lados, assim que chegou à Agonia, com notícias a respeito do meu ado, mesmo anos após do acontecido. Eu sei que ela ficou chocada, mas nunca demonstrou medo. Na verdade, ela sempre foi gentil comigo. Por isso, penso em contar a minha história, pois, certamente, eu posso convencê-la do contrário.
Mas não faço.
Não sei se eu quero conversar com ela, ou com outros, a respeito das minhas merdas. Não quero que ela sinta pena de mim. Não por orgulho ou arrogância. Vaidade ou soberba. É por que eu não mereço. Não somente dela, mas... De ninguém. Afinal, a sua vida é a prova de que é possível superar tudo. Tentar de tudo. E, com certeza, ela tentará me animar. Tentará me consolar...
Mas eu não quero.
Eu preciso ser assim, ser isso, para quando chegar a hora, eu possa executar a minha vida, e a minha doce Sarah e o meu querido pai...
— Karen?
— Você é quem sabe — respondo-a.
Não posso dizer que eu a ajudei, mas dei certas possibilidades. Acho que ela sempre será grata pelo que eu fiz. A sua amizade é algo que eu nunca entendi e... Quero dizer, a amizade dela por mim, já que o contrário (acho que) não existe. Fora o trabalho, eu quase não falo com ela, quase não brinco com ela. Apenas de vez em quando, de vez em quando mesmo, pergunto-lhe como está a vida. Ela parece ficar feliz por esses momentos, por esses poucos momentos em que finjo me importar.
E ela sempre aproveita para falar tudo.
Fala de quando sai para andar no parque, irando as flores que engrandecem tal lugar. Das crianças que brincam e dos pássaros que cantam. Dos namorados que se beijam e das famílias que eiam. Também fala que adora ficar sentada em um banco qualquer com o seu doce companheiro: uma pequena casquinha de caramelo com pedaços de marshmallows. E que anseia o chegar do entardecer para se despedir do sol no fim do dia, e, assim, poder olhar o aparecer das estrelas no início da noite.
É uma boa menina...
Laura se levanta toda sorridente e entusiasmada. Anda até a porta e a abre. Porém, antes de sair, vira-se para mim, ainda sorrindo, e se despede com um amigável sorriso. Eu vejo isso e imagino o que o futuro aguarda para ela, já que a sua vida, após muito esforço, está andando em uma direção que a deixa feliz.
Eu estou “ajudando” no seguinte caso.
Laura está trabalhando em uma série de assassinatos que começou há, exatamente, um mês, aqui em Agonia. Jovens são mortos como se não fossem nada. Com um único tiro na cabeça, quem quer que esteja fazendo isso, acaba com eles, fazendo os cérebros escorrerem pelos furos nos crânios. E um líquido rosado e espesso se contrai todo para poder vazar pelo orifício. Por que esse ser faz isso? Há várias opções. Pode ser para sentir o prazer de ver a vida esvair dos corpos. Pode ser para apreciar a sensação de ser o juiz que imporá o fim em suas existências. Pode ser por achar divertido.
Pode ser por nada.
Quando eu soube desses assassinatos, bem no comecinho, fui até o Afonso para falar que eu iria investigá-los — só que ele falou que a Laura já iniciara. Ainda assim, perguntou se eu gostaria de tomá-lo.
— Deixe nas mãos dela — Afonso sorriu como se esperasse por essa minha resposta.
Após a Laura sair, volto a pesquisar por algo interessante e que eu possa investigar. Há infinitos mistérios para serem resolvidos nesta cidade. Em Agonia, há muita bosta no ar. Tráfico (é o mais leve), suicídios, sacrifícios, torturas (além de snuff movies), abusos (também há os assassinos que praticam necrofilia), canibalismo, esquartejamento, experiências científicas ilegais e, talvez, bruxaria.
Um milhão de atrocidades.
Durante a minha pesquisa, deparo-me com um caso com potencial. Uma criança
foi encontrada morta, há mais de dois meses, com sinais de violência extrema, jogada na rua de uma das regiões mais pobres e repulsivas da cidade.
— Eu me lembro. Um pouco, mas me lembro. O pessoal daqui não quis ir atrás. O Afonso até os ameaçou.
Leio mais a respeito e vejo que a polícia ainda não descobriu quem foi. Penso que, talvez, eles não queiram descobrir quem foi. Não seria a primeira vez.
— Vamos ver — preciso lembrar mais.
O nome da criança é (era) Alícia. Uma pequena menina, cor de âmbar, de nove anos. O seu curto cabelo liso era mais negro do que a imensidão do universo. E os seus olhos vermelhos lembravam duas esferas de sangue.
Alícia era natural de Melancolia, nossa elegante vizinha.
— Melancolia...
Diferente de Agonia, Melancolia é reconhecida, e reverenciada, por sua beleza melódica e sua eloquência soturna. Lá, às noites são infinitas, intermináveis. Às belas construções, levantadas há séculos, agraciam os seus moradores e visitantes. Às antiquadas lamparinas iluminam e aquecem, com a sua morna e aconchegante luz, às singelas ruas e as peculiares pessoas. Não há muitas árvores no seu núcleo, apenas as casas se fazem presentes. Agora, em alguns lugares, como: parques, jardins e bairros afastados, a natureza ocupa o seu devido lugar.
Mas, de fato, o concreto está no cerne da cidade.
Os seus habitantes se escondem sob as escuras e largas vestimentas, como se quisessem fugir do sol, mesmo o pouco que há. Também existem muitos sorrisos e muita alegria no rosto dos moradores. As pessoas cantam e riem. Um eterno estado de excitação perpetua-se. Mas, em Melancolia, tudo é introspectivo. Se fosse em outro lugar, todas essas ações e gestos dariam a entender que há muitas pessoas deprimidas.
Lá, há uma serenidade quase que angelical, divina, que se mistura com uma profundeza escura, abismal. Por isso que, às vezes, Melancolia parece querer calar-se. Muitos dizem, aliás, que é uma cidade depressiva e triste. Um lugar que apenas pessoas infelizes gostariam de ir morar, para serem envolvidas por escuridão permanente. Muitos imaginam que seja um poço de desesperança, de desânimo, de solidão. Se essas pessoas procurassem conhecê-la, veriam o quão errado elas estão.
Esta é uma percepção poética demais, pois nada é tão perfeito assim. Mas é a visão que eu tenho, graças a minha mãe, que pôde ar um tempo por lá, e me contou tudo isso desta maneira. Então, até eu poder conhecê-la pessoalmente, ficarei com esta visão fabulosa.
Continuo lendo sobre o caso e descubro mais a respeito da família.
Alícia era uma criança que gostava de ler. Os seus livros favoritos eram os de fantasia. Quando eu era criança também lia esse tipo de literatura — por sorte, não herdei o mesmo gosto dos meus pais: os romances melosos —, pois era a única que tentava me despertar alguma coisa. Poder, por meio das palavras, imaginar animais falantes e flores dançantes era instigante, já que, na realidade, nada me satisfazia, nada tampava este meu maldito vácuo.
Alícia, por questões familiares, precisou mudar para Agonia — com os seus pais, é claro. Estudava na escola de manhã, e no restante do dia ficava em casa ou na biblioteca. Em ambas, o resultado era o mesmo: viajava, durante horas e mais horas, sonhando na infinidade de mundos que podia visitar, nos mais variados livros.
No seu último dia optou por ir à biblioteca.
A sua mãe, uma mulher de longos e lisos cabelos pretos, era professora. Alta, de pele igual a da filha, tinha uma beleza única. E o seu comprido cabelo, que vivia preso em um coque, mais os óculos em frente dos olhos castanho-escuros, a saia cor de vinho, que vai até o tornozelo, e a camisa preta que encobre os seus braços, barriga e seios, dão-lhe uma aura verdadeira, e estereotipada, de professora. Imagino que ela exigia que a Alícia se esforçasse nos estudos para que, caso falhasse, soubesse que, ao menos, tentou e deu o seu melhor.
Eu paro de ler.
— Então, é isso que o que houve com ela — os meus olhos voltam no tempo. — Certamente, não ou encontrá-la jogada como se fosse lixo na rua daquele bairro encardido.
Volto a ler.
Alícia também gostava de ear por Agonia com a sua mãe e com o seu pai. Pai, inclusive, que era escritor. Foi dele que a pequenina adquiriu o gosto por ler
contos e poemas. Crônicas e fábulas. Histórias e estórias. O seu pai escrevia a respeito de tudo: romance, fantasia, ficção científica, terror, comédia, drama. Não por que era incapaz de fazer uma escolha, mas por ser um exímio profissional, versátil e talentoso — tudo isso graças ao universo que pôde conhecer quando era criança, ao viajar pelo mundo. O seu pai, avô da Alícia, era um diplomata e vivia tendo que saltar de país em país. Essa possibilidade deu ao filho uma aventura surreal. No exterior conheceu de tudo, mas foi aqui, em seu país de origem, que mais aproveitou. No sul, pôde visitar as cristalinas e gélidas águas e às densas e colossais montanhas. No leste, pôde ver às verdes e serenas planícies e os graciosos animais campestres. Também foi ao norte, mas lá, penso eu, não deve ter apreciado.
Mais alto do que a sua companheira, da mesma cor apresentava-se. O cabelo preto era curto, mas o suficiente para pentear tudo para trás. Os olhos vermelhos, que Alícia adquirira, eram como duas rubis. O brilho era tão intenso, e denso, que se fossem retirados do seu rosto e jogados na extensão do universo, conseguiriam se destacar perante as incontáveis estrelas que habitam o infinito.
— Então, foi assim que tudo terminou — chego ao fim.
Eles a deixaram na biblioteca da cidade e foram fazer compras. aram-se os segundos, os minutos, as horas. Quando à noite chegou, foram em busca do seu maior tesouro. Voltaram à biblioteca para reverem a querida filha. Esperaram, dentro do carro, ela sair e na direção deles andar.
— Com a demora, imagino que a preocupação começou a surgir.
O pai pegou o celular e telefonou para a filha, esperando que, do outro lado, a voz da menina fosse emergir. Porém, foi o silêncio devastador que fez a sua alma tremer e o seu coração sangrar. E a mãe, aguardando uma resposta do marido,
percebeu que algo não estava certo. Quando ia perguntar o que estava acontecendo, o pai, novamente, telefonou. Dessa vez, alguém respondeu. Ele, pensando ser a Alícia, por um momento, extremamente breve, ficou aliviado, mas no momento em que ouviu a voz, percebeu que não era a filha quem falava do outro lado.
Uma risada grave, rouca, vil e desconhecida foi o que surgiu.
O pai não devia saber o que fazer, não devia saber o que pensar. Ele abriu a porta do carro com tanta força que quase a quebrou, e desesperado correu rumo à biblioteca. A mãe, sem entender nada, seguiu-o, logo atrás. Lá dentro, viu o marido desnorteado, correndo para todos os lados, perguntando a todos se uma pequena menina, cor de âmbar, ainda estava, ou esteve, por lá. Alguns falaram que não. Outros nem responderam. O pai voltou a colocar o celular no ouvido e a risada, aquela risada maldita, continuava assombrando-o. Pegou a mão da sua esposa e, com ela, correu de volta ao carro, sem saber aonde ir.
A angústia tornou-se pior com a chegada do amanhecer de um novo dia.
O casal foi notificado de que uma criança semelhante fora encontrada. Foram até o local querendo acreditar que a Alícia ainda estaria viva. Porém, a vida não foi amigável — nunca é.
A mãe, ao vê-la morta, naquele lugar, daquela maneira, soltou uma risada estridente, aterrorizante, desoladora, e capaz de fazer a pessoa mais corajosa do mundo se curvar de dor. E imersa em um sofrimento dantesco, caiu em uma mistura de grito e choro, criando sons indecifráveis, que se espalharam por todo o bairro. As pessoas, algumas assustadas, outras nem aí, ficaram olhando-a, enquanto um som cortante a tomava.
O pai ficou estático, parecido com uma estátua, apenas vendo os cortes e hematomas no corpo morto, na carne desfigurada do cadáver da filha.
—...
Por ser escritor, nas obras de horror ele sempre descrevia as mais terríveis histórias e as mais terríveis mortes — tudo arte, não havia nada, além disso. Agora, naquele momento, em pé, de frente a violência horrenda no corpo da Alícia, uma epifania finalmente o visitou. E enlouquecido pela perda da sua princesa, da maneira que aparentemente acontecera, trancou-se em um quarto vagabundo qualquer, e durante um mês escreveu.
Não comia. Não bebia. Não dormia.
Apenas queria terminar de escrever o seu último conto. Um conto a respeito de uma garotinha que fora morta por um vulto, por uma sombra, por qualquer razão vazia.
Sua esposa, transtornada, está trancada em um hospício, aqui em Agonia.
O pai, já sem forças para continuar, adormeceu, para nunca mais acordar. A sua história, porém, concluiu. É a respeito de uma garotinha que se foi pelas mãos de um desconhecido. E ela, sem saber o porquê, quando chegou ao céu, para Deus, só restou perguntar: — Por que aqui, Senhor, eu vim parar?
Acabo de ler.
— Quem escreveu esse texto precisa melhorar muito — dou uma coçada nos cabelos e olho para uma foto da Alícia na reportagem. — O bosta que fez isso com ela ainda está por aí — eu paro por um momento. —... — decido ir até o Afonso para avisá-lo da nova investigação que irei assumir.
Eu me levanto toda dolorida, pois tenho o hábito de sentar toda torta e desconfortável. Saio da sala. No fim do corredor, a minha direita, Laura está conversando com outra colega de trabalho. Parece estar animada. Ela acena para mim; eu retribuo.
Garota simpática.
Antes de ir ver o Afonso, decido pegar algo para comer. Há, aqui no jornal, algumas dessas máquinas cheias de doces e bebidas. Então, escolho uma barra de chocolate e uma lata de refrigerante. Com algumas mordidas, eu termino rapidamente de comer. Alguns goles são suficientes para matar a minha sede.
Entro na sala do Afonso sem pedir licença, pois é da minha pouca educação fazer isso. Ele está conversando com alguém pelo telefone. Sento-me na cadeira que fica em frente à mesa e espero ele desligar. Toda a sua disposição na conversa me parece exagerada. É como se ele estivesse em uma luta contra um forte adversário.
Afonso, após um bom tempo, finalmente desliga.
— Pois não? — debochadamente, pergunta.
— Conversa difícil?
— Não é nada demais — não foi o que pareceu. Ele mexe em algumas folhas e pastas. — Então, Karen... — olha para mim. — Desculpe não ter falado mais cedo (estava uma loucura), mas... Muito bom o texto que você fez! Você tem mesmo o dom da escrita! — de novo esse elogio. — E parabéns por ter descoberto quem era o culpado! Você é demais, garota!
— Sei... Tenho um novo caso — minha resposta desmancha o seu sorriso.
— Impaciente ainda? — não o respondo. — Tudo bem. Vai lá, então. Pode começar.
Assim, apresento o novo caso que eu quero trabalhar, e o Afonso, pronto para ouvir, ajeita-se na cadeira. Então, comento a respeito do momento em que os pais deixaram a Alícia na biblioteca. O abraço e o beijo que deram nela. Conto dos sorrisos que guiavam a pequena em direção àquele universo literário. Conto da ansiedade e da expectativa que a mãe e o pai tinham, no fim do dia, para reverem a filha ao chegarem para buscá-la. Conto do tempo que permaneceram no carro, e do desespero por não conseguirem falar com ela pelo celular; e da risada maligna que surgiu do outro lado. Conto da loucura que tomou a mãe, instantaneamente, ao ver o fim sobre a filha, e da insanidade que fez o pai se trancar em um quarto, a fim de escrever uma história macabra para retratar o adeus da querida Alícia. Conto dos gritos que ecoam pelo hospício, chamando-a, até hoje. Conto do corpo morto já sem vida.
Eu termino.
Parado, Afonso apenas olha para o meu rosto. Durante todo esse tempo que trabalho para ele, não é a primeira vez que ele reage assim. Afonso já sabia desse crime, mas não tinha ouvido da maneira que deveria ter sido contado. Eu sou a única que consegue fazê-lo ficar sem reação — e os nossos leitores. Por isso sou boa no que faço. Por isso sou a melhor por aqui.
Apesar do tempo que já ou, desde o crime, o Afonso não conseguiu fazer os seus jornalistas irem investigar. Não conseguiu fazê-los aceitarem essa porcaria. Poucos têm estômago e cabeça para lidar com esse tipo de bosta. Laura e eu somos as únicas da editoria criminal, policial, sei lá. Mas, dependendo da situação, caso seja mais “leve”, outros também se arriscam. Porém, neste caso, como a Laura e eu estávamos ocupadas, o Afonso tentou ar para outro — e falhou miseravelmente.
“Por sem quem eu sou, e pelo que eu fiz, no final, era apenas mais um caso.”
Afonso apenas concorda e faz um gesto com a cabeça. Entendo que é para eu sair. Do lado de fora, eu o vejo derramar-se em lágrimas sobre a mesa. Essa nunca é a minha intenção. Ele apenas (sempre) me pede para contar as histórias do meu jeito. Nunca lhe perguntei a origem disso.
Retorno a minha sala.
— Começo agora? — olho para o relógio na parede. Ainda são oito e dez. —... — dou uma suspirada cansada. — Melhor começar a investigar logo — pego um bloco de anotações, algumas canetas, um gravador, ponho tudo na minha
mochila.
Saio.
Por trabalhar em um edifício relativamente grande, eu preciso descer alguns andares — o prédio não é exclusivo do jornal, há outras empresas por aqui. Não uso o elevador, prefiro descer as escadas andando.
Chego à parte de baixo e vejo várias pessoas trabalhando.
Todo dia isso...
Todos agitados, correndo de um lado ao outro, afobados para resolverem os problemas pelos quais são responsáveis. Quais são as suas razões? Quais são os seus motivos? O que os faz seguir em frente? O que será que tudo isso significa? Tudo isso... Tudo isso é...
Insignificante.
Mesmo assim, eu procuro absorver tudo e deixar bem fundo, escondido, e jogar ainda mais por cima. Tudo o que for possível para ar a minha vida, pois preciso continuar. Jamais posso me esquecer de toda a tragédia que eu trouxe. Não seria justo com elas. Não seria justo comigo.
Sim...
Eu, após várias semanas naquele quarto, decidi que a minha vida iria ter um propósito. Um propósito que ela jamais teve. Um propósito que eu jamais vi.
Fazer aquele verme pagar pelos meus erros.
Eu decidi que iria levá-lo junto comigo ao lugar que nós merecemos estar: o mais profundo e escuro buraco que possa existir na porra do inferno. Se essa merda for real, espero ter um lugar guardado ao lado dele, para que eu possa ar a merda da eternidade o vendo sofrer. Pois, poder ouvir o seu grito de dor, ver a sua carne ser dilacerada e sentir o seu sangue ser drenado, não será a minha recompensa, mas, sim...
A minha salvação.
Assim que eu saio do prédio, já pego um maço de cigarros (tenho um monte) que costumo deixar nos bolsos das calças; o isqueiro também. Aliás, os isqueiros!
Cinco, para ser mais específica.
É que tenho receio de eles acabarem e eu estar em algum lugar onde não haja para comprar. E apesar de ter um monte, às vezes, eu me esqueço de que sempre estão comigo.
Costumo olhar para eles.
E pensar o porquê das pessoas consumirem esta porcaria. Isto é podre. Um lixo. Mas, será que assim como eu, as pessoas que fumam esta bosta, buscam punirse? Buscam sofrer? Buscam não se perdoar? Por mais que desejem? Por mais que sonhem? Por mais que implorem?
CAPITULO 4
Eu caminho lentamente por estas ruas, apreciando o sabor amargo do meu amigo. — Está frio — o meu braço esquerdo dói por causa deste clima gelado, e a cicatriz fica mais inchada. Fecho o zíper da jaqueta para evitar que o meu corpo congele. E em minha solidão, sou obrigada a andar por entre os seres que fazem esta cidade funcionar. — Parece que agora não dará para fugir deste circo — mas vou tentar.
Em minha solidão, vejo essas pessoas ocupadas com as suas vidas pífias. Elas andam e correm em uma espécie de baile alucinado, onde não se pode parar, muito menos errar. Vejo o executivo com o seu cabelo bem arrumado, e com a sua gravata combinando com o seu terno bem trabalhado, descendo do seu luxuoso (e caro) carro, rumo à reunião. Vejo o jovem estagiário que precisa se desdobrar para que, no fim, o seu lugar esteja assegurado na empresa em que deseja trabalhar. Vejo a mãe batalhadora, que precisa correr, incansavelmente, com os seus dois filhos pequenos, procurando o melhor para eles poder dar. Vejo o já experiente homem velho que, no auge dos seus setenta anos, ainda tem disposição para, na banca de jornal, trabalhar. Vejo toda essa vida agitada, contínua, aqui fora, correndo em volta de mim, e não deixo de pensar em como tudo isso é inútil. Em como tudo isso é...
Vazio.
E apesar de continuar por Sarah, não consigo deixar de ver toda essa roda funcionando, sem pensar: “Para que, se amanhã podemos nos apagar?”.
Eu ligo para o hospício para saber se posso falar com a mãe da Alícia. Não demora e, logo, sou atendida por uma mulher. Explico quem eu sou e o que quero fazer. Ela pede para eu aguardar um pouco (deve ter ido falar com o responsável).
— Alô? Você ainda está aí, jornalista? — ela retorna.
— Sim.
E sem criar empecilhos, ela diz que está tudo bem, e que posso ir, mas fala que, desde a tragédia, a mãe não se comunica com ninguém.
Tanto faz.
Com a visita agendada, primeiramente vou ao local em que a Alícia foi descartada. É um lugar que faria qualquer ser humano racional desejar a morte. Se bem que, apesar da situação degradante que hoje impera, antigamente não era bem assim. Pelo menos, o bairro tem um nome agradável. Veio de um folclórico morador que pisou com os seus pés por lá, séculos atrás.
O nome foi dado em homenagem a um curioso comerciante estrangeiro, que tinha as mais exóticas e estranhas lâmpadas, nunca antes vistas em Agonia. A princípio, eram as suas mercadorias, mas, no fim, tornou-se algo maior. E ele tinha de todos os tipos e formatos. Redondas. Simétricas. Algumas eram bem compridas. Outras tão pequenas que poderiam iluminar o interior de uma formiga. E as luzes eram tão belas, pareciam vivas.
— Com certeza, com muita concentração, podemos vê-las por aí, andando e cantando por todos os lados — deixo a fumaça do cigarro sair da minha boca, e “sorrio”, por causa dessa ingênua história besta que, há tempos, é contada.
A história diz que ele veio de bem longe, de outro país, talvez. Pequenino, e moreno, com uma farta cabeleira aveludada, chegou carregando uma enorme mochila nas costas, toda lotada com a sua única mercadoria — cuidadosamente guardada.
O bairro não costumava ter um nome tão retumbante. Na verdade, não havia um nome sequer. Era apenas um bairro qualquer, com poucas famílias ranzinzas morando nele. Os demais moradores — a maioria — eram doentes abandonados, largados. Velhos, jovens, adultos e crianças. Havia de tudo. Como um depósito para a morte, todos eram deixados à própria sorte.
Ninguém os queria mais. Nem as suas mães, os seus irmãos e os seus pais. Era um lugar para se despedirem da vida que tiveram e da vida que viveram. E da vida que já não poderiam mais.
As várias casas, que hoje estão caídas, ferradas e infestadas de viciados, vagabundos e bandidos, e que preenchem as ruas e os quarteirões, eram cheias de enfermeiros e médicos, todos dispostos a tratarem os seus queridos pacientes. Não havia esperança, é claro. Sabiam apenas que esperavam a escuridão. Só que os mais animados ainda queriam viver o que sempre sonhavam. Porém, quando os seus olhos (pela manhã) saíam dos sonhos, lembravam-se de que tudo não ava dos seus desejos mais intensos, que se manifestavam em suas inconsciências tardias, dispersos em suas fábulas amigas.
Os enfermeiros, com as suas solícitas mãos, tratava-os tão bem que, se pudessem, ficariam para sempre ao lado deles. Mas não podiam. Afinal, não
tinham a cura para a maior doença que acomete a vida. E os médicos, calmamente, iam de quarto em quarto, olhando as suas filhas e filhos. Não queriam respeito, nem reconhecimento. Gostariam, somente, de verem os seus pacientes serem libertos de tanta dor, de tanto sofrimento. Por isso, andavam e andavam, de um lado ao outro, sem se importarem com o próprio sono, com a própria fome, com o próprio corpo. E todos eles, mesmo sabendo que jamais conseguiriam evitar que as vidas, fadadas e condenadas, fossem mantidas, sempre que o apagar da luz chegava não sabiam lidar com os sinos da despedida.
— Essa história é curiosa — dou outra tragada, já soltando a fumaça.
O visitante chegou de noite, quando o silêncio cantava. Os pássaros, o vento, as árvores, as casas, a lua e as estrelas abraçavam o reinar do cântico aquietado. Não havia um único som ou ruído. O homenzinho, sem ter onde ficar, então, caminhou até um bosque para poder repousar o seu corpo cansado. Esse bosque já não existe mais. Foi destruído, pois queriam construir alguma merda no lugar — mas isso também não aconteceu. E quanto ao bairro: tornou-se um grande esgoto cheio de bosta.
Não tinha nada de especial nesse bosque — bem, na verdade, até que tinha. Os carvalhos eram a maioria. E não havia muitas flores, apenas algumas rosas tímidas. E bem no centro um encantador flamboiã imperava, com a sua vermelhidão que não aceitava ser ignorada. O pequeno homem o viu e ficou imóvel, apenas olhando para o sinônimo de maravilha. Ele nunca tinha visto algo tão encantador. Andou, lentamente, como se esperasse permissão para aproximar-se. Com a sua pesada mochila nas costas, aos poucos, pôde finalmente tocá-lo. E dizem que ele se apaixonou de imediato.
O homenzinho, já exausto, foi descansar o seu pequeno corpo sob o aconchego do seu novo amigo. No dia seguinte, acordou disposto a ter onde morar. Bateu de porta em porta, mas sempre diziam: — Vá embora! Aqui jamais será o seu lar. Ele ouvia essas palavras e saía. Mas não triste e desanimado, infeliz e
fracassado. Pois sabia que tão longa quanto a sua viagem, seria a sua vida nessa nova paisagem. Então, andou durante dias sem ter uma cama para descansar, mas já não se importava mais. Aos poucos, foi percebendo que aquele bosque, aquele flamboiã, seria o seu destino. Por isso, desistiu de bater às portas e lá foi morar.
Mesmo com as rejeições e maus-tratos, o vendedor de lâmpadas começou a fazer algo gentil: visitar os enfermos, pois adorava ouvir as histórias que eles contavam. Por exemplo, ouvir a jovem garotinha, cor de açúcar caramelizado, e de cabelos ondulados, falar que adorava ear com os seus pais aos sábados, enquanto apreciava os sons dos sabiás. Ouvir a solitária mulher que nunca tivera um namorado e que se arrependia, todos os dias, por não ter por alguém se apaixonado. Ouvir a velha senhora que já aceitara o seu fim iminente, mas que adorava relembrar da época em que fora uma bibliotecária, próxima dos infinitos mundos e universos literários, sempre com o seu sorriso ardente.
Tudo isso, para ele, era um presente sagrado que não poderia ser recusado. Porém, sempre sentia um pesar quando escutava histórias obscuras, como se uma parte sua estivesse sendo arrancada. Não deixava de ouvi-las, pois, para os pacientes, tal momento era alentador. Afinal, apenas queriam ser ouvidos para fazer toda a miséria e pavor desaparecerem por alguns segundos, alguns minutos, algumas horas. O homenzinho sabia disso, por isso mantinha um sorriso constante no rosto, mesmo com a tristeza incomodando. Até mesmo os gentis enfermeiros e os ativos médicos não davam esse tipo de atenção. Eles se preocupavam mais com o corpo, não com o coração.
A história também diz que o homenzinho dava, alegremente, para todos que conhecia uma das suas lâmpadas.
— Eu não tenho dinheiro — ele escutava.
— Não se preocupe com isso — ele respondia.
Por meio da luz quente que emanava das místicas lâmpadas, o homenzinho dizia que as dores e as dificuldades, da estadia neste mundo, não poderiam vencer o desejo de querer continuar, nem que fosse por mais um desprezível segundo.
E por mais pobre que tenha sido a sua permanência no bairro, sem riquezas ou casas, ele conseguiu fazer algo que dinheiro nenhum poderia.
Não se sabe ao certo por quanto tempo ele andou por Agonia, pois a história quase se perdeu e por vias tortas ainda é contada. Porém, a sua presença foi tão intensa e forte que até hoje o seu nome ecoa como uma benção. Uma benção que, por meio de preces louvadas, todos esperam que traga sorte.
Quando a morte o visitou, os enfermeiros, os médicos e os poucos doentes que conseguiam andar, fizeram uma linda cerimônia de despedida. E as suas lâmpadas que iluminaram vários corações, então, mostravam o caminho para, quem sabe, um melhor lugar. E embaixo do seu querido amigo, todos choraram, todos lamentaram, pois teriam que aprender a viver sem ele. E por mais que a sua morte fosse sentida, todos sabiam que, agora, teriam alguém para recebê-los quando chegasse a hora de cada um viajar.
Hoje em dia, esse lugar não é mais assim. Esta cidade levantada pelo ódio fez as trevas recaírem sobre o solo, e acabou com toda a pureza que existia graças a ele. O bairro tornou-se uma merda de um calvário cheio de porcarias humanas.
Continuo fumando. Ainda falta um pouco até eu chegar.
Eu posso chamar um táxi, mas, para me sentir em casa, prefiro apreciar este gosto da desilusão que tanto me encanta. Este gosto da desesperança que tanto me clama.
Continuo andando e, conforme me aproximo do bairro, sou recebida por um pouco da sua natureza intragável.
Durante o meu caminhar, vejo homens consumindo todo tipo de droga, como se fossem crianças que acabaram de ganhar empolgantes pirulitos e os dentes não terão que escovar. Esses homens imundos, repulsivos, encobertos pelo asco, são meras sombras que jamais irão ver a luz na metade que ilumina o mundo. Despidos de esperança, vivem as suas falidas vidas largados nas calçadas molhadas pelas urinas dos cachorros. Nelas, eles vivem os seus sonhos, cheiram as suas fantasias e injetam os seus tesouros. E os seus dentes podres e as suas unhas sujas são simples detalhes de uma existência, há muito tempo, sem um futuro.
Durante o meu caminhar, vejo mulheres desnudas expondo os seus seios flácidos, oferecendo para qualquer um que queira pagar indefinidos valores, pois parece que isso já se tornou um mero acaso. As suas pernas tremem, provavelmente cansadas de tantos que por trás as consumiram. Os seus corpos pedem paz, mas as suas luxúrias depravadas não permitem, pois elas querem mais. Estranhamente, eu vejo o orgulho e o prazer em seus olhos, e fico imaginando quando tudo isso deixou de ser ilusório. Aceitaram as suas vidas como elas são. E em vez de ajoelharem por migalhas, escolheram abraçá-las como dádivas, mas que jamais serão.
E os demais, que não fazem parte de todo esse esgoto, não se oferecem para ajudá-los, pois o medo de serem agredidos, de serem roubados, faz-lhes andarem sem olhar para trás.
Continuo o meu caminho.
Eu me aproximo do quarteirão onde a pequena Alícia foi encontrada. Vejo, ainda de longe, que há flores postas no local. Algumas rosas e margaridas, violetas e tulipas. Juntas, fazem uma imagem delicadamente colorida. E essas cores, que tanto destoam deste amargor mefítico, querem trazer o sabor de volta que há muito tempo foi consumido.
— Flores... — elas parecem querer me trazer algo também.
Eu caminho perplexa, tentando entender o porquê de flores tão caras estarem aqui, dispostas e presentes, fazendo serem vistas — após dois meses. Com tantas pessoas desesperadas por dinheiro, como ninguém as roubou? Para eu me livrar desta dúvida, pergunto a uma mulher horrorosa, que acabou de sair dos fundos de uma casa toda torta, e confusa sobre como levantar os shorts. Ela diz, dispersa em sua perversão, e ainda extasiada ao que fez a um cliente, que é uma homenagem para uma garotinha que foi morta. Pergunto para saber quem deixou as flores no local, mas a mulher não tem a resposta.
— E por que você não as vende? — questiono-a. Ela me pede o cigarro. Entrego. Enquanto dá uma tragada profunda, a mulher tenta, ao máximo, responder com a pouca energia que lhe sobrou.
— Ninguém aqui vai tirá essas flor daí! — princípios, era só o que me faltava! — Ouviu? Gostosona! — humpf! Ela conseguiu “falar”, mexendo o seu magro e cadavérico corpo. Não era a resposta que eu esperava, mas faz sentido, vindo de uma viciada moribunda. A tranqueira vai para algum lugar, e eu fico olhando mais um pouco. Decido ir embora sem falar com mais ninguém.
Sempre que eu assumo um caso, costumo ir até os locais em que as vítimas foram encontradas (quando são encontradas), mas não, necessariamente, para obter informações que possam me ajudar. É apenas uma mania minha. Não sinto compaixão, respeito, empatia. Não me importo com o que aconteceu com essas pessoas nos últimos instantes das suas vidas.
Eu não sinto nada.
Não sou assim por causa do que ei ou vivi. É uma marca da minha existência. É uma marca que sempre habitou em mim. É uma marca que eu gostaria de perder. Perder... Quando eu era mais jovem não a entendia — e acho que ainda não a entendo —, por isso tentava mantê-la presa, pois eu não sabia como poderia enfrentá-la. De que maneira poderia enfrentá-la. Mas era difícil...
Ainda é difícil.
O meu interior era (é) vazio, e por mais que eu sorrisse e “demonstrasse” alegria, por dentro nada permanecia. E desde sempre convivo com uma angústia aflitiva e com um eco infinito, que se recusam a sumir. Mas, sim, houve momentos verdadeiros, onde eu pude experimentar... pude experimentar... Mas eram ocasiões raras, escassas, que se recusavam a serem vistas. Elas vinham somente com a minha mãe, com o meu pai e com a minha Sarah; e também com a Sofia. E eu percebi cedo esta coisa, esta falta de peças, mas nunca falei para eles — se bem que eu acho que a minha mãe suspeitava. Então, eu apenas vivi...
Vivo, mesmo não querendo mais.
Porém, com eles a vida não parecia entediada, inválida, obsoleta. Mas, sim, recheada, morna, aceitável. Então, será que é isso o que uma família é capaz de nos dar? Um sentido para tudo? Até mesmo para uma mulher que não consegue sentir um minúsculo resquício de luz? Até mesmo para uma mulher mais insignificante do que a descartável vida de uma bactéria invisível?
Eu procuro ver todas as trevas que esses lugares manchados pela morte criam. E procuro imaginar o que esses seres, banhados pela morte alheia, sentiram. Será que ficaram nervosos? Ou alegres? Assustados? Ou felizes? O que ou nas suas cabeças? Êxtase? Euforia? Plenitude? Nada?
Em meu andar, também decido ir ao local em que o senhor das lâmpadas descansava (ou morava). É um pouco longe, mas quero ver.
Caminho durante um tempo, e assim que eu chego ao local, sou recepcionada pela decepção. Logo de cara, vejo que realmente não existe mais nada, somente lixo e entulho. O bosque desapareceu por completo. Mesmo assim, sigo por onde costumava ser a trilha que levava até o flamboiã.
Após andar mais um pouco, chego ao seu túmulo e encontro pedras, tijolos e um matagal — mas a lápide está intacta. Se alguém daquela época pudesse ver isso, provavelmente, cairia de cara no chão.
Este lugar marcado pela vida de um pequeno homem, que veio para esta cidade sem saber o que queria, mas que encontrou tudo o que precisava, não existe mais, pois foi consumido pela imensidão do tempo, em companhia do sorriso do esquecimento.
— Hora de voltar — acendo outro cigarro.
Faço o meu caminho de volta, lamentando por não ter tido a experiência de conhecê-lo. Pois, quem sabe...
Ele pudesse me ajudar.
CAPITULO 5
Saio do bairro e sigo até o hospício em que a mãe da Alícia está.
Eu continuo, sem pressa. Como ainda são nove e trinta, decido parar para comer algo em uma lanchonete qualquer. Apesar de tudo o que eu ei, e ainda o, continuo com o hábito de me alimentar a toda hora. A minha mãe dizia, quando eu era criança, que eu me tornaria uma mulher obesa. Eu ouvia isso e achava um paradoxo, pois ela não parava de fazer as suas maravilhosas sobremesas.
— Mãe, você não quer que eu engorde, mas não para de fazer essas delícias — eu falava.
— Não tem problema comer, Karen. O problema é você querer comer tudo — ela respondia.
O glamoroso bolo de chocolate branco, com calda de maracujá por cima, era o meu favorito. Sim, eu comeria tudo sozinha, se pudesse. Só que ela sempre falava para eu dividir com o meu pai e com a Sarah — e com ela, é claro.
Eu me lembro de ela ter feito, uma única vez, um doce típico de Melancolia.
Ela gostava de contar histórias de quando viveu por lá. E toda vez que falava a
respeito, eu percebia em seu olhar uma profunda saudade. Não era algo ruim, tipo uma dor ada. Era aconchegante. Afinal, foi tão rápida a sua estadia em Melancolia, mas tão boa, que os seus olhos desejavam retornar.
Ela também contava das vezes que precisou ajudar a sua mãe, uma exímia confeiteira, nos afazeres profissionais. Sim, a minha mãe também era...
É uma excelente confeiteira.
Infelizmente, o seu pai — o meu avô —, que eu nunca conheci, morreu cedo. Acabara de ar dos trinta anos quando foi surpreendido por uma merda de ataque cardíaco. Ele só pôde viver com a sua filha enquanto ela ainda era uma garotinha. A sua mãe, a minha avó, decidiu, então, voltar à Agonia. E aqui a minha mãe ficou para nunca mais sair. Ela se formou em gastronomia e abriu uma confeitaria, algum tempo depois (ainda era nova). E em homenagem a sua mãe, após a morte dela, mudou o nome do lugar, dando o da sua melhor amiga. Ficando: Confeitaria...
Esmeralda — a minha avó era divertida.
Lá, ei boa parte da minha infância, até que, após a morte do meu querido pai, ela decidiu fechar. Não foi por questões financeiras ou algo do tipo. Ela queria apenas trabalhar e ficar na própria casa, igual quando ajudava a sua mãe...
Próxima das suas filhas.
— Como será que ela está? — dou uma tragada e solto a fumaça, que eia por meu rosto.
Ainda me lembro daquele bolo...
Da receita apenas do maracujá e do chocolate branco. Os demais ingredientes eu não consigo recordar. O sabor era fantástico e, até hoje, eu não esqueço o seu gosto. A cada mordida eu me sentia... O curioso é que por mais que eu comesse — e eu comia muito — sempre estava com fome. Naquela época eu achava normal, algo da juventude, o florescer dos hormônios. Não era isso. Agora, próxima dos trinta, vejo que eu apenas tentava tampar, ridiculamente, este meu completo vazio.
A minha mãe também era uma comedora compulsiva.
Ela adorava sair pela cidade, experimentando todos os tipos de alimentos desconhecidos — normalmente eu a acompanhava. Doces do extremo norte acalorado. Salgados do nosso gélido sul aquietado. Uma vez comemos uma espécie de biscoito — não sei se aquilo era mesmo um biscoito — da animada cidade ao longínquo oeste de Agonia. Eu gostei bastante, pois lembrava uma torta de limão. Já ela falou que não conseguia decifrar o sabor que sentia. E mesmo com a explicação do estranho vendedor, a respeito dos ingredientes, não foi o suficiente para elucidá-la.
A minha mãe parecia uma feiticeira inusitada.
Somente ela para andar, a esmo, em busca de novas comidas. De vez em quando levávamos a Sarah. A caçula, um pouquinho diferente, não era muito
entusiasmada por nossa aventura degustativa — não que ela não gostasse. Apesar de ela adorar comer guloseimas, a pequenina preferia os doces da nossa mãe, da nossa casa...
Da nossa família.
— Lembranças... — jogo o cigarro fora.
Entro na lanchonete e sento em um banco em frente ao balcão. Prontamente sou atendida por um surpreendente e ágil homem velho. Ele pergunta o que vou querer e respondo para me trazer um hambúrguer e uma garrafa de cerveja. Ele parece estranhar uma jovem mulher querer se alimentar com estas bostas tão cedo, ao iniciar de um novo dia. Eu apenas o observo com um semblante cinza.
Então, ele me diz, aparentemente preocupado, que isso não é algo bom para uma linda jovem comer. Ignoro o elogio e falo para ele ir cuidar da porra da própria vida. A cara dele fica mais feia do que já é. Zangado, pelo desrespeito aleatório de uma figura qualquer, pede para um dos seus funcionários, um jovem rapaz, servir-me.
Enquanto espero por minha refeição, apoiando a minha cabeça em uma das mãos, observo um casal que está sentado em uma mesa próxima à janela, conversando.
Eles parecem felizes.
Eu costumo me intrometer com a minha atenção nessas conversas, pois é uma maneira de me machucar. Ver outros seres humanos planejando as suas vidas, o futuro, é algo que incomoda a minha mente, e isso é bom. Manter este desgosto por algo que nunca viverei me ajudará a fazer o que eu mais quero.
Eles conversam a respeito do casamento.
Parece que a mãe dela quer convidar algumas amigas, mas a noiva não quer deixar. O noivo diz que aceitará o que a sua futura esposa decidir. E a noiva, contente por ter o seu companheiro ao seu lado, dá-lhe um molhado beijo e um caloroso abraço. Como esperado, ele a retribui, mas com algo mais simples: um pedaço da sua refeição, dada na boca da sua amada.
A conversa prolonga-se, e entre uma garfada e outra, em suas frutas cobertas por uma geleia esquisita, e entre um gole e outro, em suas bebidas grossas e opacas, eles se olham apaixonados. Eu vejo essa cena e não deixo de lembrar que jamais ei por algo assim. Eu, quando adolescente, via os meninos, rudes e pervertidos, do colégio me cantarem. E na faculdade, antes de eu largar, os rapazes eram mais nojentos, e o meu desânimo ainda mais forte. E nos demais lugares, eu sempre os ignorava.
“Que perda de tempo. Sozinha eu chegarei mais longe.”, eu falava. Eu estava tão certa, tão envolvida neste pensamento, que nunca parei para olhar aqueles que seguiram as suas vidas, e viveram os seus sonhos ao lado de alguém.
Eu tenho um exemplo na minha família.
O meu pai largou um fácil — mas imposto — caminho, construído por seus pais,
para trilhar a própria jornada.
E tudo por amor a minha mãe.
Ele, filho de uma pianista clássica e de um grande cineasta, teve toda a sorte do mundo para, facilmente, alcançar os seus objetivos. E até conhecê-la, no último ano do colégio, foi assim. Após apaixonar-se por minha mãe, e ver toda a força da sua destinada esposa, tomou coragem e decidiu abrir mão de toda a facilidade que tinha.
Com ela, o meu pai queria escrever a sua própria história.
A sua mãe, a minha avó, porém, não aceitou essa decisão. Não por que odiava a minha mãe e a sua origem humilde: filha de uma confeiteira e de um jardineiro. Ela não aceitava que o seu filho “renunciasse” todo o esforço e comprometimento que ela fizera por ele. E o seu pai, o meu avô, era intransigente. Após ouvir a escolha do filho, fez ficá-lo sozinho para sempre.
Eles nunca mais se viram, mesmo após a morte do meu pai.
Eu também nunca os conheci pessoalmente — e já estão mortos há algum tempo. Mas conheço muitas histórias sobre eles, já que eram extremamente famosos — mas faz anos que estão meio esquecidos. Porém, após o meu pai morrer, eu perdi o “interesse”. Somente quando eu era mais novinha, e ele ainda era vivo, que busquei saber mais a respeito dos meus avós. Só que o meu pai não gostava de falar, apesar de eu insistir, das coisas ruins que ara com eles. E assim, meio que a contragosto, ele me contava um pouco da sua família. Mas o fato é que o meu pai nunca deixou de se sentir triste pelo que acontecera, por
isso que procurava recordar os momentos felizes, mesmo que escassos, que ou ao lado dessas duas pessoas que, por mais difícil que fossem, o amou.
O meu pedido chega.
Dou algumas mordidas e já finalizo o sanduíche; a cerveja eu tomo de uma vez só. O jovem garçom alarga os olhos, abre a boca e fica assustado com a minha velocidade. Dou o dinheiro (um pouco a mais), já pronta para sair. Ele pergunta se eu não quero o troco.
— Se eu quisesse teria dado o valor correto — ele me olha atônito, talvez se perguntando: “O que será que eu fiz?”.
Eu costumo ser hostil e estúpida com estranhos, desde que não sejam úteis em minhas investigações. O lance é: eu quero que eles me desejem algo de ruim. Esse desprezo me torna algo melhor — algo melhor em minha concepção. Aliás, já aconteceu de eu quase levar um soco de uma mulher desconhecida. Eu esperava um táxi e a mulher me reconheceu, ficando toda entusiasmada, como se eu fosse uma droga de celebridade.
Perguntou, para ter certeza, se eu não era à jornalista que escrevia as matérias do jornal que ela lia. Eu respondi: — O que te interessa? Agora, some daqui! — e a mulher, que não era muito alta, nem tão forte, fechou a cara imediatamente. Este meu comportamento, normalmente, assusta a todos, mas, neste dia, não foi bem assim. Ela, ofendida, começou a me xingar com palavras que até eu desconhecia. Apenas fiquei quieta, sem me importar, pois sabia que, logo, ela pararia. Mas ela quis partir para algo mais físico. Não reagi, nem corri. Na verdade, eu queria levar um soco. Mas antes que ela fizesse isso, um homem a segurou, afastandoa. O táxi chegou, entrei nele e fui embora.
Saio da lanchonete. Acendo outro cigarro. Continuo o meu caminho.
A cidade está muito movimentada. Os carros não param de aparecer, e as motos fazem um barulho desgraçado. E há várias pessoas circulando por tudo quanto é canto. Preciso esperá-los para poder atravessar as ruas. Eu detesto tudo isso. Tentei fugir dessa merda, mas não deu certo.
— Melhor encontrar outro caminho.
Avisto uma solução: cortar por um (outro) bosque, que mais parece uma pequena floresta. Estive muito pouco por estes lados, por isso não conheço tão bem. Mesmo assim, eu ando em sua direção, em busca de um refúgio.
Assim que eu chego, vejo na placa meio desgastada, que tem em frente à entrada, uma mensagem alertando sobre os morcegos que vivem na mata. Também apresenta o caminho, além de dizer que leva até os arredores do hospital psiquiátrico — o hospício. Leio isso e fico satisfeita. Posso sair do barulho da cidade. Jogo o cigarro fora, entro e sigo em direção ao meu destino.
Com a serenidade que a quietude me dá, não deixo de pensar naquele bairro degenerado e no bosque que existia por lá. Ando por um também, mas, diferente da história narrada, este aqui lembra mais um cemitério abandonado. E apesar da (pouca) luz do dia, ainda é tão escuro que qualquer um acharia ser de noite — se bem que isso é o normal aqui em Agonia.
As folhas quase tampam todo o céu, e as árvores parecem desinteressadas, como
ingratos infiéis. Mas o silêncio é eficaz.
Após caminhar por algum tempo, eu me deparo com outra placa, com alguns galhos sobre ela. Está mais desgastada, e podre, ainda por cima. E há um aviso, quase apagado, que tenta indicar algo.
— Está difícil ler — aperto os olhos para tentar enxergar.
Mas é impossível ler alguma coisa. Então, eu sigo o meu caminho, apenas com o aviso da primeira placa em mente. Olho em volta, mas não vejo nada. Não há flores, nem animais. Os morcegos devem aparecer quando à noite recai ou aquela placa é uma mentira.
Sigo em frente, até que encontro uma bifurcação.
— Curioso... — decido ir olhar.
Os galhos se entrelaçam de uma maneira agressiva, dificultando o meu avançar. Tomo cuidado para não furar os meus olhos nas pontas de madeira. De repente, e aos poucos, um som começa a soprar no ar, e ouço uma voz. Com certa dificuldade, vou em frente. O som quer se aproximar. Parece que há uma pessoa... chorando? Vejo, então, um homem sozinho, sentado nas folhas mortas que encobrem todo o chão.
Fico afastada.
É um jovem e não deve ter mais do que vinte e dois anos. Ele se levanta e anda até uma pequena árvore. Ele usa um moletom — antes branco, provavelmente — todo sujo, e uma calça toda rasgada. E no meio de todo este amontoado de troncos, galhos e folhas, todos sem cor, ele parece fazer parte desta paisagem desbotada. Parece confuso, e apenas chora, copiosamente. Vai em direção de uma mochila, que está largada no chão, e retira uma corda.
Então, é o que ele fará.
Fico parada. Nada me faz querer ficar. Nada me faz querer sair. Apenas continuo observando-o, como uma telespectadora entediada. Não sinto medo, empatia, compaixão.
“Nada.”
Essa situação, eu acredito, jamais me afetará. Já experimentei com afinco esse seu desejo. Ainda experimento com afinco esse desejo. E por dias, essa foi a resposta que responderia a minha pergunta: — Por que eu devo continuar? Era a única coisa que ava por minha cabeça. Eu não conseguia pensar em mais nada. O desespero é muito persuasivo quando quer. Sabe jogar bem o jogo. Eu precisei, durante um longo período, lutar contra ele e seus truques. Dias. Tardes. Noites. Tudo parecia interminável. Mas agora eu sei por que estou aqui e por que ando com estas pernas magras. Sim...
Ainda assim é difícil.
Às vezes, eu enfrento uma vontade doentia para não me deixar apagar. Mas eu precisei cavar muito para encontrar a resposta correta, a resposta que eu sempre
quis. Uma resposta definitiva. E eu não posso largá-la.
O rapaz está pronto para dar um fim.
Ele sobe em uma cadeira — que retirou de trás de uns arbustos. Põe o primeiro pé, determinado. Porém, o segundo movimento parece evitar. Faz uma força tremenda para levantá-la, só que a sua perna fica no mesmo lugar, em uma luta para impedi-lo.
Enfim, ele consegue.
O homem segura a corda e olha para ela, tristemente. Acredito que ele tenha tentado encontrar outros meios, outras respostas, outras saídas.
Ele a amarra em uma parte alta de uma árvore. Coloca a corda grossa, e aparentemente resistente, em volta do pescoço, mas não a fixa. Talvez, ainda busque lembrar-se de algo, bem no fundo de si, que o faça recuar, que o faça voltar para a vida.
— Tarde demais... — com a voz baixa, eu sussurro.
Ele sobe na cadeira, dá uma profunda suspirada e, na tentativa de enxergar o céu, empurra-a, deixando-se cair no abismo. O seu corpo luta para se soltar, debatendo-se, desesperadamente. Tenta, de todas as maneiras, livrar-se do silêncio.
O corpo, aos poucos, para de mexer. A vida foi extraída. Saio do meu esconderijo e me aproximo. Fico próxima ao corpo pendurado, auxiliada pela morte que o tomou.
—...
Eu encaro a morte congelada no corpo dele, exposta em seus olhos. Olhos que estão intensos. Não acreditam que foi isso o que aconteceu a eles.
Será que ele perdeu alguém que amava? Não conseguiu lidar com os seus sonhos fracassados? Não via sentido em viver a vida? Não ava ter que existir?
Eu procuro em volta para ver se acho algo a respeito do sujeito. Vejo que há um pequeno lago escondido. Poucos peixes, presos nesse pedaço de mundo limitado, nadam nele. Não há nada na mochila. Procuro mais um pouco em volta e vejo que há apenas uma fotografia velha jogada sobre as folhas. Eu a pego. Há uma jovem sorridente, de cabelos curtos e negros, que é envolvida pelos braços do rapaz. Parecem apaixonados.
—...
Eu jogo a fotografia sobre as folhas, piso em cima e vou embora. Deixo o corpo sozinho com o silêncio da mata e da morte. Volto para a trilha e sigo em frente. Não penso em avisar alguém a respeito do que eu vi, e não estou preocupada se alguém irá encontrá-lo.
Não demoro muito e visualizo a saída. Saio do bosque e sou recebida por uma (porcaria) desconhecida luz fina do dia.
— Droga! — eu tento proteger o meu rosto com as mãos.
Por que ele deixou de estar fraco e suave?
Esse brilho me deixa mais irritada. É como se ele olhasse para mim. É como se ele quisesse que eu fosse algo, que eu seja alguém. Procuro alguma sombra próxima e vejo uma loja. Corro para me esconder.
Agonia não é uma cidade que tem tanta presença do sol, tipo aquela em que a Laura vivia. É mais parecida com Melancolia — onde ele já desistiu de entrar. Por aqui é um pouco (muito pouco) mais notado. Entretanto, eu não era assim no começo, esta criatura emburrada, cheia de repulsa por ele. Eu era indiferente, na verdade. Mas com o tempo aprendi a detestá-lo. A desprezá-lo. A odiá-lo...
Igual a minha vida.
— Parece que você quer estar próximo de mim — comento, ironicamente, embaixo da sombra que a fachada da loja faz.
Com os olhos bem apertados, tento enxergá-lo.
— Sarah... — digo sem pensar. Essa maldita estrela...! Eu não posso perder o
controle! Mas não é de estranhar, afinal, já faz tanto tempo que estou nessa, esperando que aquele lixo reapareça. Em algum momento o limite será atingido.
Fecho os meus olhos e espero as sombras voltarem para os seus devidos lugares. Respiro devagar, abrindo-os lentamente. Aos poucos, volto ao meu normal. Dou uma suspirada com força. Pego outro cigarro e o acendo.
— Porcaria...
CAPITULO 6
São dez e oito.
Estou em frente ao hospício. É uma construção bem alta. Os muros têm uma coloração acinzentada, mas é por causa do cimento, pois não são pintados. Olhando-o por fora, não parece transmitir toda a loucura que falam que há por dentro.
Vou até a entrada, ponho a mão na maçaneta, giro e empurro a porta, mas ela está trancada. Não há um interfone, então bato à porta, esperando ser atendida. Sou obrigada a aguardar.
Enfim, alguém abre.
Entro e vejo um único guarda: um homem gordo, careca e alto. Pergunta quem sou.
— Karen. Sou jornalista. Investigo a morte de uma criança. A mãe dela está internada aqui. Vim falar com ela.
— Sei... Vem comigo — ele fala com pouquíssima vontade, forçando o ar que luta para sair de tamanho sufoco.
Começamos a andar.
Eu sigo esse homem imenso por corredores desertos. Nenhum deve ser a ala dos internados, pois há várias portas com nomes em cima, apresentando quais profissionais estão por detrás.
Continuamos.
Parece que não há fim. Quantas pessoas trabalham aqui?! Já faz algum tempo que estamos andando e nada ainda.
E vamos em frente. Virando e virando, mais e mais corredores. Parece um labirinto eterno, e o homem não fala uma palavra sequer — ainda bem, pois não quero conversar.
Enfim, ele chega até uma porta e bate.
— Quem é? — uma voz acalentadora responde, lá dentro.
— É o Max — Max? Que porra de nome horrível! — A jornalista está aqui.
— Ah! Deixe-a entrar — encerra-se essa conversa peculiar.
O guarda retorna ao seu local de serviço, ou para comer alguma coisa, ou para dormir, sei lá. Eu entro e sou recebida por um sorridente velho de óculos finos. Ele aparenta ter mais de setenta anos.
— Eu me chamo Mark — ele estica a mão para me cumprimentar.
— Karen — cumprimento-o de volta. Ele pede para eu sentar em uma cadeira.
— Desculpe não ter falado com você pelo telefone. Eu estava muito ocupado, por isso...
— Não tem problema — interrompo.
— Certo, certo... — ele dá uma leve risada, como se já estivesse acostumado com esse tipo de comportamento. — Sabe... — ele dá uma pausa, enquanto se ajeita na enorme cadeira aveludada. — Eu fiquei curioso com esse seu interesse. Ninguém, nunca, tentou falar com ela. Outros jornalistas já vieram, mas só falaram comigo. Não deram nenhuma chance para a pobre mulher — ele parece compadecer pela mãe desgraçada.
— Não é por que ela está louca? Ou agressiva? — pergunto a ele, para ver se o faço pensar em possíveis motivos.
— De maneira alguma, querida — “querida?”. Que merda é essa?! — Ela nunca apresentou um comportamento agressivo. Ainda tem resquícios de
discernimento. O que é incrível se levarmos em consideração tudo o que ou.
— Não me chame de querida — ele me olha com um bondoso sorriso e vê o quanto me incomodou. — Então, essa fama de louca e de violenta é tudo mentira? Uma história criada? Uma fama indevida?
— Não. Definitivamente, ela enlouqueceu — prontamente, ele responde. — Perdeu toda a sanidade. Apenas não tenta se vingar em outras pessoas. Ela escolheu sofrer em silêncio, em paz, posso até dizer. Se bem que os seus gritos costumam atormentar alguns funcionários — sorrindo, ele puxa um lenço do bolso, retira os óculos do rosto e os limpa. — Como curiosidade, ela nunca falou a respeito daquele dia. Na verdade, nunca mais falou uma palavra que não fosse “Alícia”. E, provavelmente, nunca mais falará outra coisa — coloca os óculos. — Mas tenhamos um pouco de fé — dá outra risada. — Não que eu acredite nisso.
Que velho esquisito.
— Já posso ir vê-la? — melhor ir logo com isso.
— Claro — ele se levanta e me conduz até a saída.
De volta ao corredor, eu o sigo. Suas costas são curvadas e ele parece mesmo um velho antigo. Eu não tinha notado o quanto ele já está desgastado.
Em silêncio, andamos mais. E que porra é essa?! Parece que há mais portas do
que antes! Como pode este lugar ser tão grande assim?!
Contudo, andamos mais um pouco e chegamos até um elevador.
— Não há escadas? — eu pergunto.
Ele se vira para mim. Parece surpreso.
— Não esperava que você fosse ter medo. Mas, sim, há escadas — ele responde.
— “Medo?”. Quem disse que eu tenho medo? Pode ser por outro motivo, não acha? — busco saber o que ele dirá.
Ele põe as suas mãos enrugadas e velhas, de alguém que trabalha há muito tempo, nos bolsos. Os seus olhos obrigam os meus a olhá-lo.
— Certo, certo... Bem, eu estou nessa há muito tempo, querida. Consigo ver o que há no interior das pessoas. E você, apesar dessa aparência forte, está com sérias marcas aí dentro — com um sorriso empático, ele me expõe.
Fico quieta, apenas encarando-o. Quem ele pensa que é? Quem é ele para me falar isso?
— Você já ouviu falar a meu respeito, certo? — pergunto a ele, pois acredito em uma resposta óbvia.
— Eu deveria? — honestamente, ele parece querer saber. — Não faço ideia quem você possa ser — e da forma mais calma, responde.
— Não está tentando ser solidário ou respeitoso, está? — pergunto, enquanto continuo encarando-o.
— Por que diz isso? Não sei quem você é — ele sorri.
— E não quer saber? — pergunto, sem saber o motivo para eu agir assim.
Intrigado, ele me observa. Sua testa franze e seus olhos se apertam, enquanto busca entender o meu comportamento. Pega o lenço no bolso, tira os óculos e os limpa.
— Não. Não procuro saber de pessoas que vêm de fora. Apenas me concentro com as que estão aqui dentro — responde, gentilmente, enquanto coloca os óculos sobre os seus experientes olhos. — Se bem que você está aqui dentro... Então, se você for se sentir melhor em falar, ficarei lisonjeado em ouvi-la.
—... — eu não insisto.
— Não? Então, podemos ir? — ele pergunta e aponta em direção as escadas.
Apenas faço um gesto com a cabeça e seguimos rumo a elas.
Não me conhece...
Hoje em dia, poucos me tratam assim. Mesmo tendo ado tanto tempo, a minha história continua por aí. E sempre há os que nunca esquecem. Mas também há os que não ligam mais. E no meio disso, também há os que nunca ouviram falar.
Mark...
Não sei por que, mas acho que esse senhor tenha uma espécie de dom, capaz de perfurar, até mesmo, a mais isolada e impenetrável caverna que possa existir.
Estou pensativa a seu respeito.
Essa figura antiga, mas ainda com vigor, é uma (nova) estranha presença em minha vida. Ele é diferente de todos. É a primeira vez que eu vejo um assim.
Andamos mais um pouco, até que ele resolve falar um pouco de si. Eu preferiria o silêncio de antes.
“Por que certas pessoas costumavam se abrir para mim?”
Mark, um profundo conhecedor da mente humana.
Após formar-se em medicina, especializou-se em psiquiatria, e também foi estudar psicologia. E pôde, durante os seus vários anos, aprender muito a respeito da natureza humana e em como lidar com ela. Graças a isso, tornou-se um homem disposto a trazer de volta à luz todas às pessoas que, de alguma maneira, foram quebradas e jogadas na direção das trevas.
Ele veio de Melancolia, ainda um garotinho, e ou sua tenra infância nos arredores mais tranquilos de Agonia. Bastante disciplinado, devido ao seu pai, um oficial do exército, e a sua mãe, uma diretora escolar, sempre conviveu com uma forte rotina. Saía da escola e era obrigado a estudar por mais cinco horas. Por isso, as pausas para a diversão eram breves. Algumas vezes, bem poucas durante os dias, ele podia ir correr com os seus amigos pelas ruas e esquinas. Voltava cansado, todo alegre e suado, e ia até a sua mãe para contar o que brincara. Por mais rígida que ela fosse, na verdade, a sua postura firme era apenas por algumas horas do dia, pois amava ver o sorriso do seu filho amado.
A sua mãe tinha longos e ondulados cabelos castanho-claros, que serviam para fazer um belo rabo de cavalo ou serem transformados em um coque sofisticado. Também costumava usar uma saia roxa, bem forte e longa, trazendo-a uma beleza madura e segura. A camisa preta, mais escura do que carvão, cobria os seus braços, e a sua pele branca parecia algodão de tão fofa que era. E os seus olhos, de um poderoso castanho-escuro, escondiam uma mulher leve e doce, disposta a ajudar, até mesmo, o mais agressivo dos muros.
Mark a (ama) amava mais do que tudo. Diz que ainda carrega uma fotografia dela, daquelas antigas, na carteira. Ele nunca a deixou, mesmo após a morte dela. Isso aconteceu quando Mark já era um homem de vinte e seis anos. Como desde cedo fora instruído a respeito da vida e a respeito da morte, tinha conhecimento de que esse momento chegaria, por isso tentou não sofrer.
A sua mãe se foi em uma tarde de outono.
Os fortes ventos que atingem Agonia, nessa época do ano, espalhavam as amareladas, e alaranjadas, e avermelhadas folhas que estavam jogadas por todo o seu grande quintal. Alguns dos empregados dormiam nas confortáveis camas que tinham. Outros estavam sentados nas cadeiras em frente à casa, apenas sentindo o dia ir descansar. Eles adoravam esses momentos em suas rotinas. E o céu negro-roxeado, que engolia o sol fracassado, decidira aparecer.
Mark estava ao lado da sua mãe — o seu pai estava fora do país e não pôde se despedir da esposa em vida. Ela, deitada na cama, descansava, e já não tinha mais aquela aura outrora. Com apenas cinquenta e seis anos, foi alvo de um tumor no cérebro. Os dias já estavam contados e era só uma questão de tempo. Já não reconhecia mais os funcionários, a si mesma e nem ao próprio marido, mas, por algum mistério da vida, do seu filho ainda lembrava-se.
Mark, até o fim, cuidou dela.
E ele, ao ver o momento aproximando-se, disse as palavras mais bonitas que alguém poderia falar. Prometeu que viveria para ajudar os outros. Que fora um prazer ter sido o seu filho escolhido para vir à Terra, e que jamais a esqueceria. Após isso, ele a deu um beijo na testa.
E enquanto chorava, com a magra e óssea mão dela nas suas, Mark a ouviu dizer, com toda a força que ainda a restava, apenas mais algumas palavras.
— Você foi... o meu maior bem... Mark. Procure ser... o mesmo... para os outros. Não odeie... não magoe. Apenas... procure ser... uma boa...
E sorrindo, ela partiu.
À frágil luz que entrava pela janela a abraçou, e, dela, também se despediu.
Mark, ao ouvir essas palavras e ao ver a sua amada mãe ir, ficou em silêncio, imóvel, mas a sua garganta queria gritar, queria expulsar o mundo que preenchia o seu peito. Porém, a sua resposta foi libertar lágrimas. E mesmo com os seus olhos em cachoeiras, Mark ainda olhava para o corpo quieto na tentativa de encontrar um resquício de vida. Mas era impossível. O fim já chegara. Só restava, então, o ato de despedida. Para isso, todos na casa fizeram uma bela cerimônia.
Entre os choros e lamentações, Mark era o único que não derramava lágrimas. É claro que estava triste, devastado, mas já chorara demais, por isso não precisava mais chorar. E não havia mais razão, pois em seu coração ele sabia que para sempre ela estaria. Mark, então, voltou ao quarto em que ela partira e, sozinho, abraçado com a cabeça apoiada no próprio colo, em um eio com as lembranças da pessoa que ele mais amou, dormiu, e, profundamente, em seus sonhos foi descansar.
— Eu me lembro do sorriso dela, até hoje — que velho nostálgico. Mas, enfim, ele termina de contar.
Chegamos à ala que a mãe da Alícia está.
Na entrada, há um homem que imagino ser o supervisor do andar. Ele está sentado em uma cadeira discreta, dentro de uma salinha. Parece com sono. Mark bate no vidro e aponta para a porta. Depois de levar um leve susto, o homem, com um sinal de positivo, comunica-se, entendendo o que Mark quer. Ele aperta algum botão e um som alto nos diz que estamos liberados a entrar.
Entramos.
Os meus primeiros os são de curiosidade. Nunca estive em um lugar assim — por muito pouco, devo dizer. Será que é igual aos filmes? Todos presos em camisas de força? Em quartos almofadados? Babando e falando nada com nada o dia todo?
Estou prestes a descobrir.
É frio e branco. As seis lâmpadas parecem ser o suficiente para iluminar este lugar profilático. Olho para baixo e vejo um chão de azulejo que, de tão limpo e lustroso, é possível ver o meu reflexo. Há sutis bolsas abaixo dos meus olhos...
Os meus olhos...
— Você não merece estar aí... — Mark me olha. Acha que eu falei com ele. — Não é nada, esquece — vou parar de falar.
o as minhas mãos pelas paredes, que são lisas, sem espessuras ou relevos.
As portas dos quartos estão fechadas e não parecem tenebrosas. Próximo às escadas, vejo que fica a sala dos enfermeiros.
Damos mais alguns os, até que chegamos, acredito ser, em meu destino.
Onde estarão os gritos?
— Ela ainda está dormindo, por isso está quieta — arregalo meus olhos. Ele pareceu ter lido a minha mente. — Quer que eu peça a um enfermeiro para te acompanhar?
— Não disse que ela não ataca as pessoas? — retruco, relembrando-o.
— Sim, mas para alguns, ter uma presença ao lado, é mais seguro, até mesmo, mais confortável — responde, didaticamente.
— Eu pareço precisar de alguém ao meu lado? — pergunto e também já libero um pouco de raiva.
— Diga-me você, Karen — ele me olha, sorrindo. Isso me incomoda. Faço alguma cara de descontentamento e desvio o olhar.
Por que esse velho age como se soubesse o que há comigo?
— Posso? — peço ao Mark para abrir a porta. Ele chama um enfermeiro, que entrega as chaves e sai. E, pacientemente, escolhe a chave certa. Destranca a porta e a abre, oferecendo a entrada para mim. Assim que entro, eu me deparo com uma mulher dormindo e toda encolhida sobre a cama. Parece ter... estar chorando, mesmo desacordada. Os seus cabelos, agora curtos, estão sobre o seu ainda belo rosto. Está tão magra — mais do que eu. Não está amarrada, usa apenas uma camisa branca simples e uma calça bem folgada. Também há uma janela por onde entra um leve fio de luz. — Tudo bem acordá-la? — pergunto, sem me preocupar.
— Na verdade, está quase na hora dela levantar — ele responde, com uma visível tristeza.
— Você gosta dela? — pergunto, olhando para o seu rosto.
— Acho que a palavra correta é: importa — ele dá uma suspirada carregada. — É uma pena vê-la... ver todos que estão aqui assim — eu o observo.
— O que ela deve sentir pelo bosta que matou a filha dela? — Mark me encara.
Ele fica me olhando, enquanto eu, agora, mantenho os meus olhos para o rosto da mãe. Ela ainda dorme, sem saber que estamos aqui.
— Sabe, Karen, é a primeira vez que me perguntam isso. Olha, levando em consideração tudo o que ela enfrentou, e que ainda está enfrentando, a resposta mais lógica seria dizer que, provavelmente, ela deve sentir ódio, raiva, rancor, mágoa e muito mais. Muito mais mesmo.
— Será que ela se vingaria dele, se pudesse?
— Acho que sim. Esse tipo de coisa não é de se esquecer, muito menos perdoar.
— Perdoar... Sim... — ele fica quieto. Acho que estranhou o que eu falei. Eu o vejo me encarar. — Esquece. Apenas um devaneio — não parece ter acreditado. — E os gritos?
— Como?
— Os gritos. Isso não irá incomodar os demais? — procuro entender como funciona este lugar.
— Não se preocupe. Todos que estão nesta ala são iguais. Não se importam com os gritos dela — ele fala como se fosse algo normal. — Afinal, muitos fazem o mesmo.
— E como eles lidam? Isso não é algo que pode deixá-los mais transtornados?
Mark balança a cabeça. Retira o lenço do bolso, os óculos do rosto e os limpa. É como se fosse um ritual que precisa ser feito constantemente.
— Todos aqui estão presos dentro das suas próprias cabeças. Já perderam o
contato com o mundo exterior há muito tempo. Nada mais é capaz de afetá-los — recoloca os óculos e sorri, só que agora mais taciturno. — Eles também perderam tudo — ele me olha novamente, como se eu soubesse do que está falando.
Faço uma cara feia.
E sinto um choque emergir e levar água para trás dos meus olhos. É uma sensação que não me agrada. Por alguma razão, esse velho, que eu nunca vi em minha vida, até então, lança palavras que fazem o meu corpo reagir. Nem o Afonso consegue me atingir dessa forma, mesmo eu o conhecendo desde pequena.
— Que seja... — eu desvio o olhar. — Posso falar com ela, então?
— Claro. Vou pedir ao enfermeiro para vir acordá-la. Por favor, espere um pouco — ele continua complacente e sai.
Eu aguardo em pé ao lado da mãe. Será que vou conseguir fazê-la falar? Nunca ei por uma situação desse tipo.
Mark retorna com o enfermeiro — que com cuidado e apreço a acorda. A mãe parece não saber onde está. Por um instante no tempo, tão ínfimo e imediato, a sua mente parece esquecer a filha morta.
Ela ainda está acordando, livrando-se do sono.
Mas esse momento de lucidez, logo, é tomado por uma histérica e aflita mulher. Não tenta soltar-se ou correr, nem agredir o enfermeiro. Apenas grita, chora e chama por sua filha, que ela já não mais pode ver.
— Alícia! Alícia! Alícia! Alícia! Alícia! — é a palavra que sai da sua boca incolor. É tão alto que eu sinto como se ela estivesse tendo o coração arrancado pelo regozijo da morte. E que engraçado...
Eu não fiz nada disso.
Eu não derramei uma única lágrima sequer. Por meu pai, que se foi primeiro. Por minha mãe, que eu fiz experimentar tanto sofrimento. Por Sarah...
Mas por ela eu não poderia mesmo.
— Eu não deveria, mas vou ficar um pouco por aqui. Bem, vou deixá-las em paz, então. Ah! Qualquer coisa é só chamar, tudo bem? Estarei aqui fora — Mark fala e sai do quarto, fechando a porta.
Agora estou sozinha com essa miserável mãe que não para de gritar.
Em todos esses anos de jornalismo, lidei com várias pessoas destruídas, afundadas em sofrimentos sem limites, desesperadas para reverem suas mães, pais, filhas, filhos, irmãs, irmãos, namoradas, namorados ou qualquer outro que tenha sido levado pelo fim. Em todos esses anos, eu me deparei com histórias de
pessoas tão fodidas, que a morte me parecia ser a melhor escolha para elas. Em todos esses anos, ouvi diversas vozes angustiadas, ansiosas para serem salvas de um atroz abismo. Mas, ainda assim, consegui fazê-las falar.
Mas nada se compara a isso.
Porém, acho que tenho algo que pode ser útil nesta situação. Essa mulher deve se sentir tão culpada quanto eu, por mais que ela não tenha culpa nenhuma. Diferente de mim, ela não foi responsável pela morte da filha. Afinal, como poderia saber que algo, daquela magnitude, aconteceria com a pequena Alícia?
Tento chamar a sua atenção, mas não adianta. Chacoalho os braços para ver se me nota. Não funciona. Estalo os dedos. Nada ainda.
— Hummm...
Então, decido puxar uma cadeira, que há por aqui, e me sentar para ficar na mesma altura dela. Retiro a minha mochila e coloco ao meu lado, no chão.
E espero...
“A minha mente, após a morte da Sarah, desfigurou-se em milhares de pedaços. Um completo corpo caótico, espalhado por estradas confusas, densas. Nada fazia sentido, tudo era a mais completa loucura. Uma fumaça pontiaguda transitava por meu corpo, por meu sangue, por meu coração. Tudo era péssimo, horroroso, a mais pura alucinação. Não sei como que a mãe da Alícia não se
matou após ver a filha sem vida. Ainda bem que eu não fiz isso, pois o restante da história ão teria acontecido.”
Eu poderia ver, mas não sei quanto tempo já ou. Um minuto? Uma hora? Sei lá. Apenas continuo observando essa condenada mãe, como se eu aguardasse por algo.
— Adriene? — ela não responde. — Adriene, eu me chamo Karen — nada ainda. — Sou jornalista e investigo a morte da sua filha — ela continua gritando. — Gostaria de fazer algumas perguntas para você — nada. Não dever ter escutado uma única palavra. Eu imaginei que algo assim pudesse acontecer.
Não digo mais nada, mas mantenho os meus olhos nela. Ela não está tão agitada, apenas movimenta a cabeça de um lado ao outro. Os gritos é que são mais fortes. De vez em quando ela para, parece ficar sem fôlego ou cansada. Já a respiração se mantém acelerada. Sinto que ela pede socorro.
Presa no próprio mundo, ela se encolhe toda.
E que curioso...
Ela tem o mesmo olhar de alguém que está perdido, devido ao caos que surgiu em sua vida. O medo de voltar à realidade. O medo que faz o semblante tornarse uma pintura desumana. O medo que faz não querer parar de tocar as lembranças.
Lembranças...
Isso me faz lembrar os dias em que eu estive da mesma forma: desesperada para fugir da verdade que me assombrava. Eu não queria ter que enfrentá-la, nem confrontá-la. É inacreditável como foi uma droga de merda horrível ter que sentir tudo aquilo. Aliás, continuar sentindo. Foi mesmo uma época podre. Continua sendo uma época podre. Era tanta coisa espremida em minha cabeça, tudo de uma só vez, empurrando, achatando, que eu tinha certeza de que ela iria explodir...
Que ela iria me ver morrer.
Começo a sentir um nó ultraado na minha garganta. Os meus olhos faíscam e ficam, timidamente, molhados. Minha pele esfria ao zero absoluto. Nem se uma pessoa corresse pelada, e pulasse em um lago congelado, sentiria o que eu sinto.
E eu sei o que isso significa.
Eu me concentro ao máximo que posso. É difícil, mas não tenho escolha. Apreensiva, eu faço novos movimentos para chamar a atenção da mãe. É inútil. Ainda tensa, eu penso um pouco, pedindo ajuda à minha angústia faminta.
E consigo algo em troca.
— Adriene... — tentarei algo novo. — Veja, eu sei como você se sente — digo
tais palavras, nem um pouco contente. — Também vivo nessa eterna morte, depois que a minha irmã... — não termino de falar e Adriene volta a gritar pela filha. Fico em silêncio de novo, sentada, esperando.
Que merda de formigamento! O meu corpo não para! Ansiedade desgraçada! Esta bosta está mais forte! Preciso dar um jeito nisso! Então, decido falar palavras que eu sempre escondi, e que jamais falei para pessoas próximas...
Nem mesma para mim.
— Adriene... a minha irmã também foi... — a palavra seguinte fica presa no meu sangue. — Morta — mas eu a expulso. — Por alguém — por ele. — Gostaria de dizer que essa pessoa... Não... Foi minha culpa. Aquele lixo apenas fez o que a sua natureza imunda obrigava — digo com certa dificuldade. — Óbvio que jamais o perdoarei! Ele irá para o inferno! — eu prometi isso. — Todo esse desespero e morte que você sente eu também sinto. Saber que nunca mais irei ver a minha pequena irmã... a minha pequena Sarah... Ela era linda como uma borboleta, uma fada... As duas coisas, para ser mais exata — dou um sofrido sorriso. — Parecia que o seu brilho nunca acabaria. Sempre alegre, querendo viver cada vez mais... Sabe... Toda manhã, logo que eu acordo, preciso me lembrar dela. É isso o que faz com que eu não me enfie em um buraco — eu olho para baixo... Ainda posso vê-la. — Gostaria de dizer para você que, algum dia, de alguma maneira, tudo isso vai ar... vai melhorar... Mas não vai. Isso o que você sente... o que eu sinto... irá durar para sempre. Nós fomos quebradas, Adriene. E por mais que achemos algumas partes, não serão suficientes para nos reconstruir — eu sinto algo único escorrer por meu rosto. A sensação é familiar, mas não consigo lembrar. Ponho, suavemente, e com todo o cuidado, os meus dedos e sinto algo totalmente esquecido.
Adriene interrompe o seu ensurdecedor e doloroso berro. Os seus olhos se acalmam, e a sua boca se cala. Parece entender o que está acontecendo. Aproxima-se de mim, igual a um bebê que aprendeu a andar.
A ansiedade borbulha em meu peito. As minhas mãos tremem incessantemente. Parece que vou cair. O meu corpo não responde. O meu coração acelera como há muito tempo não faz. E mesmo com esta merda toda, e toda a destruição que causei, eu ainda consigo encarar um...
Um calor nostálgico correndo pelas minhas veias?!
E Adriene, somente como uma mãe faria, impede que a segunda lágrima escorra, segurando-a com o seu dedo, delicadamente, como se fosse uma bela obraprima.
— Ka... ren...? — ela pronuncia o meu nome, igual a uma criança que aprendeu a falar, enquanto olha para a lágrima que repousa em seu dedo.
Estou paralisada.
Foram dois anos obscuros, sem a menor ideia do que eu fiz ou por onde estive. E eu não sei como encontrar esse período perdido. Tentei e tentei, mas foi em vão. E mais seis anos onde me mantive (mantenho) fria, presa no tempo, que até me esqueci de que era possível tentar tocar a luz, pois fiquei fascinada em poder andar com as trevas. Durante seis anos, por mais que outras pessoas, mesmo poucas, tentassem me ajudar, nada funcionava, afinal, nada mais importava. Eu quis este caminho. Ele era meu por direito. Ele é meu por direito. Foi a única maneira que permitiu o meu caminhar.
“Não! Não! Não! Não! Não! Não!”, começo a gritar, dantescamente, dentro da
minha cabeça, enquanto o meu corpo continua imóvel.
— Sarah... Mãe... vocês não merecem. Eu... não... posso... — a minha cabeça vai explodir.
Até que consigo fazer esta bosta voltar a funcionar.
Eu pego a minha mochila e me levanto toda desesperada. Tento abrir a porta, mas ela está trancada. Bato, dou chutes e socos com tanta força que, logo, uma das minhas mãos fica vermelha com o sangue que vem a sair.
— Karen?! O que foi?! Você está bem?! — assustado, Mark entra, procurando saber o que houve.
Estou enlouquecendo. A minha visão está embaçada. Tenho dificuldades para respirar.
— Não! Não! Não! Não! Não! Não! — corro para o mais longe possível. Trombo, tropeço, caio, escorrego. Não importa. Eu só preciso sumir deste lugar.
Ainda assim, mesmo nesta insanidade toda, uma lembrança trancafiada faz questão de surgir, livrando-se das correntes que a aprisionavam. Ela me faz revisitar algo tão escondido, e longe, que sinto estar diante de uma mentira. Ela me faz revisitar um mundo que eu poderia chamar de lar, mas que, há muito tempo, por medo, escolhi abandonar...
CAPITULO 7. DUAS FLORES PERDIDAS
Eu não tenho certeza, mas acho que estou em Agonia... É... É Agonia mesmo. E olha só! Estou caminhando pelo Jardim das Orquídeas com a minha mãe e a Sarah. Nossa! Isso faz milhares de anos. E esse nome enganava, pois não eram somente orquídeas que viviam nesse lugar.
Esse eio foi antes da Sarah...
Esse jardim ficava (ou ainda fica) localizado no fundo de uma antiga mansão, toda elegante e de arquitetura gótica, em uma área grande.
Na entrada, fomos recebidas por um corredor colorido com as mais exuberantes flores que poderíamos imaginar. Amarílis vermelhas tão bondosas. Calêndulas sorridentes traziam o amarelo que o sol perdera. As camélias eram fabulosas, devido ao seu amoroso rosa. As cinerárias eram às favoritas da nossa mãe. Ela falava que, quando morara em Melancolia, ganhara um jarro cheio delas.
O seu pai quem tinha lhe dado.
Então, ela se aproximou do roxo e do branco, com pétalas aveludadas e amaciadas, e profundamente as cheirou. Por mais que tivesse adquirido os dons culinários da mãe, Amy sempre respeitou e amou as flores como o seu pai ensinou.
Após isso, falei para seguirmos com o nosso eio, mas, antes, a pequena Sarah decidiu presenteá-la com um simples beijo.
Ela tinha esse hábito, até comigo fazia.
Ambas olharam-se, felizes. Eu apenas observei do meu altar afastado, sem conseguir me aproximar de um retrato tão rebuscado.
Elas estavam empolgadas, afinal, nunca tinham ido nesse jardim festivo. Agonia não é uma cidade muito alegre. Prefere ficar escondida entre o calar do preto e o rabugento do cinza. Mas, em alguns momentos, outras cores surgem e tentam trazer um pouco de relevância. E esse jardim era um dos milagres que conseguiam invadir Agonia.
Prosseguimos.
Nossa! O meu cabelo ainda era curto nessa época, não chegava ao pescoço. Eu gostava dele assim, era mais prático, ágil. Já a roupa, durante o eio, nem tanto. O vestido que eu usava era branco, leve e rendado, e ia até um pouco acima dos tornozelos. As mangas compridas percorriam os meus longos braços. Eu não era (sou) fã dessas vestimentas mais delicadas, mas a minha mãe e, especialmente, a Sarah, gostavam quando eu as vestia. E além do vestido, eu também usava um chapéu branco vintage floppy — se eu não me engano. Eu achava engraçadas essas vestimentas, mas como foi a Sarah quem escolhera tudo, usei mesmo assim. Por fim, eu estava com as unhas pintadas de vermelho e calçava um tênis preto. Não sei se combinava, mas eu me lembro de alguns rapazes me olhando.
Sarah, então, com doze anos, era uma boneca atemporal.
O seu vestido, que ela ganhara de... O seu vestido era de um lilás mágico, bem amenizado, com bordas afáveis, e ia até os seus joelhos, tornando-a mais linda, mais delicada. Com uma cinta (ou laço?) borboleta em sua cintura, estava graciosa. E os seus longos cabelos ruivos, bem avermelhados, que herdamos da nossa mãe, estavam trançados, escorrendo por um dos seus ombros, exibindo-se para todos. Ela adorou esse seu novo penteado. Sarah também usava um chapéu floppy rosa — a sua cor favorita. Sempre dizia que poderia ser a cor do céu. E eu, honestamente, gostava de vê-la saltitante, de vê-la feliz. Isso, por mais impossível que fosse, acalmava a minha angústia, o meu ser, a minha existência.
Sarah...
Ela pôde despertar em mim um lapso incoerente, desconexo, estranho. Se eu pudesse, daria a minha vida por ela...
Mas eu fiz de outro jeito.
Nossa mãe era a mais elegante e sóbria, e posso afirmar: ainda era a mesma garota sonhadora de sempre. Tinha quarenta e seis anos e sua beleza ainda era segura. Com um vestido vintage floral vermelho — o comprimento ia até o meio das suas pernas — ela parecia voltar no tempo. Também usava uma sapatilha preta.
Não me orgulho disso, mas parecíamos um arco-íris ambulante. Nós
irradiávamos sorrisos e fascínio a todos que avam por perto.
Continuamos com o eio e mais e mais flores fomos vendo.
As cíclames tão rosadas a pequena Sarah encantavam. Os cravos, em fortes tons de vinho, esnobes e cultos. Gérberas festivas gostavam de serem vistas. As tímidas gardênias esbranquiçadas atraíam por seu odor retilíneo. As margaridas, com o seu branco e amarelo, apresentavam-se em um charmoso baile de gala. Toda essa beleza exótica e colorida, mais todo o perfume saboroso que envolvia as suas únicas vidas, era como uma carismática fábula criativa.
Sarah estava brincalhona, mais do que o habitual. Nossa mãe sempre contemplativa. E eu... E apesar da ausência do meu pai, parecíamos uma família, sem uma peça removida.
Seguimos para outro lugar.
Dentro da mansão, pudemos apreciar a história entalhada nos móveis e nas pinturas. Eu não conhecia os artistas que as criaram, muito menos os seus expoentes. Nunca fui ligada nessa parte do tempo que andou pela Terra. Mas vi o cuidado e o esmero na produção daquelas peças. Era como sentir na pele o deslizar dos dedos pela madeira, buscando a melhor forma de a arte concebê-la. E o pincel que bailava sobre as telas, ainda brancas, moldando a imagem perfeita.
Saímos da mansão.
No fundo, no meio de tantas peças e artesanatos, eu vi um antigo balanço — pergunto-me por que ele estava lá. Sarah também o viu e correu em sua direção, tipo um pequeno feixe de luz que entra pela janela ao irradiar do sol a pino. Eu olhei o humilde brinquedo e vaguei em minhas memórias de criança. De quando eu ia ao parque com o meu pai e ficava sentada em um desses por horas. Ele me balançava, sem interrupção, talvez, sentindo-se abençoado por sua filha. E eu tinha certeza que poderia voar de tão alto que alcançava. Eu segurava sem medo nas correntes, e com um enorme sorriso no rosto deixava os meus dentes serem vistos. E eu me sentia... viva?
Não... Com certeza... Não...
As crianças ao meu redor pareciam iradas, pois não acreditavam que algo assim fosse possível. Corriam esperançosas até os seus pais na expectativa de que as deixassem fazer igual. Mas elas ouviam:
— Isso é muito perigoso! É um absurdo um pai fazer isso com a própria filha! — os seus responsáveis falavam, uns para os outros.
Eu sabia que Sam... — esse era... é o nome do meu pai — ouvia tais palavras, mas não se importava. Ele não perdia tempo com essas bobagens. O meu pai...
Eu gostaria de poder tê-lo ao meu lado... mais uma vez...
O meu pai, conosco, pôde viver uma vida plena e tranquila, mesmo com a cicatriz causada pelo abandono da sua primeira família. E felizmente não presenciou toda a destruição causada por mim.
Fiquei contemplativa ao vê-la se divertindo no brinquedo ultraado.
Sarah não chegou a conhecê-lo, de fato. Tinha apenas dois anos quando o nosso pai morreu. Porém, às vezes, costumava viajar pelas fotografias para tentar entendê-lo melhor. Ela pegava nossos álbuns de família, sentava-se no chão mesmo, sem se importar com o piso gelado, e olhava com curiosidade, e uma pequena saudade, para o homem que ela sabia que tanto a amou.
Por isso, resolvi assumir a posição por ele deixada e dar um pouco a nossa querida Sarah. E assim, da mesma maneira que o nosso pai fazia, retribuí esse favor para a sua outra filha. Sarah não ficou assustada, nem com medo, apenas gritou toda alegre, empolgada. Gritou que queria ir mais alto, até as nuvens poder tocar. Mas eu fiz diferente, e, aos poucos, fui reduzindo a velocidade. Ela ficou emburrada, mas logo ou, afinal, sabia o que significava.
Amy... — esse... é o nome da nossa mãe — viu essa cena de longe, pois não queria interferir naquele momento, nosso momento. Então, olhou profundamente e certamente satisfeita por sermos irmãs tão amigas e, poderia dizer: perfeitas.
Continuamos o nosso eio e chegamos aonde queríamos. De fato, O Jardim das Orquídeas. O local era bem grande, devia ter o tamanho de um campo de futebol com as maiores medidas; e tão majestoso. Elas ficaram boquiabertas.
No centro havia uma grande casa — não igual à mansão —, com três andares e toda de vidro. Acredito que nenhuma de nós três tenhamos visto algo assim antes. Nas bordas havia uma grande corrente de flores que encobria todo o terreno. Diversas espécies de orquídeas por todos os lados. E o sol, de todas as maneiras, procurava meios para agraciar esse mimo, construído na maligna
Agonia.
Havia orquídeas brancas e delicadas, igual ao sabor de um beijo ganhado por uma filha amada. Orquídeas vanilla — a maior parte era amarela — com os seus aromas adocicados. Orquídeas terrestres, também amarelas, mas com uma sutil presença do branco. Orquídeas vermelhas, mais apaixonadas do que duas vidas gêmeas. As duas ficaram embasbacadas com tanta cor e beleza. Eu segui do mesmo jeito, até que vi algo inacreditável...
Orquídeas negras.
Sarah e a nossa mãe não deram atenção, pois a cor fúnebre afastou os seus sentimentos amigáveis, porém eu vi um esplendor inóspito. Olhei, hipnotizada, tamanha exuberância antipática. Frágeis, mas nervosas. A delicadeza era igual à de uma bailarina, e o charme igual à de pétalas banhadas pelo calor da boca de uma irmã querida. Mas elas também eram tristes, angustiadas...
Vazias.
Não conseguiam se misturar com suas irmãs. Estavam deslocadas, perdidas. A imponência e o orgulho causavam a infelicidade e a solidão, como se estivessem presas em um mundo impossível de escapar. Sabiam que eram únicas e especiais, mas, se pudessem, abririam mão para se juntarem as demais.
Por alguma razão, os meus olhos umedeceram. Eu não estava triste, nem chateada; emburrada ou amargurada. Então, por que daquela vontade de derramar lágrimas que escorreriam, timidamente, por meu rosto?
Hoje, tenho um monte de suposições.
Então, irritada, forcei os olhos, mandando-os se calarem. Pude devolvê-las para dentro, sem que ninguém as visse. Voltei para perto das duas como se nada acontecera. Porém, minha mãe, muito perspicaz, perguntou se eu estava bem. Eu disse que não havia nada de errado, mas ela sabia que era mentira. E, como sempre, analisou-me com o seu olhar certeiro, capaz de perfurar a mais resistente cordilheira. E eu pude ver em seu semblante a preocupação que a tomou.
Assim, o último dia das nossas vidas, da nossa família, chegaria ao fim.
Terminamos a nossa visita, todas já cansadas. As duas estavam satisfeitas, renovadas, por tantas lindas flores que puderam irar.
O pouco sol havia ido embora e à noite chegado.
Mas antes de irmos também, ficamos sentadas em um banco, embaixo de uma imensa e brilhosa lua cheia azulada. Foi a primeira (e única) vez que fizemos isso.
Simplesmente aconteceu.
Enquanto ambas se deleitavam, encantadas pelo brilho oceânico que a lua derramava, eu olhava para os seus rostos, sabendo o que havia por trás. Sarah queria que aquilo perdurasse para sempre. A minha irmã era muito obcecada por
essas coisas familiares. Já a nossa mãe estava perdida em suas lembranças, mais precisamente no ano que conheceu o seu futuro marido, o meu querido pai.
Foi o único homem que ela amou.
Ainda me lembro do dia em que me contaram de quando se conheceram. Foi uma boa história. Romântica demais e cheia de devaneios. E eles demonstraram a união das suas existências, a cada palavra que falavam. De fato, foram feitos um para o outro.
Amy, minha mãe...
Como um bom clichê romântico, foi no colégio, no último ano, onde tudo ocorreu. Ela era uma garota comum. Não era popular, mas também não era invisível. Gostava de ler bastante, mas também tinha os momentos de conversar com as amigas. E por causa de um livro o seu destino foi traçado, pois, graças a ele, pôde encontrar algo com o qual sempre havia sonhado.
CAPITULO 8. AMY
Mais um dia no colégio Gênesis. Na turma do 3° B, está ocorrendo à terceira aula, e os alunos estão ansiosos para irem ao intervalo.
Encontra-se nessa sala uma garota predestinada a uma vida em duas partes. Terá o prazer de aproveitar a metade alegre, feliz e boa. Porém, quando o outro lado vier buscá-la, irá saborear o gosto mais detestável que uma pessoa poderia imaginar.
Amy Rose Heart já viveu longas dezessete primaveras e, agora, já no último ano do colegial, nunca teve um namorado. Ela tem os cabelos compridos ruivos, de um vermelho intenso, que vão até as costas. Gosta de usar uma tiara branca para impedir que as suas madeixas caiam sobre os seus olhos. Alta, mas não muito, branca e com os seios médios, é uma linda jovem. Os seus olhos amarelo-ouro são soberanos. E os seus lábios pequenos e finos lhe dão uma meiga delicadeza, igual à de uma pequena rosa ao amanhecer do outono. Amy gosta de usar dois brincos (já desgastados) de flor, um em cada orelha. Também aprecia usar saias e meias-calças no seu dia a dia. Para completar, uma pequena, e singela, sapatilha tímida.
Além da beleza, Amy também sempre foi uma excelente aluna. A melhor da sala, durante todos os anos, mais precisamente. E após o término do quarto ano do ensino fundamental, ela conseguiu uma bolsa integral para estudar em um dos melhores colégios privados da cidade, o conceituadíssimo Gênesis — por que financeiramente seria impossível pagar.
Os professores a iram, enaltecendo as suas capacidades, perante os demais colegas de sala. E Amy sempre fica corada toda vez que o seu nome é pronunciado. Mas, diferente do roteiro tradicional, ela não é uma bitolada em estudar. Estuda o mínimo necessário (nos critérios dela) para ir bem às provas e poder ar de ano. Não gosta de ter que ficar sentada o dia inteiro, lendo livros chatos de sociologia, filosofia, física ou química, pois acha tudo isso uma ofensa ao relógio, um desperdício temporal que jamais poderá ser recuperado. Então, concentra-se ao máximo durante as aulas para não perder nada. Depois, no período dos exames, seleciona o que acredita que cairá nas provas (sempre acerta) e o resto descarta. E por causa disso, há alunos que não gostam dessa sua atitude, já que veem como uma ofensa contra os professores e os diretores que tanto se empenham para ensiná-los e blá, blá, blá. Amy, primeiramente, incrimina-os, apontando o dedo em riste, lembrando-os de que não se dedicam a nenhum livro, a menos que algum professor os obrigue. Depois, ela explica, inutilmente, o seu ponto de vista. Ela não fica brava, apenas um pouco intrigada por a verem assim: uma chata.
O sinal toca, a terceira aula acaba e suas amigas perguntam se ela não quer ir até a cantina com elas. Amy diz que não, pois tem outra coisa para fazer.
— Você vai à biblioteca, né, Amy? — Natally, amiga há bastante tempo, pergunta.
— É isso aí, Nat! — Amy responde.
Assim, Natally e as demais nem procuram tentar convencê-la do contrário. Elas saem e Amy vai à busca de um livro específico.
Por ser filha de uma grande confeiteira, além do dom com que já nasceu, Amy não gasta horas lendo livros maçantes sobre a teoria da gastronomia (pretende
fazer isso na faculdade) ou outras besteiras. Ainda assim, tem o hábito de ler um livro por semana, sem ter haver com as disciplinas. O que Amy gosta é de ler os romances, principalmente os com ambientações históricas. Por ser uma garota sonhadora, imagina-se nesses cenários glamorosos e apaixonantes, ao lado de um belo, cortês e nobre rapaz.
Amy desce calmamente as escadas, e segue rumo a sua segunda casa, como costuma dizer. Com o livro que terminou de ler abraçado em seu peito, ela olha os casais de adolescentes se beijando e, até mesmo, agarrando-se. Ela fica vermelha com essas cenas, pois não viveu algo tão quente e... Na verdade, nunca viveu nada parecido.
Ela entra na biblioteca e, para variar, com exceção da solitária funcionária, não há uma alma sequer. Apesar disso, Amy já está acostumada com esse cenário, pois sempre foi assim.
Ela entrega para a velha senhora o livro, que agradece com um simpático sorriso.
— Pronto, Elly. Mais um finalizado — Amy diz.
— Você nunca vai parar de ler, né, Amy? — Elly pergunta, afirmando uma certeza.
— Nunca! — Amy, dirigindo-se ao seu objetivo, responde.
Sem delongas, Amy vai até a seção que a encanta, com um nome em mente:
Lucinda McDougal. É uma autora desconhecida, por isso que ficou animada, uma semana antes, ao vê-la. Mas apesar de toda a empolgação que demonstrou ao descobri-la, após notá-la na estante da biblioteca, teve que se conter, pois já havia decidido qual seria o novo romance que leria — ela não gosta de acumular leituras.
A biblioteca não é tão grande, mas tem uma boa variedade literária. Além de um corpo teórico de respeito, também há os de ficção científica, terror, fantasia, comédia, política, etc.. Mas Amy os ignora a maior parte do tempo. Os de ficção científica ela nunca chega perto. Odeia-os, profundamente. Os de terror já a atraem mais, pois gosta das descrições aterrorizantes, sombrias e dos cenários ensanguentados e sofridos. Fantasia é um tédio. Ela pode ler um livro de quinhentas páginas, mas dormirá umas vinte vezes durante o processo. As comédias são bem-vindas, já que julga ser uma pessoa bem-humorada. Já os políticos... Mas foi nos romances melosos onde se encontrou. Foi o acender eterno da tocha por uma fagulha espoleta, pois às chamas nunca mais se apagaram.
Amy estuda no colégio Gênesis desde o quinto ano do ensino fundamental, e apesar de sempre ter estudado em período integral, entrando às oito da manhã e saindo às dezessete horas da tarde, sempre arruma tempo para ler, por isso já leu quase todos os romances — normalmente chega livros novos, mas os romances vêm com menos frequência. Daí a sua empolgação com a descoberta, pois seria uma nova aquisição para o enorme acervo que já consumiu e arquivou em sua mente.
Toda empolgada, Amy procura pelo livro, mas não o encontra.
— Ué? — Amy, ajoelhada, enquanto mexe nas demais obras, estranha a ausência.
— Posso ajudá-la, Amy? — a simpática Elly, funcionária há mais de vinte anos no colégio, pergunta.
— Acredito que sim, Elly. Estou procurando o livro: “O Amor Eterno”, mas não o encontro. Vocês o jogaram fora, por acaso?
Elly dá uma risada burlesca. Amy a olha sem entender o que aconteceu, pois (dessa vez) não fez nenhuma piada.
— Desculpe, querida — Elly, limpando as lágrimas que saíram depois de tanto rir, diz. — Um jovem pegou esse livro hoje.
— O QUÊ?! — Amy, com um berro, levanta-se incrédula com o que ouve. Elly ri ainda mais. Também a olha com carinho, pois há muito tempo é a única que vai vê-la, sentada, naquele cantinho.
— Sim, sim. Um belo rapaz, por sinal. Deve ser aluno novo — diz, tentando ter certeza. — Sem dúvida! Ele é novo sim — agora, convicta.
— Ai, ai, ai! Não acredito nisso! Eu estava ansiosa para lê-lo! Agora vou ter que esperar devolvê-lo! — Amy, visivelmente chateada, resmunga. — E desde quando alguém neste colégio lê algo por interesse próprio? — continua reclamando, por achar um absurdo o que houve.
— Você deveria começar a comprar esses livros. Tem dinheiro não, menina?!
— É claro que eu tenho! Eu trabalho! Mas de graça é mais barato! — Amy, com o peito estufado, fala. Elly dá uma risada mais forte ainda.
— Então, por que não vai procurá-lo? Peça para ele devolver antes — Elly diz e já vai olhar os registros para saber o nome do aluno. — O nome dele é Sam Elric Gillian — diz, sorrindo para Amy, que entorta a cara.
— Elric Gillian? Sam Elric Gillian? Será que...? — Amy paira no espaço/tempo. — Não pode ser...! — Elly a olha sem entender. — É o filho do famoso cineasta Brian Elric! E da magnífica pianista Elizabeth Gillian! — Amy não acredita na possibilidade.
— Quem? — Elly pergunta na maior inocência, e ignorância, que Amy já viu na vida.
— “Quem?”. É a família Elric Gillian! É uma das mais ricas e famosas de Agonia! Brian já filmou com as maiores estrelas do cinema! Elizabeth já tocou nos lugares mais inacreditáveis do mundo!
— Nunca ouvi falar — Elly continua com a sua cômica desinformação.
— Mas... como é que ele pode estar aqui, sem nenhum tipo de alarde ou alvoroço? — Amy questiona a si mesma, arqueando as sobrancelhas, além de levar uma mão ao queixo e a outra à cintura.
— Não sei, Amy. Mas ele estuda... — Elly vê nos registros para saber,
precisamente, as informações a serem adas. — Na sala doze do andar de cima do outro bloco. Vai lá falar com ele. Também é estudante do último ano. Talvez vocês se deem bem, afinal, algo em comum parece que vocês já têm. E ele é lindo, parece um nobre (apesar de ser meio sombrio) — Elly diz sem vergonha nenhuma, com grosseiras levantadas das sobrancelhas.
— Que isso, mulher?! — Amy fica sem jeito. — Bem, parece que terei que esperar mais alguns dias — e expele um quilo de ar pela boca desanimada. — Fazer o quê?! — emburrada, recolhe o corpo. — Tchau, Elly. Depois nos vemos — Amy sai cabisbaixa.
O intervalo está prestes a acabar. Amy, abatida, e sentada desconfortavelmente em um banco, e mais: com a sua cabeça desfalecida sobre a mesa. Ela também faz uns barulhos engraçados, e extremamente infantis, com a boca. Ah! E ainda está lamentando a sua perda.
O sinal toca e todos os estudantes começam a voltar para as suas salas. Amy parece estar arrastando um cadáver. Sua frustração é imensa. Suas amigas nem perguntam o que houve, pois já estão acostumadas com essa novela.
As aulas prosseguem sem nada de especial. Amy nem tenta disfarçar a sua decepção. Costuma ficar muito negativa quando perde um romance que a interessa muito.
Após o término das aulas, Amy retorna toda moribunda e desanimada para a sua casa. Todo o trajeto é preenchido por um mar de ranço. Assim que chega é recebida por sua mãe. Esmeralda nem pergunta o que aconteceu — já soube de primeira. Amy, permeada pela sensação ruim que surgiu, encerra o seu dia sem esperanças de que, ao chegar do amanhã, estará menos chateada.
No dia seguinte, ainda jururu, enquanto caminha até a sala, ouve algumas meninas comentando a respeito do Sam. O quanto ele é atraente, charmoso, bonito, rico. Amy não a ouvir isso.
— Imagina se ele for um babaca? Aí eu quero ver toda essa excitação continuar! — resmunga, mas sem deixá-las ouvir.
As aulas am, o intervalo chega e termina e os estudantes voltam para mais uma rodada com os professores. E assim, o fim do expediente apresenta-se. E nessa rotina uma semana se foi, vagarosamente, igual à velocidade de uma lesma obesa. Amy se manteve mal-humorada, firme, com a cara fechada, parecendo uma criança mimada. Esmeralda nem ligava, pois achava engraçada toda à cena que a filha fazia em casa.
Até que, enfim, o dia esperado chegou.
Amy, animada, já não lembra mais a garota carrancuda que andava com um bico feio para todos os lados. Ela chega ao colégio toda sorridente, como é o normal, cumprimentando os estudantes, os professores, o pessoal da faxina e o diretor, que logo cedo dá um esporro em sua turma. Mas nada vai estragar o seu dia, e isso tem um motivo específico. Os estudantes, após uma semana, precisam devolver os livros à biblioteca, e Amy sabe que mesmo se o cobiçado Sam não tiver terminado de lê-lo, terá que devolver e aguardar mais uma semana para poder pegá-lo outra vez — caso queira. E como ninguém mais no colégio frequenta a biblioteca, muito menos lê algo, não terá como o livro não estar lá, esperando por ela. Mas é claro que não será tão simples assim.
O sinal do intervalo toca e Amy sai em disparada, igual a um míssil teleguiado,
sedento para aniquilar os seus inimigos. Esquiva-se dos garotos, anda de lado para não empurrar as garotas e salta por cima das mesas. Uma loucura desconexa com a história que é contada. Amy se transformou em uma ninja acrobata!
Toda ofegante, pois não é uma praticante de exercícios físicos, e suada, mas sorridente, chega à biblioteca com a certeza de que adentrará em um novo mundo, belo e encantador, em poucos segundos.
— Elly! Minha querida, Elly! — Amy, toda charmosa e moleca, fala. — Me dê “O Amor Eterno”, por favor! — dá uma porrada na mesa, enquanto a outra mão segura a dor que surgiu do lado esquerdo da sua barriga.
— Olá, Amy! Há quanto tempo!
— Ah! Sem choro, mulher! Vamos logo ao que interessa! — Amy enlouqueceu.
— Que empolgação é essa, garota? Tudo isso por causa de um livro? Controlase! — Elly, com uma expressão bem-humorada, diz.
Ambas se olham e Amy vai até a estante para buscar o seu tão aguardado livro. Só que há algo de errado.
— Elly... então... não está aqui... Você o escondeu de mim para fazer uma piada, não é mesmo? — diz, querendo acreditar.
— Não, senhorita — Elly responde. Levanta-se e vai em direção da Amy. — Na verdade, ele não foi devolvido ainda — pega um livro e volta para o seu cantinho.
— Mas... Elly... isso não é possível! — a personificação da decepção surge.
— Não deveria ser assim, mas... — Elly diz, como se não pudesse fazer nada.
Amy, desolada, cai de joelhos no chão duro. O seu semblante se acinzenta, ficando tão macabro quanto um casamento em um necrotério e a festa em um cemitério abandonado, com os convidados sendo servidos pelos cadáveres, cheios de vermes e larvas.
— Elly... minha alma se partiu em dois, tamanha a dor que sinto neste momento — Amy apoia às duas mãos no chão para evitar um golpe certeiro que o seu rosto daria no concreto. — Imagino que eu nunca mais irei conseguir ler um livro na vida. Talvez... nem amar... poderei. Toda a minha esperança e fé na humanidade foram jogadas no lixo, como se não fossem nada — Amy discursa com pesar e sombra em sua voz, que até poderia trabalhar em uma funerária. — Com certeza, eu...
— Qual é, menina?! Pare com isso! — Amy se assusta com a interrupção brusca e o tom alto que Elly adota. — Ainda estamos no intervalo! O rapaz tem até o fim do dia para devolver, caramba! — diz, com a cara fechada, devido ao exagero criado.
— Verdade, né? — Amy, levantando-se em um gracioso pulo, fala. E bizarramente, volta ao normal. De pé, anda até a saída da biblioteca. — Tchau,
Elly! Até daqui a pouco, então — vai embora como se nada tivesse acontecido.
— Essa garota...
• • •
— Finalmente! — Amy agradece pelo sinal, dizendo que a última aula acabou.
Todos guardam os seus materiais em uma velocidade impossível. A vontade de saírem dali, daquele hospício, é imensa. Amy fica por último, como de costume. Com as luzes já apagadas, caminha em direção da porta, contente por ir buscar o livro. Porém, distraída, esbarra em alguém.
— Desculpa! — rapidamente, Amy se prontifica como sendo a responsável.
— Amy, correto? — uma voz soturna é pronunciada.
— Sim, é ela mes... — Amy não termina de falar, pois fica paralisada com o que vê: um belo rapaz de olhos verde-escuros e cabelos negros, mais alto do que ela, envolto de um sorriso tímido. Isso faz o coração da Amy disparar, igual das damas que tanto lê.
A boca dela se abre levemente e os lábios, por pouco, não se tocam. E a pouca luz do sol patético, que já deveria ter ido embora, atinge o rosto do jovem garoto, iluminando toda a sua pele macia e clara. Isso faz Amy ficar arrepiada. Ela
nunca sentiu essa sensação excitante transitar por seu corpo esvoaçante.
O rapaz mexe na mochila e retira um livro.
— Desculpe assustá-la — gentilmente, coloca-se como sendo o culpado. — A Elly falou que você foi procurá-lo no intervalo — diz, educadamente, mostrando o livro.
Amy não consegue parar de olhá-lo. A garota está suspensa em terras mágicas. O vento sopra os seus calorosos cabelos em um perfeito como, como um maestro que conduz uma sinfonia harmonizada. Os seus olhos dourados ardem pela falta de piscadas. A sua boca macia resseca. O seu estômago embrulha. Amy não reage.
— Você está bem? — ele pergunta. — Ah! Que grosseria da minha parte! Não me apresentei. Eu me chamo Sam, sou novo no colégio. Entrei faz... — ele busca o tempo exato para poder falar. — Uma semana. Prazer em conhecê-la — coloca a mochila no chão e estende a mão para cumprimentá-la — e algo acontece no corpo da Amy, mas a reação não é bem a esperada. Ela foge do local. Do nada, corre o máximo que o seu corpo é capaz.
Sam, em posse de um semblante novo, vê Amy partir. Normalmente as garotas gritam e o elogiam sem parar, e, logo, querem tocá-lo. Essa foi a primeira vez que isso aconteceu. Sam imagina que foi por ele ser quem é.
Amy, assustada, não sabe o porquê da correria. A sua consciência perdeu o controle do corpo, e agora é a carne quem comanda. Ela chega à sua casa tão rápido que a sua mãe pergunta se ela não pegou carona com alguém, devido a
grande distância que é até o colégio; Amy não responde.
A garota, com a mochila toda torta em seu corpo, atravessa a sala e corre para o seu quarto. Fecha a porta de qualquer jeito e se joga na cama. O seu corpo está trêmulo e a pele atiçada. O seu coração e os pulmões não param de trabalhar. Não há tempo para mais nada, apenas respirar.
Sua boca está toda aberta e molhada. O suor excessivo em seu corpo fez sua camisa branca ficar transparente. Os seus cabelos, úmidos e bagunçados, e que entram um pouco na boca, lembram mais um incêndio encharcado. Os seus olhos fechados tremem, initerruptamente. E depois de tanto respirar, enfim, a sua consciência, aos poucos, começa a voltar. Amy abre os olhos e se dá conta do lugar em que está. Um som começa a se formar em sua percepção. Vem da porta. É a sua mãe.
— Amy? Amy? O que houve? — Esmeralda pergunta. — Amy?
— Não é... Não é nada, mãe. Eu, apenas... — Amy procura alguma desculpa. — Não me sinto bem. Outra enxaqueca. Achei que fosse desmaiar — diz, torcendo para ela acreditar.
Um silêncio racional se instala por alguns segundos.
— Tudo bem... então... — Esmeralda, sem muito acreditar, responde. — Mas por que trancar a porta, filha?
— Desculpa. Só preciso ficar um pouco sozinha — agora, com mais força, espera ser deixada em paz.
— Tá bom, querida. Então, assim que melhorar, você vem me ajudar? — Esmeralda aguarda uma resposta.
— Tá bom, mãe. Ajudo sim — Esmeralda volta à cozinha.
Agora, Amy tem tempo para entender o que aconteceu consigo, fazendo-a agir inconscientemente.
Sentada na cama, abraçando as suas pernas finas, Amy olha o fim do entardecer pela janela, perdida em vários pensamentos, sentimentos e emoções desconhecidas. Mas, no fundo, talvez, já sabendo exatamente o que acabou de vivenciar.
Amy se levanta, ajeita a camisa, tira os calçados e começa a andar pelo quarto, roendo as unhas, compulsivamente. Quer organizar as borboletas que dançam no interior da sua barriga.
— Será que é isso?
CAPITULO 9
Após o banho, Amy foi ajudar sua mãe na preparação de um bolo (morango com chocolate).
Elas estão trabalhando em silêncio, o que não é normal, pois costumam conversar bastante, já que são muito amigas. Esmeralda percebe essa recente anormalidade entre elas. E mais: nota algo de diferente no rosto da filha.
— O que houve, Amy? — carinhosamente, Esmeralda pergunta.
— Como assim? — Amy a indaga, inexpressivamente.
— O seu semblante está diferente... Radiante! O seu olhar mais profundo e quente. Parece perdida em algo bom — as palavras saem de maneira afável.
— Não entendi.
Esmeralda, sorridente, só contempla. Conhece a filha muito bem e sabe que alguma coisa mudou. Algo que ela entende, pois viveu igual no ado.
— Fico feliz por você, filha — Amy, ainda desentendida, olhando para a sua mãe, que alegremente mistura os ingredientes, ouve tais palavras e as absorve. Amy quer falar, o que é o normal, mas algo a impede. É como se ela precisasse de um “empurrãozinho”. — Ele se declarou para você, querida? Por isso chegou correndo? — Esmeralda fala sem enrolar, dando o empurrãozinho necessário.
Amy se assusta pela explícita sinceridade e fica toda vermelha.
— Não! Não foi isso! — Amy, com os olhos arregalados, a boca bem aberta e as bochechas rosadas, balança as mãos em frente ao corpo, negando.
— Então, foi você quem se declarou?
— Também não! — diz, ainda agitada.
— Estou confusa, Amy. Se ele não se declarou, nem você, por que você chegou daquele jeito em casa?
Amy respira fundo, ajeita-se e começa a falar.
— Tá bom... Vamos lá. Primeiramente, desculpa por eu ter entrado correndo e ter mentido, falando que estava com enxaqueca. É que, na verdade, foi tudo tão rápido e inesperado que, quando me dei conta, já estava em casa, trancada no quarto. Ainda não sabia o que tinha acontecido, e nem sabia como reagir — Amy fala, enquanto corta alguns morangos. — O meu corpo simplesmente correu sozinho o mais depressa possível — coloca os pedacinhos de morango em
um recipiente. — Ele tinha ido me entregar um livro que eu queria ler muito e... — pega uma barra de chocolate e, sem perceber, começa a comer.
— Ah! — Esmeralda grita, já sabendo o que houve. — Então, foi amor à primeira vista! — ela, toda enérgica, afirma, enquanto derrama a mistura na batedeira. Amy fica inacreditavelmente vermelha. — Esse chocolate é para o recheio, filha — Esmeralda a repreende, educadamente.
— Desculpa! — Amy larga o chocolate.
— Hahahahahahaha! Calma, calma — Esmeralda, empolgada, ri.
— Você, viu? — Amy, fazendo um bico emburrado, fala.
— Ele é alguém que eu conheça? — toda curiosa, e limpando as lágrimas, Esmeralda pergunta.
— Bem, pode-se dizer que sim — Amy, misteriosa, responde. — Você já o viu, apesar de nunca ter conversado ou o visto pessoalmente — lança o seu enigma.
— Difícil, filha.
—... — Amy, quieta, querendo que ela adivinhe.
— Não sei.
— Será que eu falo?
Esmeralda a fita de cima a baixo.
— Quer receber por me ajudar com o trabalho? — Esmeralda, carinhosamente, pergunta. Amy corta o sorriso debochado na hora.
— Tá bom, tá bom! — fica mais séria. — Lá vai! — Amy se prepara. — Sam Elric Gillian — e com um tom sereno na voz, diz o nome do rapaz. Esmeralda aperta bem os olhos.
— O QUÊ?! — Esmeralda grita tão alto que quase derrama a mistura e a batedeira, além de fazer o cachorro de a casa ao lado começar a latir.
Ambas conhecem o trabalho da Elizabeth. Esmeralda fica sem reação ao saber que Sam estuda no mesmo colégio da Amy.
— Mãe... Mãe... Mãe... DONA ESMERALDA!!!
— Meu Deus, querida! Desculpa! É que eu fiquei chocada ao saber que a minha filha está em um relacionamento com o jovem Sam — Esmeralda diz, enquanto busca um pouco de ar. — Por que não me disse antes que vocês estudam juntos?
— Eu não estou em um relacionamento com ele, mulher!!! — Amy, mais vermelha do que nunca, fala bem alto. — E nós não estudamos juntos — agora mais calma. — Ele se transferiu para o colégio há pouco tempo, e eu apenas o vi hoje. Nem conversar nós conversamos — Amy, agora, pensativa. — Olha, na verdade, parando para pensar, não aconteceu nada. Eu apenas fugi igual a uma maluca. E eu não...
— Calma, filha. Tenho certeza de que ele não te achou uma esquisitona bizarra.
— Não é isso o que eu quero dizer, caramba!
— Hahahahahahaha! Tá bom, tá bom.
Aos poucos, pensamentos inseguros fazem a estreia na cabeça da jovem confeiteira.
— Sabe, mãe... Acho que me precipitei — Amy dá uma risada constrangida. — Eu não o conheço. Não sei como ele é. Se ele é uma boa pessoa. Se ele é educado, gentil, brincalhão e bondoso — Amy percebe que deu os além do habitual. Esqueceu-se de que o viu, apenas, há algumas horas. E apesar de ser uma garota inteligente, nunca sentiu, de fato, tais emoções e sentimentos.
Esmeralda percebe o nó que a cabeça da filha deu.
— Amy... — Esmeralda a chama.
— Na verdade, tudo isso... — Amy a ignora. A sua voz começa a ficar mais baixa e apertada. — Pode ser loucura minha.
— Amy... — Esmeralda tenta outra vez.
— Afinal, mesmo que ele não tenha uma namorada, deve sair por aí com várias garotas. Eu sei que ele é muito paparicado — ignora de novo. Amy sente uma mistura de tristeza com felicidade, e já nem lembra mais de tê-lo xingado.
— Não seja boba, Amy! — Esmeralda larga todo o trabalho e mira direto para o rosto da filha; agora ela ouviu. — Como você mesma disse, você não sabe nada a respeito da vida desse rapaz (tirando o que a televisão fala. Se bem que não dá para acreditar neles). Tenha calma. Amanhã, use o livro como desculpa e vá procurá-lo. Analise a situação — sabiamente, Esmeralda propõe uma missão.
— Não sei, mãe. Por mais que eu gostaria que fosse um dos romances que eu leio, isso é a vida real. Relacionamentos não acontecem dessa maneira, assim, do nada. Você e o meu pai foram uma exceção — Amy, enquanto mexe o chocolate na a, fala com um pouco de frustração. Esmeralda ouve as palavras faladas pela filha e muda de postura, e uma nova mulher assume o seu corpo.
— Amy, querida, eu vou lhe dizer algo muito sério — Amy até para o que está fazendo. — A vida é feita de pequenos momentos, pequenas alegrias, e devemos aproveitá-las ao máximo. Afinal, não sabemos quando chegarão ao fim. Agora, por mais que choremos pelos momentos bons que ficaram para trás, com certeza, haverá iguais lá na frente. E a esperança de que podemos encontrá-los é o que nos faz querer continuar seguindo, continuar vivendo — Amy percebe que sua mãe fala a respeito da perda do marido. — Agarre com todas as suas forças isso
o que você está sentindo e não deixe de acreditar. E apesar de ser repentino, e por mais surreal e instantâneo que possa parecer, não desista. Realidade ou fantasia, filha, no fim é tudo o que nós temos — Esmeralda abre um sorriso. — Cabe a nós decidir o que fazer com isso — os olhos da Amy se enchem d’água. — Olha, após o Thomas... — Esmeralda se aproxima dela. — Eu nunca pensei em parar ou me fechar para o mundo, pois eu tinha você, Amy. Eu tinha alguém para me ajudar. Eu tinha as minhas memórias. Por isso continuei a sorrir. E mesmo após ir embora de Melancolia, não fiz por não aguentar lidar com a perda do seu pai, afinal, ele sempre estará comigo. Foi para poder seguir em frente. E em vez de olhar e me curvar para tanta dor, que sempre existirá, decidi que caminharíamos juntas, lado a lado. E isso era o que importava. É isso o que importa. A saudade permanecerá, mas isso não significa que devemos parar de buscar o amanhã — Esmeralda segura nas mãos da Amy e sorrindo a olha bem no fundo dos olhos.
Algumas lágrimas saem dos olhos da Amy, e ela abre um sorriso de tristeza pela saudade que sente do pai. Ambas abraçam-se. Esmeralda a beija na cabeça.
— Falávamos sobre o que mesmo, mãe?
— Desculpe, meu anjo. Acho que fui muito profunda. Quero dizer para você, ao menos, tentar, e se não der certo não abaixar a cabeça. Você é muito nova para sentir desesperança, Amy. Não queira alimentar esse tipo de sentimento, querida. É difícil de lidar.
— Isso até parece uma novela (e das ruins) — Amy brinca.
— Verdade — Esmeralda concorda.
— Tá bom, mãe. Amanhã, vou procurá-lo. Vamos ver o que sairá disso — ela dá com os ombros.
— Tudo isso em apenas algumas horas. Isso, realmente, faz o mínimo de sentido? — Esmeralda não deixa de falar.
Assim, as duas am o resto da noite finalizando a preparação do bolo.
• • •
Já é de manhã e, como de costume, não há muito sol em Agonia. A temperatura caiu bastante durante a madrugada.
Amy chega ao colégio. Ela está vestindo uma saia rosa-clarinha, mais comprida, até o meio das pernas, e mais grossa do que o normal. A meia-calça, que tanto adora, aquece as suas pernas e coxas. Também usa um suéter branco de lã bem quentinho. O gorro amarelo, também de lã, na cabeça, que esconde a tiara, protege os seus lindos cabelos, que se esparramam pelos ombros e costas. Por fim, um batom rosa bem leve em seus doces lábios, e os mesmos brincos de flor ainda em suas pequenas orelhas.
Imersa na conversa que teve com sua mãe, Amy pensa em tomar uma atitude, porém, as três primeiras aulas terminam e ela não vai vê-lo. Sente-se insegura. O intervalo acaba e os estudantes retornam. As aulas seguintes são dadas e, por fim, terminadas. Todos os alunos já saíram da sala e foram embora — menos Amy, que ficou por último.
Ela anda até a porta, navegando no fluxo ininterrupto dos pensamentos que transitam por sua cabeça cheia de fios ruborizados. Ela a pela porta e esbarra em alguém.
— Me desculpe. Ando distraída e... — Amy vê quem é a pessoa e fica imóvel.
— Isso seria um déjà-vu, certo? — Sam pergunta, esperando que ela concorde com essa observação. Nenhuma palavra sai da boca dela, pois os seus olhos dourados estão fixos no rosto dele. — Olha, quero me desculpar por ontem. Cheguei de surpresa e acho que te assustei — Sam, um pouco corado, fala, fugindo com os olhos. — Quero te entregar isso — mostra o livro para ela. — A Elly disse que eu poderia te entregar pessoalmente (ela é legal).
De repente, Amy para e escuta, atentamente, as palavras ditas por sua mãe. Então, uma energia percorre o seu magro e alto corpo, e ela consegue falar uma frase...
Uma frase errada.
— Sim! Muito quero eu, sim! — Amy fica mais vermelha do que todas as outras vezes, mas consegue pegar o livro, e já tampando metade do seu rosto constrangido. — Ah! Quero dizer, muito obrigada! Estou animada para lê-lo — finalmente!
Foi aí que tudo aconteceu.
Sam fica encantado perante tanta ternura. Amy se assemelha a um pequeno filhote de gato, fofinho e amável. A sua pele macia e com algumas sardas, um elegante veludo. Os olhos de ouro vistosos, dois lustres. O perfume adocicado, que dança por seu belo corpo jovem, deixa-o hipnotizado.
“De que maneira essa garota meio boba e, aparentemente, desengonçada, que tenta esconder-se atrás de um livro, pode ser tão esplendida?”, Sam se indaga no silêncio da sua alma.
Assim, Sam a olha com a mesma expressão que Amy fez. Tudo o que ela ou e sentiu, ele, agora, sente o mesmo. O seu coração dispara, fazendo-o suar como nunca, parecendo um chafariz. As palavras se amontoam em sua língua. O seu corpo treme todo. E da mesma forma que presenciou, Sam repete. Corre igual a um lunático enlouquecido, desvairado, ensandecido. Desce as escadas todo desajeitado. Atravessa os corredores, ignorando qualquer tipo de assédio das garotas, que ainda estão no colégio, e vai direto à saída.
Amy vê essa cena e retorna ao interior da sala. Volta até a sua cadeira, senta-se e começa a folhear o livro que tanto aguardou. E enfeitada com um sorriso amoroso, sabe o que essa situação significa.
Assim, duas gotas caem sobre a mesa da garota que sabe que, em breve, será amada.
• • •
ará um pouco mais de um mês e os dois ficarão todo esse tempo sem veremse. Amy continuará com a sua rotina: muita leitura, além de ajudar bastante a sua
mãe com o trabalho na cozinha. Também ficará mais segura, e continuará falando dos seus sentimentos. E mesmo não se encontrando com Sam, não se preocupará. Terá a certeza de que o que a atingiu, ele também terá alcançado.
CAPITULO 10
O sopro gelado do inverno chegou há algum tempo. Diferente do que ocorre em outras cidades, em Agonia essa estação não traz neve (apenas o frio), mas muita chuva. O céu, que já é sisudo, permanece, por um longo período, com muito mais nuvens negras, carregadas, espalhadas por toda a extensão que lhe é possível, somente para liberar, com enorme potência, uma montanha d’água, um dilúvio agressivo.
— Atchim! — Amy dá um espirro alto, ficando um pouco constrangida por causa de alguns olhares dos colegas. — Parece zangado — dá uma fungada, olhando pela janela, e encarando o clima ranzinza que dorme no céu, do lado de fora do colégio.
Em mais um dia normal, Amy está copiando as anotações da professora de literatura, a sua disciplina favorita. Ela chegou a pensar em seguir uma carreira de escritora (ou, até mesmo, jornalística), onde poderia escrever romances ardentes e apaixonantes. O problema é que Amy é péssima na arte literária, sofrendo durante as tarefas para criar uma história. Franze a testa, morde a base do lápis e nada sai. Sempre precisa pedir ajuda à sua amiga, Natally, para orientá-la. Mas Amy não se importa. Acha divertido aprender algo que a encanta. E a gastronomia é a sua paixão primária, então tudo bem não poder seguir uma carreira literária.
A última aula acaba. Amy se despede das amigas, coloca o seu caderno dentro da mochila, pronta para sair. Antes, veste o seu moletom e põe o seu gorro, pois, além do enorme frio, está chovendo — apesar de gostar de molhar as suas madeixas avermelhadas.
Já próxima da saída do colégio, Amy ouve uma voz familiar, mas que não escuta há muito tempo. Vira-se e vê Sam correndo em sua direção. Isso a faz abrir sua pequena e delicada boca um pouquinho, e sentir o seu coração pular como se ele também o tivesse visto.
— Olá, Amy! — Sam, ofegante, diz, após tê-la alcançado.
— Olá! — Amy diz com tanta ternura e carinho que eles nem parecem estranhos que mal se falaram. — Como você está? — pergunta algo que tinha vontade.
Sam não consegue parar de olhar o lindo rosto dela. ou mais de um mês sem vê-la, e apenas com a imagem que tem guardado em sua mente conseguia lembrar-se de tanta beleza.
— Preciso falar com você — Sam diz.
— Agora? — Amy responde, demonstrando não ser uma boa hora. Sam recebe essa resposta e pensa que ela rejeitará o convite.
— Me desculpe. Não sabia que você tinha um compromisso — sua voz expressa uma avalanche de desânimo.
— Não é isso — Amy, impedindo que um clima tenso se instale, diz. — É que eu preciso ajudar a minha mãe com o trabalho dela. Mas... — Amy pensa um pouquinho. — Se você quiser, podemos nos encontrar amanhã, já que é sábado.
Que tal? — apresenta essa solução com um doce sorriso... — Atchim! — mas espirrando em seguida.
— Claro... — Sam, meio disperso, responde. — Mas o que você quer dizer com ajudar sua mãe com o trabalho? Já é quase de noite — Amy fica surpresa com essa pergunta feita.
— Hahahahahaha! Isso te parece uma novidade — Sam fica confuso. — Bem, ela é confeiteira e eu a ajudo. Trabalhamos em casa com encomendas, e como temos vários pedidos, eu a auxilio para fazer as coisas andarem — Amy responde de nariz empinado, gabando-se toda. No seu nariz, aliás, algo escorre.
— Você é cozinheira? Legal! — Sam diz. Mas ao ouvir a palavra “cozinheira”, Amy entorta a boca e cria um baita de um bico feio.
— CON-FEI-TEI-RA — Amy diz, pausadamente, impositiva. — Não “COZINHEIRA!”
Sam vê a mudança horripilante no semblante dela e entende que tocou em um ponto sensível. O ar tenso sugado, anteriormente, volta a rondar os dois jovens já apaixonados.
— Me desculpe — Sam, meio (já) sem jeito, diz. Mas o sorriso acalorado que Amy abre quebra qualquer clima desconfortável que possa aparecer.
— Hahahahahaha! Parece que você está se enrolando todo. Hehehehehe! —
Amy ri com muita energia. — Ai, ai... Mas, calma. Só brincando.
Eles se olham sob uma quietude amena, sob um silêncio terno, sob um repouso plácido. Amy, sorrindo, contente. Sam, irando, atônito.
A chuva, que está despencando a algumas horas do céu, e que cai na forma de uma parede d’água sólida, explodindo sobre o colégio, está mais forte. Amy se assusta com os trovões que surgem em sequência, assim, do nada. Sam, então, interpreta o reflexo que balançou o corpo da jovem garota como uma resposta ao que ela terá que enfrentar.
— Amy, você tem alguém para te levar? — pergunta, querendo ouvir um “não”.
— Não. Minha mãe não dirige. Ela tem medo, tadinha — Amy dá com os ombros. — E eu não tenho habilitação. Até tenho interesse em tirar, mas as aulas de direção são caríssimas! E nem vou comentar sobre comprar um carro.
— E o seu pai? — Sam, inocentemente, pergunta.
Amy segura o tempo com o seu olhar dourado. Não é a primeira vez que ouve essa pergunta. Tantas vezes já foi feita que a ela não incomoda mais, tipo a insistência de alguém que toca em uma ferida antiga.
— Ele está morto.
Sam fica congelado. Sente-se mal por ter cometido outro deslize. Acredita estar cavando a própria cova.
— Me desculpe...! Eu não sabia...! — ele diz, sentindo-se a pior pessoa do mundo.
— Tudo bem — de olhos fechados, Amy balança a cabeça. — Você não tinha... tem a obrigação de saber. Além do mais, ele ainda vive comigo, aqui, no meu coração — Amy diz isso sem pensar, ficando toda vermelha em seguida.
Sam arregala os olhos e dá uma risada aliviada. Há bastante tempo que não faz isso. E é a primeira vez que ele ouve uma garota falar algo tão pessoal e íntimo, sem pender para perversão. Também é a primeira vez que Amy se abre, dessa maneira, com outra pessoa, que não seja a sua mãe.
A sinergia entre os dois já está criada, apenas esperando, em suas mãos, ser moldada.
Amy não está tão bem vestida como de costume. O clima chuvoso e o frio feroz a fez deixar as roupas alegres por peças escuras. O moletom preto parece querer destruí-la. A calça jeans não faz muito o seu estilo. O seu cabelo está um pouco armado, graças à umidade no ar. Mas, mesmo assim, Sam a acha a garota mais bela de toda a existência que há.
— Vamos. Eu te dou uma carona — Sam aguarda pela resposta.
— ATCHIM!!! — Amy dá outro espirro, mais alto e mais forte. — Me desculpe, acho que estou gripada — também dá uma assoada cômica.
— É mesmo. Essa época costuma deixar as pessoas desse jeito (e de cama). Mas, vamos logo. Não será bom para você tomar essa chuva (e é melhor você descansar) — Sam apressa a conversa, ainda esperando a resposta.
— Tá — Amy, monossilábica, responde, com uma voz que começa a ficar anasalada. Então, eles seguem juntos. Sam, tímido. Amy, nem aí.
Sam a conduz, levando-a até um carro, na garagem do colégio, onde um motorista de cabelos grisalhos, mas elegante, aguarda.
— Olá, Bobby — Sam o cumprimenta. — Essa é a Amy — abre a porta e a deixa entrar primeiro.
— Olá, senhorita. É um prazer conhecê-la — Bobby a recebe, educadamente, oferecendo sua mão direita.
— O prazer é meu — com a sua simpatia de sempre, Amy o cumprimenta.
Bobby se prepara para sair, mas Sam o impede.
— Bobby, espere! — Sam grita.
— O que houve? — Bobby desliga o carro, assustado.
— Eita! Peço desculpas. É que eu me esqueci de uma coisa. Amy, onde você mora? — pergunta a ela.
— Perto da antiga estação — Amy, que paira no ar, e com a voz fraca, diz. — Próxima ao lago Pond.
— Nossa! Você vem a pé?! (não parece estar muito bem). — Sam, surpreso.
— Sim. Pois, como eu falei, não temos carro (acho que é mesmo um resfriado) — Amy diz, enquanto a ponta do seu nariz começa a ficar rosada. — Mas não é um empecilho, já que eu tenho a oportunidade de poder apreciar a natureza no caminho. O único “problema” é nessa época, quando eu sempre tomo chuva — diz, com um estranho prazer na voz (já) entupida.
— Bem, você poderia vir de guarda-chuva, não é verdade? — Sam a questiona.
Amy ouve a afronta e se aproxima do rosto maravilhado do jovem rapaz, para respondê-lo com mais uma das suas poesias da vida. Ela faz uma cara séria, confiante.
— Eu não gosto. Prefiro sentir a água caindo sobre o meu corpo — Amy fala bem baixinho. Não quer que Bobby ouça. — Atchim! Ai, ai... Desculpe! — Sam, irado pelo que acaba de ouvir, e em transe pela pessoa que Amy é.
Sam nunca conheceu uma garota assim, que gostasse de algo tão simples. Com ele as garotas só falam sobre os carros caros e luxuosos que os seus pais têm, e que elas irão ganhar. Das roupas chiques e das viagens internacionais. Por isso, para Sam, Amy não é apenas diferente, ela é especial.
Agora, a aparência da Amy está muito engraçada. Os seus olhos lacrimejam duas cachoeiras. Nem mesmo uma agulha é capaz de atravessar o seu nariz entupido. Mesmo assim, ela continua alegre, igual a uma borboleta que a a vida indo de flor em flor, apreciando inúmeros perfumes e sabores. Também não está preocupada com o seu mal-estar, nem com as consequências que virão mais tarde. Amy não está nem aí.
Os dois ficam se encarando. Sam, extasiado, com os olhos mais calmos. Amy, adocicada, com os olhos realizados. Mas na frente, Bobby ainda aguarda pela ordem a ser dada. E com uma tossida intrometida, ele desfaz o ilustre clima romantizado entre os dois jovens. Sam recobra a atenção e, de prontidão, voltase para o velho motorista.
— Certo, Bobby! Para a estação! — Sam, todo entusiasmado, ordena.
Bobby, após vê-lo, durante tanto tempo, afundado em um oceano negro, sem profundidade, nem superfície, está grato por ver que um pouco de luz começou a brotar no rapaz, e que, agora, talvez, Sam consiga olhar para fora, para o que há na vida.
— É bom ver o senhor assim — Bobby diz, e Sam assente com a cabeça. Eles partem até o destino traçado. Porém, todo o percurso é preenchido por um silêncio não intencional. Sam vê que Amy não está bem e a deixa quieta. E Amy,
apesar de querer comunicar-se, também não se esforça para falar, e apenas fica com uma cara de personagem de anime quando está resfriado.
A chuva dá uma trégua.
A antiga estação foi abandonada há muitos anos, depois que o país deixou de utilizar as vias ferroviárias.
— Que triste — Sam, ao ver os trilhos enferrujados e a estação consumida pelo abandono, diz.
— Sim. Eu tive o prazer de vê-la funcionando, levando cargas enormes para todos os cantos deste país — recorda o experiente motorista. — É uma pena isso ter acontecido — como Amy falou, a estação fica localizada próxima ao lago Pond. Uma área repleta de pinheiros e com esse maravilhoso lago azulado no meio.
Eles chegam a um conjunto de casas. Amy ignora a conversa dos dois e mostra (apontando) onde é a sua. Uma bela moradia com dois andares e, até mesmo, uma chaminé.
Assim que o carro para, Sam desce primeiro para poder ajudá-la. Ele abre a porta pra ela, esperando-a sair. E Amy, apesar de conseguir, tem certa dificuldade.
— Com licença, Amy — Sam põe sua mão na testa dela. — Nossa! Você está queimando! — ele fica surpreso com a rápida instalação do resfriado.
— Não é tão grave assim, rapaz. É só uma febrezinha — ela diz.
— Errr... Certo... Bem, tchau, Amy. Espero que possamos nos ver amanhã — Sam, receoso, despede-se, mas preocupado que ela não consiga chegar até a porta.
Amy pende para os lados em seu próprio eixo. Os braços esticados e as mãos em formato de seta a ajudam a se equilibrar.
Sam se prepara para entrar no carro, mas é invocado.
— Não mesmo, meu jovem! Quero que você conheça a minha mãe hoje! Aí eu quero ver você chamá-la de “cozinheira!” — Amy, toda desengonçada, faz a piada. Sam fica feliz pelo convite, apesar de não achar uma boa ideia no momento.
— Tem certeza? Não é melhor deixarmos para amanhã? Ou, quem sabe, para semana que vem? — Sam não queria oferecer essas opções, mas, para o bem dela, quer que Amy vá repousar logo.
— Não! — uma voz autoritária salta da boca da jovem confeiteira. Nem mesmo o resfriado consegue impedir tamanho fervor. Sam leva a mão à nuca, depois dá uma leve coçada em seus fartos cabelos, ainda preocupado e certo de que o melhor para ela é ir descansar.
Enquanto ainda pensa em uma retórica, a fim de persuadi-la, Sam tem a sua mente esvaziada pela inesperada aproximação que Amy faz. Silenciado pela pureza colorida que Amy irradia, Sam acata o olhar inflexível que ela lança contra o seu rosto. Não há mais o que fazer. Então, aceita a derrota e fala para Bobby ir embora, pois tardará a chegar. Bobby aceita as ordens e retorna sozinho.
Amy estica a mão direita para Sam, que hesita em pegar — não por temê-la ou por querer evitar o resfriado, apenas por que nunca segurou a mão de uma garota que, de fato, quer estar ao seu lado.
— Tudo bem, rapaz. Eu não mor... — Amy não termina de falar e cai na fina e encharcada grama molhada. Sam, prontamente, ajuda-a. Ele a pega em seus braços e vai em direção da casa. Ele bate algumas vezes (com o pé?) na porta. Por mais que Amy seja alta, ele a carrega muito fácil. Imagina que ela seja muito leve, já que força não é algo que tem.
Esmeralda abre a porta e se surpreende ao ver sua filha nos braços do rapaz.
— Amy!
— Peço desculpas, senhora. Ela desmaiou devido à febre. A propósito, eu me chamo Sam, sou amigo da Amy, lá do colégio. Muito prazer em conhecê-la — sem deixar sua cordialidade de lado, tenta esticar uma das mãos para cumprimentá-la. É cômico.
Após olhá-lo por breves segundos, e achar a cena inusitada, Esmeralda diz para ele entrar. Indica a direção e Sam carrega a Amy até o quarto, colocando-a na
cama. Ele explica o que aconteceu.
— Muito obrigada por tê-la trazido — mais tranquila, e sentada ao lado da filha, Esmeralda o agradece. — Essa garota tem o hábito de sair desprotegida sob a chuva — Esmeralda lembra-se, com um sorriso, de todas às vezes que pediu à Amy para se proteger. — Sempre digo a ela para colocar uma capa ou usar um guarda-chuva, mas ela sempre diz...
— Que prefere sentir a água caindo sobre o corpo — Sam completa a frase.
Esmeralda, pasma, vira o seu rosto para ele. A sua filha nunca falou essas palavras para outra pessoa. Amy sabe que não é nada demais, mas gosta de pensar que é algo valioso, algo importante, e por isso só contaria para alguém que soubesse que a entenderia. Por isso, Esmeralda, ao ouvir Sam repetir as mesmas palavras da sua filha, ficou com o seu coração aconchegado.
— Obrigada.
— Imagina. Ela é uma boa garota.
— É mesmo? Então, por que vocês não se falaram durante um mês inteiro? — Esmeralda, sem enrolação, diz, provocando-o.
—... — Sam fica sem graça. Tem a impressão de que é o seu dia de ficar constrangido.
— Hahahahahaha! Não se preocupe! Só brincando! — Esmeralda se levanta. — Vem, vou servir um pedaço de bolo e chá para você, enquanto ela descansa — Sam, já compreendendo de onde Amy herdou o senso de humor, aceita o convite. Eles vão à cozinha.
Para Sam, Esmeralda serve um pedaço de bolo de limão, que acabou de fazer, e uma xícara de chá de morango. Para Amy, e para si mesma, ela costuma experimentar diferentes sabores, já que os clientes são muito burocráticos. Os mais “ousados”, não são tão ousados assim.
— Nossa! Está uma delícia! — Sam elogia, após comer um grande pedaço e beber um gole suave. — A Amy não disse que a mãe dela era uma grande... — ele para por um segundo e pensa na palavra certa — Confeiteira.
— Obrigada! — Esmeralda, de olhos fechados, sorri.
— Então, senhora...
— Esmeralda, meu bem.
— Senhora Esmeralda...
— Apenas Esmeralda.
— Esmeralda... — Sam dá uma tossida forçada. — A Amy falou que ela te ajuda
no trabalho... — diz, enquanto come ferozmente o bolo.
— Sim. Não temos funcionários, então eu preciso dela — apoiada em uma das mãos, ainda sorri para ele. — A demanda é grande. Se eu fizer tudo sozinha não conseguirei dar conta.
— Entendi... — continua comendo. — Bem, ela parecia contente quando falou que te ajudava, como se fosse algo que a completasse — Sam, com um pouco de inveja por desconhecer tal sensação, diz.
— É por que ela ama fazer isso. Apesar de simples, poder dar forma a algo, juntar um monte de coisas e criar vida, está no sangue que corre pelas veias dela — Esmeralda sabe bem o que é isso. — Posso afirmar, não somente por ser mãe dela, mas também por compartilhar da mesma paixão pela confeitaria. E graças a isso, junto com muito trabalho pesado e seriedade, conseguimos ter uma boa vida, aqui em Agonia.
— Que bom... — Sam não consegue esconder a sua resistente chateação por sua vida frustrada.
— Tudo bem, querido? — Esmeralda nota toda a insatisfação na voz dele, por isso se prontifica em ouvi-lo. Sam capta a deixa, mas desconsidera.
— E ela também é uma grande confeiteira, igual à mãe?
Esmeralda não responde de imediato, apenas mantém os seus olhos nele. Sua
perspicácia sempre a ajudou, e por isso vê que algo o incomoda. Mas não quer invadir o drama do rapaz. Prefere concentrar-se em outro aspecto.
— Obrigada pelo elogio! — fica toda satisfeita. — E, sim. Ela é uma grande confeiteira — Esmeralda está contente por conversar com o garoto por quem a sua filha se apaixonou. E, mais do que isso, também vê que Sam sente o mesmo. Ela sabe do desejo da Amy de se apaixonar por uma pessoa bondosa e gentil, mas também do medo de amar alguém odioso e ruim. Porém, ela vê, nos olhos verdes, que ele não é assim. Sam transborda respeito e zelo, honra e integridade, força e bondade, mesmo que ele não se enxergue dessa maneira, mesmo que ele não pense assim.
Esmeralda já tem certeza de que Amy e Sam ficarão juntos, e que é uma questão de tempo até ambos unirem os seus mundos.
— Então, o fantástico e famoso Sam Elric Gillian, em minha casa, bem na minha frente, comendo um dos meus bolos e bebendo um dos meus chás... Nunca imaginei que algo assim fosse acontecer! — Esmeralda, incrédula, e levando as mãos ao rosto, diz, mas Sam fica desconfortável com suas palavras.
— Por favor, não me chame de famoso, nem de fantástico — sua voz é sofrida. Sam larga o garfo no prato e a xícara na beirada da mesa.
— Você não gosta dessas palavras?
— Não é isso... É que por eu ser filho dos meus pais, muitas pessoas acabam... Aproximam-se de mim por interesse, sem me conhecer direito. E essas palavras, elas são...
— Falsas. Certo, Sam? — Esmeralda diz.
—... — Sam, surpreso, em silêncio, apenas a olha.
Um espirro alto denuncia que Amy acordou.
— Opa! Parece que temos uma visitante — Esmeralda se levanta. — Vamos? — estende a mão e o convida para ir até o quarto com ela.
Amy, ainda meio tonta e sonolenta, ajeita-se na cama. Esmeralda entra primeira e dá às boas-vindas a filha. Sam entra depois e fica paralisado com o que vê. Pela janela do quarto é possível irar uma linda paisagem. O lago Pond, em posse de um azul saturado, perpetua-se por toda a vastidão que toma o céu apático. E os pinheiros, de cores pouco variadas, lutam contra as nuvens carbonizadas. Sam não prestou atenção quando pôs a Amy na cama. Agora, ele está encantado.
— Essa vista é mais bonita na primavera, quando os pássaros cantam e os pinheiros são mais coloridos, espalhando a pouca luz desse sol envergonhado, além de não ter esse céu triste choroso e emburrado — Amy, soltando um leve suspiro, fala.
— Como você está Amy? — Sam pergunta.
— Um pouco melhor. Mas como eu cheguei até aqui?
— Sam te carregou no colo, querida. Ele te trouxe até a cama — Esmeralda responde, eando os seus dedos pelos cabelos da filha.
— Obrigada... — Amy, ruborizada, agradece-o com a voz ainda fraca.
Sam olha para ambas e, nesse momento, vê o que sempre desejou.
Amy fecha os olhos e dorme novamente.
• • •
Já é de noite. Sam ainda está na casa.
— Você ficou uma graça de touca e avental! — Esmeralda dá uma risada.
— Obrigado... — Sam, meio sem jeito, agradece.
— Bem, vamos lá! — Esmeralda diz, toda empolgada, e com um tapa espalha farinha pelo ar.
Enquanto tenta, de alguma maneira, contribuir com o trabalho da confeiteira,
Sam, sentindo-se mais seguro, aceita a abertura que ela deu. Assim, Sam fala um pouco sobre os seus pais. Fala sobre a sua mãe, Elizabeth, que o ama, mas que sempre está em viagem, tocando o seu piano ao redor do mundo. E que, quando em casa, não consegue abrir-se com ele. Fala sobre o seu pai, Brian, que também quase não fica em casa, pois sempre viaja para fazer os seus filmes. E que, quando volta, sua atenção é para saber como vão os estudos. Sam diz que cresceu assim, convivendo mais com os empregados do que com a própria família. Apesar disso, nunca sofreu ou ou necessidades. Na verdade, a sua vida é uma maravilha. Tem de tudo e não precisa preocupar-se com nada — mas não tem o que mais quer. E por mais que se esforce em não demonstrar, sente-se sozinho. É claro que houve momentos alegres, mas eram raros, e já estão largados em um ado abandonado.
Sam também sabe que ambos trabalham para poder dar o melhor que um filho pode querer. Mas, mesmo assim, não é o suficiente para livrá-lo da solidão, da tristeza. E ele não é um garoto materialista. Para ele, tudo isso é descartável, inútil. Claro que jamais falou como se sente ou o que pensa, pois poderá soar como alguém ingrato, mimado, que não sabe valorizar o esforço alheio. Então, sempre guardou tudo para si e viveu, e vive, sem ser capaz de demonstrar o que há do lado de dentro.
Ele fala sobre como se sente um estranho na própria casa. Do medo do futuro já programado e que não poderá escapar. De como é difícil ter que lidar com tanta cobrança e pressão dos pais. De como se sente (agora, um pouco menos) frustrado e fracassado. Mas, também, fala do desejo de criar, construir e viver a própria história, a própria jornada, a própria vida. Diz que gostaria de ser médico para poder ajudar as pessoas que não têm condições de pagar. E acrescenta dizendo que não poderá fazer nada disso, pois terá que seguir um dos caminhos que os seus pais trilham. O problema é que Sam odeia música clássica e não tem interesse pelo cinema.
— E por que não diz isso a eles? — Esmeralda pergunta, enquanto abre um pacote de açúcar mascavo.
— Eu até pretendo, mas... o meu pai é muito intransigente e a minha mãe é muito orgulhosa. E eu não posso ignorar tudo o que eles fizeram por mim, até hoje — Sam dá uma longa suspirada... — Seria injusto — e lamenta. — Eu me sinto preso em uma caixa... Apesar de que este último mês foi diferente — Esmeralda não entende essa última parte.
— Olha... — Esmeralda pensa bem no que falará. — Eu não posso dizer que sei como você se sente, por que nunca ei por algo assim. Mas você terá que fazer uma escolha, Sam. E, principalmente, seguir aquilo que você mais deseja, mesmo que isso possa causar um mal-estar entre vocês — ela pega duas xícaras de açúcar e joga dentro de uma mistura. — Talvez eles fiquem chateados no começo, mas, com o tempo, aceitem a sua decisão, não é mesmo? — Esmeralda diz, pensando que não é algo tão ruim assim o que Sam contou.
— Eu também encontro esse pensamento, às vezes... Mas quando olho para os dois, sinto que não irá ocorrer dessa maneira — abaixa os ombros, pressentindo o que o futuro aguarda para ele. — Mas... quem sabe... eu tenha que arriscar. Eu tenha... que escolher — Esmeralda percebe o dilema em que ele se encontra.
— Bem, talvez não seja tão ruim assim — quer animá-lo. — Quero dizer, com alguém ao seu lado, pode ser que tudo seja mais ável. Fácil, talvez! — Esmeralda, com os olhos, aponta para o quarto da filha. Sam fica vermelho. — Não deixe de acreditar, querido. Talvez os seus pais fiquem decepcionados ou, talvez, entendam a sua escolha. Não podemos temer o futuro sem antes enfrentálo, não é mesmo? — Esmeralda sorri para ele. Sam ouve essas palavras, ainda em dúvida.
— Sim... Pode ser...
• • •
Já são quase vinte e duas horas. À noite está angustiada. A chuva, que retornou com mais força, está mais intensa, mais implacável, ressoando uma triste escolha que, em breve, será tomada.
Sam conseguiu, pode-se dizer, fazer um bolo — obviamente, sob a tutela da Esmeralda. Amy ainda dorme, e Bobby está voltando, após Sam ter ligado para ele.
Sam, aliás, está parado em frente à janela, que fica ao lado da porta, na sala, pensativo, apertando a sua mão direita, após ter enfrentado um mês complicado.
Esmeralda sai da cozinha e o vê.
— Prontinho! Acabei de finalizá-lo com uma calda de maracujá. Amanhã, quero que você volte para comer um pedaço — Esmeralda diz, enquanto retira o avental e ainda querendo animá-lo.
— Claro. Voltarei sim — Sam sorri timidamente para ela. — E... obrigado por tudo — Esmeralda, uma vez mais, sorri. Sam volta a olhar pela janela. — Espero que a Amy melhore.
— Sim — ela concorda.
Eles não falaram, em nenhum momento, a respeito da Amy. Sam quer conhecêla olhando nos olhos dela, e Esmeralda percebeu isso. Então, preferiu deixar o jovem rapaz contar a respeito da própria vida. Mas também pôde ensinar-lhe um pouco sobre confeitaria (mesmo ele sendo péssimo). Porém, Esmeralda não conseguiu deixar de ver a vida triste que Sam leva ao lado dos pais. Ela sabe que os momentos com essas pessoas são especiais, pois quando a morte vier nada mais poderá ser feito, e a mágoa e o arrependimento tomarão tudo em suas mãos.
Bobby chega. Sam se despede da Esmeralda, e corre até o carro. Todo molhado, ele entra no veículo. Lá de dentro, dá um tchau para sua futura sogra, que retribui com um sorriso amigo.
CAPITULO 11
No relógio, os ponteiros marcam quinze e cinquenta. Amy ainda está acordando, pois dormiu mais do que o normal. Não foi de propósito, mas culpa do forte resfriado.
Ela se levanta toda desajeitada. O seu enorme cabelo está armado e bagunçado, e a sua cara toda amaçada. Vai até a janela e olha para mais um dia molhado, pois ainda chove.
— Que chaaaaaaato... — ela lamenta, com um fofo boceeeeeejo.
Descalça, Amy vai até o banheiro. Apesar do frio, lava o rosto com água gelada, pois diz que faz bem a sua pele. Pega a escova de pentear e começa uma verdadeira guerra intergaláctica contra as suas madeixas emboladas. Estão muito enroladas, tanto quanto um novelo de lã cheio de nós.
— Ahhhhhhhh! Mas que coisa! — grita, irritada, devido à dor que brota em sua cabeça por causa da batalha que trava. Mas, aos poucos, e com jeitinho, consegue desembaraçá-los. — Ufa! — diz, aliviada.
Depois, escova os dentes com toda a calma do mundo, como se quisesse limpar cada milímetro da sua boca. Volta para o quarto e arruma a cama, mas nota que há um cobertor intruso. Pensa ter sido colocado por sua mãe, de madrugada. Após ajeitar a cama, vai tomar um banho.
Lembrando-se do dia em que se apaixonou por Sam, deixando a água cair e tocar o seu lindo rosto, Amy mergulha em seu interior, revivendo toda a cachoeira de emoções que a visitou. Era tudo empolgante e novo, profundo e misterioso.
Lembra-se do seu corpo em conflito com os novos sentimentos que surgiram. Do efeito que os olhos verdes do Sam provocaram em seu íntimo, e dos desejos repentinos que a tomou. Lembra-se da fuga automática que o seu corpo impôs, e de ter chegado à sua casa toda suada e grudenta, após correr mais de cinco quilômetros sem parar. Lembra-se das pessoas olhando-a com estranhamento e comicidade. Afinal, uma jovem garota linda, alta, de longos e fortes cabelos rubros, de saia e meia-calça, cruzando as avenidas e os carros, sem medo, não é algo que se vê todo dia, ainda mais em Agonia.
Amy sabe que Sam queria falar como se sentia em relação a ela, por isso a procurou depois de tanto tempo. Amy imagina como será esse momento de revelação. Ela não terá problemas, pois se sente segura e confiante, e assim que a conversa permitir, abrirá para ele o seu imenso e vermelho coração. Imagina a declaração que ele, todo emocionado e apaixonado, fará, pedindo-a em namoro. E para concretizar esse novo elo, no fim, será dado o beijo mais longo e duradouro.
Imagina o retorno até a sua casa e o anúncio que fará à sua mãe, dizendo sobre o seu primeiro, e que será o único, companheiro. Falando da nova vida que levará. Eles, juntos, indo até a faculdade, de mãos dadas, sem medo de atravessar a cidade. Eles, juntos, assistindo os filmes que ela tanto adora, enquanto comem as pipocas açucaradas que sabe fazer tão bem. E dos filhos que terão e da vida que viverão até o fim dos seus dias. Romântica na alma, Amy não pondera outro caminho ao lado do Sam. Já está traçado nos versos do destino. Ambos terão essa união decretada e nada impedirá. O medo de ser rejeitada não é tangível, já que vê nos olhos dele o mesmo que vê nos seus.
Amy sai do banho. O relógio marca dezesseis e trinta.
Ela prende o seu enorme cabelo, apenas nas pontas. Veste uma calça moletom e uma camisa de manga comprida, e vai fazer uma refeição — está morta de fome. Amy segue até a cozinha, feliz por ser filha de uma grande confeiteira (além de ser uma também), pois todos os dias há alguma incrível guloseima para comer.
Ela abre a geladeira e vê uma colorida e lustrosa metade de um bolo de chocolate branco com calda de maracujá. Tentada a pegar um pedaço, vê que também há um bilhete ao lado. A mensagem diz para ela não comer ainda, pois é para mais tarde.
— Mas já comeram! — Amy faz um bico feio, e pega uma porção de brownies de chocolate com pedaços de coco. — Fazer o quê?! — ainda embravecida.
Sentada à mesa, enquanto mastiga o céu adocicado, lembra-se de um pequeno detalhe: não havia pegado o número do Sam, e não tinha marcado o horário nem o lugar para encontrarem-se. Assim, toda a plenitude que sentiu, minutos atrás, vai embora. Agora desanimada, Amy termina de comer e volta ao quarto. Deitada na cama, pensativa, com as pernas e os braços esticados, fica lamentando a perda do momento tão aguardado, e percebe que terá que esperar até a segunda-feira para falar com ele.
— Ai, ai... Garota burra — Amy ouve a sua mãe entrar na casa e vai vê-la. — E aí? — com desânimo na voz, ela a recebe.
— Nossa... Credo... — Esmeralda faz uma cara enojada. — Mas... que bom que você está melhor, filha! — agora, toda empolgada. — Parece até que tomou banho — Esmeralda diz, contente em vê-la em pé.
— É, estou melhor. Aonde você foi tão cedo?
— “Cedo?” — Esmeralda não entende o que Amy fala.
— Sim, cedo, afinal, agora são... — Amy olha para o relógio na parede e fica confusa. — Dezessete horas? — o tempo se transforma em uma pintura abstrata. — Hoje é sábado de manhã, certo?
— Parece que está um pouquinho perdida no tempo. Hoje é domingo, filha — Esmeralda, enquanto segue até a cozinha, diz.
— O QUÊ?! — Amy explode um grito. — Domingo?! Como assim?! Quer dizer que eu dormi quase dois dias inteiros?! — ela segue sua mãe.
— Sim, sim. É que você teve uma febre alta. Estava fraca e delirante. Não conseguia nem se levantar direito, tanto que precisei ajudá-la a ir ao banheiro. Não se lembra? Foi bem engraçado — Esmeralda, rindo, abre a geladeira.
— Não! Não me lembro!
— Até troquei a sua roupa, igual quando você era uma bebezinha birrenta — ri
ainda mais por causa do que fez.
— Como?! — Amy faz outra cara feia. Nem tinha reparado.
— Pois é, querida. Também precisei chamar um médico para vir vê-la — Amy não sabe o que falar. Está decepcionada. Esmeralda, com um sorriso sacana, olha para a filha. — Sam veio visitá-la — fala, despretensiosamente.
— É mesmo? — a postura da Amy muda.
— Sim, sim. Ficou aqui ontem, o dia inteiro. Conversamos bastante, enquanto preparávamos uma encomenda de brigadeiros — Esmeralda diz, após sentar-se à mesa. — No almoço, ele, gentilmente, comprou uma pizza (comemos tudo). À tarde, fomos ao mercado. Eu precisava comprar alguns ingredientes e utensílios. E à noite, ele me ajudou a finalizar uma torta de maçã (para a Júlia. Lembra-se dela?). Ele é muito atencioso, Amy. Um grande garoto — sorri atrevidamente para a filha. — Ah! E caso você tenha visto, aquele bolo foi ele quem fez (ele me ajudou, na verdade). Por isso deixei o bilhete. Entende o que quero dizer?
Amy aperta bem os seus olhos, e abre um contido sorriso, contente por tudo o que a sua mãe acabou de falar, e pela afeição que ela, aparentemente, desenvolveu por Sam.
— Então, ele te ajudou na cozinha... Hummm... Eu não sabia que ele tinha essa aptidão (sim, eu me lembro da Júlia) — Amy, agora, abre um ousado sorriso e senta ao lado da sua mãe.
— Ele não tem, na verdade. As mãos dele não foram feitas para a confeitaria — diz, acabando com o prazer da filha. — Mas procura ajudar da melhor maneira possível.
— O que mais? Ele perguntou algo a meu respeito? — Amy, toda serelepe, não faz questão de esconder a sua curiosidade. Continua com o sorriso no rosto.
— Não — Esmeralda, secamente, responde. Amy, ainda sorrindo, fica congelada com a resposta da sua mãe. — Não se preocupe, querida — Esmeralda se levanta e a beija na cabeça. — Ele não quer te conhecer por meio de outras pessoas. Entende o que eu quero dizer? — com uma piscada, Esmeralda nem precisa completar o raciocínio.
— Hahahahaha! Acho que sim, mãe.
— Ah! E ele me deu isso — Esmeralda retira um pedaço de papel do bolso e entrega à Amy.
— O número dele... — Amy o pega.
— Ele pediu para você ligar, assim que melhorasse (achei engraçado ele anotar em um pedaço de papel). Você pode fazer isso agora ou esperar até amanhã e encontrá-lo no colégio (eu faria isso agora).
Amy, pronta para correr até o quarto, levanta-se, porém, antes, dá um forte abraço em sua mãe.
— Obrigada! — e um beijo na sua bochecha.
Amy, cheia de energia e expectativa, entra no quarto, tranca a porta e deita na cama. Fica se mexendo de um lado ao outro, igual a uma criança prestes a abrir o seu presente de natal. Junto a isso, sente algo maior do que tudo que já experimentou. O seu coração transborda tanta paixão, tanta vida, que parece que sairá do seu peito. E ela está adorando se sentir dessa maneira, tanto que cochila. E no mundo dos sonhos, onde tudo é alcançável e possível, algumas memórias calorosas decidem visitá-la. Assim, Amy se lembra de algo já esquecido — apesar de ainda ser jovem. Lembra-se da primeira vez em que conseguiu andar de bicicleta.
Lembra-se do seu pai, Thomas, empurrando-a com todo o cuidado que tinha pela filha. E quando a deixou ir sozinha, Amy sentiu uma liberdade poética tomá-la. Gritava, entusiasmada, enquanto o vento soprava o seu pequeno cabelo, que não chegava às orelhas, acompanhando-a.
Amy ainda era pequenininha e não tinha muito equilíbrio em cima da bicicleta, mas se esforçou para conseguir ir com as próprias pernas. Apesar de novinha, Amy já era determinada, decidida. Thomas ficou de longe, apenas apreciando essa cena mágica, com o mais sincero e verdadeiro sorriso de felicidade que um pai poderia dar.
Thomas era muito sensível, por isso, talvez, fosse tão hábil com as flores. Era como se ele pudesse conversar com elas e compartilhar das mesmas emoções.
Esmeralda o conheceu quando visitou um dos poucos jardins públicos que há em Melancolia. Foi em um dia como outro qualquer, em meio às sombras que há na
cidade lírica. Thomas estava cuidando de algumas tulipas, na estufa em que trabalhava, quando ela se aproximou. Esmeralda, ainda jovem, havia acabado de se mudar para Melancolia. Tinha lindos cabelos compridos ondulados ruivos, tão quentes e rubros. Os seus olhos de diamantes eram negros, reluzentes e profundos. A sua pele branca, leitosa e lisinha. Os seus lábios açucarados, médios e divinos. Thomas imaginou estar na presença de um anjo. Ele, todo envergonhado, apenas apreciava algo tão belo, mais do que as flores que tanto amava.
Já Thomas tinha os cabelos pretos e lisos, que iam até as orelhas. Os seus olhos, de um dourado intenso, iluminavam mais do que dois sóis banhados em ouro. A sua pele levemente morena lhe dava um charme tropical. Era alto e magro, mas tinha um corpo forte, devido ao tanto que trabalhava.
Esmeralda se apresentou com simpatia, elogiando o cuidado que ele tinha com as charmosas tulipas. Thomas, encantado, gaguejava e mal falava, perante a presença sublime da confeiteira. Porém, no fim, a vida encontrou o seu caminho e deu um jeito, e de maneira previsível, depois desse evento, não demorou em que eles dessem o primeiro beijo. Começaram a namorar, casaram-se e, então, Amy veio ao mundo.
Os anos foram ando e Amy tornou-se uma criança fantástica. Com apenas quatro anos já havia aprendido um pouco a respeito do ofício do seu tranquilo pai, mas foi pela profissão da cômica mãe que ela se encantou. O universo lúdico e festivo dos doces a capturou, bem novinha, para nunca mais soltá-la.
Thomas morreu logo após Amy fazer cinco anos.
Amy abre os olhos.
— Vou te falar, viu?! Já não bastou dormir dois dias inteiros, garota?! — aos poucos, recompõe-se. Não ou tanto tempo assim, mas por ter perdido dois dias, fica incomodada consigo.
Sentada, Amy encosta-se à cabeceira da cama e se aproxima do telefone. Corada, com as bochechas ardendo, pega o aparelho e começa a discar.
Enrolando o fio em seus finos dedos, enquanto aguarda que ele atenda, Amy não consegue deixar de pensar em como essa situação toda aconteceu tão depressa. De uma garota sonhadora e inexperiente da paixão, e que nunca amou, agora não se recorda mais de todo o tempo em que ou imaginando quando viveria esse filme.
Ansiosa para poder escutar a voz de algodão dele, e ouvi-lo dizer que por ela sente o mesmo, Amy vibra por dentro.
Alguém atende do outro lado da linha. É o Sam. Amy fica imóvel. O seu coração está mais acelerado. Ela começa a suar frio. a a língua nos lábios secos para umidificá-los. Sente cada milímetro do seu corpo sorrir.
— Alô? — Sam, do outro lado da cidade, fala. Amy não responde. A sua cabeça está extasiada, perdida em rios banhados por águas de felicidade — Alô? Amy? É você? — Sam parece adivinhar, mas, na verdade, Esmeralda deu o número da filha.
Amy não deixa de sentir um enorme, mas contido, prazer ao ouvi-lo chamar por
seu nome. Afinal, ela não conseguiu conversar com ele de uma maneira calma, quem sabe, até mesmo, consciente. No colégio foram poucas palavras, sem considerar as fugas que ambos proporcionaram. No caminho até sua casa não se sentia bem, e quando chegou acabou desmaiando. Foi tudo meio estranho, sem falar do mês inteiro em que ficou sem vê-lo. Ainda assim, Amy deixa o momento se prolongar por alguns míseros segundos, até que, finalmente, diz:
— Olá... Sam.
CAPITULO 12. SAM
Primeiro dia no colégio Gênesis. Na turma do 3° F, um novo aluno é apresentado. Todos ficam espantados pela ilustre presença que fará parte desse ambiente. O seu nome é conhecido, já que ele vem de uma famosa família de Agonia.
Esse garoto, por sinal, está predestinado a experimentar os dois lados da vida. Terá o prazer de amar uma grande mulher e de ter uma singela família. Mas, também, dará sequência no sabor amargo do abandono e da rejeição, antes de ser levado pela morte. Pois, até então, Sam viveu soterrado em um pesadelo sem lados e paredes. Sem sorrir e chorar de alegria, tudo o que a sua face sempre expressou foi uma falsa mentira. Aliás, ele já está prestes a deixar de acreditar que achará uma saída para a sua infelicidade recorrente. Mas essa é, apenas, a primeira parte. Pois a outra, encoberta por seu ceticismo dramático, e ainda oculta, fará esquecê-lo do tempo em que viveu com a sua alma em chamas enegrecidas.
Aos dezessete anos, Sam Elric Gillian, por vontade dos seus pais, teve que trocar de colégio, no último ano, e faltando pouco menos de seis meses para o término das aulas. Ele está irritado pelas mudanças súbitas que foi obrigado a fazer. Não que sinta saudades do antigo colégio, mas estava acostumado, sem falar dos poucos meses que faltam para encerrar esse ciclo da vida. Por isso, nesse momento, sua vontade é de fugir, sumir, para nunca mais ser encontrado.
Alto, de pele branca e delicada, lembra pequenos flocos de neve. Os seus cabelos negros e lisos encobrem o seu triste rosto. Os seus olhos verde-escuros parecem duas magníficas jades. Os seus solitários lábios são finos. Tudo isso o faz um
charmoso rapaz.
Sempre usando uma camisa preta de manga comprida, com elas puxadas até os cotovelos, e calça jeans, além de um humilde par de tênis desbotados, Sam gosta de se vestir dessa maneira, sem graça, talvez. Se quisesse, poderia comprar roupas inacreditavelmente caras. Mas não. Gosta dessa simplicidade que não pertence ao seu mundo, que não pertence a sua realidade.
Sam, por ter sido agraciado com uma sabedoria mitológica, também é muito inteligente. Isso, junto ao excesso de instrução que sempre recebeu, desde muito cedo, pôde potencializar as suas capacidades intelectuais, prematuramente. Sabe que pode ar, facilmente, na tão sonhada faculdade de medicina, sem ter que utilizar da sua riqueza obscena, e isso o entristece. Tanta sabedoria e conhecimento, exercitado desde pequeno, será limitado a apenas duas opções: a música ou ao cinema.
Os professores também sempre o respeitaram como se ele fosse um velho sábio. E isso é justificável. Sam pode conversar a respeito de qualquer tema: física quântica, literatura clássica, arquitetura vitoriana. Ele é muito lógico e dedutivo e, inclusive, é capaz de aprender, quase que instantaneamente, algo que pode levar meses, até mesmo, anos, graças ao empenho que os seus pais tiveram para educá-lo. Porém, Sam ainda é um garoto como todos os outros, com medos e inseguranças, dores e desesperanças, e, até mesmo, sonhos.
Os seus pais, por sinal, não são dos mais fáceis. Sam não teve uma infância afetiva com eles, sendo tratado com distanciamento — principalmente por seu pai. Eles estavam (e estão) sempre ocupados com viagens a trabalho pela imensidão do mundo.
A sua mãe, Elizabeth Gillian, com toda a sua disciplina e perfeição de uma
musicista clássica, torna-se uma deusa quando senta em frente de um piano. Ela é capaz de transcender todas as emoções que constroem um ser humano, e todos os sentimentos que os tornam únicos. Com notas límpidas, consegue afundar os seus apreciadores em um transe esfíngico. As suas mãos fazem o ato de tocar piano em algo maior, inexplicável na linguagem humana. Palavras, figuras, sinais. Nada se aproxima da exuberância sonora que pelos ares se propagam. O público não entende o que sente. Não há parâmetros, nem comparação, tamanha a erudição da mulher abençoada. E sempre reverenciada como a melhor pianista de todos os tempos, Elizabeth não aceita ter que parar de seguir esse caminho que a vida lhe deu, mesmo amando o seu filho.
O seu pai, Brian Elric, é um cineasta inigualável. A sua capacidade criativa assusta a todos, principalmente os críticos raivosos. Sua genialidade em contar histórias formidáveis, e conceber personagens acima da vida, leva-o a conhecer todos os cantos do planeta. Inclusive, pode filmar em qualquer paisagem, de qualquer país, que ainda conseguirá impressionar por sua imaginação e audácia. Dos mais democráticos, aos mais autoritários, a porta está (e estará) sempre aberta para ele caminhar. E com muitas ideias em sua cabeça, Brian não dá prioridade ao seu filho, mas, sim, a sua imaginação.
Devido a tudo isso, Sam sempre ficou sob os cuidados dos empregados.
Muitos podem pensar que não é algo tão ruim assim, já que sem a presença dos pais, ele, teoricamente, teria toda a liberdade para poder fazer o que quisesse, quando quisesse. Mas a realidade nunca é igual à ficção. Sam sempre precisou seguir uma cartilha rígida e totalitária. Com pouco espaço para o lazer e diversão, e a própria vida, ou a maior parte da sua infância, e préadolescência, sozinho, na imensa mansão da sua família, onde era obrigado a estudar por horas, outros idiomas, outras culturas. Por sua mãe, treinava e aprendia a tocar violino, piano, harpa, violoncelo e outros milhares de instrumentos. E aos dez anos já era um musicista expert de tanto que havia praticado. Por seu pai, teve aulas de escrita, filmagem, direção, interpretação e edição. E aos nove anos já era um cineasta capaz de executar um filme com
imensa eficácia. Graças a tudo isso, Sam sabe que se tornará um protagonista no futuro. Alguém a ser seguido, a ser irado. Mas nada disso lhe significa algo. O seu interesse é outro. É o mesmo que das famílias que ele observa, de dentro do carro, caminhando pelas ruas de Agonia. As mães e os pais andando de mãos dadas com os filhos e filhas.
Sam também sempre estudou em casa, até entrar no colegial, com um cronograma sem brechas, sem falhas. Por isso, no primeiro dia, quando pisou em um colégio pela primeira vez na vida, sentiu-se um alienígena que havia acabado de chegar à Terra. Contudo, apesar da novidade, já estava programado em como se comportar, e não teve dificuldades para adaptar-se a esse novo mundo.
Agora, no último ano do colégio, pôde deixar de lado tantas tarefas — um presente dado por seus pais, por verem tanta dedicação e esforço. Então, agora gasta apenas poucas horas por semana, em casa, para sua educação, afinal, já está pronto. Mas o engraçado é que Sam sempre quis frequentar um colégio para poder estar com pessoas da mesma idade. Só que quando isso aconteceu, após tanto tempo preso em casa, perdeu essa expectativa que sempre o interessou, e meio que tudo se tornou artificial. E Sam, de qualquer forma, não é de se enturmar, preferindo ficar em seu canto, esperando a vida ar.
E a vida é tão doida que mesmo o seu semblante fechado, e quieto, traz um ar de mistério que as garotas adoram — além da sua fortuna incalculável. Mal sabem elas que por trás dessa capa esconde-se um garoto infeliz, mas que quando precisa mostrar simpatia e um gracioso sorriso, logo troca de máscara, permitindo-o esconder a sua realidade. Isso foi consequência, além do distanciamento que sempre recebeu dos pais, dos olhares de pena que os seus empregados começaram a lhe dar. Sam, então, decidiu mudar sua postura, pois se cansou dessa situação lastimável. Não queria compaixão, como se fosse um coitado; nem piedade. Viu que não poderia mais mostrar ao mundo o que havia dentro de si. Foi uma decisão difícil e madura, mas corajosa para alguém com tão pouca idade. Só que isso trouxe consequências. Mesmo com a depressão atormentando, Sam não a culpa. Culpa, sim, o fato de sempre ter feito as
vontades dos pais, resignadamente. Isso o deixa ainda mais desapontado, ainda mais infeliz. É como se o seu corpo não pertencesse a si próprio. É como se as suas grandes mãos, que sempre sonharam em serem usadas na medicina, já estivessem condenadas.
Mas também há outras porcarias infernizando a sua vida.
Por ser muito bonito, as garotas vivem se jogando em cima dele. Sam sabe que elas não sentem nada e que querem apenas usufruir de toda a riqueza e fama que o seu nome carrega; e isso o enoja. Por isso nunca namorou, já que tem dificuldades em acreditar no que as garotas falam. Acha que elas podem dizer quaisquer coisas para ficar consigo. Graças a isso, chegou até o último ano escolar sem ter experimentado andar com alguém ao seu lado. Porém, há uma centelha benevolente, um ser que se compadece por ele: os livros. Sam gosta de ler, e no seu antigo colégio ou a maior parte do tempo na biblioteca, rodeado por vários livros. Lia de tudo um pouco: ficção científica, clássico, drama, suspense. Mas tem um gosto específico: os romances.
Por isso, no Gênesis, já no seu primeiro dia, durante o intervalo, Sam vai à biblioteca para pegar algo que possa distraí-lo dos pensamentos maléficos que pairam em sua mente. Enquanto desce as escadas, sua cabeça não deixa de trabalhar nas (únicas) duas escolhas que terá que escolher. Mesmo com mais tempo para fazer coisas do seu interesse, ainda está preso nas correntes dos seus pais.
Com as mãos nos bolsos, e a cabeça alta, Sam conversa com a vida, tentando saber o porquê de ele ter sido estigmatizado para viver tudo isso. Pensando no azar de não ter crescido em outra realidade, mesmo que fosse mais simples, até mesmo pobre, mas que o permitisse ter o controle dos seus os. A resposta, obviamente, nunca encontrará, está além da sua capacidade, além da capacidade de qualquer um.
Sam entra na biblioteca, apresentando-se para uma velha senhora. Diz ser novo no colégio e que gostaria de pegar um livro. A simpática mulher permite e ele vai até as estantes para escolher algo. Vê que a biblioteca não é tão vasta e completa, como em seu antigo colégio, ainda assim, há uma boa variedade de obras desconhecidas. Ele não estranha que nenhuma alma esteja ali; antigamente também era assim.
Sam, após ear por alguns minutos, sem saber, de fato, o que procura, por fim, pega algo que chama a sua atenção. Um pequeno livro, mas com tantas páginas, que faria qualquer um desistir de querer lê-lo. Na capa, há uma mulher sentada em um banco, olhando para o infinito negro de um céu estrelado. Algumas rosas a fazem companhia. Sam nunca viu esse livro: “O Amor Eterno”. Ele sente a tristeza e solidão da mulher. O olhar vazio é familiar. Atraído, decide escalar essa montanha de folhas. Com um pequeno sorriso, agradece à senhora e segue de volta até a sua sala.
Descer as escadas, entrar na biblioteca e pegar um livro. Um vínculo acabou de ser traçado nas páginas que vagam pelo tempo. O resultado disso: Karen.
A última aula acaba. Nada de excepcional aconteceu em seu primeiro dia. Porém, mesmo os colegas de sala não terem ido incomodá-lo, Sam ouviu pequenos sussurros dos estudantes, fofocando a sua chegada. Por isso, sabe que, em breve, o mesmo que ocorria em seu antigo colégio o alcançará. Toda a bajulação e insinuação das meninas, e apertos de mãos e tapas nas costas dos meninos, voltarão, mais cedo ou mais tarde. Pobre Sam. Está cansado disso. Mesmo havendo tantas pessoas de famílias ricas na instituição, ele ainda será paparicado. Se soubesse, quando ainda era um desejo frequentar um colégio, que seria tratado dessa maneira, teria tentando, mesmo sabendo que seria em vão, persuadir seus pais para deixá-lo continuar a estudar em casa.
Já dentro do carro, voltando à mansão, Sam folheia o pequeno livro, sentindo-se estranhamente diferente por tê-lo pegado. Não faz ideia de que essa pequena (mas volumosa) obra irá levá-lo em uma direção única.
Bobby, que é um entusiasta da arte literária, pergunta o que ele tem em mãos. Sam responde que é um romance novo, chamado “O Amor Eterno”, de uma tal de Lucinda McDougal. O motorista conhece a obra, por isso finge nunca ter ouvido falar. Sabe que Sam adorará, pois é uma história maravilhosa. A história, por sinal, é a respeito de uma jovem mulher que decidiu nunca mais amar. Traída pelo marido, ela sentiu o seu coração se despedaçar, após ser largada como se não fosse nada. Em meio às lágrimas e soluços, ela correu sem rumo, pensando em tudo o que ambos vivenciaram. Desde o momento em que se conheceram, até começarem a namorar. Da primeira vez em que ficaram juntos, perdidos um no corpo do outro. Da paixão ardente e sem limites que os deixavam enlouquecidos. Do sim que ela disse ao ser oferecido o anel de noivado. Da alegria colossal que enchia o seu peito, todas às vezes que, para ela, ele sorria. Dos planos que foram feitos para o futuro, mas que jamais seriam concretizados. A princípio, uma história triste, mas que, no fim, como uma boa obra de amor, resolveu-se. Ela se apaixonou de novo e viveu uma vida feliz ao lado da pessoa que a completava.
• • •
Sam seguiu, durante uma semana, em companhia desse singelo livro. Leu um pouco todos os dias. Agora, antes de ter que devolvê-lo, já sente saudades.
• • •
Enquanto tenta prestar atenção na aula, Sam está pior do que o normal — é por que a sua cabeça voltará a ser agredida por intensas vozes sombrias. Ele até
pensa em pegar outro livro e continuar tampando esse buraco de forma paliativa, mas, pela primeira vez, em muito tempo, não vê mais razão para fazer isso. Afinal, de que adianta continuar com essa rotina sem sentido, se nunca terá o que mais deseja? Sam está cansado dessa vida. Não quer continuar nessa roda, sem poder sair, nem poder escapar. Não quer continuar com os pensamentos obscuros que o vêm rodeando há anos. Pensamentos que o faz imaginar que, quando os seus pais morrerem, estará livre para ser, e fazer, o que quiser com a sua insignificante existência. Ele odeia imaginar isso. Não quer ter que ar por esse infortúnio certo para mudar o seu destino. E Sam também já pensou, em raras ocasiões, se compensaria dar um fim em tudo. Não chegou a sentir esse aperto latejante consigo, mas supôs como um possível amigo. Claro que pensa ser algo covarde, que apenas os fracos fariam. Também não gostaria de deixar os seus pais com essa cicatriz cravada em seus corações. Então, ele apenas espera com toda a sua frustração e sofrimento guardados bem no fundo dos seus ossos, no fundo do seu coração.
O sinal do intervalo toca e Sam pensa em ir devolver o livro, mas está sem um pingo de vontade. Quer continuar apreciando, um pouco mais, o pesar da sua vida assombrada, sozinho, sentado em uma cadeira dura, submerso em uma autocomiseração inável, chata, deplorável.
Os colegas de sala o convidam para ir falar com algumas garotas, mais encorpadas, que estão a fim de conhecê-lo. Sabendo que eles querem aproveitar da sua fama para conseguirem algo também, Sam, educadamente, rejeita o convite e a insistência dos mesmos, podendo ver a decepção nos olhos dos rapazes eufóricos e assanhados, que saem cabisbaixos. Então, as meninas, pela milésima vez em uma semana, aproveitam o momento para abordá-lo. Elas sempre agem de maneira histérica, como se estivessem prestes a ficarem com um rock star. Sam odeia isso mais do que a morte. Pensa o quão patético é esse comportamento. Não que ele queira que elas sejam monges pacifistas, mas poderiam, ao menos, tentar conversar de uma maneira natural, sem, somente, quererem oferecer as suas partes íntimas.
Sam não fala nada para as garotas, pois a sua boca arqueada para baixo, e os seus olhos impacientes, são suficientes para acabar com toda a cena ousada. As jovens percebem o tom pesado pulsando do rapaz e ficam quietas. Convencemse de que ele ainda está chateado por ter tido que trocar de colégio, perto do encerramento do ano letivo, e deixar para trás os amigos. Pedem desculpas, mas prometendo que irão vê-lo depois; e vão embora.
Agora, em paz com o seu tormento, Sam fecha os olhos, desejando poder ser outra pessoa. Alguém alegre e sorridente, que sinta prazer em viver, que sinta prazer em existir. Alguém que consiga se abrir, e tirar o peso que aperta o seu peito. Alguém que consiga aliviar a sua mente carregada, que tanto vaga em devaneios, e que mais lembra um pântano cheio de musgos esverdeados. Alguém que possa chegar ao lar e encontrar aqueles que mais ama. Com os olhos fechados, Sam viaja por mundos irreais, qualquer um que a sua imaginação seja capaz de criar. E lá, torna-se outra coisa, outro ser.
• • •
A última aula termina e Sam decide ir entregar o livro. Apesar de tudo, não se sente confortável em prejudicar alguém que possa estar interessado em pegá-lo.
Ao chegar à biblioteca, ele ouve da velha mulher, que não vê a uma semana, que alguém quer aquele livro.
— É mesmo? — ele pergunta. — Ela parece ser meio... animada — Sam deduz, após ouvi-la falar a respeito da garota.
— Sim, com certeza é! — Elly, sem duvidar das palavras que profere, diz. — É
uma (meio doida) garota do outro bloco. Chama-se Amy e também está no último ano. Sala sete, andar de cima. Pode entregar para ela, tenho certeza que ela irá adorar — Elly não contou a respeito do dramalhão que Amy fez, apenas deturpou um pouco a história a respeito da decepção que ela sentiu ao ver que o livro não estava na biblioteca.
— Mas as aulas já acabaram. Será que ela ainda estará na sala?
— Sim, ela costuma demorar a sair — Elly, convicta, informa-o, com a certeza de que conhece bem a sua jovem amiga.
— Tá bom — ele a agradece, sem muita vontade.
Enquanto caminha até o outro bloco, Sam não deixa de pensar na reação da Amy por não ter encontrado o livro aguardado. É algo novo para si. Porém, ainda imagina que ela será igual a todas as outras — quando ficar diante dele —, com apenas esse detalhe diferenciado, diga-se, excepcional.
Sam sobe às escadas até o andar em que Amy estuda, procurando pela sala sete. Venta muito e tudo está apagado e escuro, e apenas a pouca luz do sol moribundo ilumina o andar. Olhando para cima, ele eia pelos números, até encontrar.
— Sala quatro, sala cinco, sala seis e... sala sete está ali na frente — ele, um pouco afastado da porta, diz.
Assim que se aproxima da porta, Sam sente um impacto moderado o atingir. Ele vê uma vasta cabeleira ruiva tão vermelha que mais parece uma onda de fogo em brasa. A garota pede desculpas, como se ela fosse a responsável.
— Amy, correto? — ele pergunta a ela, para ter certeza se é a pessoa certa.
Ele pede desculpa por tê-la surpreendido. Enquanto fala o porquê de estar ali, ele pega o livro na mochila e o entrega. Sam espera que ela engula o livro com empolgação, ainda mais após saber como ela ficou ao não tê-lo encontrado. Mas isso não acontece, pois Amy fica paralisada. Ele pensa tê-la assustado, então decide apresentar-se, mesmo imaginando que ela já saiba.
— Ah! Que grosseria da minha parte! Não me apresentei. Eu me chamo Sam, sou novo no colégio. Entrei faz... uma semana. Prazer em conhecê-la — coloca a mochila no chão e estende a mão para cumprimentá-la.
Assim que ela corre igual a um foguete, ele fica ivo, sem nenhuma reação mais esperada pela estranheza inusitada, mas o seu rosto assume uma forma diferente.
— Essa é nova — Sam fica chateado por achar que ela fugiu por saber quem ele é. — Parece que eu estava certo — agora, levemente mal-humorado. — De qualquer forma, amanhã eu a entrego — guarda o livro na mochila, com amargor, e decide ir embora.
• • •
Em casa, após mais um tempo de estudos, Sam tomou o seu banho, jantou e foi para o quarto mais cedo, sem falar com ninguém. Está muito mais desanimado. Está muito mais irritado com os seus pais, com os empregados, com os colegas de classe, consigo mesmo.
Deitado na cama, no imenso quarto que tem, Sam olha para o teto como se esperasse por alguma solução oferecida por ele.
O seu olhar cansado é um reflexo da tempestade que o habita. E na busca para encontrar pontos positivos em sua vida, Sam sempre volta para uma velha amiga: a ideia de que nunca viverá as próprias escolhas, nem alcançará os próprios objetivos. Sim, todos os os que deu, até agora, foram decididos por seus pais. Não houve conversa, nem discussão, apenas duas vozes imponentes, lineares, em imposição. O pior de tudo é que Sam sabe que essa é a forma deles demonstrarem o que sentem por ele, e isso o perturba muito. Elizabeth é mais “explícita” no pouquíssimo que expressa. Quando em casa, é capaz de perguntar como ele se sente, para saber se está tudo bem. Mas são palavras gélidas e deformadas. A sua boca não foi moldada para tal ato. Nem ela sabe por que isso acontece. Pobre Elizabeth. Parece que só é capaz de expressar-se pela melodia do piano que toca tão bem.
Infelizmente, com Brian a situação tem outra roupagem. Sam pensa de que maneira um homem, capaz de romper a mais áspera parede de emoções, com filmes belos e diálogos profundos, para o próprio filho só consegue demonstrar o nada. É tão contraditório e sem sentido. Quando em casa, não há retórica, apenas Brian quem fala, querendo saber se tudo está sendo executado da maneira planejada. Sam responde com breves frases, querendo que a inquisição termine logo.
— Eu preciso dormir... — ele diz, cansado.
Antes, recorda que faz, exatamente, dois meses que os seus pais não voltam à mansão. Sequer telefonaram para ele, apenas aos empregados para darem algumas ordens e deveres. E com a cabeça cheia de aflições, e prestes a dormir, algo ainda se arrisca em aparecer dentro dela: é a Amy quem veio visitá-lo. Sam nem se anima, pois não prestou atenção na doce menina. Tão logo apareceu, essa imagem foi embora, deixando-o adormecer.
No dia seguinte, enquanto arruma-se para ir ao colégio, Sam recebe uma ligação. Surpreso ao ouvir a voz da sua mãe, acredita que ela ligou para avisar que está voltando. Mas não é isso. Para o pesar do pobre Sam, a turnê será esticada por mais três meses, devido ao enorme sucesso. Elizabeth avisa que Brian também levará mais três meses para terminar o filme, pois houve complicações com as filmagens, devido às más condições da cidade em que ele se encontra.
— Por que seria diferente agora?! Por que será diferente depois?! — é o que ele fala, com a voz carregada de irritação, após Elizabeth desligar. — Por que eu ainda acho que algo irá mudar?! Por que eu não aceito que a minha vida sempre será isso?! — põe o telefone no gancho, com rancor, com raiva, e isso o assusta. Percebe que as sombras estão tomando-o aos poucos, e Sam não quer isso. Não quer odiar os pais, pois eles são boas pessoas. Cuidam de mais de cinquenta empregados que trabalham na mansão, sem contar toda a equipe que os acompanham em seus trabalhos. “Eles são boas pessoas”, Sam repete, convencendo-se de que pode ser um garoto egoísta. Mas não segura esse pensamento por muito tempo e, logo, retorna às mesmas ideias indevidas.
Sam veste-se da mesma maneira de sempre, apenas mudando o cabelo. Penteia tudo para trás, com força, com desgosto, deixando o seu reto, e simétrico, rosto amostra. Isso evidencia algo: a escuridão que começou a envolvê-lo, enfim, moldou o seu olhar, deixando-o completamente frio e antipático; sem vontade, nem perspectivas.
Sam seguiu até o colégio, a pé mesmo. Bobby estranhou, mas não falou nada.
Na sala de aula, Sam, enraivecido, expulsa qualquer um que queira chegar perto, principalmente os alunos com interesses sacanas. Os professores lhe fazem perguntas e são respondidos com respostas ríspidas, porém corretas.
O intervalo chega e se vai assustado. Sam já nem lembra mais do livro. Continua sufocado, como se estivesse preso em um desesperador e profundo labirinto.
O fim da aula é anunciado pelo alto e vibrante sinal. A tensão no corpo dele é igual à de uma corda molhada toda retorcida. A sua pele gelada é igual à de um cadáver congelado. O seu olhar é lúgubre. E quando Sam percebe o próprio semblante, no reflexo da janela, fica apavorado.
— No que eu estou me transformando...?! — diz, angustiado, tamanho o espanto de ver-se diferente; Sam teme diante essa possibilidade. Porém, graças a um lapso aleatório, um chamado apreensivo, lembra que precisa devolver o tal livro. Assim, volta à biblioteca, mas é avisado por Elly que pode ir pessoalmente entregá-lo. Então, ele agarra com todas as forças esse dever e vai procurar pela garota que fugiu no dia anterior. Anda todo apressado, como se a sua vida dependesse desse ato.
Sam, ao se aproximar da porta, da sala sete, sente algo esbarrar em seu corpo.
— Isso seria um déjà-vu, certo? — diz, forçando ser simpático. — Olha, quero me desculpar por ontem. Cheguei de surpresa e acho que te assustei — pensando o porquê de estar envergonhado. — Quero te entregar isto — mostra o livro à Amy.
Em meio às palavras confusas que Amy fala, Sam recebe uma descarga elétrica, que o percorre de cima a baixo. Ao reparar nela, dessa vez, algo o atinge. A pele dela, levemente rosada, com pequenas sardas, parece algodão doce sabor tutti frutti com minúsculos grãos de açúcar mascavo. Os seus olhos dourados, brilhantes e saturados, duas gemas de ouro. Com as suas roupas de clores claras, ela torna-se um alegre arco-íris, que elegantemente aparece após a tempestade. E o seu cheiro é mágico, graças ao deleite aromático que dança pelo esguio corpo da jovem ruiva.
“De que maneira essa garota meio boba e, aparentemente, desengonçada, que tenta esconder-se atrás de um livro, pode ser tão esplendida?”, Sam pensa, concordando que isso mais parece uma ofensa sem graça. “O que está acontecendo?! Não consigo respirar! O meu coração dói de tanto bater! Eu estou... tremendo?!”, Sam começa a conversar consigo mesmo em outra realidade. Então, toda a aura negra que ele sentia adentrar é enfraquecida e expulsa do seu corpo. A negatividade que estava prestes a transformá-lo em um ser oco é obrigada a recuar, fazendo-o sentir-se diferente.
A princípio, fora de si, Sam imagina estar obedecendo às mãos do mal que haviam começado a dominá-lo. Mas não é isso que está acontecendo. É a vontade do seu coração, que quer voltar ao lugar a qual pertence, que o faz correr sem saber aonde ir, apenas desejando estar o mais longe da jovem Amy.
Bobby, que o aguarda do lado de fora do colégio, vê Sam sair correndo, sem um rumo aparente. O gentil motorista, logo, prontifica-se a segui-lo.
Sam começa a cortar por ruas desconhecidas, estranhas. O jovem rapaz não é acostumado em ir a muitos lugares, pois, normalmente, fica confinado em sua luxuosa mansão. Mesmo após ingressar no colégio, nada havia mudado, somente agora, em seu último ano escolar, que começou a visitar outras maravilhas que fazem de Agonia uma cidade imprecisa. Mas, Sam, ainda é um garoto isolado, que não conhece, verdadeiramente, a vida fora dos muros do seu lar. A
biblioteca, a sorveteria e a pizzaria são os lugares que sempre frequentou, de resto, é quase tudo inexplorado.
Bobby o perde de vista e a preocupação começa a surgir. Pensa que algo de ruim possa ter acontecido. Talvez a notícia de alguém próximo que morreu ou uma decisão errada que possa ter tomado.
Bobby segue procurando-o, até que, após entrar em ruas estreitas e vazias, encontra-o sentado embaixo de um metódico ipê-roxo. Sam, com a cabeça abaixada e os braços apoiados nos joelhos, está muito suado e ofegante, e seu cabelo todo encharcado. Parece um filhote de gazela que conseguiu escapar das presas afiadas de uma leoa sanguinária. Ao vê-lo, a impressão que Bobby tem é de que Sam está desolado.
O motorista desce do carro e, acompanhado por finas gotas de chuva, vai em direção do rapaz. Com a sensibilidade que a vida lhe deu, Bobby tira o seu velho quepe da cabeça, deixando aparecer o seu cheio cabelo grisalho, já preparado para apoiá-lo. Abaixa-se e coloca a sua mão amiga no ombro do rapaz. A sua expressão é de angústia, pois tem certeza de que o pior será falado. Porém, após perceber que risadas saem do solitário garoto, Bobby fica sem entender nada.
Sam o olha com os seus esverdeados olhos vistosos, capazes de serem a estrela guia de qualquer um perdido na profundeza escura de um céu letárgico. E Bobby, com todo o carinho que sempre teve por ele, não aguenta rever algo que há muito tempo se perdeu. Depois de anos, apenas testemunhando a decomposição que ocorria com Sam, pode ver algo voltar ao garoto que adorava brincar de morder quando era um pirralho.
Algumas lágrimas tentam sair, mas Bobby as contém. E como um nobre cavalheiro, levanta-se e estende a sua mão direita, esperando, com um sorriso
duro, que Sam aceite. Sam, por sinal, está mais leve. O céu de concreto, chato, que não permitia a liberdade do sol, foi purificado. O azul intenso assume o seu lugar por direito, e toda a ojeriza, que há anos tornou-se tangível, começa a se desmanchar. Após anos imersos em sentimentos asquerosos, e em emoções corrosivas, que teimavam em torná-lo vazio, Sam pode respirar novamente. Sam, então, finalmente está... liberto?
Sam ri muito. Ri, pois pensa nos momentos mais desesperadores que teve que ar. Nas noites, mesmo poucas, mais escuras em que acreditou que uma solução definitiva fosse a melhor escolha.
Lembranças aleatórias, escondidas, surgem como se quisessem dar as boasvindas. Assim, Sam se lembra do sorriso de felicidade da sua mãe quando a presentou com um pequeno girassol em uma plena manhã de domingo. Lembrase do apertado e seguro abraço que foi dado, e do beijo molhado tocado em seu rosto por suaves lábios. Lembra-se do seu pai, há tanto tempo atrás, que mais parece uma mentira, levando-o a um simples parque. Lembra-se de ser pego e colocado nas costas, e carregado por horas, enquanto ouvia histórias fantásticas sobre seres mágicos. Sam está recuperando as memórias do tempo em que achou melhor ter esquecido. Do tempo em que achou melhor ter escapado.
A luz quer revê-lo e ao seu encontro ela vai. Uma faísca, pequena e sozinha, mas dotada de muita vontade, e que sempre lutou para não se apagada, aflora em seu coração. Até mesmo toda a carga escura e corrupta que sente pelos pais, que o diz palavras malignas e induz ideias sombrias, agora, busca se dissipar. Sam está feliz por isso estar acontecendo, pois odeia ter que odiá-los.
Ambos voltam para o carro, juntos, em silêncio. Não é o momento para que algo seja explicado, assim como a vida não é explicada. Mas isso é apenas o começo. Ainda haverá algumas batalhas mais árduas que Sam precisará enfrentar.
CAPITULO 13
Sam chega à mansão. A sua mudança é nítida. Muitos dos empregados percebem que algo ocorreu. Alguns mais novos na mansão não ficam tão comovidos, pois o veem apenas como o filho daqueles que pagam os seus salários. Porém, os mais velhos (não muitos), que viram os seus primeiros os, que ouviram as suas primeiras palavras, e que estavam lá quando Elizabeth, que havia acabado de dar à luz, segurava-o nos braços, sentem a alternância no ar que preenchem os seus pulmões. Todo o peso que em conjunto carregavam, começa a desfazer-se, como uma grande duna que é banhada por um vasto lago.
É evidente em seus olhares que todo o período conturbado e fétido se tornará uma lembrança desagradável. A escuridão, que às podres flores expeliam, não causará mais incômodo, pois um novo aroma preencherá os largos corredores da grande mansão. Por fim, tudo se tornará uma fumaça a ser abandonada sem lamentações e... Não, não, não. Será bem mais complicado do que isso.
Katarina, uma humilde cozinheira que há anos trabalha para os Elric Gillian, está preparando um ensopado de frango com alguns pedaços de legumes tediosos, quando algo a chama a atenção. Essa mulher, já idosa, sabe o que Sam foi lá atrás, no ado. Antigamente, quando ele ouvia as histórias a respeito de Agonia, com os seus olhos cheios de encanto e magia, mas amedrontados com as trevas que vagam pela vida, era a gentil Katarina quem, de vez em quando, narrava os mistérios espalhados pela cidade. Esse era um dos momentos mais agradáveis para ele. Sam, sentado no sofá almofadado, cor de caramelo, enquanto tomava o seu achocolatado, nos fins de tarde, quando à noite começava a revestir a cidade, ouvindo a simplória e imaginativa cozinheira falar sobre os mitos e verdades que tanto rondavam Agonia.
Katarina também o conhece desde quando ele estava no âmago da Elizabeth. Foi uma das primeiras a pegá-lo nos braços e segurá-lo no colo. No começo, ambos eram bem próximos, mas conforme Sam crescia, vendo o distanciamento e frieza que recebia, o seu coração começou a se corromper e a se fechar, e o iluminado garotinho, que tanto corria, brincava e derrubava tudo pelo lar, estava mudado, e Katarina não pôde fazer nada. Mas, agora, como se tivesse um sexto sentido, ela nota uma aura misteriosa, mas conhecida, adentrar a residência. Pede para sua ajudante assumir o posto principal e corre para ver o que é, apenas obedecendo ao seu coração, como uma mãe que tanto se preocupa com o filho. a por alguns dos seus colegas, curiosa para saber a razão dos cochichos. Alguns falam para ela ir ver o Sam, mas não dizem o motivo. Katarina, então, entra no quarto do rapaz sem bater à porta — algo que ela não faz, pois acha falta de educação — e o vê em frente a estante, mexendo em seus queridos livros.
A chuva, mais forte do que nunca, não para. O sol já se foi e à noite derramou todo o seu cosmos. A luz molhada e fria da lua, que se esforça para atravessar as grossas e agressivas gotas de chuva, dança, atrevidamente, em volta do corpo do jovem rapaz.
Sam repara que está sendo observado por sua velha conhecida, e expõe um gracioso sorriso. Ele aguarda que ela fale algo, mas Katarina, atingida por essa cena, fica muda, pasma, pois não esperava mais rever, novamente, essa pintura. Então, apenas caminha até ele, abraçando-o com força e conforto. Sam retribui o gesto que não faz com tanta vontade há anos. Katarina não sabe se chora ou sorri, então, faz um pouco dos dois. Sam pergunta o que houve, sem saber que a sua volta é o causador de tanta luz.
Sim, não é algo novo, nem desconhecido, mas Sam, agora, sente como se tivesse descoberto um tesouro escondido. Os seus olhos brilham reluzentes. Sua boca come com paixão a saborosa refeição oferecida e bebe sedento o adocicado refresco. Ninguém pergunta o motivo da mudança repentina e, por que não, inesperada. Os mais novos (na mansão) ficam em um júbilo completo pela nova postura do jovem patrão. Alguns sabiam do cenário em que ele se encontrava,
mas não davam atenção. Outros, por mais que já tivessem ouvido inúmeras vezes, demonstravam tanto desinteresse que, a cada vez que eram lembrados, ficavam espantados.
Ao término dessa confraternização imprevista, aos poucos, todos começam a retirar-se, pois não podem ficar isentos dos seus afazeres, mas Sam continua sentado à mesa, conversando com Bobby e Katarina. Ele fala um pouco a respeito do colégio, e suas palavras não são mais mortas, existe, de fato, cor nelas. Não força uma aparência falsa, como faz desde pequeno. A dupla ouve em silêncio. Após isso, Sam volta ao quarto, convicto de que é, novamente, a sua melhor versão.
Durante essa noite, Sam sonhará, somente, coisas boas. Com a sua mãe, eando pelo jardim da mansão. Com o seu pai, irando o pequeno lago no fundo da propriedade. E com a Amy, juntos, de mãos dadas em um belo parque florido, com ambos dizendo: — Eu te amo e estarei sempre contigo.
CAPITULO 14
Sábado, bem cedinho. Sam acorda com algo estranho, como se houvesse um eco, bem fraco, mas agudo, ressoando no fundo da sua cabeça. Acreditando não ser nada, inicia a sua rotina matinal, como sempre faz. Primeiro um banho, depois o café da manhã e logo se prepara para estudar — mas sem conseguir deixar de lado o pequeno ruído que insiste em continuar.
Durante o resto do dia, Sam não fez de extraordinário. Foi visitar um antigo museu para ver algumas peças e obras que contam um pouco da história de Agonia. Quando voltou, ficou eando pela imensa propriedade. Ele não conversou com ninguém — e isso foi estranho. O barulho o acompanhou a todo instante.
À noite se aproxima e o barulho se mantém firme, mais forte. Sam recorda o que ou no dia anterior. De uma manhã depressiva e raivosa, migrou para um dos melhores da sua vida, após perceber que havia se apaixonado por uma jovem bela garota desconhecida. E que nesse mesmo dia, teve uma continuidade mais leve e descontraída, com um desfecho satisfatório.
— Tenho certeza disso! — afirma consigo. — Arf, arf, arf, arf, arf... Não... Não foi um sonho... Não pode ter sido um sonho! — diz, segurando fortemente o seu coração.
Sam, então, vê que o seu monstro retornou. Isso o faz sentir um calafrio cortar todo o seu comprido corpo. Das pontas dos pés, até o fio mais esticado da
cabeça, essa sensação mórbida o aterroriza, fazendo-o se sentir derrotado, sem esperança, sem vida.
— Ahhhhhhhhhhh!!! — dá vários socos na parede. — Por quê?! Por quê?! Por quê?! Por quê?! Por quê?! — dá vários socos em si mesmo. — Por que eu existo?! Por que eu existo?! Por que eu existo?! Por que... eu existo...? Por quê...? — abatido, sem forças, cai de joelhos sobre o carpete que forra o chão. Com os seus olhos cansados, desprovidos de vida, e que não param de chorar insignificantes lágrimas, Sam sofre.
Assim, em um ato de desespero, sob a pouca luz que ainda ilumina a sua mente moída, Sam decide tomar uma atitude que possa livrá-lo dessa situação maldita. Pega algumas roupas e enfia tudo em uma mala que estava embaixo da sua cama. E em uma mistura de desesperança com fúria, soca as vestimentas, retorcendo-as e amassando todas. Escreve um bilhete, apressadamente, e o deixa em cima da escrivaninha, ao lado da cama. Sai pela porta da frente, com um semblante triste, pouco se importando se alguém o viu.
Com o seu imponente carro, que havia ganhado do seu pai, ele dirige até uma das várias propriedades da família: uma cabana escondida, meio “abandonada”, próxima à Floresta Negra. Antiga, pequena e esquecida, é feita de madeira e tem algumas macieiras no fundo. É um lugar calmo e sem ninguém para atormentálo. Aliás, há alguém sim, mas desse, Sam não tem como escapar.
• • •
Na mesma noite, Katarina é avisada a respeito da ida do rapaz.
— Por que ninguém me avisou antes?! — ela grita com qualquer um.
Nervosa, ela procura em sua mente uma boa razão para ele ter partido. Vai até o quarto dele para ver se pode ter algum aviso sobre a sua ida. Dá três batidas à porta, como se avisasse que entrará. Ela entra e vê um pedaço de papel em cima da pequena mobília — não está endereçado, mas, preocupada, ela decide abrir. No bilhete, escrito com letras rápidas, diz que ele precisa ficar sozinho para entender melhor o que está acontecendo consigo. Katarina fica abalada, pois imagina o quanto ele deve estar sofrendo para ter feito algo assim. Também há um pedido para não se preocuparem e para não irem atrás dele no colégio. Normalmente, Katarina não teria medo por ele ficar sozinho. Sabe que Sam é um garoto autossuficiente, mesmo com a vida cheia de mordomias. Por isso, contrariada, obedece às vontades solicitadas, pois a sua intenção é de ir atrás. Pega o bilhete e o guarda. Pretende avisar o Bobby, assim que ele voltar.
• • •
Na antiga cabana, Sam começa a habituar-se.
A luz quente, da antiga lamparina, avermelha o interior da pequena sala. É possível ouvir, sob as gotas que caem do céu, os grilos fazendo os seus irritantes sons do lado de fora; e o chacoalhar das folhas das árvores perante o bailar do vento.
Após largar a mala em qualquer canto, Sam vai descansar. Deita, desapontado, frustrado, na cama, profundamente decepcionado por ver que todas as emoções e sentimentos que a jovial Amy despertou, não foram capazes de livrá-lo do seu martírio perpétuo. E por não ter ado um mísero dia sem os seus tormentos infernizando, ele pensa que tudo não ou de meras aflições, meros devaneios, meras ilusões.
Lentamente, os seus intensos olhos verdes se fecham, como se quisessem tirá-lo dos seus pensamentos estressantes. Elizabeth, Brian e Amy são as últimas imagens que a sua consciência vê, antes de deixá-lo dos pesadelos a mercê.
Na manhã seguinte, a chuva ainda é uma constante e traz consigo um frio que levará muitos dias para abandonar Agonia. E como um agouro anunciado por um burocrático arauto, Sam acorda mais tarde, sem lembrar-se do que experimentou há quase dois dias. A transparência em seus olhos é cadavérica. A sua cabeça volta a ser permeada por trevas e malevolências, mas em uma proporção muito mais violenta. Uma reação sarcástica, que não corresponde a sua essência, é a sua demonstração para consigo mesmo. Sente-se fraco, patético, um pedaço de excremento que qualquer animal é capaz de soltar. Sente-se mais insignificante do que uma ínfima vida. Propõe-se, então, em ficar deitado no quarto, trabalhando em uma autocomiseração inável. Levanta-se apenas para ir ao banheiro; nem comer tem vontade. Sam odeia estar assim. Odeia estar cansado. Odeia estar frustrado. Odeia tudo.
• • •
ou-se uma semana e o estado do Sam piorou.
Ele, por algum milagre, conseguiu frequentar o colégio, mas com uma atroz ansiedade queimando em seu coração e com uma disposição robótica, quase como se não tivesse mais consciência da própria existência. Também conseguiu fingir não se incomodar com os atrevimentos das garotas, nem com as perturbações dos garotos. Para isso, ele usou a mesma máscara de sempre, aquela capaz de ocultar o seu “eu” verdadeiro. E como solicitado, ninguém da mansão foi procurá-lo.
Mas o pior de tudo foi não poder ver a Amy. Nem mesmo ficar longe dos seus colegas de moradia o entristeceu. Quanto aos seus pais, por infortúnios que há na vida, não pôde fazer nada. Mas a Amy é diferente. Deixar de querer vê-la o machucou como nunca havia sentido antes. A sua pele arrepiava e o seu coração rasgava. O oxigênio machucava os seus pulmões. Eram sensações desagradáveis. Tudo o que a doce garota fez foi querer ler um livro que ele tinha pegado, e isso bastou para ele ser levado ao encontro de algo mágico. Apesar disso, Sam não ficou magoado por ela não ter ido falar com ele. Na verdade, até preferiu. Não queria ter que transfigurar-se para falar com ela.
• • •
Sábado de manhã. Ainda refugiado na cabana, Sam acordou, tomou um banho desinteressado e mal se alimentou. A única coisa que importa, no momento, é afundar-se nos livros. Mesmo sem ânimo, consegue, por meio deles, “lidar” com a sua consciência transtornada. Havia começado a achar inútil esse artifício, mas, agora, agarra-se ao máximo para não deixar-se apagar. Não é uma cura, obviamente, mas, ao menos, absorve um pouco de toda a carga densa que pesa em suas costas.
Junto a isso, Sam não quer ver ninguém. Não quer ver os seus pais. Não quer ver os seus colegas do colégio. Não quer ver os empregados da mansão. Não quer ver a si mesmo. Quer apenas entender por que a sua vida foi gerada. Quer apenas entender por que precisa sofrer por existir. Quer apenas entender por que não consegue mudar. Quer apenas entender por que é tão triste. Quer apenas entender por que começou a olhar com mais vontade para o abismo, desejando ser abençoado pelo silêncio fim.
CAPITULO 15
Sábado à noite. A chuva, finalmente, deu uma trégua. Sam, com a sua fisionomia apagada, sem um sopro de nada, aproveitando a brecha climática, está sentado em uma cadeira de varanda, no fundo da cabana, apreciando a paisagem enigmática que a floresta possui. Uma xícara de chá lhe faz companhia, sob a triste melodia que a sinfonia da sua existência toca.
Vestindo um moletom grosso, com as mãos nos bolsos, e com o seu olhar perdido, de suplício, Sam encara as estrelas dispersas no céu infinito. É possível ver, mais a frente, a profundidade latente da floresta amaldiçoada. Sam, por um momento, pensa em ir explorá-la para confirmar se as histórias são verdadeiras. Mas não vai. Prefere continuar abraçado com os seus demônios intermináveis.
O telefone é ouvido no interior da cabana. Em uma semana, essa foi a primeira vez que tocou. Sam imagina ser alguém da mansão que descobriu a sua localização. Bobby ou Katarina? Tanto faz. Não está interessado.
Ao pensar que o isolamento o beneficiaria, Sam percebe o efeito contrário. Do instante maravilhoso ao compreender os sentimentos e emoções que a bela Amy o causou, uma eternidade parece ter ado. Agora, aqueles momentos já se apagaram, e, por uma vasta cordilheira, as trevas lhe retornaram. Isso o faz pensar que até mesmo se os seus pais ligarem, para saber como tudo está indo, ele não se importará. É a primeira vez que tem esse pensamento. Durante toda a vida, mesmo querendo fazer o contrário, sempre obedeceu aos dois. Parece que, agora, descartou essa fatia da sua personalidade.
O rancor que Sam está sentindo ficou muito grande e forte para ser contido. Uma semana foi o suficiente para finalizá-lo em uma criatura astuta, independente. As suas garras ajustaram-se. As suas presas afiadas, na alma, foram cravadas. Deixando-o possuí-lo, agora, Sam é um pífio servo. A desesperança o tem sob controle, fazendo-o acreditar que nunca escapará. E o prelúdio para o rompimento da represa foi ao perceber que a diminuta luz a, em seu interior, não foi capaz de mudá-lo.
Sam toma um gole do chá de erva-cidreira. Ele não se preocupou em colocar açúcar na medida correta, nem se está em uma temperatura ável. Enquanto bebe, olhando para a sinistra floresta, que a obscuridade expele, lembra-se dos dezessete anos em que precisou submeter-se às vontades dos pais, fingindo que estava tudo bem. Fingindo que ainda está tudo bem.
O celular toca e Sam se arrepende por tê-lo deixado ligado. Ele não faz nem questão de ver quem é. Levanta-se, em um movimento direto, e entra na moradia. A luz do corredor é a única que ilumina. Meio escura e alaranjada, uma lâmpada arredondada esparrama sua luz difusa, que, assustada, treme perante o semblante que ira o nada.
Sam, com respirações profundas, lançadas com desgosto, como se quisesse esvaziar todo o lodo que o atormenta, vai para o quarto e se joga na cama. Rodeado por entidades maléficas, que sentem prazer em atazaná-lo, não está sendo fácil lidar com elas. O celular toca novamente. Sam o desliga.
Tenso, sem conseguir apagar sua consciência, cada centímetro da sua existência é uma danação contínua, uma tortura perversa. O telefone volta a tocar. O som do aparelho colide em seu corpo. Para e toca de novo. Para e toca de novo. Para e toca de novo. Já são vinte e duas horas e esse ciclo já se repete por infindáveis dez minutos.
Antes de levantar-se e ir quebrá-lo, ele procurou não dar atenção para essa situação ordinária. O problema é que a voz que o comanda, uma voz sádica, repleta de pus e tenebrosidade, fez Sam agir ferozmente, igual a uma besta desenfreada. Então, ele pegou o aparelho e o arremessou com uma força inexistente. A resistência do objeto foi louvável, pois aguentou o impacto seco contra a dura parede de madeira. Mas tomado por uma fúria amedrontadora, Sam começou a dar murros violentos no telefone. O ranger dos seus dentes foi dantesco. Os olhos pura maldade. E, logo, a sua mão direita ficou toda ensanguentada, mas Sam não estava nem aí. O pequeno objeto virou migalhas. Terminado o trabalho, foi até o banheiro lavar sua mão.
Abatido, Sam sente a água gelada, que sai da pia, trazer um alívio para os cortes entalhados. Ele vê o que o seu descontrole é capaz de fazer. Agora, não consegue fechá-la, além da dor aguda que começa a crescer. Faz um gesto com a cabeça, como se estivesse arrependido — mas não está. É apenas a sua acomodação com a sensação nova que a sua mão entrega. Então, como um tolo que não sabe a hora de desistir, começa a sentir-se patético, inútil, ridículo. Sempre teve tudo na maior comodidade. Nunca precisou ir atrás de nada com as próprias pernas. A sua inteligência é um dom que nasceu consigo, não foi conquistado. E o multiinstrumentista que se tornou foi por obrigação; a excelência cinematográfica idem. Nada foi por mérito próprio, ou por uma vontade real. Tudo foi imposto. Uma vida falsa. Uma grande farsa.
Olhando-se no espelho do banheiro, com esses pensamentos o dominando, Sam começa a pensar que é, e sempre foi, uma marionete terceirizada. Um sussurro descartável. Uma grande porção de nada. E em meio a esses pensamentos destrutivos, ele começa a olhar para o que há dentro das trevas, e que sempre andaram consigo.
O porquê dos seus pais não terem tido outros filhos?
— Talvez, por que querem que eu seja sozinho.
O afastamento familiar que eles o atribuíram?
— Talvez, por eu não significar nada.
A necessidade de continuarem com os seus trabalhos o tempo todo?
— Talvez, para não terem que ficar perto do erro que conceberam.
Essas ideias são tão estapafúrdias, totalmente desconexas com a realidade, mas, na situação em que ele se encontra, tudo pode ser verdade.
Depois de fazer um curativo, Sam vai para a sala. Acende a lareira e fica por lá, largado no sofá, com a sua face de derrotado.
Após um tempo decorrido, o relógio marca meia-noite, pontualmente, e o sono ainda não o visitou. Prostrado, os seus olhos imóveis. Transcorreu mais uma hora e ele sequer se mexeu. Ainda segue firme, sem olheiras. Ao término de duas horas percorridas, Sam permanece inanimado, desejando estar longe de si. Quando o relógio denuncia às três horas da madrugada, enfim está mergulhado em um sono profundo, abraçado pelas chamas.
Os estalos que as madeiras em brasa fazem chicoteiam o clima úmido, e o calor proporcionado o mantém seguro.
Durante o resto da noite, Sam não sonhará. A sua mente ficará vazia, como se quisesse deixá-lo em paz, cansado de provocá-lo por tanto tempo. Sam dormirá um sono, de certa forma, tranquilo, e quando acordar será o começo de uma nova jornada, de uma nova vida, mas nem por isso deixará de ser menos difícil.
CAPITULO 16. CÉU SILENCIOSO
Domingo de manhã. A chuva, que não deixou à noite descansar, foi embora, mas o céu ainda escuro é uma lembrança de que, logo, ela voltará a atacar.
Sam acorda péssimo, como se estivesse de porre. A sua cabeça dói como se facas a cutucassem por sadismo; e uma dor absurda o corta sem misericórdia. É por causa da sua mão. Ela está tão inchada, roxa e rígida que mal consegue mexê-la. Sam vê a besteira que fez e profere alguns palavrões, que em raras ocasiões já foram pronunciados. E por ter um raso conhecimento em medicina — que deveria ter dado mais atenção na noite ada — tem a convicção de que ela está com alguma fratura. Para ter certeza, ele precisará de uma opinião mais embasada. Sam decide ir ao hospital.
Enquanto veste-se, ou tenta, a dor o permite ficar afastado dos pensamentos hostis. Isso o faz achar que não foi tão ruim o que fez.
O táxi chega bem rápido. Sam informa ao motorista, de meia idade, aonde irá.
Sam, ao chegar ao hospital, pede para o taxista esperá-lo, e que poderá cobrar esse tempo ocioso. O homem fica empolgado, pois aos domingos a corrida é mais cara. Abre um largo sorriso, mostrando os seus dentes amarelados, e fala que irá aguardá-lo.
Sam vai falar com o seu médico particular, que o atende desde criancinha.
Chronos é o seu nome. Um senhor por volta dos sessenta anos e com uma cabeleira branca, que faria qualquer jovem ficar invejado, até o pescoço.
Eles conversam na sala particular do doutor. Sam não diz qual foi o motivo para a sua mão ter ficado dessa forma, mas com a sua inteligência e experiência, Chronos percebe o que ele fez. Então, segurando a mão, ele a analisa, artesanalmente.
Com uma suspirada que transparece decepção com desinteresse, Chronos pede ao Sam para se levantar e segui-lo, pois será necessário fazer uma radiografia. Sam, aliás, está ando com bravura a dor latejante que o está acometendo. Para ele, poder sentir algo tão intenso não é de todo mal. Porém, por um minuto, dando mais ouvido do que deveria ao desespero, imagina ter acabado com qualquer possibilidade de tornar-se médico no futuro. Ao se tocar de que a sua mão pode ficar comprometida, um agouro desgostoso emerge em seu estômago. As suas entranhas ficam irritadas, causando-lhe desconfortos e cólicas. Pois é, agir de maneira estúpida, sem discernimento, tem que ter um preço. Assim, Sam começa a rir, mas dessa vez a risada é diferente. A enfermeira, que auxilia o velho médico, estranha a risada disforme que sai da boca do rapaz. Um pedido de socorro é a canção declamada. “Com essa mão estragada, que agora não poderá fazer mais nada, jamais serei um médico”, Sam pensa no ápice da sua triste desesperança.
A radiografia foi feita e Sam espera uma notícia desagradável, com a certeza de que a sua mão está acabada.
Chronos chega envolto de maus presságios — na cabeça do Sam. O semblante do rapaz é péssimo. Não lembra em nada o garoto que se viu, há uma semana, apaixonado. Com as costas curvadas para baixo, o olhar sem um ponto fixo e o rosto descolorido, Sam é uma forma desmantelada de algum ser surrado.
Chronos o informa sobre o estado da mão. No fim, a notícia não é ruim. A fratura realmente existe, mas não é tão grave. Em pouco mais de duas semanas, o gesso que ele colocará já a terá recuperado. Sam, mesmo sentindo-se um moribundo, ouve essas palavras com um suspiro profundo e aliviado. Agradece o velho médico e pede para ele não informar ninguém da mansão. Chronos aceita. Não é um homem conflituoso. Se for para manter em segredo, então, assim será. E se os pais do Sam quiserem saber, uma desculpa qualquer servirá.
Sam o agradece, novamente, pela confidência e se despede. Volta ao táxi. O motorista, contente pela alta quantia que o espera, prontifica-se a abrir a porta para o seu nobre pagador.
No caminho de volta, Sam, devido ao remédio que Chronos deu, começa a deixar de sentir a dor aguda em sua mão. Não está tão feliz por perder esse incômodo, pois, junto à dor, também começou a retornar às suas sombras, e, assim, afundar-se nelas. Elas não dão trégua. Parecem urubus rondando um pobre animal prestes a morrer.
Ao chegar à cabana, Sam paga o taxista com uma grande quantia, dando a mais do que deveria. O motorista não acredita no dinheiro que ganhou. Desce do carro, corre até um telefone público e liga para sua amada esposa. Sam, vendo essa situação, mesmo sem muito espaço em sua cabeça, fica intrigado. O taxista volta até ele, e profundamente o agradece, como se Sam fosse uma divindade; e vai embora.
E, enfim, um milagre é alcançado.
Sam, ao fim dessa cena dramática, sente uma carga ácida atingi-lo. Os seus olhos, imediatamente, enchem-se d’água e uma vontade inacreditável de gritar o toma. Agora, o quebra-cabeça em que a sua mente havia se fragmentado, em um
esforço repentino, começa a juntar as peças, procurando unir tudo o que foi espalhado. Não é igual à reação provocada pela descoberta da paixão por Amy. É algo mais conciso e direcionado, não uma loucura endiabrada.
A estrutura da sua mente, pessimamente arquitetada, começa a voltar, minimamente, para a sua base anterior, sólida e segura, da época em que ele era um ser sem receios, nem traumas. Sam, então, pode recordar o seu “eu” apagado, e toda a pureza, a garra e o ânimo que, durante um curtíssimo período, existiram, aos poucos, ressurgem. Mas as sombras ainda permanecem nos lugares conquistados por elas. Porém, agora, precisarão espremer-se em um canto apertado, enquanto os seus percussores retornam aos seus devidos lugares. A mágoa, a tristeza, a frustração, o rancor, a solidão, o ódio e a desesperança não foram embora, e nunca irão, mas deixarão de serem as únicas a falar. Deixarão de serem as únicas a guiar.
Em um alívio tremendo, como jamais pensou em sentir, Sam pode olhar para o céu e, com um olhar incrédulo, expor todo o fedor que inunda o seu interior. E o seu coração, com batidas vibrantes, bombeia, em um ritmo constante, o seu sangue, lembrando-o que, sim, ele pode ser um vencedor.
A sua respiração está mais acelerada. As gotas úmidas, que saem dos seus olhos verdes, atingem o chão encharcado. E as nuvens, catatônicas pela reação poderosa do pequeno ser insignificante, concordam que o melhor é retornarem ao trabalho.
Durante alguns minutos, Sam, ainda olhando para o céu horripilante, fica parado, sendo atingido por uma forte muralha d’água. E em meio a esse êxtase literário, ele vê uma minúscula formiga carregando um pífio grão, com os seus frágeis braços. O miserável inseto, preso em sua vida limitada, luta para ar as agressivas gotas d’água que caem do alto consagrado.
Sam abre um sorriso harmonioso. Abaixa-se e com jeitinho ajuda o pequeno invertebrado. Ele a livra do inferno molhado, deixando-a embaixo do comprido telhado da sua cabana. E antes de entrar, Sam confirma, em uma conversa com a sua existência, que a sua vida ainda será conflituosa, será questionada, mas que, agora, ele pode ver um reles fio de esperança, por mais que seja fraca. E mais do que tudo, poderá voltar a tocar, a sentir, a segurar, o mundo novo que a Amy despertou em si.
CAPITULO 17
Já é quase meio-dia, Sam deixou a formiga em paz, e mais: viu que estava com fome — ficou surpreso com isso. Nessa semana, ele quase não comeu, já que o apetite não fez questão de aparecer.
Sam entra na cabana, saindo da chuva, troca de roupa e prepara uma refeição rápida: um sanduíche de presunto com mussarela. Abocanha com ferocidade e, após quatro mordidas, percebe que a fome não foi embora. Monta outro sanduíche, com uma refrescante bebida ao lado, acabando com tudo em segundos. Com a barriga forrada, vai para a sala.
Apesar do esforço, Sam, agora, quer evitar todos os pensamentos desgastados, pensamentos que o fizeram ser uma pessoa quebrada. Está exausto de ser escravo deles. Nesse momento, a única coisa que quer é satisfazer o desejo repentino que o brotou: ficar deitado no sofá, na sala, em frente à lareira, lendo um livro.
Após concluir a leitura, outra vontade forasteira surge: Sam decide dar uma volta pelo bairro. Veste-se apropriadamente e quando vai colocar o primeiro pé, que seria atingido pela chuva, às nuvens decidem cessar fogo.
Ele sai, sem destino, e sem pressa para ir e voltar.
Em seu eio não planejado, Sam pôde visitar algumas peculiaridades que
pertencem ao bairro. Uma caminhonete velha já sem ninguém para cuidar, mas onde vários gatos dormem. Também conheceu um cachorro de três pernas, que não parava de latir, e que girava e corria pelo quintal de uma casa, próximo a uma esquina. Sam achou engraçado o animal rodopiando. A dona o viu e puxou conversa. Era uma mulher na casa dos cinquenta anos de idade, com compridos cabelos castanho-claros. Sem reconhecê-lo, perguntou assuntos irrelevantes e cotidianos. A conversa foi curta, mas fez Sam sentir-se bem.
Já ou trinta minutos desde que ele saiu. As nuvens estão impacientes, arrependidas por terem parado de trabalhar e cansadas de terem que segurar suas artilharias. Os trovões, graves e robustos, fazem jus ao clima zangado. Os relâmpagos, brancos e luminosos, que podem clarear o mais profundo calabouço, revoltados. E os raios que atingem o solo, apesar de ser um evento que causa fascínio, mas também medo, insultados. Porém, Sam não demonstra preocupação. Apesar de serem aflições diferentes, os temores da natureza externa não o assustam como as internas. Para ele, se um raio cair na sua cabeça, será uma brincadeira, daquelas perigosas que os pais pedem aos filhos para serem evitadas.
Após muito caminhar, Sam decide que é hora de retornar.
Ao chegar, entra na cabana e segue para o quarto — ele quer dormir um pouco. Assim que começa a desligar-se, os seus olhos se acomodam e lentamente, como se quisessem ficar mais um pouco abertos, fecham-se. Sam dorme. O seu corpo não está cansado, mas a sua mente, que começou a se renovar, precisa adaptar-se à nova realidade. Até às dezoito horas ele ficou na cama, e novamente não sonhou. A sua mente quis deixá-lo quieto, observando-o no subconsciente da sua alma, como o afago carinhoso de uma namorada. Sem ser pentelha, como uma criança que inferniza os pais para ganhar o brinquedo desejado, soube tratá-lo com cuidado.
Assim que acorda, Sam vai tomar um banho quente e jantar. Depois, assiste a um
filme velho. Lê mais um pouco e, antes de dormir (de novo), decide ligar para o seu verdadeiro lar. Tem a sorte de ser recebido pela voz da Katarina. A gentil cozinheira fica aliviada ao ouvir a voz dele. Sam pede desculpas por não ter atendido a ligação — sabia que era ela (ou Bobby). Katarina não se incomoda em ter sido ignorada. Está contente por saber que ele ainda consegue se comunicar com ela, com alguém.
Sam pergunta se os pais dele ligaram, e quando Katarina fala que não, ele percebe que as pontadas, que tanto o machucam, continuam espetando o seu coração.
Katarina pergunta se ele voltará logo à mansão, mas Sam responde que não. Ele ainda precisa da quietude da cabana para tentar apaziguar as suas feridas, incluindo a sua mão. Ele tenta acalmá-la, dizendo que, em breve, voltará a ficar ao lado dela, e ajudá-la na cozinha. É possível ouvi-la chorar do outro lado da cidade. Sentindo-se amado, Sam pede desculpas, uma vez mais, e se despede com um gentil: boa noite.
Na cama, Sam, enquanto aguarda o sono revisitá-lo, pensa que será melhor evitar presencialmente a Amy por um tempo. Primeiramente, não quer que ela veja a sua mão em tal estado. E, principalmente, precisa organizar melhor as suas ideias: as perturbadas e as apaixonadas. Fica chateado por ter que aderir a essa situação, mas sabe que é a melhor opção para ambos os lados.
• • •
Alguns dias depois, ainda longe da mansão, Sam segue trabalhando a sua conduta renovada. O trabalho é árduo, detalhista. O colégio continua sendo uma ajuda necessária, assim como os livros. Ele também voltou a conversar com o velho Bobby, prometendo que logo estaria com ele, andando em seu carro.
• • •
Sábado à tarde. Após mais de três semanas fora, e com a sua mão sem doer mais, Sam retorna ao hospital para uma última avaliação.
Chronos remove o gesso e faz uma nova radiografia — constatando que a fratura já não está mais presente. Depois, segura a mão contundida e pede ao Sam para fazer alguns movimentos específicos — eles são executados com excelência. Pergunta se dói e Sam responde que não. Com a avaliação concluída, Chronos decide deixá-lo ir, dizendo a ele para não se preocupar em forçá-la, pois não há mais nenhum risco de voltar a lesioná-la.
— Desde que você não quebre mais nada — Chronos, fazendo piada, diz.
Sam, meio sem graça, agradece com um obrigado; também dá um forte aperto de mão, testando-a. Chronos acha ousada essa atitude e abre um sorriso debochado.
Ao chegar à cabana, Sam se vê esgotado de ficar enfurnado nesse lugar. Arruma as suas coisas, despede-se do seu Impala e decide que é a hora de voltar.
Bobby, assim que chega, é recebido por uma figura mais serena. Os seus olhos, desgastados pelo tempo, brilham ao ver um semblante menos poluído. E Sam, ao vê-lo, caminha com uma feição amadurecida.
Curioso, Bobby quer saber por que ele decidiu não voltar dirigindo. Sam não
responde, mas pede para parar em alguns lugares. Então, seguem até uma pizzaria e uma enorme massa escorrida, coberta de calabresa e mussarela, é pedida. Mais adiante, a livraria — eles ficam um tempo considerável. Cinco romances são escolhidos por Sam; Bobby pega dois dramas de época. Na sorveteria, além de comer um pouco, também compra um pote enorme de sabor morango, e duas brilhosas casquinhas.
Já é de noite. Conforme se aproxima do lugar em que cresceu, e que tantas recordações recebeu, Sam não deixa de notar a iminente resposta que o seu corpo dá. Ainda é aflitivo, mas de outro jeito, como se tentasse segurar o vento com as suas mãos. Uma mistura desconhecida o toma, mas imagina ser a sua nova forma de lidar com os seus fantasmas. Sim, retornar ao seu lar o faria lembrar, automaticamente, do por que ter se refugiado naquele lugar.
As nuvens estão grandiosas, prontas para atacarem sem um aviso prévio.
Sam, ao descer do carro, sente o seu coração pular igual a um grilo lunático. O seu peito se estende e os seus pulmões o lembram de respirar.
Ele segura, em seu antebraço esquerdo, uma sacola esgarçada devido ao peso dos assustadores manuscritos; e a pizza, encaixotada em uma embalagem que proíbe a gordura de escapar, em sua mão esquerda. O pote de sorvete o atrapalha em comer a casquinha, ambas em sua mão direita. Bobby oferece ajuda, mas Sam recusa, dizendo que pode se virar com tudo. Está sendo uma aventura para ele, pois mal se lembra da última vez que fez isso. Os sorvetes, a pizza e os livros, como emoções distribuídas em coisas simples, e que precisam reencontrar o seu antigo amigo, propõem algo que a sua existência já não mais conhecia.
Assim que as magníficas portas de lignum vitae são abertas por Bobby, o primeiro pé do Sam a pisar e tocar o chão revestido com as madeiras purple
heart é o direito. A sala é iluminada pela ilustre presença de um lustre no formato de um cogumelo de ponta cabeça em chamas, despencando como mechas de uma cachoeira. Os quadros famosos, e tão diversos, aventuram-se pelo cômodo. Desde primores da arte impressionista, até obscenidades exuberantes da renascentista. Sam caminha tão humilde, tão normal, que faz as obras se revoltarem por não serem reverenciadas como Deus em seu altar celestial.
Enquanto Bobby tranca a porta, uma sombra mais adiante vira um dos corredores, aumentando sua dimensão. Sam reconhece. É uma silhueta familiar. Katarina não consegue esconder os dentes na boca. A felicidade de poder rever o seu patrão atravessa as angústias escassas que, medrosamente, apertam-se nos espaços que restam em seu coração.
Sam, já tendo finalizado a sua casquinha de flocos, repousa os demais itens em uma poltrona rebuscada, toda de couro, e se dirige para receber um abraço. Katarina desliza as suas mãos, tão acalentadoras, pelo rosto do rapaz. Ele a retribui com palavras gentis, que se entrelaçam com mais desculpas desnecessárias.
Katarina o arrasta até a cozinha, fazendo-o deixar para trás a sua tão aguardada pizza. Mas enquanto come uma porção de batatas fritas, a sua pizza é resgatada. E a mistura pesada e, para os mais frágeis, nojenta, com uma alta dose de calorias, soa como um beijo dos anjos. Sam come tudo com o mais honesto desejo. É uma pequena recompensa pelos vários anos de inércia.
Após a refeição, Sam retornou ao seu quarto.
Agora, pensa em dar atenção a algo que, durante todo esse período de reabilitação, ficou afastado: Amy. Faz quase um mês que ele não a vê. De fato, planejou assim, como um recurso para, antes, lidar com as próprias
assombrações. Porém, agora, mais equilibrado, com os dois pés juntos, pisando de maneira apropriada, sem afundar, nem escorregar, a sua atenção total será para ela. É hora de revê-la.
A luz esbranquiçada, difusa, em meio à cascata d’água que as nuvens expelem, flutua sobre o seu corpo repousado. Os seus olhos de jade estão perdidos no cheiro silvestre que entra pela janela escancarada. Sam quer expressar logo os seus sentimentos (bons). Não acredita que ela ficará magoada, nem emburrada, por não terem conversado durante um mês. Lembrando que os “encontros” de ambos foram totalmente bagunçados, sem uma conversa de verdade. Apenas dois estranhos que nunca se viram, correndo para longe, sem uma explicação sensata.
Sam, assim, decide quando tentará se abrir à Amy, e revelar o seu coração para a bela ruiva sardenta. Apesar do nervosismo vindouro, junto a essa decisão, a coragem (desconhecida) é mais forte, colocando-se a frente de uma possível refutação. A vergonha também não é um problema, pois não é acometido por essa trava inoportuna. Então, ele aguardará até o fim da última aula para falar com ela. Não pretende chamá-la a sua mansão luxuosa, muito menos arrastá-la até um canto qualquer. Sendo um jovem respeitoso, que prima pelas convenções tradicionais de cortejo, irá convidá-la para ir a um lugar especial, para que possam ser memoráveis as lembranças que guardarão. Talvez em um campo aberto, com um sol morno, quem sabe alaranjado. O vento não tão forte, nem gelado, para não bagunçar os cabelos, não arrepiar as peles, nem levantar as saias. Por fim, com ambos olhando-se apaixonados e selando o amor impaciente com um longo beijo, após um aconchegante abraço. A sua intenção é audaciosa, porém com as chuvas torrenciais que assolam Agonia, o céu cinza-fúnebre, e o frio cortante, é difícil acreditar nessa fantasia e achar que ela será verdade.
Sam ri, olhando para o teto envernizado. Igual a um bom adolescente, apesar de que, às vezes, soa mais como um adulto, irá pegar nas mãos dela, olhar bem no fundo dos olhos dourados e declarar o seu amor.
— Não! Isso é muito cafona! — ele grita.
Romantismo não é o seu forte — mas está tudo bem. Apesar de sempre ter se forçado a fingir emoções e sentimentos contrários, ele tem uma capacidade inata de se abrir com as pessoas — mesmo sempre tendo evitado. Se bem que traduzir essa qualidade em poesia, e rosas, é outra questão. Então, como será que vai ser?
Em pé, enquanto ensaia movimentos e frases de efeito, o seu como, facilmente, associa-se com a de um robô com graves defeitos, todo duro e quadrado. Contudo, mesmo diante dessa pantomima pitoresca, Sam dá algumas (raras) risadas. E mesmo sendo algo simplório, sem grande complexidade, ter encontrado um novo obstáculo — bom, dessa vez — a ser superado, fazendo-o ficar longe das tempestades que o pairam, é um sopro reconfortante de fim de tarde.
Sam repara, ao se olhar no espelho, que faz muito tempo que não dá a devida atenção ao reflexo que refletia com desprezo. A sua jovialidade, lentamente, retornou, trazendo um pouco de cor. A morbidez do seu olhar, vagarosamente, vai ficando para trás, bem longe, afastada. Já a sua postura ereta, que lhe dá um ar cavalheiresco, apareceu com tudo. Sim, são diferenças sutis, mas perceptíveis àqueles que o viram se afundar em um mar de cadáveres. E Sam, encarando a imagem duplicada, fica imerso em águas profundas, apenas contemplando o que ele já não era mais. E na tentativa de segurar um pequeno sorriso independente, que escapa por meio dos seus lindos e brancos dentes, não deixa de ver uma satisfação estampada em sua face. Conversando consigo mesmo em três vertentes distintas, busca saber como eles chegaram até ali. Várias escolhas erradas, com algumas pouquíssimas certas tomadas. A maior parte foi terrível, por isso, ele, se pudesse, nunca as teria vivido. O dia inteiro, de todas as semanas, de todos os meses, durante vários anos, Sam viveu um pesadelo demoníaco.
Ao encostar a sua mão direita sobre a mesma, um sentimento desconhecido,
misterioso, vem-lhe. Agora, nem mesmo as sombras que ainda o acompanham serão fortes suficientes para fazê-lo tombar. Contudo, a partir desse momento, a sua batalha não será mais com as trevas sufocantes que se entalam em seu corpo. Mas, sim, com a sua própria incapacidade de romper o contrato firmado por seus pais. Essa será a libertação que o fará, de uma vez por todas, ter o controle da sua vida. Não será uma decisão fácil. Haverá confronto, vozes altas e negação absoluta. Bem, mas de qualquer forma, Sam irá travá-la.
Sam volta à cama, sabendo bem quais serão os próximos os a serem dados. Acreditando que o lado da Amy não trará dificuldades, decide segui-lo primeiro. E com essa ideia estabelecida, irá abordá-la na próxima sexta-feira, após o término da última aula. Ainda quer ter mais jeito com as palavras, além de dar mais tempo para sua mão perder o inchaço.
— Sim, este será o meu plano — diz, com os braços debaixo dos travesseiros.
E com o cansaço impondo a sua vontade ao corpo esgotado, Sam, lentamente, desliga-se da realidade. Nessa noite, ele voltará a sonhar. Será um sonho sem nexo, um daqueles com imagens aleatórias, sem uma narrativa elaborada, mas, ainda assim, será algo.
CAPITULO 18
O domingo se vai ansiosamente, igual a parentes que há muito tempo não apareciam: indo embora mais rápido do que chegaram. Porém, os dias seguintes se sucedem vagarosamente, sem nenhuma pressa, como se o mundo fosse uma grande peça, onde todas as extremidades precisam ser encenadas.
O dia faz birra, pois não quer voltar para o quarto antes dos seus irmãos. À tarde é monótona, barriguda. Enche a paciência de todos com a sua vontade estafante e quase nula. Já à noite, com o seu charme ousado, sedução e carisma, brilha bem forte com as suas estrelas amigas. E, por longas horas, derrama o seu véu negro sobre as cabeças nebulosas de Agonia.
Um dia de cada vez, preenchidos por partículas do tempo, traduzidos em segundos, minutos, todos com vinte e quatro horas; todos presos em um uníssono lúdico. O relógio acompanha essa manifestação mítica, imparável e contínua, sem deixar o antes se encontrar com o agora, muito menos cumprimentar o depois. E em todos os dias, Sam fez a mesma rotina. Da casa ao colégio e do colégio à casa. A chuva continuou fazendo o seu trabalho de maneira honesta, mas sempre sendo criticada por não aliviar.
Até que, enfim, a data escolhida chegou.
É sexta-feira. Sam, já saturado do preguiçoso avançar dos dias, está menos ansioso a respeito do que fará. A chuva será a sua aliada e não um estorvo
inapropriado. Até mesmo o frio agressivo já tem a sua função estabelecida. Falta, somente, o fim das aulas — elas tardam a chegar. Igual a um bando de filhos vadios, que não têm a menor intenção de um dia um trabalho arrumarem, ficam prostradas, manhosas, não querendo ir embora, não querendo ir ear.
Porém, com um suspiro de alívio, o fim do dia vem.
Querendo ser discreto e verdadeiro, Sam não se vestiu com roupas elegantes. Manteve as mesmas de sempre, apenas reforçadas por um moletom. Já os seus cabelos insistem em ficar sobre o seu rosto — mas está bom assim, pois dá um charme ainda mais misterioso.
Todos saem e Sam fica até um pouco mais tarde na sala.
Após levantar-se e ar pela porta, um frio acalorado o recebe, preparando-o para o ato que cometerá — nada obsceno.
Sam, enquanto caminha até chegar às escadas, está com sua concentração tão elevada que um cometa pode atingi-lo que não irá distraí-lo. Tanto é que, ao chegar ao térreo do seu bloco, ele não percebe as duas belas jovens que estão sentadas em um banco. Tão desinteressada é sua percepção para fora do cabelo, do sorriso, do corpo, da palavra “Amy”, que não repara nos olhares libidinosos que as duas lançam em sua direção. Muito menos nas bocas alvoroçadas e molhadas que fariam de tudo por ele. Ainda bem que Sam não reparou, pois teria se irritado. Apesar da mudança recente, a raiva por esse tipo de insinuação ainda o enfurece — mas isso ele também perderá com o tempo.
Mais adiante, no elo que une os dois blocos, um garoto baixinho e gorducho
recolhe os livros que alguns bullies derrubaram. O pobre menino é um alvo fácil. O seu cabelo tem um corte no formato de tigela. Os seus óculos, com lentes grossas, aumentam os seus olhos bizarramente, e a sua calça acima da barriga é uma ofensa. Sorte que Sam não o notou, pois teria ficado sensibilizado pela situação difícil do pequenino, ainda mais após o garotinho ter se encolhido todo, imaginando que seria agredido.
Sam, ao chegar à sala e ver que Amy não está, sente uma pontada de autoflagelo surgir em seu corpo. Porém, sem tempo para lamentações, ele corre igual no dia em que o seu amor despertou. Volta pelos degraus, determinado a procurá-la por todo o colégio, em cada canto, em cada parte, em cada fragmento. Para a sua surpresa, não precisa de muito. Sam a vê, próxima da saída do colégio, e o nome dela, então, ele grita:
— Amy!
CAPITULO 19. AMY E SAM
Quatro meses já se aram desde que começaram a namorar. Amy e Sam estão, imensamente, apaixonados. Nem mesmo os seus sonhos mais fervorosos seriam capazes de prever essa fantasia perfeita.
Amy, com o seu carisma mais acentuado, tornou-se uma moleca pairando sobre nuvens de amor. Nem parece uma jovem prestes há completar dezoito anos. Às vezes, é tão infantil que lembra mais uma criança maluca. Mas vale ressaltar que o seu charme e a sua beleza deram um novo o. Agora, ainda mais bonita, irradia por estar saboreando os vermelhos de uma paixão recíproca. E ela exala uma graciosidade tão luminosa que faz com que vários garotos do colégio queiram se aproximar — não fazem ideia de que é uma rua sem saída.
Amy, apesar de ser muito otimista, nunca imaginou que a sua vida fosse dar uma guinada tão forte, após iniciar o namoro. Assim, ela, sem perder tempo, já tem planos ousados. Aliás, praticamente já planejou toda a sua vida, depois que o colégio se tornar uma memória nostálgica, guardada com cuidado, pronta para ser olhada nos momentos mais saudosistas. A universidade é o seu próximo o. E mesmo com alguns dias até prestar o vestibular, nem a impossibilidade financeira de arcar com os estudos, caso não consiga a bolsa integral, amedrontaa. Quanto a isso, Sam, com certeza, poderia pagar — tanto que ofereceu essa proposta, algumas vezes. Mas Amy, apesar de ser delicada igual a uma fragrância adocicada, não aceitou a oferta, pois quer conseguir por méritos próprios, com as próprias pernas e com as próprias mãos. Bem, e após a graduação, quer se casar e ter a sua própria família. Por fim, abrir o próprio negócio.
Amy ainda continua com noventa por cento da mesma rotina que tinha. As velhas leituras permanecem firmes, sem desculpas para largá-las — mesmo aproveitando o tempo em casal, à necessidade literária a chama. Porém, agora, há algumas novidades. Uma delas ocorreu em seu trabalho/aula que faz em casa. De confeiteira auxiliar, sob a supervisão de um chefe perfeccionista, agora se responsabiliza por firmar trabalhos e finalizá-los sozinha. A sua credibilidade dá respaldo, assim como o fato de ser a filha de uma exímia confeiteira bem conceituada. Ainda estuda o que julga ser necessário — mesmo não precisando mais. Anda sob a chuva e mais alguns afins costumeiros.
Por fim, outra singela e coincidente coisinha foi descoberta.
Mais um presente agradável que o namoro proporcionou foi saber que faz aniversário um dia antes do seu futuro marido. Amy ficou empolgada, apesar de ser mais velha — não que ela se importe com isso. Podem comemorar os seus aniversários, e a agem para a vida adulta, juntos, unidos, um casal. E para isso, ambos estão celebrando essa ocasião especial na mansão. Está sendo uma festa humilde, sem as extravagâncias que o dinheiro do Sam, se quisesse, poderia comprar.
Simpática como é, Amy se enturma com todos. Desde os empregados mais distantes, receosos com tanta intimidade do seu patrão, até os mais amigáveis, que a veem como uma extrovertida garota doida. Todos são alvos do seu sorriso. Ela também brinca com as suas amigas, Natally e Chris. As duas, por sinal, estão contentes por serem próximas da namorada do famoso Sam. Fofocam a respeito das possibilidades que poderão abocanhar. Porém, Amy dá logo um jeito nisso: diz que elas não terão vida fácil.
Entretanto, na mansão, ainda falta algo. Duas peças perdidas, duas almas perfeitas. O amor não é uma dúvida a ser debatido, mas para alguém isso não é incluído. Amy sabe da história, pois ouviu tudo, atentamente. Pôde ver, nitidamente, a tristeza nas palavras que Sam expelia. Assim, obviamente, sentiu-
as como se estivesse no lugar dele. E apesar do Sam dizer que o aperto já era bem mais leve, ele não está completamente livre, e nunca estará. Esse tipo de ferimento é o mais difícil de ser curado, até mesmo impossível. Por isso o pedido que ele fez a ela para não se preocupar foi facilmente ignorado.
Mas também há coisas boas para ele.
Sam pôde mudar um pouco e, pelo simples fato de estar ao lado de uma garota tão incrível, e que demonstra os seus sentimentos e emoções à luz do dia, conseguiu adquirir uma tímida segurança amiga e um acanhado conforto afável; e até o seu humor foi beneficiado. Para ele, ficar com ela é uma terapia progressiva, levando-o a uma sanidade que jamais havia experimentado. Com Amy, Sam pode mostrar tudo, tudo o que há enterrado em seu coração. Pode retirar um lodo submerso, alojado na mais tempestuosa areia movediça, e cuspir para fora, como um ato desesperado de salvação.
Sam já não lembra mais o distópico garoto que vagava pela vida sem disposição, já que ter ficado de cara limpa, após anos infinitos, pôde fazê-lo lidar melhor com a própria existência, retirando uma tonelada de si. E como curiosidade, disse à Amy a respeito do taxista aleatório que o permitiu sair da masmorra em que estava trancado. Também falou a respeito da ínfima formiga que pôde mostrar-lhe algo.
No colégio, Sam também já não sente mais nada pelas garotas assanhadas que tanto o incomodam. Isso é consequência da influência da Amy, que faz piada com todas as coisas ruins (e boas) possíveis. E uma peculiaridade que Sam agora tem é a de ficar irando o silêncio que existe na vida. Tentando imitar a sua amada, e o seu gosto por se banhar embaixo da chuva, ele encontrou algo similar. Para isso, lembrou-se do pequeno interesse que pensou demonstrar para a quietude que emergia da floresta sinistra, e que fez jus a sua aura sombria, quando se refugiou na cabana. E após ficar imerso naquela ambientação, em vez de esmagá-lo em seus devaneios atormentados, na verdade o fez refletir. O fez
refletir, pois, ter encarado os mitos e histórias da Floresta Negra, agora, misteriosamente, criou uma sinergia expansiva que o tornou um pouco mais resiliente a tristeza que há em si. Porém, mesmo com essas mudanças, são os momentos com a sua namorada que mais importam. Poder segurar as mãos aveludadas da sua amada, acariciar os seus cabelos de morango, com toques sedosos e delicados, sentir a sua respiração em seu peito e olhar as estrelas nas noites mais negras, além de ser um símbolo da união que ambos compartilham, e que as suas vidas são uma só, faz a sua paixão aumentar em um cristalino rio apaziguado.
Com ela ao seu lado, Sam pensa ser capaz de continuar adiante, mesmo que seja difícil não querer parar; mesmo que ele tenha que enfrentar os próprios pais. Quanto a isso, Amy já deu a sua opinião sobre ele ter que assumir os negócios da família, além de ter que seguir uma carreira igual à deles. Mas ao dizer que estaria tudo bem, que poder tê-lo para o resto da sua vida já seria o suficiente, soou igual a uma maldição para Sam. Pois é tão frustrante, mas tão frustrante não ser capaz de acompanhar os os dela, que a sua postura despenca ladeira abaixo. Não por ego ou arrogância, apenas por que quer ser capaz de decidir o caminho em que andará, e se errar aceitará as consequências, boas ou ruins.
A festa continua animada e, Sam, durante ela, não finge nada. A sua condição é genuína. Estar com pessoas tão maravilhosas, nesse instante, já é o bastante. Com a sua amada, ele aproveita uma noite alegre, com música de taberna e comida caseira. Uma demonstração que poucos, ali, viram: um garoto falatório, dançante e comilão.
Amy, ao vê-lo tão espontâneo, abraça-o. Ela, com um sorriso amoroso, lustroso, cheio de paixão, cheio de amor, o olha com os seus dois sóis dourados, perdidos nas luas de jade. Amy não vê outra pessoa, ela vê a sua metade.
— Tudo bem, Amy? — Sam pergunta, com um doce sorriso.
— Sim... Está tudo perfeito... — Amy responde, dando-o um beijo na boca.
CAPITULO 20
O fim do ano chegou e o tão aguardado momento de deixar a vida escolar para trás também. E Amy está muito feliz. Conseguiu ar no vestibular, em primeiro lugar, e ingressará no curso de gastronomia no ano seguinte. Sam, por outro lado, nas últimas semanas, está muito calado. Mesmo tendo feito o vestibular para medicina, e ado, a sua condição está mais para à noite do que para o dia. E apesar das sombras que o atormentam terem sido expostas à luz, fazendo a sua mente ser reconstruída, pedaço por pedaço, ainda há um erro. Ainda há algo que o corta. O motivo: os seus pais desapareceram. Pouco depois que anunciaram o prolongamento das turnês e filmagens, respectivamente, deram mais algumas notícias. Contudo, faz um pouco mais de um mês que não entram em contato com ninguém da mansão, nem mesmo com Sam. O garoto, obviamente, sente-se abandonado. Não é possível abdicar de algo tão forte, afinal, são os seus pais. Porém, algo que o ajuda é ter a amável Amy segurando a sua mão e afagando o seu coração, dando o e necessário. A menina de olhos cor de ouro tem uma capacidade de expulsar quase todos os ruídos negativos que o acompanham. Mas, mesmo assim, Sam está entrando em ebulição. Não poder ir adiante com as próprias pernas deixou de ser um sentimento intangível. Agora é físico. Por causa disso, ou a sentir dores de estômago e sua cabeça costuma gritar, com as enxaquecas que, do nada, surgem. Tudo isso o está levando a um redemoinho intempestivo.
Na mansão, em seu quarto, após retornarem de um eio, Sam decide adotar a única solução possível. Então, pede à Amy para não perguntar o que ele fará, pois quer superar essa barreira tão resistente sozinho. Amy, em um primeiro momento, imagina que ele tomará uma atitude insana, como um ato de loucura. Logo depois, vê que Sam irá confrontá-los. Ela não fala nada. Fica em seu canto, olhando pelas beiradas.
Sam liga para os assessores, agentes e demais empregados que se esforçam para acompanhar os dois eruditos. Fica surpreso ao saber que ambos estão voltando para sua formatura. Sam (feliz?) conta para Amy, que sorri, mas meio que contendo esse gesto simbólico. Poder finalmente conhecê-los é um desejo curioso. A sua ansiedade precisa ser sanada, já que a magistral Elizabeth Elric Gillian será a sua parente.
• • •
— Meu Deus! — Amy, sozinha, grita em seu quarto, após ter voltado para casa. — Mas será que essas duas pessoas, da qual o Sam fala tão tristemente, são mesmos pais ruins? Será que não é exagero dele? — sem querer ofendê-lo, ela pensa nessas possibilidades, e se não pode ser frescura de um menino rico. — Nem! Que nada! — Amy está certa? Ou errada?
• • •
Os pais do Sam chegaram, poucos dias antes da formatura.
Elizabeth rejuvenesceu uns dez anos. A sua pele está mais radiante, tornou-se de anjos e diamantes. Os cabelos negros, mais lisos do que um chão ensaboado, transparecem a sua aura mágica em toda a plenitude possível. Vestindo um traje vitoriano de condessa, preto e vinho, ela parece ter sido expelida do ado, graças a sua magnitude atemporal. Uma mulher forte e assustadora é o que Amy, não se contendo de entusiasmo, pensa ao vê-la, cara a cara.
Brian deixou os cabelos crescerem. Estão soltos como animais selvagens. A sua pele mais bronzeada e gasta. A conduta autoritária, que sempre quer saber dos
deveres e tarefas, não faz sentido nesse homem com mais de quarenta anos de idade. Por sinal, Amy está abismada ao ver que Sam é igual, exatamente igual, ao pai. Nunca imaginou que vê-lo pessoalmente destacaria inacreditável semelhança. Por isso, Amy, a partir desse dia, deixará de acreditar nas fotografias dos jornais e das revistas; também nas entrevistas por meio de filmagens. É tudo mentira.
Amy, diante dessas duas figuras exóticas, que se destacam de todo mundo e que possuem um império monstruoso, mas que construíram os traumas em seu único filho, não vê o que Sam havia descrito. Pois, com ela, são muito gentis e educados, felicitando-a pela entrada na universidade mais conceituada do estado. Elogiam as suas tortinhas de morango com chocolate, e em nenhum momento demonstram preconceito por ela vir de uma humilde família. Mas Sam já tinha avisado: eles não consideram questões econômicas como métricas necessárias para as suas relações interpessoais.
O casal diz gostar de ver o filho em um relacionamento com uma garota independente e corajosa, e que sabe o próprio caminho. Amy ouve isso e se segura para não rir. Elizabeth, aliás, está hipnotizada pelo charme da sua futura nora. Amy se transformou após iniciar o namoro. Ela já era bonita, porém foi mais além, e deu um salto mágico. As duas conversam de maneira amigável, sem forçar assuntos enrolados. Amy tenta não demonstrar a sua euforia, já que está a centímetros da fantástica pianista. E Elizabeth, feliz por estar sendo paparicada, gosta de ouvir o conhecimento que ela tem a respeito da sua carreira.
Já com Brian, Amy tem menos contato, mas ele também é cordial. Parabeniza os seus dotes culinários, além de felicitá-la pela entrada na família, sendo, agora, uma nova Elric Gillian. Amy gostou de ouvir essas palavras, mas não pretende abrir mão do nome do seu pai, muito menos da mãe.
No fim da pequena confraternização, Amy se despede de ambos, ansiosa para revê-los logo. O casal a abraça, dando-lhe um beijo acolhedor. Ela se enrubesce
com tanta afetuosidade e vai embora flutuando.
• • •
Após esperar alguns dias, inclusive sem ver a Amy, Sam, enfim, decide agir. Ele começa a suar frio. O seu coração, com batidas assustadas, acelera, apenas torcendo para que tudo o que foi plantado por sua amada não seja derrubado ao solo.
Elizabeth e Brian estão conversando, na sala, quando Sam os chama. O casal vai até ele.
— Pai... Mãe...
Assim, Sam faz a sua escolha.
O casal, ao ouvir as palavras do filho, não fica enojado, apenas sentem o que Sam previu: desconsideração. Essa é a palavra escolhida por eles — principalmente por Brian. Nem se atentam ao fato de nunca terem lhe dado atenção. Nem se importam com o desejo dele de seguir na medicina. A fumaça sufocante, e tóxica, ficou no momento em que a “renúncia”, por todo o esforço que sempre fizeram, foi feita. E palavras fortes são cuspidas sem nenhum pudor. Brian não aceita a recusa do filho. Anda, incessantemente, como se procurasse por uma resposta válida para tudo isso. Já Elizabeth sente-se traída. Fica magoada, sem conseguir dizer mais palavras.
Após minutos de muita gritaria, o casal sai da sala. Um silêncio hostil se perpetua por um longo tempo. Os funcionários se escondem, procurando meios de não serem vistos; outros fogem assustados.
Sam, tenso, não conseguiu tirar o peso do seu coração, mas acredita que não foi tão ruim assim. Eles não gostaram — como previu. Ficaram nervosos — como previu. Sentiram-se desvalorizados — como previu. Recusaram-se a abdicar de todo o empenho posto em sua educação — como previu. Porém, Sam não previu, e não teria como, o que a sua escolha causaria.
É fim de tarde, por volta das dezessete e trinta. O céu está recheado por um fino lençol de nuvens negras. Aguardando que eles retornem, Sam espera sentado no sofá, com os braços apoiados nas coxas, sem se aquietar. A sua perna está viva. O seu cérebro delirante. O seu coração claustrofóbico. Os seus pulmões asfixiados. Em uma dança descomada, sensações ruins transformam o seu corpo em um balé bizarro.
Por fim, o momento derradeiro chega.
Ao ouvir sons de os, Sam se endireita, mudando toda a sua postura. Elizabeth entra primeira na sala e para um pouco a frente do caminho que leva até o seu escritório. Brian vem, não muito depois, mais calmo. Caminha até a janela, do lado direito da porta, e olha para o seu jardim bem cuidado. Não está buscando forças para as palavras que serão pronunciadas. Vai até a frente do filho, que o olha com uma tremenda expectativa. Brian o está julgando ser capaz de alguma coisa. Sam não esboça nenhuma reação, apenas vê a sua mãe balançar a cabeça em sinal de desaprovação. Isso faz a sua pele congelar a uma temperatura catastrófica. Ver a pianista movimentando a cabeça em um gesto pessimista, e com os olhos fechados, é um gosto desagradável.
Brian, de repente, ecoa uma voz tão firme e direta que faz Sam ficar, horrivelmente, paralisado. Coração, pulmões, olhos. Nada. Nada mais responde em seu corpo. Dessa vez, as primeiras frases não são de todo mal. Ao contrário. Brian, enfim, reconhece a coragem que o seu filho demonstrou. A busca pelos seus objetivos. Emoções e sentimentos aprisionados. Porém, logo vem à solução final: Sam está expulso. Sem mais delongas, a sua condição é sacramentada. Ir embora. Sumir. Dar adeus. Não voltar mais. Desaparecer.
“Como assim expulso?!”, ele pensa, sem entender. Sem acreditar em seu pai, Sam dá uma risada desconfortável como resposta, mas, diante da seriedade no semblante do cineasta, vê que é verdade. De tudo o que era possível de acontecer, e que a sua mente aguçada pensou, essa solução jamais ou por sua cabeça.
Elizabeth continua lamentando. A sua negação não é direcionada para o que Brian falou, mas para o próprio filho. Já Brian, com ímpeto nos olhos, volta a olhar para o jardim. Em sua consciência nenhuma titubeação o perturba. Convicto de uma certeza absoluta, não tem dúvidas da decisão que tomou.
Os olhos do Sam se tornam dois mananciais, transbordando volumosas proporções aquíferas, como se tivessem sido enchidas por uma forte chuva. Contudo, o rapaz não desmorona, além de não procurar maneiras de persuadi-los para que voltem atrás. Não por achar inútil ou humilhante, mas, sim, por enxergar claramente, tão insipidamente quanto uma nascente preenchida por águas transparentes, que não há alternativa. Para seguir em frente essa é a única saída, a única escolha. Pobre Sam. De tudo o que era possível, não era isso o que ele queria. Ama os seus pais, apesar de tudo o que não ou com eles. Os aniversários que eles nunca estiveram. As lições de casa que eles nunca ajudaram. As voltas no parque que eles nunca fizeram. Os eios que eles nunca guiaram. De agora em diante, as poucas vezes, íveis de serem contadas nos dedos de uma única mão, que aram momentos juntos terão que ser o bastante. E lembranças escassas, tão frágeis e amedrontadas, como pequenos filhotes deixados por seus protetores, precisarão ser protegidas com
cuidado e delicadeza, pois qualquer movimento brusco e hostilizado irão dispersá-las, igual fumaça que é agredida por uma forte rajada de vento. E Sam tem esse lampejo em meio à tempestade que a sua cabeça enfrenta, graças a uma luz forte que permanece tranquila e serena entre as trevas que voltam a tomá-lo.
Novamente uma risada, só que agora, aliviada e dantesca, é a sua resposta. Uma mistura tão desconhecida que Elizabeth e Brian são incapazes de entendê-la. É a liberdade abraçando a solidão do Sam. Ele está livre, afinal. Não da maneira querida, mas é o que sempre sonhou. Então, Sam levanta-se, querendo acreditar que é tudo um sonho. Mas não é. É a mais pura realidade, o mais puro pesadelo. Ele segue em direção ao seu quarto, enxugando as lágrimas com a mão anteriormente fraturada. Antes, porém, atrás da porta, coberto por sombras, vê os dois pela última vez.
Elizabeth se aproxima do marido, concedendo-lhe um abraço por trás. Apoia a cabeça nas largas costas do cineasta e fecha os olhos. A sua plácida voz começa a cantarolar uma doce melodia. Brian pega nas mãos brilhantes da esposa, que envolvem sua cintura, e as aperta com delicadeza. Ambos, parados, apreciando a confortável voz da Elizabeth, enquanto o resto do dia ainda precisa ser enfrentado.
Katarina é a primeira a surgir nesse cenário pós-guerra. Vai procurar por seu jovem amigo, encontrando-o no quarto. Sam segura uma fotografia, onde a sua mãe, o seu pai, e si mesmo, sorriem. Em pé, a figura esguia do garoto treme tanto que Katarina pensa que ele foi agredido.
Com suavidade nos pés, aproxima-se e pergunta o que aconteceu. Sam, forçando as lágrimas a ficarem dentro dos seus olhos, não a responde e apenas expõe um sofrido sorriso. Ele a beija na testa e sai. Katarina, sem entender nada, vai correndo até o Bobby para contar sobre a cena maldita que a família impôs em um desprezível fim de tarde.
Antes de sair da mansão, Sam ligou para Amy, dizendo para encontrá-lo no parque que costumam ir.
Sam, enquanto aguarda sentado em um banco descolorido, com as mãos na cabeça, olhando para baixo, afoga-se em uma tristeza brutal, uma profundidade obscena, à espera de alguma ideia para ajudá-lo. Mas não adianta mais, pois já está sacramentado. É um caminho sem volta.
As pessoas que transitam pela pacífica paisagem não lhe dão atenção. Cada uma está presa dentro do seu próprio mundo. E assim deve ser, pois a vida é uma droga para todos.
À noite está com pressa, tanto que já escureceu. Mais ninguém circula pelo parque. A voz que Amy ouviu no telefone a apavorou. Uma dor parecida com a da perda do seu pai a atingiu com um impacto desproporcional. Isso que a faz ir correndo até o Sam. Coitada, a sua casa é muito afastada, e, mesmo assim, corre até ele.
Após algum tempo, ela chega, consternada e toda suada, com medo do que possa ter ocorrido. Ela é tão boa que, se pudesse, retiraria um pouco da própria luz e daria ao namorado.
Sam, com uma feição horripilante, olha-a. Não consegue segurar a dor como gostaria de ser capaz. E enquanto Amy, em pé, à frente, pergunta o que houve, ele se levanta e a abraça com a pouca força que a sua tristeza permite. Ele a coloca em seu corpo para poder sentir o calor, o afeto e o carinho que ela sente por si.
O choro é copioso, abundante. Sam não fala nada por longos minutos. Continua abraçando-a, agarrado no corpo que por ele transborda tanto amor. Amy o retribui como era de se esperar: acalmando-o com a sua voz amorosa, cheia de ternura. Aos poucos, vai fazendo-o recuperar um estado mais equilibrado. Sentam-se no banco. Sam começa a falar.
Amy consegue evitar a própria choradeira, após ouvir a decisão que os pais dele tomaram, mas não uma desconhecida raiva em seu peito. Achou a decisão um absurdo.
Ela o pega pelo braço, levando-o até o táxi que chamou. Seguem até sua casa. Assim que chegam, Esmeralda o recebe como se fosse um filho, e Sam retribui tentando demonstrar todo o seu carinho.
Esmeralda, após ouvir a história, pensa em ir falar com os pais dele, mas Amy a impede. Com um gesto triste, e um encarar murcho com os olhos, diz a sua mãe que será inútil. Com isso, a experiente confeiteira decide proferir palavras de compaixão. Ela oferece a sua moradia a ele, dizendo que pode ficar o tempo que for preciso. Em um esforço titânico, Sam a agradece com um fraco suspiro.
• • •
Após alguns dias, Sam continua enfurnado na casa da família Rose Heart, sem ter saído uma única vez. Por já ter finalizado as suas disciplinas, todas com louvor, não tem sido um problema omitir-se das aulas restantes. Porém, ele não gosta de ser um incômodo, um vadio que fica perambulando sem rumo. Por isso, Sam vem lutando para esconder o clima pesado que a sua aura trouxe, além de ajudar em algumas tarefas domésticas. Mas cansada disso, Amy decide tomar as
rédeas da situação. Ela liga e consegue convencer Elizabeth a recebê-la. Contrariando-se, irá à mansão dos Elric Gillian para ouvir quais serão os próximos os que os gênios tomarão.
Amy, ao chegar, consegue falar com Bobby e Katarina. Ambos não são mais os mesmos. Ela presencia os seus semblantes tristonhos e cansados, que antes não apareciam, mas que, agora, fazem jus as suas idades. Perguntam esperançosos se Sam está com ela. Amy mente, dizendo que não, e que apenas sabe onde ele está. Ao ouvir tais palavras, os dois pedem para que ela fale, mas, por vontade do Sam, Amy prometeu que não diria onde ele se encontra, mesmo sendo completamente contrária.
— Perdoem-me... — Amy, sentindo-se desconfortável, e culpada, diz.
Já Bobby e Katarina, se estivessem em suas condições verdadeiras, reais, provavelmente teriam insistido, mas, após tudo o que aconteceu, já nem se esforçam mais. Esses dois personagens, que tanto ajudaram Sam, sofreram um baque tão poderoso que precisarão encontrar novos lugares em suas vidas.
Amy ainda conversa com outros empregados, mas eles não fazem tanto drama. Alguns poucos demonstram preocupação. Outros querem saber mais sobre o Sam em caráter de fofoca. Porém, nada se compara com o estado da cozinheira e do motorista. Eles sim pedem para que algum milagre caia do céu, até mesmo Bobby que é ateu.
Amy segue para se encontrar com Elizabeth. A pianista a aguarda em uma sala exuberante, com um piano Bösendorfer exibindo-se no centro do cômodo. É o local em que ela se torna uma divindade. Elizabeth, aliás, está tocando, e Amy, conforme sobe as escadas, começa a entrar em um transe impossível de se escapar. As notas tristes que dançam pela mansão quase fazem a garota de
cabelos ardentes perder a respiração, e, talvez, até chorar. Amy está chateada por toda a situação em que foi envolvida, mas não sente mais a necessidade de derramar as suas preciosas lágrimas. Mesmo assim, fica arrepiada ao ver o poder que Elizabeth tem nas mãos.
Amy chega e Elizabeth, ao vê-la, para de acariciar as teclas do piano. Levanta-se e demonstra o seu contentamento pela estonteante garota. Zelosa, com necessidade de contato físico, como nunca foi, abraça a jovem ruiva. Amy não deixa de reparar nessas mudanças que, segundo Sam, não existiam. Juntas seguem até o quarto do casal.
— Então, Amy. Como têm sido os seus dias? Confeitando bastante?
— “Confeitando?” (ninguém nunca falou isso). Sim! Estou... confeitando bastante! As pessoas de Agonia... gostam muito... de doces! As encomendas... não param! — Amy, toda truncada, busca respondê-la.
— Que bom. Fico feliz por você — Elizabeth dá um estranho sorriso.
Amy está apreensiva por invadir a privacidade da Elizabeth, que diz estar tudo bem. A jovem também não deixa de notar os olhares perplexos dos empregados, que não entendem o que está acontecendo — Amy se vê igual a eles.
Sentada na cama, com as pernas coladas e as mãos no colo, Amy vê Elizabeth mexer nas peças de roupa e dizer que precisa refazer sua coleção de vestimentas.
— Irei a uma festa, mais tarde, na casa de um conceituado maestro — Amy, avulsa, não a responde, quer ir logo ao assunto, pois essa introdução barata só a incomoda; e Elizabeth nota isso. A própria pianista evidencia essa sensação no corpo da jovem. Amy, ruborizada, prefere assentir tal verdade. Elizabeth se desculpa, alegando que era para Brian estar ali, e que imaginou que falando a respeito de assuntos mais brandos poderia esperar o tempo necessário até ele chegar. Amy torce os lábios por não ter sido avisada que Brian também participaria da conversa. Elizabeth, novamente, pede desculpas por não tê-la comunicado. Amy não reconhece mais a mulher que está diante dos seus olhos dourados. Apesar de tê-la visto uma única vez, sabe que isso não é a Elizabeth.
Amy acaba aceitando a sugestão que foi oferecida. Levanta-se e vai opinar a respeito das roupas. Ela fica abismada com a qualidade das peças e os nomes das marcas. Quase vomita ao ver o valor etiquetado em uma saia. Acha melhor tomar cuidado para não estragar, de alguma maneira, todo o arsenal da pianista, pois deve custar mais do que a sua casa — vezes mil. Elizabeth a tranquiliza, dizendo para não se preocupar, e que, inclusive, quer presenteá-la com algumas peças. Amy quer negar a oferta, já que voltar munida de vestimentas dadas por sua sogra, a mesma que expulsou o único filho, não soa uma boa ideia. Antes, porém, pergunta por que Elizabeth não presenteia as amigas, ou algumas empregadas, ou parentes (se é que ela tem). Elizabeth responde dizendo não ter amizades, nem familiares. Apesar de conhecer um exército de pessoas, todas espalhadas pelos quatro cantos do mundo, diz não ter nenhum amigo de verdade. Que tem dificuldades em confiar nas pessoas, pois estão mais preocupadas em aproximar-se dela para conseguirem algum benefício, qualquer um que seja. Amy, instantaneamente, reconhece essa lamentação — não lhe é algo novo. Sam contou a mesma coisa. Ambas, então, ficam encarando-se, e quando Amy vai expor algumas verdades, Brian chega. Elizabeth se apronta e a conduz até ele.
Brian está sério, com uma expressão dura, mas o seu comportamento com os empregados continua o mesmo. Amy gosta dessa característica dele. Não é um babaca arrogante com os funcionários, apenas com o filho. Esse pensamento que salta é um sinal de que terá que fazer um esforço para não ofendê-lo.
Brian a cumprimenta e Amy acredita que haverá uma explicação — mas isso não acontece. Ele apenas se prontifica em mostrar onde os pertences do Sam estão — já tudo embalado com o devido cuidado. Para Amy isso é muito ofensivo. A extraordinária confeiteira engole a seco para não despejar boas verdades na face fria dele. Então, resume-se a aceitar essa situação bizarra. Porém, antes de partir, faz uma pergunta.
— Até quando isso irá durar?
A resposta que recebe de ambas as bocas faz o seu coração acelerar igual a um personagem de história em quadrinhos. A percepção que Amy tem pelo casal, tão abençoados pelos seus dons profissionais, mas tão complicados na relação familiar, é incompleta. Não há padrão, nem lógica. São gentis com os empregados e com ela, mas com Sam, com o próprio filho, não.
— Por quê? Por que isso? — Amy os indaga. O silêncio é a resposta oferecida. Amy, que pensou em questioná-los com mais veemência, perde qualquer capacidade cognitiva que a permita interrogá-los. E desconfortável com a postura dos dois, recusa-se em ser levada por um dos motoristas da família.
Ela chama um táxi e já fora da mansão, e antes de partir, diz uma última coisa.
— Espero que um dia vocês possam se ver novamente. Uma família não deveria ser isso, ser assim. Vocês e o Sam... sei que se amam. Eu posso ver. Mas há algo de errado com vocês dois. E espero que possam consertar isso — dá uma pausa, fecha os olhos e os abre, lentamente. — Enfim, obrigada por tudo.
— “Obrigada por tudo?”. Não te demos nada, Amy — Elizabeth a responde, sem
entender o que ela quis dizer. Amy abre um sorriso, atingindo-os em cheio.
— Ao contrário. Vocês me deram tudo, sim. Porém, são incapazes de vê-lo. Mas não se preocupem, pois eu cuidarei dele pelo resto da minha vida — o vento sopra os seus cabelos, lançando-os sobre os dois sóis presos em seu belo rosto. — A propósito, não direi adeus, apenas um tchau — Elizabeth e Brian ficam estáticos. — Acredito que ainda nos veremos e que isso tudo poderá ser ajustado — Amy entra no táxi e parte, sem olhar para trás.
Brian nunca mais a verá. Quanto a Elizabeth, bem, quem sabe.
CAPITULO 21. MEMÓRIAS
Saio correndo do hospício o mais depressa possível. Volto pelos corredores infinitos, sem prestar atenção por qual caminho eu sigo.
— Merda! — pensei que eu já estivesse curada destas tristes lembranças desamparadas. — Arf, arf, arf, arf, arf... Como pude deixar isso acontecer?!
Chego à saída.
Estou ofegante, trêmula. Pareço um animal prestes a ser abatido.
Com um empurrão, sem pedir ajuda ao segurança gordo, abro a porta, escancarando-a. Sigo para fora, como uma rajada de vento que vadia entre as árvores. Aproximo-me da rua e apoio em uma mureta, a fim de recuperar o meu fôlego falho. As pessoas que am por mim me olham assustadas. Talvez imaginem que eu possa ter fugido do hospício; outras fazem pouco caso. Tanto faz. Eu só preciso sumir deste lugar.
Ainda estou tonta, nauseada. Preciso descansar um pouco. Na lateral de um carro estacionado, vejo a minha aparência. Minha pele está enjoativa, cor de vômito. Vejo um táxi parado em uma esquina e vou à sua direção. O motorista se espanta com a amarelada criatura que se aproxima. Peço a ele para me levar até a minha casa, o mais rápido que puder. Ele parece hesitar, mas quando mostro duas notas de cem, ele liga o carro. Eu entro e ele afunda o pé no acelerador, fazendo o
veículo dar um tranco grosseiro. Partimos.
Já em casa, eu me tranco no quarto. Não paro de tremer. Eu me sinto extenuada, como se tivesse corrido uma maratona durante um dia inteiro. Não abro as janelas.
— Eu preciso... Eu preciso perder a consciência... o mais depressa possível — e para isso eu uso alguns recursos costumeiros. Uma garrafa de uísque, que fica ao lado da cama, espera-me igual a um cachorro que anseia pela chegada do estúpido dono. Eu sei que tomá-lo com tanta velocidade um preço caro me será cobrado, mas não estou nem aí. O quanto antes eu apagar melhor. Também pego alguns comprimidos para dormir. Não sou de tomá-los, mas nesta situação é tudo ou nada.
Não tenho tempo para coisa alguma e uma poça asquerosa é criada pelo líquido escuro que sai da minha boca. Um fedor de bosta invade o quarto, mas como estou sem forças, logo procuro me acostumar com o meu novo companheiro molhado.
Algumas contrações fazem o meu abdômen doer. O meu intestino está atiçado. As minhas tripas estão nervosas. Parece que algo está fodendo com tudo.
Parece que eu vou morrer.
— Ótimo... Arf, arf, arf, arf, arf... — com o corpo largado sobre a cama, aguardo por um sono bem-vindo. — Eu preciso destas porcarias... Destas merdas... São elas que irão me manter como eu deva ser.
CAPITULO 22. PESADELO
O banheiro está todo molhado e a água do chuveiro muito quente. Uma parede de fumaça a impede de enxergar direito. Alguns os cautelosos e então ela percebe: está nua e de frente para um espelho, encarando um reflexo desprezível, uma bactéria insignificante, que devolve o mesmo. Ela é patética. Está abatida e confusa, como se não valesse nada. O seu olhar caído. A boca murcha. Está perdida em seu complexo mundo desgraçado. Está perdida em sua existência inanimada.
A jovem está cansada. Não aguenta mais procurar por saídas ocultas. Não aguenta mais procurar por saídas inalcançáveis.
As mãos de ambas se tocam em um ato de clemência. Uma voz melódica a convida:
— Karen, por favor, venha comigo.
—...
— Karen.
— Sarah...? É... você?
— Não, Karen. Não sou a Sarah.
— Mãe?
— Não, Karen. Não sou a sua mãe.
— Então... quem é... você?
— Ouça a minha voz, Karen. Eu sei o que você está sentindo. Posso dar um basta nisso. Poderemos partir juntos. Tudo estará acabado. Daremos um fim.
— Quem... é você?
— Por favor, Karen, venha comigo.
— Quem é você?
— Por favor, Karen.
— Quem é você?!
— Por favor, Karen.
— Anda! Responda!
—...
— Quem é você, porra!
—...
— Desgraça! Responda!
— Apenas olhe para o espelho... Karen.
— NÃO!
Eu acordo toda suada e ofegante. A minha respiração é tétrica. O meu coração está acelerado. Continuo tremendo muito. O meu corpo inteiro dói. Uma baba nojenta escorre pelo canto da minha boca. A minha cabeça queima.
Sento, apoiando-me na cabeceira da cama. Eu me encolho toda, igual a um feto
no interior de uma mãe, abraçando a mim mesma. O silêncio que eia por minha casa obscura, de móveis velhos e malcuidados, é deplorável. Não há nada por aqui, apenas uma mulher atormentada por aquele homem maldito...
Que a tirou de mim.
Eu me levanto depressa, mas ainda estou mal, com o meu corpo ferrado. O meu coração não para. Abro a janela e vejo que já é de noite. Olho no relógio, na minha parede suja, e vejo que dormi por mais de dez horas. Aquelas porcarias serviram, afinal.
— Melhor limpar essa imundice e ir tomar um banho.
“Sozinha, Karen. Sozinha.”
Tomo mais alguns remédios, mas, agora, para ver se leva a dor embora.
Deixo o chuveiro ligado, enquanto retiro minhas roupas e dou uma olhada no celular. Vejo algumas ligações.
— Afonso... Quantas chamadas. Provavelmente para saber o andamento da matéria; também deve estar preocupado. Mas... Sofia? — por essa eu não esperava. Faz muito tempo que não nos falamos. — Hummm... E esse...? — vejo um número estranho. — Desconheço. Ou é uma fonte ou ligou errado — largo o celular na pia.
Dou uma coçada na cabeça, eando minha mão pelos meus cabelos. Vou para debaixo do chuveiro e deixo a água cair sobre o meu corpo, durante vários minutos.
— Mãe... por que eu fui nascer...? Pai... por que eu fui existir...? Não há nada... nada, além de ser vazia... Nada, Sarah... Nada, além de ser sozinha... Estou cansada... — vejo o rosto da Adriene em meus olhos. — Adriene... Parece que ela conseguiu me fazer... NÃO!!! — saio debaixo do chuveiro. Pego o meu celular e olho para o número desconhecido. Decido ligar.
O cantar silencioso das estrelas deve estar espalhando-se pela escuridão que há do lado de fora da minha casa. O vento deve estar mais tímido, pois não o ouço assobiar. E a porra do meu vizinho não cala a merda da boca. Tudo parece estar funcionando da mesma maneira de sempre neste mundo torto que tanto me desgasta. Tudo parece estar funcionando da mesma maneira de sempre nesta vida morta que tanto me mata.
Aguardo um pouco.
Não demora muito e alguém atende. Não é uma voz o que eu ouço. Ouço uma respiração errada, uma presença sádica. Ouço uma respiração tarada, uma presença perversa. De imediato, as minhas pupilas incham. O meu coração congela. Cada célula do meu corpo entra em ebulição em uma escala perigosa. Volto a sentir uma sensação...
Uma sensação perdida há anos.
“Eu já não lembrava mais como era aquela sensação. Lá atrás, na época mais
doentia da minha vida, quando tive que ar por aquela merda de dia, pude conhecer do que era feito o terror. Em nenhum momento aquilo foi prazeroso. Na verdade, é tão horrível quanto sentir a pele pegando fogo. Mas ter voltado a ouvir aquela presença no telefone me trouxe de volta sensações podres. Contudo, preciso itir que, graças a isso, eu consegui ir adiante, em busca do meu objetivo. Bem, não era, necessariamente, um objetivo, era mais um... sonho. De qualquer maneira, era algo que eu queria muito fazer.”
PARTE 2
CAPITULO 23. MEU PRESENTE PARA VOCÊ
Seis meses já se aram desde que ele ligou. Não nos falamos, apenas ficamos sentindo a presença um do outro. Não que eu quisesse isso, eu queria falar, mas fiquei imóvel. Depois até tentei ligar para o mesmo número, mas já não existia mais.
Antes daquele dia, eu acreditava que ele esquecera a promessa que me fizera. Ou qualquer outra porra de motivo que explicasse o seu hiato desgraçado. Mas não...
Não era isso.
Antigamente eu acreditava que estava caminhando até ele, indo à sua direção. Humpf! Eu esperava era alguma merda cair do céu para que pudesse me levar até ele.
Eu era uma bosta idiota.
Hoje, procuro dar os mais firmes, retos — quero dizer, mais ou menos. Ainda tenho a culpa pela morte da minha irmã e a saudade da minha mãe batendo na porta, todos os dias. Porém, eu estou mais... Eu não perdi o desejo de morrer e levá-lo comigo, apenas transmutei toda esta merda negativa, que me engole, em uma munição mais precisa. Bastou uma ligação para isso.
Eu não imaginava que teria tanta potência.
Uma ligação que fez a minha cabeça ficar concentrada como jamais foi. O meu comportamento antipático, agora, adotou outra aura. Continuo sendo uma babaca, mas não mais com todo mundo. Em compensação, estou mais rápida nas investigações — bem, abandonei o caso da pequena Alícia. Resolvi vários outros, antes mesmo da polícia. Isso vem fazendo eu me tornar ainda mais conhecida na cidade, e até a minha fama moribunda de irmã assassina foi meio que “jogada para debaixo do tapete” — mas a galera nunca esquece e jamais irá esquecer esse tipo de merda. Bem, de qualquer forma, agora eu sou a “heroína” que, quando não encontra as pobres vítimas, ao menos, traz paz as suas famílias, após descobrir quem são os desgraçados malignos — se bem que eu já fazia isso.
Já por aqui, no jornal, ainda há algumas coisas iguais — mais ou menos.
Laura continua a investigação daquela série de assassinatos. E eu vejo há meses em seu semblante um aspecto desgostoso, tamanha a dificuldade em encontrar material substancial que a ajude a se aproximar do criminoso. Agora, ainda mais recorrente, ela vem pedir alguma ajuda, e eu ofereço conselhos, sugestões e atalhos. Eu faço o necessário para ajudá-la.
— Então, Karen? O que mais você pode me dar?
— Bem, eu já te dei muitas dicas, mas até agora parece que não surtiram efeito.
— Pois é, garota! Fiz tudo o que você falou e nada! — ela senta em frente a minha mesa. — Vou te falar, esse caso está se mostrando um verdadeiro labirinto. Não sei mais o que fazer — ela dá uma suspirada frustrada. —
Consegui resolver outros, em paralelo, mas esse tá difícil.
— Sete meses, certo?
— Sim... — ela começa a fazer birra.
— Calma — fico olhando para ela, tentando decifrá-la. — Ei... — ela me olha com uma cara fofa. — Que tal largá-lo?
— Como? — não é mais fofa.
— Laura, parece que é isso o que você quer. Ou não?
— Bem... Não, né? Tudo bem que já faz sete meses que estou nessa, e cada vez mais parece que me afasto de algum desfecho. Mas não quero parar.
— Olha, se você sente que está presa em um beco, então, caia fora. Não vá desperdiçar a sua vida atrás de algo impossível — ela me olha com uma leve surpresa. — Escuta, o que quero dizer é: não force mais do que você pode. Não vale a pena. Às vezes, temos que abrir mão e mudar o nosso caminho — agora, a sua face é de estranhamento.
— Desculpe, Karen, não quero ser indelicada, mas... não é você que há quase dez anos está presa... Errr... Bem... Está tentando ajustar o ado?
Garota esperta.
— Sim, eu sei que estou sendo incoerente, mas o meu caso é diferente. Eu não tenho escolha — encaro-a. — É que eu não quero que você se machuque, por isso falei para largar — a sua reação demonstra que não esperava por este meu comentário.
— Bem... Obrigada... Mas não precisa se preocupar comigo. Não vai me acontecer nada.
—...
— E, Karen. Nós sempre temos escolhas.
Eu a ouço falar essas palavras e percebo como ela é ingênua. Apesar de ter vivido tanta merda, parece desconhecer quando está diante de algo maior do que ela.
— Laura, continuarei a te ajudar, como venho fazendo. Mas, sinceramente, acho que você deveria cair fora. Sinto que esse caso está além da sua capacidade — ela parece não gostar nenhum pouco de ouvir isso.
— Não, Karen! Você não pode me dizer esse tipo de coisa! Eu sou tão boa quanto qualquer um por aqui! — ela se levanta. — Por que me falar isso justo agora?
—...
— Então, por que você está me ajudando, esse tempo todo?
—...
— Por quê?
Acho que sei o que dizer.
— Gosto de você — vamos ver o efeito disso. — Por isso te ajudei, ainda ajudo, e continuarei ajudando — Laura fica paralisada. É a primeira vez que falo isso para ela. Essas babaquices realmente funcionam.
— Não te entendo, Karen. Você quer que eu pare de investigar, mas vai continuar me ajudando? Estou confusa... — ela se senta. Acho que deu certo.
— Eu sei que não faço muito sentido. Apenas sinto que esse caso é mais sombrio do que aparenta. Afinal, já faz sete meses, não é?
— Sim... — o que será que ela vai falar agora? — Você acha que é perigoso demais? É isso?
— Sim, eu acho.
—... — quieta, ela parece esperar que eu fale mais alguma coisa. — O que mais? Vou precisar de mais do que isso para me convencer — garota ousada.
— A minha experiência não basta?
— Sim... Claro que sim, Karen... Mas... Olha, obrigada pela preocupação e o carinho — sua voz está mais calma e gentil. Ela pega em minha mão. — Porém, pretendo continuar. Não posso desistir agora, né? E o Afonso não me deixaria em paz.
—...
— Mas prometo que saio, imediatamente, se eu perceber que está ficando muito perigoso, ok? — ela sorri para mim.
— Certo — tomara que não se arrependa depois.
— Bem, tenho que ir, Karen. Preciso falar com algumas pessoas.
Despedimo-nos e, após a Laura sair, volto ao que me interessa. A minha obsessão é na próxima vinda dele.
Sim, eu sinto que ele voltou.
O problema de Agonia é que há tantos crimes bizarros, escrotos, doentios, que todos são críveis de terem sido executados por ele. Desde criancinhas até o esquartejamento de velhas senhorinhas. Para ele é tudo a mesma coisa. Para ele é tudo a mesma festa.
E eu sei disso.
Por isso, aqui no trabalho, para “descontrair”, não me fixo em uma linha específica. Ao finalizar uma investigação, procuro trabalhar em outra totalmente diferente — ao contrário de antes, quando eu pegava qualquer um sem critérios.
Talvez eu esteja completamente maluca, mas, agora, posso sentir o cheiro dele pairando no ar, cada vez mais forte, cada vez mais perto. Por isso, em casa, também mantenho uma investigação paralela, com vários casos possíveis de terem sido cometidos por ele — também estou atenta com o caso que a Laura investiga.
Quanto às lembranças que me fizeram perder o controle, ainda tenho medo de poder tocá-las. Eu consigo desviar o olhar, mas faço com cuidado. A magnitude que me atingiu foi assustadora. O seu lugar ideal é no interior da minha alma. Lá, eu faço questão de procurar deixá-las.
— É bom não cutucá-las... — divago um pouco.
— Ei! Karen! — é um dos jornalistas. — O Afonso pediu para te avisar: ele quer falar contigo. Vai lá ver ele depois, beleza?
—... — acho que sei o que é.
O último mistério que eu resolvi trouxe grandes feitos ao jornal. Primeiramente, o Afonso foi homenageado (de novo). Não foi ele o responsável, mas como é o superior de todos, teve que ir receber o prêmio em nome da empresa. Eu também ganhei alguns prêmios, mas não fui receber nenhum. Não dou atenção para essas coisas. Festividades, homenagens, presentes, discursos, agrados...
Não me importo com nada.
A única coisa que me interessa, e que me agrada, é que a minha cabeça, que pesava mais do que uma tonelada, tornou-se uma pena perdida que paira no ar. É uma sensação esquisita, estranha. Agora, consigo enxergar algo diferente através da negritude áspera que transborda entre os erros que eu cometi. Algo novo em meio a este oceano de dores que dormem dentro de mim. Agora, um olhar eminente está vibrante em meu rosto. E os meus cabelos mais compridos, como grandes ondas de brasas entumecidas, caem sobre os meus olhos.
• • •
Já é quase meia-noite. Continuo no jornal, trabalhando.
O Afonso abre a porta e vem em minha direção, com os seus olhos cansados.
— Não vieram te avisar que eu queria falar contigo, menina?
— Sim, vieram.
— E por que não foi até a minha sala?
— Estive ocupada — Afonso me olha diferente.
— Já que é assim, vou falar aqui mesmo.
—... — eu o encaro.
— Sabe, Karen... — ele se senta na cadeira em frente à minha mesa. — Eu não pude deixar de notar uma melhora em você — diz, olhando para os meus cabelos. — O que houve?
— Como assim?
— Bem, como eu posso te dizer? — fica pensando no que falar. — Após toda a tragédia que te acometeu, você tinha ficado... — parece não querer me chatear. — Muito depressiva. O seu comportamento era hostil. As suas atitudes
ofensivas. Poucos, para não dizer ninguém, queriam falar com você. Sem falar que você era muito egoísta.
—... — isso é verdade, mas eu sempre fui assim.
— Eu sei que você meio que sempre foi assim, desde pequena, mas você não se importava com nada e com ninguém. Então, de repente, após a investigação do caso Alícia, tudo isso foi deixado de lado. Conversa com todos, sem demonstrar irritação. Parou de ter um comportamento intragável e está mais preocupada com as pessoas, além de ficar até mais tarde no trabalho. Agora, o mais surpreendente: está resolvendo um caso atrás do outro (apesar de ter desistido da Alícia, sem dar uma explicação decente).
—...
— Ou você é uma nova mulher ou eu estou muito velho e já não consigo mais ler as pessoas.
O Afonso até pode estar certo na maior parte dos apontamentos, porém eu não comecei a ter nenhum tipo de preocupação por ninguém. Com exceção da minha família e da Sofia (acho que posso começar a considerar a Laura também), eu nunca tive e, certamente, nunca terei por outros.
—...
— Então, vou repetir: o que houve?
— A vida, eu acho — respondo, enquanto volto a minha atenção para a tela do computador. Já o Afonso, que está me encarando com a seriedade do seu velho rosto, parece tentar encontrar razões plausíveis.
Mas não irá.
Eu nunca falei da promessa que me foi prometida. Apenas falei que eu queria pegar o desgraçado que matou a minha irmã. Por isso, por ter visto a minha vida pós-Sarah, certamente pensou que eu pudesse fazer algo contra mim. Ou, quem sabe, não entenda o porquê de eu ainda estar por aqui. Nunca conversamos a respeito do que eu ei. Será que ele acredita que eu tive forças para superar o que eu fiz?
— Bem, eu posso presumir que você conheceu um bom rapaz?
—...
— Uma garota?
—...
— Voltou a falar com a sua mãe? — manda essa, ajeitando-se na cadeira. — Afinal, como será que a querida Amy está? — sua voz é nostálgica.
—...
— Soube algo a respeito daquele sujeito, por acaso? — olhou para o relógio em seu pulso esquerdo e não viu o meu rosto dar a resposta correta.
— Quem dera — o Afonso não tem medo de cutucar os problemas alheios, se achar que isso pode ajudar alguém. — Olha, estou quase finalizando aqui. Pode me dar uma carona até em casa?
— Sério? Você sempre diz que gosta de caminhar.
— Sim, mas está tarde. Estou cansada.
— Claro, claro. Sabe, é a primeira vez que você me pede isso. Seja lá quem for o responsável, está de parabéns! — ele se levanta com rapidez.
Devo concordar com essas palavras. Mas a verdade é que eu quero ir embora para poder continuar o meu trabalho em casa.
— Vamos, então? — pergunto a ele.
• • •
Em seu carro, no caminho de volta, conversamos a respeito de temas banais.
O Afonso está solto, talvez contente por ver a filha do seu amigo, após muito tempo, comunicando-se com palavras verbalizadas, em vez de frases lamentadas. Eu, por outro lado, não necessito desta pantomima idiota — ainda assim, eu a faço.
— Como vai a sua irmã? — pergunto a ele.
— Meu Deus! Quem é você?!
—...
— Certo, certo... Ela está bem. Aliás, voltou a lecionar na faculdade. Disse que estava cansada de ficar só advogando.
— Você sempre me disse que ela gostava do que fazia. Vejo que era mentira.
— Humpf! Será que eu me enganei a seu respeito, garota?
— Talvez.
— Sei... Enfim, ela achou que seria uma boa voltar a dar aulas. Poder ensinar um
pouco a essa geração terrível.
— Entendo.
— Preciso apresentá-la a você. Nós nos conhecemos há tanto tempo, mas vocês duas nunca se viram, não é mesmo?
— Ela estava no enterro do meu pai. Apenas não nos falamos.
— Nossa! É verdade! Não lembrava mais! Como o tempo a (parabéns por se lembrar disso).
— Pois é. Para alguns, mais devagar do que o esperado.
Chegamos. Afonso estaciona o carro na frente da minha casa.
— Obrigada pela carona.
— Disponha.
Eu abro a porta, pronta para sair.
— Karen...
— Sim?
— É muito bom vê-la assim — ele fala, com uma voz amorosa.
—... — fico olhando-o. — Bem, obrigada — saio do carro.
Já dentro de casa, decido tomar um banho. Saio do chuveiro e me visto. Vou até a cozinha, pego uma pizza perdida, que rezava para ser vista, dentro da geladeira, e vou para o meu quarto para dar continuidade em minha tarefa. Está difícil encontrar um padrão que dê para ligar a ele. É tudo muito grosseiro, sem ternura. E como eu falei, ele pode fazer de tudo — mas não posso abrir mão de qualquer possibilidade. Se ele voltou, quem sabe mudou o seu modus operandi. Afinal, o seu prazer é bem elaborado, igual a uma pintura realista com todos os detalhes minuciosamente trabalhados.
Bem, eu já levantei material suficiente para preencher um jornal por fáceis longos meses. Conteúdos levantados com muito esforço. Entrevistas com amigos e parentes de várias vítimas. Fotografias, filmagens, dias, horários, lugares. Tudo o que eu podia, eu fiz. É o suficiente? Não, ainda não é o bastante para alcançálo. Agora, como eu sei que ele está por perto? Não sei. Apenas sinto, desejo. Mas ficar inerte, esperando cair algum milagre da porra do céu, não irá resolver minha situação. E apesar de tudo o que Agonia tem, não será por aqui que irei ficar. Sim, eu já tenho um lugar a ir. Uma pista obtida por um maluco detetive autônomo, que vem me ajudando, chamado Dean, irá me levar a um lugar que eu sempre tive o intuito de visitar. Um lugar chamado...
Melancolia.
A cidade que vive na noite eterna, e onde a minha mãe pôde ser feliz, será a minha próxima parada. Alguns desaparecimentos começaram a ocorrer por lá, e, segundo esse detetive doido (que vive em Melancolia), há sinais de que ele, talvez, possa estar perambulando por nossa tímida vizinha. Apesar de ser uma excursão sem garantias, até mesmo improvável, vale a pena checar.
Ficar parada é que eu não vou mais.
Ainda não comuniquei ao Afonso a respeito da minha ausência vindoura. Preciso ter certeza da minha decisão. Por mais simples que pareça ter que ir até a cidade em que a minha mãe perdeu o seu pai, não é tão fácil assim. Essas emoções falhas e esses sentimentos infelizes...
Fodem comigo.
E apesar de todo o esforço que eu faço para mantê-los aprisionados, a sete chaves, é um risco real ter que encará-los. A insegurança não foi embora, ainda me atormenta. E a incerteza de conseguir ter autocontrole não é legal de sentir. Mas não irei abrir mão dessa oportunidade. Os oito anos iva, esperando-o me encontrar, ficaram para trás. Agora, eu irei à sua direção para levar o choque inevitável que as nossas existências têm que enfrentar.
— Vou falar com o Afonso em breve.
• • •
Enfim, chegou o dia. Neste momento, dentro deste ônibus, sigo em busca de algo que possa me levar até ele. Em busca de algo que possa me levar até elas.
O Afonso tentou me convencer do contrário, mas viu que seria impossível. Então, falou para eu me cuidar e ficar bem atenta. E a Laura me desejou sorte. Eu fiz igual por ela, apesar de achar que ela não terá.
Eu chego. O ônibus para. Não estou mais em Agonia.
— Ainda bem que o Afonso entendeu. Já a Laura ficou tão triste. Ela deve achar que sou a sua irmã... Que seja — pela janela, vejo as sombras que dormem em silêncio por esta cidade. — Então, finalmente estou aqui, em Melancolia. Como será que esta cidade funciona? — antes de descer do ônibus, olho para a vida que eu tenho levado. Olho para cada pedaço, dos mais identificáveis até os mais corrosivos. Dos mais escondidos até os mais expansivos. Olho tudo e vejo apenas duas entidades vagando por elas. Apenas dois responsáveis existem para reivindicar cada parte. E agora, uma delas está indo buscar a outra metade.
“Como eu estava enganada.”
CAPITULO 24. MELANCOLIA
Dou os meus primeiros os por Melancolia.
Os moradores, encobertos por vestimentas escuras, mantos e capuzes, surgem como sussurros ardilosos. As lamparinas acaloradas fazem a negridão perpétua encarar uma luz pacificadora. O gelar do frio comumente é bastante altivo. O vento macio procura abraçar a todos, a fim de protegê-los. Alguns vendedores, da culinária local, aguardam pacientemente que alguém vá comprar os seus doces e salgados em suas barraquinhas tradicionais. E uma música folclórica, ao som de sinos e areia, eia suavemente pelas várias vielas desta cidade artesanal.
— Parece que a minha mãe falou a verdade.
Procuro ir logo ao hotel para iniciar, o quanto antes, a minha busca por qualquer evidência a respeito daquele homem. Então, com a minha mochila nas costas, e uma mala na mão, vou caminhando e sendo envolvida pela magia que paira por Melancolia.
• • •
Após algum tempo, decido mudar.
— Acho que já deu. Vou chamar um táxi — não é hora para gostos.
Procuro em volta e vejo alguns taxistas parados em um ponto. Os seus carros são bem peculiares: pequenos e enfadonhos, e, com o seu roxo-escuro, parecem caixas de bombom de sabor desagradável. Os taxistas usam túnicas pretas compridas, feitas de algum tecido estranho. Os bigodes lhes dão um ar de culto, que logo é perdido por uma simplicidade primitiva. Eu digo a um deles para me levar ao hotel Pokiel e, prontamente, por um baixinho careca, sou atendida. O hotel Pokiel é uma construção simples, mas com bastante história. Foi o primeiro edifício levantado em Melancolia. E a sua fama é mais turística do que por questões de qualidade.
Assim que chegamos, um carregador vem de imediato carregar minha mala. Ela não está tão pesada, mas o jovem garoto, de pele caramelizada, exige poder carregá-la.
— Tudo bem, então — é o que eu digo.
Eu sei que esta terra tem os seus aspectos próprios, mas não imaginei que destoariam com tanta força quando eu os visse de perto. Essa singela essência, que flutua por aqui, é envolvente. Não é apenas por isso, mas a minha mãe tinha as suas razões para sentir saudades de Melancolia.
Na recepção, um bem ajustado gerente me dá as boas-vindas. O seu nome é Savage. É um homem jeitoso. Não é magro, nem gordo. Sério, mas nada tenebroso. Deduzo que ele deva ter uns trinta e cinco anos. Os seus cabelos, relativamente compridos, ainda são negros, mas alguns pontos brancos já despontam. Usa, também, uma túnica preta, porém em uma versão mais atualizada. Ele indica o meu quarto, entregando-me a chave, e pede para o jovem carregador me acompanhar.
— Vamos lá! — é o que o garoto fala.
Chegamos ao meu andar e me despeço do ligeiro garoto, dando-lhe um agrado monetário, que eu julgo ser válido. Entro. O quarto é bem amplo. Todo folheado com peças e objetos culturais. Abajures, quadros, livros, tapeçarias. Para um quarto simples, até que há muita coisa. Já a sua coloração preta e roxo-fosca faz jus aos comentários que há em Agonia. Contudo, essa depressão é apenas sugestiva, pois essa ambientação obscura me agrada. Eu sinto como se fosse uma concepção externa, mas elaborada, do que há em meu âmago.
Antes de dar início ao trabalho pesado, decido tomar um banho e comer algo. Mesmo sendo vizinhas, o afastamento que existe entre Agonia e Melancolia, de todo o resto, é absurdo. Seis horas enfiada em um ônibus não é para qualquer um.
Após o banho e a refeição, vou ao que interessa.
Com o meu notebook aberto, e alguns cadernos, anotações e afins, reo todo o material que levantei, em sinergia com as pistas que o detetive me ou.
— Ainda bem que o Dean me deu tudo o que a polícia conseguiu até agora.
Apesar de não haver nenhum crime brutal em Melancolia, existem fortes indícios de que, talvez, ele possa estar envolvido no desaparecimento de jovens meninas. As mesmas circunstâncias que precederam a morte da minha irmã foram refeitas, mas sem uma idiota no meio.
Bem, não chega a ser igual, mas tem certas semelhanças.
Começa com o envolvimento de algum membro da família com um estranho, que em um primeiro momento se faz ar por um amigo. A confiança dada a essa pessoa logo se transforma em um pedido de socorro. Por fim, o prenúncio do apocalipse. Mas diferente do que houve a minha época, ele, se for, não é o sujeito que se envolve diretamente com as vítimas. O problema é que os depoimentos das famílias divergem justamente neste ponto. Alguns dizem ser uma bela mulher que aparenta ter vinte e cinco anos, de longos cabelos loiros e pele morena. Outros, uma jovem branca, também de longos cabelos, mas pretos, olhos vermelhos e idade semelhante. E há outras descrições, todas diferentes. Talvez essa seja a sua nova tática para continuar com o seu trabalho de psicopata: utilizando a porra de uma comparsa.
Até agora, nenhuma garota foi encontrada — e nunca será. O que é bom. Isso dá um pouco de esperança aos familiares. Porém, eu sei qual será o desfecho dessa novela.
A última a ser atingida foi uma costureira local: a jovem Bianca de apenas vinte e seis anos. Também sentiu o terror de perder a sua irmãzinha. Mas ainda mantém a fé de poder encontrá-la. Sorte dela não ter tido a mesma visão que eu...
Ainda.
Olhar para o corpo morto da irmã caçula é uma sensação sem adjetivos. Espero que ela, e todos os demais, estejam preparados pelo que arão em breve — é claro, se os corpos aparecerem.
Bianca falou, em seu depoimento, que a última vez que viu a pequena Susy, sua irmãzinha, foi no seu ateliê, bem cedo, enquanto trabalhava em uma encomenda. Dali em diante, o desespero a tomou.
— Bianca... Ainda bem que aceitou falar comigo (será amanhã cedo). Poder ouvir da boca de uma vítima como é a tal mulher, irá me dar um norte para a investigação — dou uma suspirada. — Bem, acho melhor ir dormir agora — deito na cama e apago.
Amanhece em Melancolia, mas ainda parece de noite. De fato, esta cidade desconhece o sol. A escuridão não se intimida e encobre todo o céu. Realmente, esse preto infinito, vasto e pleno, sabe que é o rei por aqui.
Após me vestir, pego a minha mochila, com dois cadernos cheios de anotações dentro dela; o meu notebook vai também. Com um pedaço de pão, metade para fora da boca e a outra metade para dentro, eu me apresso para sair logo do hotel. Quanto antes eu começar a percorrer as ruas desta cidade, mais rápido poderei obter êxito na investigação.
O táxi chega.
Enquanto sigo até a casa da Bianca, vejo, dentro dos meus olhos, a minha mãe, ainda criança, correndo pelas ruas de Melancolia. Toda saltitante, leve, sem grandes preocupações. Mas... essa Amy jovem, que corre pelo ado, não parece ter muito espaço pelas sombras que se jogam por esta cidade. Talvez, já velha faça mais sentido. Ainda era especial, mas já não tinha a mesma constância. Ter perdido, tão cedo, o seu precioso marido, custou-lhe um preço. A luz ainda despontava com ímpeto, mas o crepúsculo também era mais nítido.
— Como será que ela está...? Será que ainda está viva...? Será que vamos nos ver de novo...?
— Pois não, menina? — o taxista acha que eu falei com ele.
— Não estou falando contigo.
Chego ao meu destino.
A humilde moradia da Bianca. Uma casa pequena, mas, aparentemente, aconchegante e receptiva. Toco a campainha algumas vezes. Após um tempinho demorado, Bianca me recebe com um triste sorriso. Já vi esse filme inúmeras vezes.
Cumprimentamo-nos e a minha entrada é permitida.
A jovem costureira tem os cabelos pretos compridos, bem lisos, até as costas. Os seus olhos cor de carvão, e a sua pele bronzeada, concedem-lhe uma beleza de lírios perfumados. Bianca poderia ser uma miss ou, quem sabe, até uma fada. Não me dera que ela tenha sido escolhida.
A casa, como eu imaginei, é realmente agradável.
Bianca, visivelmente, não consegue lidar com o sumiço da Susy. O seu andar sem rumo e as alternâncias de unhas a serem ruídas, demonstram a aflição que a consome. Espera até ver a morte da irmã estampada nos seus olhos para sempre. Minha intuição diz que ela não irá ar. Se bem que quem sou eu para afirmar algo. Até pouco tempo atrás eu era outra coisa.
“Não. Não era.”
Agora, posso dizer que eu consegui avançar. De repente, ela faça o mesmo.
Sentamo-nos no sofá. Ficamos de frente, uma para outra, com uma mesinha no meio. Apesar de saber da cerimônia que essas socializações exigem, prefiro ir direta ao assunto.
— Bianca, pode me dizer como era essa mulher? Os seus gostos, características, trejeitos, personalidade, nome, tudo o que você lembrar — com o meu bloco de anotações em mãos, e sem moderações, já busco o meu objetivo.
— Claro... — apesar da visível chateação, ela aceita o meu pedido.
Bianca começa a sua penosa tarefa.
Ela diz que a mulher se apresentou sendo uma cliente, de nome Mary. Que ela teria sido influenciada por uma amiga que a indicou o gracioso ateliê. Já as características físicas batem com uma das que eu obtive. O cabelo, de um amarelo lustroso, deve ser uma bela farsa. Uma peruca, na certa. Os olhos
verdes, lentes de contato. E a pele morena, algum tipo de nojeira artificial. Ele não se arriscaria tanto exibindo uma verdade, explicitamente, para o mundo. Ainda mais agora, onde todos já sabem como ele é, após ter se revelado — se bem que ninguém sabe quem ele é.
Bianca conta que, de uma simples possível compradora, uma amizade inesperada surgiu. A convivência rotineira tornou-se diária. De idas as vendedoras de tecidos até assuntos mais íntimos. Desde conversas banais até uma mãozinha no trabalho. E assim, a pequena Susy foi apresentada como a irmãzinha querida. Bianca a expôs sem nenhum cuidado redobrado — pois não havia por que ter. Ao menos não jogou de consciência limpa o coelho na frente do leão...
Como outra pessoa fez.
As visitas, sem nenhum motivo aparente, ficaram escassas, quase nulas. Bianca começou a perguntar se fizera algo de errado, mas Mary dizia que não, que, apenas, estava ocupada com outros assuntos.
“Apenas.”
Até que, em um belo dia, Susy não voltou para casa, após o término das aulas. As horas foram ando e, em um desespero crescente, Bianca pensou em pedir ajuda à sua recente melhor amiga. Para sua surpresa, o número não existia mais. Porém, Bianca recebeu uma notícia. Uma carta escrita à mão, dizendo que Susy também não existia mais. Transtornada, ela foi até a polícia e entrou para o rol das famílias que têm que conviver com as suas crianças desaparecidas.
— O que mais? — pergunto a ela, mais fria do que uma calota de gelo. Bianca
me olha chorosa. Melhor eu recuar um pouco para abrir mais as portas. — Desculpa. Às vezes, eu sou um pouco insensível.
— Tudo bem... Eu sei que você já ou por algo assim — ela fala, despretensiosamente, enquanto esfrega as mãos nos braços.
Então, ela sabe quem eu sou.
— Sim. ei por algo parecido.
— É por isso que você está atrás dessa mulher?
— Sim.
— Você quer evitar que outras pessoas sofram também? Outras crianças? É isso? — ingenuamente, pensa nessa possibilidade ridícula.
— Sim — Bianca parece ter ficado mais a vontade, após as minhas respostas. Como se a desgraça que nos atingiu criasse um elo maldito que nos ligasse. — Na verdade, ela não é quem eu procuro. No máximo, é um fantoche trabalhando para alguém. E é esse alguém que, de fato, eu quero. Mas ainda não tenho certeza para afirmar isso. Porém, acredito que, caso haja esse alguém, seja a mesma pessoa que me atingiu, anos atrás.
— Você acha que é a mesma pessoa, então?
— Sim.
— Meu Deus! — ela leva as mãos à boca.
— Como você deve saber, no meu caso foi um homem.
— Eu me lembro disso. De onde ele era?
— Eu nunca soube. Ele era uma mentira ambulante — um enigma. — Enfim, se você conhece a minha história, sabe que ele não estava apenas sequestrando crianças — Bianca fica pasma com a possibilidade do mesmo poder acontecer, ou já ter acontecido, com sua irmã.
— Você imagina que a Susy... e todas essas meninas... possam estar sendo vítimas... de algo parecido? — ela, trêmula, e provavelmente não querendo ouvir a minha resposta, pergunta.
— Sinceramente, não sei. Sinto que está diferente agora. É como, caso seja ele mesmo, se estivesse tentando algo novo. Experimental, talvez — Bianca parece não saber se fica aliviada ou perdida com minha explicação complicada. Mas, de fato, a única coisa que eu sei (ou penso saber) é que eu sou o alvo a ser atingido. Aquela ligação não foi por nada. Ele me queria de volta. Ele me quer de volta. Agora, talvez, ele esteja amoitado, ainda dando um tempo, e todo esse caso seja um mistério desconexo, ou uma porra de um enredo bem elaborado. Porém, se o seu envolvimento for confirmado, essa trama é apenas uma pequena estrela a ser encontrada em um céu estrelado.
Talvez, ele tenha mudado a sua tática, após ver a minha nova conduta. Talvez, minha mudança possa ter causado alguma reação mais precavida dele. Talvez, ele continue apenas brincando comigo. Talvez... Quem sabe...
CAPITULO 25
Apesar das gotas correntes que saem dos seus olhos, Bianca se esforça para não se perder nas lágrimas.
A pressão é tamanha, eu posso ver.
Essa simples costureira está presa em um inferno escaldante, lascivo e visceral. Uma piscina entupida com carne em decomposição, nojenta e repulsiva, que insiste para que ninguém se aproxime. Que ninguém olhe. Que ninguém toque. O problema é que quando alguém é engolido por ela, logo é afogado em um vermelho grudento, poroso e podre. Uma repugnante paisagem pintada com sangue, tripas e...
Choro.
Finalizo a nossa conversa e consigo uma informação valiosa (falar com a Bianca não foi um desperdício de tempo). Pode ser um equívoco cego do meu desespero em alcançá-lo. Apenas mais uma das suas armadilhas mirabolantes que, sabiamente, sempre jogava em minha direção para me distrair. Outro dos seus inúmeros os que sempre estiveram milhas a minha frente. Ou...
Talvez não.
Quem sabe, a vida, essa porcaria imunda que tanto me atormenta, tenha decidido dar uma mão para uma patética jornalista em busca de vingança.
Em busca de uma razão para deixar de existir.
Bianca me deu uma informação tão importante, mas tão sutil, que a polícia sequer levou em consideração registrá-la em seus arquivos. Nem o meu detetive side kick se atentou a tal fragrância. Bianca me contou que a mulher misteriosa tinha o hábito de mexer no único anel em uma das mãos.
Algo simples, certo?
Provavelmente. Porém, mais do que um toque insignificante, essa mania era uma peça constante no mundo daquele homem.
Pois ele fazia o mesmo.
Talvez essa mulher desconhecida tenha adquirido a mesma mania dele.
Talvez...
Eu sempre imaginei, e acredito que eu estava certa, que era uma forma dele colocar o seu cérebro para funcionar em mil por cento — um gatilho, talvez. Como a engrenagem primária que faz o trabalho iniciar no esqueleto de um relógio antigo. E no dia que eu perguntei, ele apenas respondeu dizendo que era
um hábito roubado da sua irmã mais nova, que morrera.
Sua irmã mais nova...
— Obrigada por falar comigo, Bianca — eu me despeço satisfeita por ter perdido cinco horas com ela. No fim, obtive um grande resultado.
Saio da casa e retorno caminhando pelas ruas.
São quase treze horas. Ainda há várias pessoas a serem ouvidas, mas estou curiosa por esta cidade mística. Em pleno horário onde o sol estaria a pino, Melancolia permanece fria e sombria, sem essa inável estrela sorrindo; e eu prefiro assim.
— Como a Bianca me ajudou bastante, acho que posso dar uma volta por aí — acendo um cigarro. — Bem, e acho que já sei onde — e apesar de ser longe, e sabendo que é uma má ideia, decido ir até a casa em que a minha mãe morava.
Vou seguindo até lá.
Melancolia se parece com um labirinto. Qualquer um, mais desavisado, pode se perder por estas ruas e bairros enlaçados, mesmo com as lamparinas nunca sendo apagadas. É impressionante como esta cidade vive em seu próprio mundo. Poderia ser o lugar perfeito para mim, mas já existe outro a minha espera.
Cheguei.
Vejo que o estabelecimento da minha família não existe mais. Agora, uma casa chata está plantada no lugar que fabricava doces excepcionais.
Na fachada, em vez das grandes portas que recebiam a todos, encontro uma pequena porta séria e duas janelas tristonhas, fixadas em uma tintura sépia. Penso em conhecer o seu interior, mas...
Não. É melhor não.
Que diferença fará romper uma parte minúscula do antigo mundo da minha mãe? Ela morou poucos anos por aqui, e apesar dos bons momentos, e da saudade, nada demais aconteceu com ela, apenas a morte do seu pai. E eu não quero mergulhar em sentimentos inconvenientes e em emoções conturbadas neste momento, já que foi um alívio ter superado aquele marasmo interminável. Superado...
Eu estava iludida.
Eu imaginava estar dando sequência em algo, mas, na verdade, estava empacada igual a uma mula. Anos desperdiçados. Se eu tivesse me empenhado em encontrá-lo, ao menos, teria feito algo mais válido com a minha bosta de vida. Era a atitude correta, e a única, que eu deveria ter tomado.
— Curioso... — dou outra tragada.
Alguns moradores estão me olhando. Até parece que eu é que sou uma figura chamativa. E essa agora? Uma velha senhora, corcunda e baixinha, vem em minha direção.
— Amy? — a velha fala.
—...
— Hahahahaha! Não, claro que não. Ela deve ser uma senhora, agora. Vocês são muito parecidas, menina. Mas ela era mais doce, alegre. Você tem cara de zangada, azeda.
—...
— Você deve ser parente dela.
—...
— Neta? Filha, talvez? — a velha mulher, de túnica cinza-escura, diz. Ela deve ser um eco do ado da minha mãe. Que seja. Prefiro não puxar assunto e me afasto. Ela continua me seguindo. — Como ela está? Faz tanto tempo que eu não a vejo. Era uma criança tão gentil, bondosa e feliz. Pena que a vida decidiu tirar o pai dela... Thomas... Isso! É isso mesmo! — essa velha, de voz seca, tem a convicção de que eu seja parente da menina que ela conheceu.
Penso em sair correndo, igual a uma doida ensandecida, porém vejo uma feira próxima e decido ir até lá. Tem muitas pessoas, além de ser mais movimentada. Espero que eu consiga despistá-la.
Quieta, a velha mulher se arrasta por trás de mim, como se fosse a minha maldita sombra: sem fazer barulho, mas em constante vigia.
Que situação mais estranha e conveniente.
Será que ela foi enviada por aquele lixo? Bem, é possível. Todas as alternativas estão na mesa, afinal. Mas eu não senti essa verdade na voz dela. Talvez seja uma inacreditável coincidência. Apenas uma lembrança perdida do ado da pequena Amy. A minha mãe me contou, diversas vezes, que costumava conversar com moradores locais que ela nem conhecia. De repente, essa velha é um deles.
Atravesso um corredor alto de muros duros e úmidos. Mais a frente é o cruzamento que leva até a movimentada feira. Mais um pouco e me livro dela.
— Por favor, querida. Mesmo não querendo dar atenção para uma alma cansada, quando vê-la, e a sua mãe Esmeralda, diga que uma velha amiga ainda se lembra delas, com muitas saudades. Piedade é o meu nome — Piedade... Nunca ouvi falar. Minha mãe jamais me contou a respeito dessa mulher desinformada. E essa velha não faz ideia de que a minha avó já morreu. Que seja! Pelo menos foi embora.
Assim que chego à borda, antes de entrar no fluxo imparável da feira, eu paro.
—...
Jogo o cigarro no chão.
— Merda!
Dou meia volta, retornando à antiga moradia. Pego outro cigarro.
Caminhando por ruas estreitas, vejo pessoas enfiadas em cantos obscuros. Elas ainda me olham com olhares curiosos. Parecem interessadas em mim. Novamente, a minha aparência não é nada de anormal, mas, ainda assim, continuo chamativa.
Eu chego. Paro em frente à casa, encarando-a.
Entro?
— Espero que este cheiro de cigarro não impregne tudo — jogo o cigarro fora.
Vou em frente.
Bato à porta, mas ninguém atende. Ponho a mão direita na maçaneta e, para a minha surpresa, ela está aberta. Entro, sem ligar para quem possa estar.
Eu nunca estive aqui antes, mas sei exatamente onde fica cada lugar. Onde deveria ser a recepção da confeitaria, por exemplo, agora há uma sala escura, com móveis óbvios. Não é tão grande, mas há dois sofás, uma estante, onde deveria haver livros, e outras quinquilharias mais.
— Quem será que deve morar aqui?
Sigo com minha expedição não planejada. Após a sala, o cômodo seguinte que visito é a cozinha. Uma grande área com uma mesa centralizada; fogão e geladeira — até que estão bem conservados. Há um armário com pouquíssimos pratos, copos e talheres, mas suficientes para uma família reduzida. As gotas que pingam da torneira caem sobre o ralo entupido da pia. As cortinas almofadadas roxo-escuras fazem uma cena atrativa. Era aqui que a minha avó fazia as suas maravilhas adocicadas...
Com a ajuda da sua filha.
—...
Em frente da cozinha há um quarto. Entro e vejo um grande guarda-roupa de madeira. Eu o abro. As roupas, já meio desgastadas, são todas femininas. Além de vestimentas tradicionais de Melancolia, há saias, vestidos e camisas.
A cama está levemente bagunçada. Há um único travesseiro largado no meio. A cortina está amarrada com um laço branco — algo bem destoante por aqui. Tudo é preto, cinza e roxo, ou qualquer outra cor que traga depressão.
— Tudo aqui é muito soturno — digo, com uma macies na voz.
Fora o telefone, não tem mais nada. Aqui, no lugar em que os meus avós dormiam abraçados, e onde, de vez em quando, uma intrusa saltitante também participava, agora, uma nova vida deve descansar.
Saio.
Mais duas portas me aguardam. Entro em outro quarto, que fica ao lado. Menor, e com uma única mobília, era onde a minha mãe dormia. Há um pequeno guarda-roupa todo empoeirado. As janelas fechadas tornam o ar abafado. Ela sempre dizia que gostava de ficar aqui. Era o seu cantinho mágico.
— Mãe... — sinto o meu coração bater. Dou alguns tapas em meu rosto e saio do quarto, imediatamente. O banheiro é a minha última parada. Menor ainda, eu não imagino duas pessoas ocupando esta falta de espaço. Eu me olho no espelho, por acaso, e fico encarando o reflexo que ele cria. Está diferente, apesar de que a pessoa que observa continua sendo assombrada. Por os meus pés nesta casa, após eu ter feito tanto mal, deveria ser considerado uma heresia.
E parece que a vida também pensa assim.
Ouço a porta de a sala ser aberta e alguém entrar. — Merda! — Vou até a porta do fundo, mas está trancada. Retorno correndo para o quarto da minha mãe, dando adas rápidas. Eu me enfio atrás do guarda-roupa. Os os que ouço são graves e precisos.
Abaixada, enquanto preciso ficar umidificando os meus lábios para não se tornarem dois ninhos de ácaros, eu consigo ouvir o que é dito no quarto ao lado, bloqueado por uma fina camada de concreto. A voz que surge é de uma mulher. Ela fala algumas frases soltas a respeito de alguém, depois decide ser melhor ir tomar um banho. Ela entra no banheiro e fecha a porta. Considero ser a minha melhor chance para fugir dessa situação imprevista, mas o telefone toca, fazendo-a voltar para atendê-lo. Volto a me esconder na piscina de poeira.
A mulher, que conversa com não sei quem, diz estar ocorrendo tudo conforme o planejado. Inclusive os detalhes que poderiam ar despercebidos como casualidades do acaso.
— Sim, claro! As duas ou nada! — ela dá uma risada erótica. — Sim, sei que está. Sim, sim! O cheiro de... — não a ouço falar. — Certo. Até! — ela desliga e sai cantarolando, toda eufórica, com uma voz sensual, e volta ao banheiro. Ao fechar a porta, parto de imediato. Bem, parece que fui “recompensada” por minha intromissão descuidada.
Saio da casa e me afasto.
— Que situação de merda eu fui me meter!
De fato, tudo pode ser obra dele, mas é difícil dar esse maldito veredito. Tudo pode fazer sentido e, ao mesmo tempo, ser uma grande e inimaginável coincidência. Porém, eu ito que haja setas difusas apontadas em sua direção. As suas mãos podem estar movendo as peças do tabuleiro desde já.
Desde sempre.
— É mais seguro ser precavida do que pagar para ver (literalmente). Acho que vou atribuir qualquer evento, anterior e posterior, àquele lixo.
Com adas rápidas, adentro o fluxo contínuo da feira.
São quase quatorze e trinta e o meu estômago ronca súplicas desesperadas por alimento. Dou uma olhada nas barraquinhas, mas não sou atraída por nada. Então, procuro uma lanchonete para poder comer. Encontro e entro em uma bem humilde. O clima é bastante bucólico.
Uma música taciturna, ao som de violinos e pianos, toca no local. É solitária e fúnebre, como uma festa de despedida para um ente querido que tenha morrido. Nessa calmaria penosa os clientes estão satisfeitos.
E eu também.
E como duas mãos acalentadoras de uma mãe bondosa, que resguardam a segurança das suas crias queridas, sem querer que elas sofram e experimentem as dores que há na vida, esta envolvente aura melódica esparrama-se por entre as
partículas de microscópicos seres destituídos de sentidos.
Aos poucos, sou enfeitiçada por essa magia incompreendida.
O grave dos pianos, em dialogismo com o ardor dos violinos, mais a negritude saturada de Melancolia, deixa-me vagarosamente abstraída. As minhas emoções conturbadas, e os meus sentimentos terríveis, dançam em uma infeliz sintonia nefasta. Uma estética triste de lamentações, dores, choros e decepções, são engolidos por essa melodia misteriosa. Nunca imaginei, no pior dos meus pesadelos, que algo assim pudesse existir.
“Nem as histórias mais lúdicas e líricas, os poemas mais serenos e versáteis, e as comidas mais impronunciáveis, seriam capazes de traduzir o que Melancolia significaria para mim.”
Peço uma porção de biscoitos de nozes com geleia de ameixa. A minha mãe dizia que fora ela quem inventara essa receita — sim, com apenas três anos de idade. Também peço um chá quente de limão para acompanhar. Apesar de ainda continuar uma bebedora de álcool, consegui revisitar certos prazeres gastronômicos da minha infância.
Devoro tudo com uma ferocidade feia.
Alguns clientes desinibidos disfarçam para contemplarem a minha gula grosseira. Ainda insatisfeita, peço um pedaço de bolo de avelã com cobertura de amora. Minha mãe costumava fazer essa delícia para nós. Fico mais controlada e os garfos carregam pedaços tímidos em suas pontas. Outra bebida para aliviar a minha sede: um suco de pêssego amanteigado.
Depois desse banquete vespertino, que faria inveja ao maior dos príncipes mimados, recolho o meu corpo, agora, um pouco estufado.
Antes de sair, eu solto com força o ar dos meus pulmões e estico bem os braços. Prendo os meus cabelos em um grande rabo de cavalo, pois está ventando muito e eles balançam demais, além de entrarem em minha boca e olhos.
Para minha surpresa, do lado de fora, eu me deparo com a mesma senhora de antes.
— O que você quer comigo?! — irritada, enfim pergunto a ela.
Ela não responde, apenas mantém o braço esquerdo esticado em minha direção. Segura algo, oferecendo-me. Em um primeiro momento, recuso a aceitar, mas, mediante tamanha persistência, eu pego o papel da sua mão emborrachada. E a velha mulher, enquanto desdobro o papel, desaparece. Olho em volta, mas já não está mais por aqui.
Assim que começo a ler a mensagem escrita, os meus olhos esboçam o que o meu coração começa a sentir: uma lembrança sofrida, uma memória borrada...
Uma vida inacabada.
Ó, minha querida, Karen. Como tu estás? Nada melhor do que cartas, não é mesmo? Hahahahahahaha! É bom ver que você voltou à ativa, como
antigamente (como está o seu braço?). E ito: estou surpreso por você ainda estar atrás das suas feridas. Eu imaginava que você viveria para sempre igual a uma boneca quebrada. Ainda bem que errei, pois me entristecia vê-la daquele jeito. Eu até rezava a Deus para que o seu espírito Ele pudesse curar. Porém, diante de uma improvável melhora, eu tive que me expor. E aqui estou! Hehehehehe!
Saiba que eu queria, e muito, conversar com você, mas tive que me contentar, somente, com aquela ligação silenciosa. A ideia era reacender as suas chamas e, pelo jeito, foi o que ocorreu. Imaginei que daria certo, pois, como eu sei, afinal, pude saborear, você é uma mulher forte, que sabe o quer da vida. Se bem que estava meio perdida... De qualquer maneira, estou feliz por você ter voltado. Acredito que a Sarah também esteja. Ah! E parabéns pelos 28 anos. Nossa! Já faz uma década, desde que nos conhecemos, não é mesmo?
Enfim, em breve, nos veremos novamente, e eu estarei ao seu lado, como eu havia prometido. Até mais, minha doce menina.
Eu não consigo impedir que os meus olhos queimem em erupções vulcânicas e que se encham de lava. E que o meu coração bombeie agressivo ódio; e que as minhas mãos produzam colossal força.
Abro um sorriso horripilante.
Ter tido este contato direto com ele, após anos dispersos na escuridão, produz uma variedade de emoções em mim. Boas ou ruins? Foda-se! Não estou nem aí.
Enquanto fico parada, com o pedaço de papel na mão, sinto um chamado divino
me visitar. É a minha própria voz. Aquela perdida em minhas memórias infantis, de uma época ingênua. Ela grita para que eu recue e deixe esta avidez por sangue para trás. Como um agouro efêmero, a sua argumentação é que um futuro catastrófico eu irei alcançar. A sua iniciativa é forte, determinada. É a primeira vez que isso acontece.
Mas a minha angústia é maior.
E ela faz sucumbir esta enunciação dos céus, dizimando-a por completo. A minha carne e meus ossos estão sedentos. Agora, com a mensagem que confirma as minhas dúvidas, nada mais poderá me parar. Nem mesmo um possível retorno aos meus pesadelos. Nem mesmo uma calamidade maior do que ter que viver. Nem mesmo uma graça maior do que ter que morrer.
CAPITULO 26
Já faz duas semanas desde que recebi a carta. Mesmo eu tendo ficado meio agitada, dei sequência na investigação. Conversei com mais algumas vítimas, mas, dessa vez, nada foi aproveitável. A sorte que eu tive com a Bianca não se repetiu com os demais. Então, por isso, achei melhor recapitular o que eu conseguira, além de olhar para as novidades.
Primeiro: aquela senhora não era amiga da minha família. Ele a usou, sabendo que aquelas palavras surtiriam efeito em mim, e foi o que aconteceu. Mesmo sendo tão vaga e aleatória, as menções a respeito da minha mãe, mais o fato de eu estar caminhando pela cidade em que ela morou, foi a combinação perfeita para me fazer cair na armadilha. E eu disse que a velha não era suspeita.
Desgraçado! Continua brincando comigo! Provavelmente deixou as pistas de propósito, sabendo que eu mantinha contato com um detetive que também está atrás dele, trazendo-me até Melancolia. O queijo na ratoeira e o rato foi pegá-lo. Simples assim.
— Ele continua na minha frente. Preciso achar meios para sobrepô-lo. Mesmo mais atenta, ainda sou incapaz de agir sem deixá-lo me ver. Mas, o que eu posso fazer?
Ele...
Quando eu “descobri” que ele era o maníaco que assolava Agonia, acreditei que estava com o jogo ganho. Sem brechas para erros, nem equívocos. Eu o “deixei” em banho-maria, imaginando que poderia dar o xeque-mate a qualquer momento. Não foi bem isso o que aconteceu. Certamente, ele me conhecia por completo. Desde o começo, nada do que eu fazia devia ser uma surpresa. As minhas ações, atitudes...
Nada.
Igual a um ser onisciente e onipresente, acredito que ele previa cada movimento meu: empíricos e físicos. A luta estava perdida desde o início. Agora, temo que eu possa vir a percorrer o mesmo caminho.
Segundo: aquela mulher, de voz tarada, com certeza sabia que eu estava escondida na casa. Não tenho motivos para duvidar disso.
— O que será que ele fará a respeito? — eu não a vi. — E o que ela quis dizer com “As duas ou nada”? — foi estranho. — Isso pode me atrapalhar — suponho que ela saiba quem eu seja, e, provavelmente, irá me abordar em algum momento. Preciso estar preparada.
Terceiro: Melancolia... Este encanto que ela exerce sobre mim... Ele apostou alto, acreditando que eu poderia ser influenciada por esse véu negro entristecido. Outro tiro certeiro! Tomara que também saiba que eu não irei sair daqui até pegá-lo.
— Terei que lidar melhor com essas porcarias. Acho que pedirei ajuda ao Dean. Como ele também está procurando, podemos ocupar mais terreno agindo juntos.
Quatro: ele usará a minha família para me desestabilizar. Já deu uma amostra disso. Novamente, eu estava equivocada. Mais de meio ano já ou e nada mudou.
— Terei que manter estas páginas dobradas, não importa de que maneira. Sou suscetível as suas aflições.
Quinto: ele não age mais sozinho. Também deu uma amostra da sua nova forma de atuar. A minha época era apenas ele e eu. Agora, há personagens novos em nosso filme.
Ele...
Penso que, para ele, eu não ava, e ainda o, de uma gargalhada esvoaçante, que se faz ser ouvida e apreciada. Uma piada pateticamente engraçada e que pode ser repetida ao infinito, pois sempre irá proporcionar boas risadas. Um entretenimento raro que surgiu em sua vida monótona, fazendo-o experimentar uma diversão caótica. Uma coisa abjeta, sem relevância, nem dignidade. Um erro abortado em um mundo quebrado. Uma filha rejeitada em um universo desfigurado. Uma mulher destroçada em uma realidade condenada.
Para ele, eu devo ser o seu reflexo amedrontado, que se recusa a olhar os próprios olhos que são duplicados.
— Sarah... — eu quero tê-la ao meu lado, novamente, uma vez mais. — NÃO! — levanto-me da cama, com tudo. — Não... Não... Não posso me distrair! —
dou socos em minha cabeça.
Pego o telefone e entro em contato com Dean. Assim que ele atende, explico a minha intenção. Ele aceita. Então, marcamos para nos encontrarmos no dia seguinte, às nove da manhã, na mesma lanchonete que eu estive. Desligo.
— Até quando...? — volto a me deitar.
Largada na cama, eu olho à luz escurecida da lua solitária, enquanto seguro o telefone em minha mão, pensando se devo ligar para o número que pertencia a minha mãe.
— Será que ela falaria comigo? — se é que este número ainda existe. — Não... Provavelmente não. Naquele dia, eu percebi que estava tudo perdido. Naquele dia, eu vi que a nossa relação se quebrara. Mas, quem sabe... posso tentar uma reconciliação. Posso tentar fazer algo para voltarmos a nos falar. Posso tentar fazer algo para voltarmos a ser mãe e filha. Posso tentar fazer algo... Hahahahahaha! ... Como se fosse fácil assim...
CAPITULO 27. SILÊNCIO.... É A LUA NO MEIO DA ESCURIDÃO
Abro os olhos e olho para o lado. Já é de manhã. São seis e meia. Acordei mais cedo do que eu queria. Culpa da noite mal dormida que tive. Culpa deste maldito pesadelo que se arrasta dentro de mim.
Um fedor de cigarro se espalha pelo quarto. Até parece que comi uma porção dessa bosta. Levanto da cama com uma dor escrota na cabeça e no pescoço. Vou até a estante e pego alguns comprimidos. O meu cabelo está uma bagunça e estou, parcialmente, nua, somente com a minha camisa.
— Que merda é essa...?! O que é que... — dou uma coçada nos cabelos. — Ah! É mesmo... — a minha cabeça vai explodir. Sinto várias machadadas nela.
Sigo até o banheiro para tomar um banho. A água quente cai sobre o meu corpo solitário. Corpo que jamais foi tocado... Corpo que jamais foi amado... Corpo que jamais foi feliz. Por quê? — Por que eu tenho que ser assim?
Por quê? — Por que eu tive que nascer? Por quê? — Por que eu não posso sorrir? Por quê? — Por que eu preciso existir? Por quê? — Por que... Sarah...? Por que não fui eu quem teve que morrer...?
Karen, em meio a esses pensamentos sombrios...
... Começa a conversar com a sua inconsciência assombrada.
“Karen, você gosta de si?” — Não. “Sim, pois não há como, não é verdade?”. — Sim. “Karen, você é feliz?” — Não. “Feliz... Até parece. Bem, por que você fez aquilo?” — Eu... Eu... Eu...
“Não me diga que não sabe?” —... “Ora essa! Foi por que você é uma assassina.” — Eu sei o que eu sou. “Sabe? Pois me parece que não.” — Eu só queria... “Queria...?” —... “Você queria preencher este seu abismo.” —... “Sim, é isso mesmo. Indo atrás de monstros.” — Eu não sei o que eu queria. “Queria dar algo.” —... “Algo para si mesma.” — Não sei por que... fiz aquilo. “Não sabe ou não quer saber?” —... “Pois posso lhe contar.” — Eu apenas agi... “Como deveria ser.”
—... “Igual a ele.” — Sei que somos iguais. “Isso é verdade.” — Mas eu a quero... de volta. “Sim, eu sei disso.” —... “Mas não há como.” —... “Ela está morta.” —... “Você a matou.” — Quero ser... perdoada. “Impossível.” —... “Você não tem este direito.” —... “Apenas a dor lhe pertence.” — Quero poder... voltar. “Não, não há como.” —...
“As coisas só vão para frente.” —... “Pois assim é a vida.” — O quero ao meu lado... novamente. “Quem? O seu pai?” —... “É, esse foi uma pena mesmo.” —... “Morreu tão jovem.” — Ele... Ele era tão bom comigo. “Sim, eu me lembro.” — Sempre feliz por eu ser a sua... filha. “É que ele não sabia o que você era. O que você é.” —... “Essa aberração deformada.” — Eu posso mudar isso? “Não.” —... “Você não pode mudar o que você é. Você não pode mudar nada.” — Por quê? “Por que você é assim, Karen.”
—... “Essa mulher que se odeia.” —... “Que odeia este mundo.” —... “Que odeia tudo.” — Eu não... Eu... Eu... “O quê?” —... “O que, Karen?” — Apenas não consigo... “Não consegue...?” —... “Não consegue o que, Karen?” —... “Sentir? Existir? Viver?” —... “Pois é. Nenhum deles faz sentido em você. Nunca fizeram.” —... “Por isso que você vive neste tormento eterno.” — Quero que tudo acabe.
“Sim.” — Que tudo fique em silêncio. “Sim.” — Por que eu quero isso...? Por que eu sempre quis isso?
“Por que você quer ser salva. Você quer que o ado te perdoe. Mas o ado não pode te perdoar. E você não pode esquecer o ado, Karen. Não pode esquecer quem você era. Não pode esquecer quem você é. Não pode esquecer o que você fez.”
— Sarah... Irmã... — os meus olhos se molham.
Não sei se riem. Não sei se doem. Não sei se choram.
Desligo o chuveiro.
— Eu preciso ir... — não posso sucumbir a estes pensamentos.
Saio do banheiro.
No quarto, em frente à janela fechada, eu olho para uma cidade calma, uma cidade em silêncio. Coloco uma calça jeans e uma camisa preta de manga comprida. Estão todas amassadas, mas quem se importa?
— Espero que o Dean apareça no horário, afinal aquele cara não bate bem das ideias.
Eu desço.
— Acho que vou matar um tempo aqui no saguão — sento-me e peço uma xícara de café. Não sou uma apreciadora dessa merda quente, mas pode me ajudar com a ressaca. — Vamos ver o que tem no jornal — enquanto tento ler o jornal local, que prefere dar mais ênfase as peripécias culturais, eu deixo o tempo ar.
Após um bom tempo, e três xícaras de café, algo chama a minha atenção. Eu sinto uma energia faminta me observando. Não sei dizer de qual lugar ela vem, mas posso senti-la respirando, como se eu estivesse com o meu ouvido em seu peito. A minha pele se arrepia toda. Eu fico atiçada, em alerta. O sangue treme dentro dos meus ossos. Uma fumaça densa se enrosca por meu corpo.
Procuro, olho em volta, mas não vejo nada.
— Merda! Estou sendo vigiada.
Eu me levanto e vou até o gerente.
A fim de descobrir onde tais olhos se camuflam, crio o seguinte plano: solicito a Savage que chame o guia do hotel para que ele me apresente à história desta
construção antiga. Quem quer que esteja me observando, terá que locomover-se ao meu ritmo. O levarei até um local vazio, sem ninguém presente, e, assim, conseguirei descobrir quem é o meu doce príncipe misterioso.
— Claro! Vou chamá-lo! — Savage, animado, diz.
O folclórico guia surge e começa o seu trabalho.
Ele fala a respeito dos primeiros tijolos que dariam origem ao atemporal Pokiel. Fala a respeito do fundador, que deu o próprio nome para o edifício. Fala das autoridades que aram por aqui. Fala dos bailes aristocráticos e das festas burlescas que já foram feitas, mas lamentando por não ser mais assim.
Eu vou forçando a sua exposição para áreas que me beneficiem.
Vamos até uma espécie de porão, onde um tipo de museu esconde-se dos olhares dos hóspedes. Várias peças que trazem um pouco (não só) da história da cidade. E enquanto o guia continua falando, eu vejo algo familiar: uma fotografia da inauguração da confeitaria da minha avó.
A minha avó Esmeralda está sorridente, sendo abraçada por meu avô.
Fico algum tempo apenas olhando-a.
— Senhorita? Senhorita?
— O quê?! — assusto-me, e sinto ter saído de uma hipnose.
— Me desculpe. É que você pareceu ter ficado abstraída na fotografia.
— Merda! — essa fotografia perdida me capturou. — Porra! — olho em volta, mas já não sinto mais estar sendo observada.
O guia estranha a minha reação, porém insiste para que voltemos ao eio. Antes, pergunto onde arrumaram e há quanto tempo à fotografia está exposta.
— Bem, foi um presente dado por uma mulher muito bonita, e faz apenas três dias que a colocamos na exposição. Estava conosco já há algum tempo, mas precisávamos levantar a sua historicidade, antes de expô-la — eu não o respondo.
O guia tenta me conduzir para que voltemos ao eio, mas eu o ignoro e retorno ao meu quarto, quase que correndo. No caminho de volta, eu confirmo que a presença realmente foi embora.
— Que sensação atroz foi aquela?!
No quarto, o relógio marca sete e meia. Ainda falta um tempo considerável para eu me encontrar com o Dean. Não planejei falar com ninguém hoje, exceto com o detetive conspiracionista. Contudo, imprevistos sempre tendem a surgir.
Sempre.
— Acho melhor me precaver mais.
Eu elaboro outro plano improvisado. Seguirei até uma área isolada que me permita ver quem se aproxima.
— É melhor do que nada.
Visto um moletom preto e um gorro preto. Pego a minha mochila e enfio todas as minhas anotações nela. Saio.
Na rua, pergunto a um vendedor de tecidos onde tem um lugar ermo, com pouco movimento (nenhum seria melhor). Ele responde dizendo que isso não existe, mas que há uma famosa e velha casa que foi abandonada por seus donos, afastada do centro da cidade, em uma área com poucos moradores em volta.
Ele explica que, após a morte de uma das filhas, a família começou a acreditar que ela ara a vagar pelos corredores da moradia. Com a popularização da história, a antiga residência foi taxada de amaldiçoada e, desde então, mais ninguém se aproxima.
— Mas você não pretende ir até lá, certo menina? — com um sorriso assustado, enquanto coça a testa, ele deve imaginar que eu confirmarei a sua pergunta.
— Sim, pretendo — o vendedor tem o sorriso derretido.
— O que você quer, indo até lá?
— Nem queira saber — respondo e já me afastando dele. — Melhor ligar logo para o Dean — mas ele não atende. Eu sei que ele não dorme até tarde, e que jamais evitaria em me atender. — Ele deve estar em alguma situação que o está impedindo — ligo outra vez. — Droga! — continua sem atender. A minha ideia é mudar o local da nossa conversa. Se eu estou sendo vigiada, certamente ele também está.
Eu chamo um táxi.
Enquanto sou levada ao meu inesperado destino, continuo tentando ligar para o louco detetive. Ele não atende nenhuma das ligações, então deixo três mensagens, dizendo o lugar para me encontrar, na esperança de que retorne o mais breve possível.
— Isso é muito estranho — digo, preocupada, sentindo-me ansiosa.
Eu persigo assassinos, psicopatas, monstros e mais algumas espécies sanguinárias há muito tempo, mas nunca senti este alarme ir rasgando o meu corpo. Quando eu ainda era uma adolescente, prestes a entrar na fase adulta, transitava tranquilamente por este mundo podre. Agora, com muita experiência adquirida, por osmose e vivida, pela primeira vez, estou com uma postura receosa, resguardada. Algo não está certo nesta manhã...
Neste dia.
Aquela foto da minha avó... Os meus os continuam sendo previstos com extrema facilidade, em qualquer lugar ou parte. E o Dean? Onde aquele idiota estará?! Nunca deixa de me atender, porra! Algo definitivamente não está certo...
Cheguei.
Saio do carro. O taxista vai embora e fico do lado de fora da casa, olhando-a. Não estou com medo de espíritos, nem de fantasmas. Isso não existe. É com aquele maníaco que eu preciso tomar cuidado. Não é por que estou disposta a matá-lo, e ir junto, que ele queira o mesmo. Se eu tombar sozinha, nada terá valido a pena. Terei perdido a minha mãe e a minha Sarah, e ele terá vencido.
E não posso permitir que isso aconteça.
Porém, a vida é mais caprichosa do que aparenta. Inclusive, às vezes, deixa que certas pessoas a possuam, como uma resignada e idiota condessa. Mas, na verdade, ela sabe que tomará o controle a seu bel-prazer, quando quiser, em qualquer momento, obrigando os seus patéticos brinquedos a diverti-la.
“Naquela manhã gelada e negra, eu não esperava ser, mais uma vez, humilhada por sua diabólica superioridade.”
Assim que entrei, encontrei o Dean deitado sobre um chão avermelhado.
Consequência de ter tido a sua garganta destroçada.
— Mas... Como...?! — fico contemplando, atônita, essa cena dantesca. — Como ele soube...?! — mas as sirenes dos carros da polícia me fazem recobrar a consciência. — Merda!
Se eu for capturada, poderei explicar que não fui eu. Haverá maneiras de provar isso. Exames de DNA, filmagens, hora da morte, testemunhas... Enfim, vários recursos possíveis para comprovar a minha inocência. Mas... quem garante que ele também não os tem sob as suas garras? Até onde eu sei, ele é capaz de envolver as suas mãos por todos os lados.
“E eu estava certa.”
Neste momento, de puro desespero, não tenho dúvidas: eu serei incriminada, julgada e condenada. Ou...
Entregue a ele.
Por isso não posso arriscar e ficar esperando os policiais me alcançarem. Nem mesmo a minha recente fama de “justiceira” valerá algo, pois sempre serei lembrada por ser a jornalista que matou a irmã.
Assim, no calor da adrenalina, eu saio correndo loucamente, sem um destino concreto, apenas querendo fugir. Até o meu gorro acaba caindo.
Se eu for levada, muito provavelmente, será o meu fim.
Apesar das maravilhas que me fazem ficar encantada por Melancolia, ela tem um problema grave: não existem muitas árvores, plantas, bosques, florestas... Natureza! Tudo é feito de cimento, concreto, blocos e tijolos; e sempre há um indivíduo enfiado em algum canto escuro, xeretando. Isso está dificultando a minha fuga.
— Desgraçado! Jogando a polícia para cima de mim! — estou ofegante, com as mãos nos joelhos, e com a mochila nas costas, atrás de uma rua, tentando recuperar o ar. Se eu soubesse que aria por algo assim, teria evitado fumar tanto. Os meus pulmões parecem que vão explodir.
Ouço os sons das sirenes ficarem mais agudos, mais próximos. Mesmo eu sabendo onde ficam alguns lugares, não conheço Melancolia de verdade. Isso faz a minha fuga ser atabalhoada, sem um planejamento digno.
Vejo-me em uma área mais cheia e tento, inutilmente, não chamar atenção, mas é impossível. Uma garota alta, de longos cabelos vermelhos, com trajes atípicos, toda suada e correndo pelas ruas, é claro que todos irão olhar. Inclusive, ninguém evita em apontar o dedo para mim. Contudo, por mais que eu seja uma barata presa em uma caixa, preciso continuar.
— Sarah... — mas já estou exausta.
Eu preciso continuar!
— Mãe... — e o meu peito dói.
Eu preciso continuar.
— Pai... — não estou conseguindo respirar direito.
Eu preciso...
Porém, minha força de vontade, aos poucos, esvai. As luzes vermelhas que surgem no horizonte me fazem ficar sem um pingo de esperança (não que eu tivesse). As minhas pernas tremem, acovardam-se.
“Mulher fraca.”
Eu paro de correr e caio de joelhos sobre o chão duro destas ruas cinzentas. As gotas clichês que do nada caem do céu é a cartada final para a minha derrota absoluta. Também sinto um terrível corte latejante ear por meu corpo. Assim, em minha aceitação moribunda, por minha derrota iminente, recordo à época em que eu poderia ter sido considerada uma coisa boa — não sei por quem. E em meu desgosto perpétuo, apenas me entrego. Não há mais o que fazer.
— Pai... Mãe... Sarah... — os carros se aproximam.
É o meu fim...
“Ou não?”
Enfeitada por sua luxúria sádica, e egocentrismo perverso, novamente a vida decide movimentar o tabuleiro sem deixar os adversários verem. Então, um carro preto surge do nada, saindo de um beco estreito. Como ele ou por ali? Não me atrevo a responder.
Uma porta se abre.
O interior do carro é escuro, e quase não dá para ver nada. Mesmo assim, eu olho e obedeço ao ser misterioso que me chama com um gesto de mão. Pulo no banco do ageiro, imediatamente. O motorista dá uma ré esdrúxula, retornando para a viela espremida.
Estou salva?
O motorista dirige enlouquecidamente por ruas escondidas, desconhecidas. Segue sem hesitar, rumando para algum lugar...
Seguro?
Após dirigir muito, já bastante longe, ele finalmente para. Ele continua em silêncio e sai do carro. Entendo que tenho que fazer o mesmo. Este lugar é ainda mais escuro. Estamos em frente a uma casinha protegida por morros altos e, veja só... Porras de árvores!
— Ainda estamos... Ainda estamos em Melancolia? — apavorada e toda nervosa, pergunto a ele. Ele... O que ele é...? Que roupas são essas...?! Essa máscara... Parece um ceifador... Não dá para ver quase nada... Ele assente com a cabeça e aponta para cima. — Verdade... Ainda é muito escuro — estou completamente distraída.
Com um gesto de mão, insinua que eu o acompanhe até a casinha. Aceito a sugestão. Ando devagar, para não cair. O meu coração está batendo tão alto que imagino ser possível ouvi-lo de longe. O sujeito destranca a porta, esperando que eu entre. Antes, faz um sinal com a mão, perguntando se eu tenho um celular. Digo que sim e mostro. A sua mão estendida é a exigência para que eu entregue. Eu faço. Também pede a minha mochila. Entrego. Feito isso, ele oferece a porta para mim. Entro. Assim que eu ultrao a demarcação, criada pela porta de metal, ele a fecha com força.
— Ei!? Você! Ei!? Que merda é essa?! — ele não responde.
O ouço dar a partida no carro. Eu tento destrancar a porta. Dou socos, chutes e cotoveladas. Bato, xingo e grito.
De nada adianta.
Estou histérica, com todo o tipo de merda ando por minha cabeça. Será mais uma das artimanhas daquele animal? Mais uma das suas táticas sadistas? Mais uma das suas ideias para foder comigo?
Percebo que é inútil continuar forçando a agem, então saio procurando alguma alternativa. Não há mais portas, somente uma minúscula janela. Um banheiro, uma cozinha e um quarto, e certa quantidade de mantimentos. Apenas isso. Dou um sorriso rápido, fodido, pois entendo o que significa.
— Estou em uma porra de cativeiro!
CAPITULO 28. UMA SOMBRA AINDA BRILHA
O meu cabelo está enorme, tanto que posso enrolá-lo em meu corpo. E ito: está irado! Acredito que a Sarah iria adorar vê-lo assim.
“Quando eu abri os olhos, pude jurar que era real. Ou, talvez, eu quisesse acreditar que fosse real. Na verdade, eu desejava que fosse real. Enfim... Poder revê-lo... olhar para ele... tocar em sua mão... ser abraçada novamente... Nunca imaginei que aria por isso. Nunca imaginei que pudesse experimentar tudo aquilo. Quero dizer, ele já estava morto e continuo não acreditando em fantasmas. Mas a minha situação era tão fodida que, sei lá, a minha sanidade foi para o caralho e, honestamente, sei que não foi imaginário. Por isso, poder ter tido o meu pai comigo, novamente, foi... maravilhoso.”
“Eu estava largada no chão, após não sei quanto tempo trancafiada naquela casa. Já tinha perdido toda a noção da realidade, e minha mente estava em migalhas. Comecei a enlouquecer de uma maneira bizarra. Caralho! Não sei como eu conseguia ar por tudo aquilo. Bem, já devia ser de noite, pois me recordo de ouvir alguns grilos cantando. É... acho que era de noite sim. E eu estava faminta, mas tinha que racionar a comida. Então, foi quando aconteceu.”
“Após me levantar, para cair de novo, eu o vi surgir. Ele usava uma das suas camisas favoritas, as mesmas que usava quando adolescente, e as que eu ei a usar também; e uma calça jeans, que ele tanto adorava. O seu cabelo estava jogado para trás, deixando o seu lindo rosto livre. Ele saiu não sei de onde e veio até mim, com os lentos, mas amigáveis. Veio até mim... a sua filha. E quando se abaixou para me olhar, ele estava com um bonito sorriso. Olhou para o meu rosto imundo e tirou os cabelos que caíam sobre a minha boca suja. E
com a sua mão doce, afagou os meus cabelos com tanto carinho.”
“Eu ainda estava meio entorpecida. Levei certo tempo até retornar para o meu corpo. Porém, quando consegui, foi uma das melhores sensações do mundo. Desesperadamente, peguei em sua mão com tanta força que acho que a quebrei novamente. Os meus olhos doíam. Tentei dizer tantas palavras que, no fim, acabou não saindo nada. Mas pude ver em seus olhos a saudade que sentia e o amor que nutria por sua filha. E ele não parecia magoado por eu ter matado a Sarah, nem por ter destruído a Amy.”
“Ainda me lembro de ter sido levada com carinho até a minha cama bagunçada. Ele me pegou no colo e me abraçou com segurança, como fazia quando eu ainda era uma pequena menina; e me colocou com jeitinho. E eu estava um lixo — tanto por fora quanto por dentro. Mas ele não se importava, pois eu ainda era a sua filha. Talvez não aquela de quando ele ainda era vivo, mas... eu ainda era a sua filha. A filha que ele amava tanto e que sonhava em ver crescer.”
“Depois, ele ficou falando a respeito dos seus pacientes, que não paravam de reclamar das dores que sentiam e das enfermidades que os acometiam. O meu pai não estava reclamando, gostava de ouvi-los, pois, assim, podia procurar dar aquilo que eles mais queriam.”
“Após algum tempo, ele disse que precisava ir. Antes, porém, eu consegui dizer algumas frases, tipo: — Por favor, não me deixe aqui! Não aguento mais ser... sozinha. Ou: — Me perdoe... por ter matado... a Sarah. Ou: — Eu acabei com a vida da minha mãe! Ou: — Você é a única luz que pode me salvar! Ou: — Por que eu não sinto...?! — e em nenhuma delas ele disse algo, apenas ficou me olhando e sorrindo. Sorrindo... Sorrindo para algo que não merecia nada daquilo.”
“Quando ele beijou a minha testa encardida e seguiu em direção à luz, que vinha não sei de onde, eu tentei me levantar para impedi-lo, mas não consegui. O meu corpo não se mexia. Não sei que porra estava acontecendo, mas... o meu corpo não se mexia. Agora, acredito que ele tenha voltado para a sua família — da qual ele foi expulso. O meu pai nunca superou aquela dor. Talvez... pode ser que ele tenha levado a Sarah consigo... Mas eu gostaria de ter ficado mais ao seu lado. Apreciando a sua voz, o seu olhar... Mas não foi assim. Engraçado que eu não me lembrava de ter vivido isso naquele período. Foi somente após tudo ter acontecido que essa lembrança ressurgiu.”
“Segundos após a sua ida, fui obrigada a me lembrar de que eu ainda estava presa naquela droga de mundo. Na minha merda de vida.”
“Depois, disseram-me que fiquei presa durante seis meses. Foram seis meses. Seis meses presa em buraco apertado, fedido e sujo. Contudo, posteriormente, eu descobriria por que fiquei ali. Porém, no início, eu tinha certeza de que era ele agindo. Uma forma para me fazer sofrer. Uma forma para fazê-lo rir.”
“Durante seis meses, eu precisei racionar mantimentos e utensílios íntimos, como se estivesse vivendo na maior desgraça. E eu nunca sabia em qual parte do dia eu estava. Não havia relógio, nem televisão, nem rádio. A escuridão de Melancolia me deixava perdida no tempo.”
“Durante seis meses, eu precisei retornar para o meu âmago. Para olhar aquilo em que eu me transformara com o ar do tempo. E isolada de tudo, eu precisei juntar forças, que já acreditava não ter mais, para ar a minha nova realidade. Não havia nada para que eu pudesse me entreter. Não havia livros, revistas, jornais. Nada. Era eu comigo mesma...”.
“Era eu com o meu pior pesadelo.”
“Durante seis meses, houve dias em que eu desejava estar em coma para não ter que lidar com a minha consciência. Para não ter que lidar mais com a minha existência. Eu alcancei um nível de ansiedade e angústia que faria muitos depressivos ficarem com inveja. Caralho! Foi péssimo! Mesmo assim, eu me mantive...”.
“Por ela.”
“Eu fiquei ainda mais cansada de ter que existir. ava o dia andando, de um lado ao outro, sem ter uma razão para estar fazendo aquilo. Podia ficar olhando para o teto, traçando figuras inexistentes, para poder me distrair, por horas. A insanidade era tanta que atividades obscenas surgiam como possíveis saídas. Às vezes, sei lá como, eu também me exercitava, para ter o mínimo de condição física. Porém, ainda na loucura cega que eu estava inserida, nunca deixei de me lembrar de toda a dor que acontecera em minha vida, e que eu causara em outras também.”
“Durante seis meses, eu quis espancar, esmurrar, quebrar, dilacerar... e perguntar ao motorista misterioso por que ele me deixara lá, sozinha, apenas comigo mesma. E perdida em ideias confusas, eu quase pendi para a esquizofrenia — igual a uma amiga. Ainda assim, de alguma maneira, eu encontrava meios para me manter sã. E tentando fugir da loucura, eu me recusava a ouvir as vozes e as figuras, conhecidas e desconhecidas, que se lambiam em minha mente, diante de mim. Elas podiam ser a minha irmã ou o meu pai. A minha mãe ou a minha querida Sofia. As vítimas ou os assassinos. Não sei dizer ao certo. O que eu sei é que, se aquilo era uma punição, ainda era menos do que eu merecia.”.
“Quando eu recobrava a lucidez, mesmo que por breves momentos, eu começava a gritar, toda histérica e agressiva. Eu gritava, chamando pelo nome
do meu pai, o da minha mãe e o da minha irmã. Eu queria senti-los em meus braços. Queria poder beijá-los e dar tudo o que eu nunca expressei em palavras e, minimamente, em ações. Claro que esses momentos mais reflexivos eram sobrepostos por outros maiores, mais horríveis, alucinantes... fodidos”.
De repente, enquanto estou deitada neste chão do banheiro, contando pela milésima vez a quantidade de azulejos, a porta da sala se abre. Uma silhueta é projetada, consequência de alguma luz que é atirada. Estou muito louca, viajando pela galáxia mais distante, mas, ainda assim, consigo ver um indivíduo. Ele me pega no colo e me leva para algum lugar.
Algo começa a movimentar-se. Deve ser um carro... Não sei... Minha cabeça está uma grande bosta... É, acho que é um carro sim.
Não sei quanto tempo já ou, mas parece que estou viajando. Será que eu dormi...? É, devo ter dormido... Mas quem é que está falando...? Que voz estranha... Será que ainda estou dormindo...? Será que estou sonhando...? Não sei se é um sonho, mas ouço alguém falar, dizendo que pegou a garota...
Será que é ele...?
Você precisava ser assim, ser isso, pois isso é você. Vagar pelas sombras. Ser infeliz. Sim, quanto a isso você não tinha escolha. Mas ela... Ela você escolheu. Você escolheu sacrificá-la. Mas veja, Karen: você só precisava ter escolhido morrer.
— NÃAAAAAAO!!! — este grito foge do meu coração. — Onde... eu estou...?! — estou fraca, cansada, mas consigo ver alguém. — Quem...? — apago de novo.
Não, Karen. Não quero a sua compaixão fracassada. Não quero a sua empatia vazia. Não quero a sua amizade renegada. Não quero ter que tocar na sua mão encardida. Não quero ter que sentir a sua presença ridícula. Quero apenas uma única coisa: o fim da sua bosta de vida.
— SARAAAAAH!!! — os meus olhos, aos poucos, começam a se abrir. — Arf, arf, arf, arf, arf, arf, arf... — e quando percebo, no acordar silencioso das trevas, estou em frente a uma casa, ainda dentro do perímetro de Melancolia (eu sei disso, pois ainda é bastante escuro). E uma casa velha, engolida por uma floresta impossível, é o que eu vejo de dentro deste carro.
O sujeito sai e me ajuda a descer, conduzindo-me até a casa.
Entramos.
O interior é úmido, poroso. Há goteiras por todas as partes. Estou péssima, cambaleando com vontade. A figura misteriosa me ajuda a ficar em pé, apoiando-me em seus braços. Mas a verdade é que eu gostaria de poder socá-lo, por ter me obrigada a ficar naquela merda sozinha. Mas não faço, pois não tenho forças. Em vez disso, torno-me a criança que eu nunca fui: obediente e resignada.
Enquanto subimos uma pequena escada, envolvidos por uma morna luz amarga, sinto o meu coração pulsar de uma maneira que jamais fizera. Há uma familiaridade no ar. Um sabor nostálgico. Um gosto antigo. Uma presença caseira. Um som metalizado que quer romper a intransponível barreira do tempo.
Ao entrar em um quarto nojento e triste, os meus olhos voltam a respirar. E mesmo fora de mim, consigo identificar a pessoa que está de costas. E mesmo fora de mim, sei que essa pessoa olha, saudosamente, para o ado, como se quisesse retornar a ele sem as perdas e dores que lhe foram dadas. E mesmo fora de mim...
Eu sei quem é essa mulher.
“Ela usava um vestido longo e preto, e estava com o cabelo preso. Pôde me receber com a sua voz límpida e inatingível, mesmo tendo que enfrentar a sua maior praga. E apenas disse duas palavras que eu sempre imaginara que ficariam, eternamente, presas no ado.”
— Olá, Karen.
CAPITULO 29. AMY E KAREN
Anos após ter se formado na universidade, e se casado, Amy deu início a própria confeitaria. Após algum tempo já em funcionamento, decidiu mudar o nome do estabelecimento em homenagem a sua mãe. Já Sam havia conseguido se formar em medicina, mas ainda tentava lidar com o trauma que havia ado. Ambos eram assim: duas forças da natureza, com as suas fraquezas, que se completavam, indo em direção ao paraíso, mesmo sem terem asas. Eles até já tinham tido a primeira filha. Foi Sam quem escolheu o nome “Karen”.
• • •
Estou boquiaberta. Fraca, eu mal consigo me manter em pé. A minha face se retorce toda. Sinto os meus ossos chorarem. Eu tremo. A minha barriga dói. Os meus olhos incendeiam. Tenho dificuldades para respirar. Eu não penso em mais nada.
— Mãe...?!
Sem reação, ela apenas me olha com olhos álgidos. A sua face é a mesma, mas, agora, está carregada de sofrimento e dor, mas que se recusa a ser tomada por eles. Porém, também é forte. É segura...
E escura.
Eu desmaio.
Em algum momento no ado:
— Sam, querido... Eu ainda te amo, mais do que tudo. Mesmo que você esteja aqui, sozinho, neste cemitério, longe de mim, o meu amor por você só aumenta. Sim... Sarah também está aqui, ao seu lado, eu sei disso. Mas eu me refiro a nós — Amy enxuga algumas lágrimas. — Não vou dizer que é fácil continuar sozinha... Continuar sem você, meu bem... É difícil, Sam... Sem a minha... Sem a nossa filha... Quando eu a tinha... — sua voz falha. — Era mais ável. — Amy olha para o céu. — O que ela fez...? — Amy volta a olhar à lápide. — Peço que me perdoe pelo que irei fazer. Mas, por favor, entenda... Eu preciso! É a única forma que eu enxergo para continuar a viver. — ela dá uma risada abstrata. — Não vou conseguir prosseguir, Sam... Não enquanto aquilo ainda existir — Amy se vira para a outra lápide. — A nossa Sarah... era tão bonita... tão alegre... — balança a cabeça em negação. Sua voz volta a falhar. Caem mais lágrimas. — O que ela... faz aqui? — sua respiração torna-se mais agressiva. — Sarah... O que ela... O QUE ELA FAZ AQUI?! — Amy grita. O seu corpo é tomado pelo ódio. — Karen... — uma aura sombria brota do seu coração. — Karen... — Amy vai embora, sem se despedir.
Atualmente:
Eu acordo.
Estou deitada em uma cama. Sinto-me um pouco melhor. Quando olho para o lado, vejo a figura misteriosa cuidando de mim...
Mas é a voz que ecoa da porta que me arrepia.
— Olá, Karen — apesar de poucas, sinto o impacto das suas palavras, pois saem com desprezo e nojo. Saem com ódio.
Eu me levanto sem equilíbrio e esboço um caminhar em sua direção, imaginando obter um abraço ou algo parecido.
Que nada.
A minha mãe está mais velha, mas continua elegante e esbelta. Os seus cabelos ainda são vermelhos, mas a sua aparência... Esse vestido preto, com uma gola que encobre o seu pescoço, com mangas longas que escondem os seus braços, e comprimento que desce até os seus pés, dá-lhe um ar obscuro. E o seu olhar... O seu olhar maravilhoso não existe mais. O seu olhar... O seu olhar, agora, é tenebroso, nefasto. Que olhar...
Que olhar é esse?!
— Precisamos conversar — ela fala, e com um gesto assertivo, pedindo ao homem que saia.
— Mãe...? É você... mesma...?
—... — ela não responde.
Fico olhando-a. Será verdade...? Isso... Isso... é real...?
— Karen, precisamos conversar. Então, não comece com bobagens.
— Mãe...?
— Bem, vejo que ainda está confusa. É sobre ele que precisamos conversar.
— Ele...? Sim... Sim! Ele voltou, mãe! Ele voltou! Lá em Melanco...
— Eu sei. É por isso que estou aqui — ela me interrompe.
—?
— Por favor, sente-se — eu a obedeço.
Mãe...
Apesar de vê-la com menos frequência, Sarah ainda adorava ficar sentada no
meu colo. Mesmo já grandinha, pedia para sentar no meu colo, em público mesmo. Ela não tinha vergonha. E eu... eu... eu a entreguei a ele...
Como eu pude fazer isso?!
Eu já sabia que ele era o maníaco que matava as meninas e, mesmo assim... Eu acreditava que ele fosse um imbecil pervertido. Um ninguém que não fazia ideia que eu o investigava. Mas a verdade é que ele tinha plena consciência de que eu já sabia que ele era o psicopata. Como eu pude deixá-la nas mãos dele?! Era óbvio que a mataria! Esse era o seu papel!
Não adianta... Eu nunca mais a verei... Se eu pudesse trocar de lugar com ela...
— Mas você não pode! — minha mãe diz, com a voz cheia de raiva. Eu nunca conversei com ela a respeito do que eu fiz. Nunca houve essa oportunidade. Afundo-me em mim mesma e isso parece incomodá-la. — Recomponha-se. Preciso te dizer o que está acontecendo — eu faço um esforço colossal, pois estou muito fragilizada. — Karen, antes de tudo, eu quero que saiba de uma coisa — o que será que ela...? — Não estou aqui por você — ela diz, mantendo o olhar fixo em meus olhos. — O meu objetivo é pegar o sujeito... — ela parece esperar que eu diga algo. — Após muito tempo tentando esquecer a minha antiga vida, percebi que isso seria impossível. Jamais esqueceria a minha Sarah... o meu Sam... — a sua voz dá uma vacilada. — Por isso, há alguns anos, decidi dar uma basta nisso tudo que você começou, e ei a investigar a respeito daquele homem.
— “Alguns anos?”. Você sabia... sabe quem ele é...? Onde ele estava...? Onde ele está...? Por que não me contou... para que eu pudesse... acabar com todo... esse sofrimento?! — ela não responde, apenas parece esperar que eu encontre a resposta para o que falei. E eu me sinto uma bosta ao entender o porquê de ela
ter se mantida oculta. Minha mãe não quer só acabar com aquele merda. Ela também quer a outra metade. — Então... é isso... — eu abro um patético sorriso.
Ela continua serena, irrepreensível. A sua sobriedade é maligna.
Foi ingenuidade minha querer acreditar que ela ainda procuraria ter algo comigo. Que ela me perdoaria. Perdoar... Eu mesma não me perdoei... Então...
Por que ela faria?
— Desculpa... — digo, olhando bem no fundo dos seus olhos.
— Cale-se! Sua pilha de excrementos! — o meu corpo trava. — Eu não quero as suas desculpas! Guarde-as para você mesma! — ela deixa aparecer o seu rancor, o seu asco. A sua voz é firme, agressiva. — E você continua a mesma cadela egoísta! Continua somente pensando em você!
— Mãe...?
— “Por que eu não te contei?”. Humpf! Quanta arrogância, Karen! — eu me acovardo e recebo com pesar as suas palavras. — E não se refira a mim como sendo a sua mãe. Pois há muito tempo você deixou de ser a minha filha — ela fala, enquanto se levanta e pega uma pasta cheia de papéis dentro.
A última impressão que eu tive... Esquece. Pensei que ela queria manter a antiga
imagem minha. Não, não foi isso. Naquele quarto, o seu desprezo, o seu ódio...
Já eram reais.
Eu me sinto acuada, um animal assustado. Todo o meu comportamento antipático, as respostas frias e a alienação com o sofrimento alheio são engolidos pela submissão que me é imposta pela presença da minha mãe.
O que é ela...? Quem é isso...?
Espero ela se dirigir a mim, antes de eu voltar a falar. Percebo que ela gostaria de me matar aqui mesmo. O seu corpo expele uma essência tão canibalesca, de uma maneira tão intensa, que se torna físico no ar. Qualquer movimento errado ou palavra mal escolhida que eu fizer, pode desencadear um vulcão aprisionado.
— Aí está tudo o que você precisará para saber a respeito dele. Inclusive, o seu nome verdadeiro — ela se senta.
— O QUÊ?! O nome dele?! — eu sinto um extirpar percorrer as minhas tripas. Eu não me refiro a ele pelo nome, pois sei que é falso, já que nunca consegui descobrir o verdadeiro. Então, como ela foi capaz de algo que eu, sendo uma jornalista, nunca consegui? — Ele não tentou... ir atrás da senhora? Quero dizer... como uma forma de me atingir?
— Talvez sim — ela não parece estar com paciência para responder as minhas perguntas. — Aliás, estávamos te observando há algum tempo. Parece que
tomamos a decisão correta. E assim que ele agiu, vimos que também era a nossa vez.
Observando-me? Será... Será que era ela, lá no Pokiel?
— Bem, e onde a senhora estava?
— Você não precisa saber — ela me olha séria. — Agora, ouça. Você irá ler tudo o que está nessas anotações. Não tenha pressa, pois te darei tempo para isso. Depois explicarei melhor quais são as minhas intenções — ela sai do quarto.
— Mãe...
Eu me jogo na cadeira, olhando para o teto podre desta casa intragável, e percebo como a minha vida é miserável.
— Então... ela estava me seguindo... durante todo esse tempo...
Não há perdão para os pecadores.
— Mãe...
Não sorrio, pois estou triste por minha condição irreversível. Triste por estar
marcada com um estigma intratável. Triste por nunca mais poder ver o meu pai. Triste por nunca mais poder ver a minha irmã. Triste por não poder mais ser a sua filha. Estou triste por não ter morrido naquele dia.
CAPITULO 30
Sinto-me melhor, após um mês. Minha aparência melhorou também. Continuo com os cabelos enormemente compridos, pois é uma forma de agradar alguém... Mas eu não preciso mais fugir das alucinações, nem contar os azulejos do banheiro. O único problema foi enquanto eu lia as anotações. Isso extrapolou a minha ansiedade, tornando-a grosseira. Eram escritas que explicitavam como ele mantinha os seus olhos sobre mim, desde sempre. Escritas a respeito das possibilidades que ele teve para fazer o que quisesse comigo. Escritas a respeito do seu ado intransponível que eu nunca fui capaz de enxergar. Escritas a respeito das suas várias vítimas, que foram largadas pelo caminho. Escritas a respeito das suas duas filhas, que ele mesmo foi capaz de consumir. Os seus nomes eram...
São: Lavínia e Jasmim.
E por meio de uma piada de mau gosto, feita por crianças arteiras, eu tomei conhecimento do seu nome verdadeiro.
— Então, é isso...
Agora, perto do término da leitura dos textos, eu sinto que adentrei em um novo mundo. E neste último dia, ao encerrar da última folha, repousando-a em cima de uma mesa torta, um novo capítulo inicia para mim. Um capítulo que eu jamais seria capaz de encontrar. Que eu jamais seria capaz de descobrir.
Cansada, eu saio do quarto. Já é de noite. O tempo ou como sempre a.
Procuro por minha... Minha mãe e eu não conversamos muito neste mês que ou. Ela me evitou durante todo o tempo. A impressão que eu tenho é que uma vastidão erma a tomou. A impressão que eu tenho é que a profundeza a engoliu.
O que foi que eu fiz...?!
Ela está em outro quarto. Sentada, conversa com o homem. Homem que, por sinal, ainda não me foi apresentado. Eu estava tão dispersa com tudo o que ocorreu que sequer me atentei ao fato de ele estar sempre usando uma máscara doctor plague, e um sobretudo negro, iguais aos originais — mas em vez do chapéu, ele usa um capuz.
Que sujeito sinistro.
Ainda assim, apesar de ele ter me trancada naquela casa, durante seis meses, eu deduzi que foi uma ordem da minha mãe, como uma alternativa para me “proteger”. Pelo menos é o que eu acredito para não ter que pensar que ela, na verdade, quis me fazer sofrer. Contudo, não estou zangada. Não importa se foi ela. O que mais poderia ter sido feito? Eu iria ser capturada. Não faço questão de perguntar, então... Mas, sabe, é muito louco pensar que a minha mãe foi envolver-se com tudo isso. Eu sei que há vários motivos para ela ter se metido em toda essa porcaria, mas, mesmo assim...
Eu ainda não consigo acreditar.
A Amy gentil, educada, bondosa, pura, que havia antes e essa que surgiu são tão destoantes, estranhas, opostas, erradas. É difícil...
Difícil de acreditar.
— Já terminei — digo, com a voz cansada. Ela me encara.
— Ótimo. Agora, preciso situá-la a respeito dos meus próximos os.
—... — já?
— Mas, antes, eu preciso que você veja algo — ela liga uma televisão antiga que está no quarto. Deve ter trazido hoje, pois não estava aqui até ontem.
— O que você quer que eu veja? — ela não responde.
E eu vejo o porquê.
Eu ficaria surpresa com o que presencio, porém...
— Laura...?
— Trabalha com você, certo? — minha mãe pergunta.
— Sim.
Porém, antes, ver os telejornais noticiarem que eu matei um detetive particular e que sou culpada de outros milhares de crimes, faz a minha angústia multiplicarse. E é falado que a Laura está desaparecida...
Há quase sete meses?
— Há quase sete meses... Amy... — continuo olhando para a televisão. — Por que você não me contou que a Laura está desaparecida? — pergunto a ela.
— Por quê? Simples, Karen. Por que não vi motivos — ela responde com a maior calma do mundo.
— “Motivos?”. Não viu motivos? — agora, encaramo-nos.
— Quer me dizer algo? — os seus olhos atravessam os meus. — Não? Bem... Você não tem nada aí dentro, Karen. É uma casca vazia. Uma peça morta. Então, por que eu me daria ao trabalho de lhe contar sobre isso?
—...
— Você não se importa com nada mesmo, garota. Essa tal de Laura deve ser menos do que nada para você — ela levanta o seu rosto e me olha com nojo. — Porém, agora, neste exato momento, achei que deveria te mostrar por um simples motivo.
— Que motivo?! Do que você está falando?!
— Espere um pouco — o que ela pretende?
— Esperar? Esperar o quê? O que você... — uma luz corta a minha mente. Olho nos olhos da minha mãe, que sorri.
O que será que ele fez com a Laura? Onde será que ela está? Como é que esse cara consegue fazer tudo isso?!
Fico em silêncio.
Ver que a Laura sumiu como o respirar em meio à tempestade, é a mais clara e nítida resposta para o que eu preciso fazer o mais depressa possível. Ele não vai parar de jogar as suas merdas em mim, independente do que seja, ou contra quem seja. E se ele fez isso com a Laura, a Sofia e até mesmo o Afonso podem estar em perigo. Mas... será que eu os aviso? Será que eu faço algo, além de ficar aqui, escondida? Sofia... Não quero que algo aconteça com ela. Então... preciso... preciso ir logo com isso! Não posso ficar aqui chorando, perdendo tempo!
Acho que sei o que minha mãe quis fazer.
— Laura — digo, com uma voz imível.
— Hahahahahahahaha! — que risada sádica. — Muito bem, Karen! Esse era o olhar que eu queria. Vejo que está de volta. Parece que esses últimos meses foram, finalmente, expulsados. Eu sabia que mostrar isso a você funcionaria. Felizmente, aprendi como você funciona. Pois bem, daqui em diante, seguirá as minhas instruções para que tudo ocorra conforme eu planejei — a sua voz é segura e confiante, assim como era a minha.
— Sim.
— Scar irá te ajudar — Scar... Então, esse é o nome do sujeito mascarado.
— Tudo bem.
— É essencial que você siga as instruções que irei te ar. Não aceitarei outro comportamento, entendeu?
— Sim.
— Certo.
Então, minha mãe explica os detalhes da sua estratégia e como pretende pegá-lo.
• • •
Já é de madrugada quando ela termina.
A sua intenção não me era “resgatar”, mas, sim, trazer-me para o seu lado de outra maneira. Porém, vendo que eu seria capturada, ela perderia a oportunidade de me usar em seu plano. Agora, apesar de tudo, ela não sabe onde ele está localizado. Apenas diz que conseguiu entrar em contato com uma de suas lacaias. Conseguiu “convencer” essa mulher, após muito esforço, e recebeu um horário e local para encontrá-la. Para convencê-la, disse que estava comigo e que me entregaria. Claro que ele deve ter suspeitado dessa oferta generosa. Afinal, por que ela não foi à polícia em vez de querer falar com alguém próxima dele? Ou melhor: por que uma mãe entregaria a própria filha?
Amy sabe que não será fácil pegá-lo.
— Lembre-se: eu não faço isso por você. Apenas espero que você possa cumprir com o seu papel, em vez de jogar outra pessoa na frente — ela está mesma disposta a me atormentar.
— Tudo bem — mas também tenho algo a falar. — Porém, quero que saiba de algo: não hesitarei em levar qualquer um comigo, se ficar entre ele e eu. Nem mesmo você — eu a respondo, cuspindo essas palavras em sua cara.
Ela se levanta. Sua postura muda. Vem devagar até mim.
— Pirralha atrevida! — levo um forte tapa no rosto. O meu nariz sangra. Eu não reajo. — Se pensa que serei mais um dos seus brinquedos descartáveis, está enganada! — sua voz é assassina. Não deveria estar esperando por essa resposta atravessada. — Como se atreve?! Irá me levar junto?! — ela cospe na minha cara. — Você não merecia estar aqui, diante de mim! E sim a sua irmã! Mas por sua causa, isso não é possível! — eu recebo essas palavras. — Ponha-se no seu lugar, fedelha miserável! — levo outro tapa, mais forte. O meu nariz sangra ainda mais. — É melhor não forçar, Karen... Quando eu soube que você colocou esses seus pés imundos em minha antiga casa, precisei me conter para não ir até lá e te tirar pelos cabelos, vadia asquerosa! — o seu rosto se retorce e o que antes era humano, agora, já não sei mais referenciar. — Agora, por mais que eu queira acabar com aquele homem, a minha vontade, neste tempo todo em que tenho você sob as minhas mãos, é de enfiar uma bala nessa sua merda de cabeça estúpida! — ela cospe e baba, e os seus olhos se enchem de nervos. Scar se aproxima dela. — Mas eu preciso de você... — o seu rosto quase encosta no meu. — Para poder esmagar duas baratas repugnantes. Duas baratas nojentas ao mesmo tempo — ela, violentamente, retira-se do aposento. Fico com Scar.
O que é essa coisa na qual a minha mãe se transformou?! É dantesca! É homicida! É caótica! A bela paisagem que pintava a natureza, com tanta cor, foi dizimada às cinzas e jogada no abismo. E o pior de tudo é que eu sou a culpada.
A sua própria filha.
Aquela figura amorosa e sorridente foi destruída, tendo o pé esfregado na cara sem piedade, nem misericórdia. Essa abominação, capaz de me fazer estremecer, é outra pessoa. Essa abominação é outro ser. Algo que surgiu em meio à insanidade. E a mesma insanidade que quase me deixou em uma prisão sem
fugas, deixou-a possuída, inundada por um ódio que eu jamais imaginei existir.
Que eu jamais imaginei ver.
Não lhe sou nada. Apenas algo que precisa ser exterminado. Que precisa morrer.
E mesmo odiando pronunciar o que vou dizer, talvez seja bom que o meu pai esteja morto. Além de não ter precisado ver a Sarah ser extirpada por um maníaco, também não precisou viver para ver a sua amada confeiteira transformar-se em uma merda doentia. Talvez a morte tenha evitado que o meu pai se tornasse algo parecido.
— Acho que você deva ir dormir um pouco, senhorita. Está acordada desde muito cedo. É melhor estar mais disposta, pois nos dias seguintes estaremos muito atarefados — é a primeira vez que eu presto atenção em sua voz. E é uma voz bonita, sensível. Quem diria. Scar me dá um pano.
— Então, você fala? — dou-lhe um triste sorriso. Tento estancar o sangramento. — Tudo bem. Obrigada — ele me conduz até o quarto (que está mais organizado). Eu me deito em um colchão macio. Scar deve tê-lo trocado. O meu corpo está exaurido. Toda essa situação inesperada me deixou esgotada, e estou ainda mais angustiada. — Só vou deixar de... Angústia... Eu sempre a tive comigo — não é hora para isso, merda! Jogo o pano ensanguentado para longe.
Claro que eu não contava com a volta da minha mãe, nem em ser incriminada por crimes que eu nunca cometi. E muito menos ser trancafiada e quase descambar para loucura. Mas contratempos acontecem, sempre acontecem, pois a vida é assim. O importante é que o momento decisivo está se aproximando.
— Eu preciso encontrar o fim...
Nove anos...
Nove anos já se aram desde o dia em que encontrei a minha irmã morta, após ter sido violentada, agredida e humilhada, igual a um objeto descartável, e deixada no quarto daquela casa horrível como se fosse lixo.
Nove anos remoendo os meus erros. Nove anos acreditando na promessa de um monstro desgraçado. Nove anos e, finalmente, eu estou aqui, pronta para dar um basta em tudo, principalmente nesta vida perdida...
Que eu nunca vivi.
— Sarah... — fecho os olhos. Começo a sonhar? Começo a ter pesadelos?
Já não sei mais diferenciar...
CAPITULO 31. SARAH...
Sarah está correndo dentro da sua casa, descontroladamente. Ela, toda enérgica, entra no antigo escritório do seu pai — quer dar uma eada pelo mundo do homem que ela tão pouco conheceu. Vários livros, que carregam conteúdos além do que estão escritos em suas páginas, e que ainda preenchem as estantes solitárias, apresentam um pouco a respeito do nobre médico que um dia ali esteve.
Em outra parte da casa, temos Amy, na cozinha, preparando às suas maravilhas adocicadas. De repente, Sarah, com o seu vestido amarelo florado, que tanto ama, entra e para ao lado da mãe. Ela fica aguardando um pouco da mistura que sempre sobra, pois adora comer as que ficam para trás. Sam, após se casar, desenvolveu esse hábito, e Sarah herdou igual.
Após a Sarah comer a mistura doce, Amy a beija na testa, com os seus olhos dourados fixados nos verdes dela. Ambas, paradas, em frente à mesa da cozinha, uma cena humilde, corriqueira. Após ter saboreado as sobras, Sarah diz que vai ear, indo até o parque que fica próximo da casa delas. Amy consente com um sorriso.
Enquanto caminha pelas costas de um lago, que corta o parque, segurando um pequeno galho e arrastando-o, Sarah vê duas crianças brincando, divertindo-se com o pai delas. Ela observa essa cena desconhecida, procurando entender o que sente. Não é tristeza. Não é infelicidade. Não é dor. Ela não teve muito tempo com essas possibilidades em sua vida. Era tão novinha que mal se lembra do homem que andou por sua casa. Mal se lembra do amável Sam. Porém, longe de ser uma criança birrenta, Sarah mantém o seu sorriso, contente por ver outras
famílias aproveitando essa oportunidade bonita. E mais contente ainda é a sua reação ao ver, bem distante, a sua amiga, a sua irmã. A sua versão mais velha, só que de olhos dourados, que em sua direção se aproxima.
Igual a um míssil teleguiado, Sarah parte em disparada, louca para agarrá-la. Não hesita em sair gritando o nome dela, tão alto e forte, que muitas famílias sentem-se constrangidas com essa menina espalhafatosa. O amor por sua irmã é tão puro e imenso que escapa do seu pequeno corpo.
Karen a recebe com um forte abraço, pegando-a no colo. Sarah não para de beijá-la, pois estava com muitas saudades — já faz alguns dias que elas não se viam. Por ser jornalista, a sua irmã não tem mais tanto tempo para visitá-la — na verdade, essa é a desculpa que a Karen usa. Desde que saiu de casa, as reuniões ficaram mais escassas, mas todas se esforçam para continuá-las — quero dizer, Amy e Sarah.
Atenta, Sarah vê que há uma grande embalagem brilhante dentro da sacola que a Karen segura. Imediatamente, entende que ganhará um presente. Essa é a forma da jornalista pedir desculpas por desaparecer por tanto tempo. Por estar investigando um grande caso em Agonia, ela some por dias, voltando sem avisar. Amy sempre pede a ela para tomar cuidado, mas sempre ouve que está tudo conforme o planejado.
Assim que as duas entram no interior do lar da família Rose Heart, Karen pergunta à Sarah se pode conversar com ela em particular — no quarto, especificamente.
Enquanto Amy prepara algo para elas comerem, principalmente para a mais velha, que não anunciou a visita, as duas se dirigem ao quarto da pequena.
Sarah abre o presente, rasgando-o com duas puxadas. Um vestido lilás amenizado é o que ela ganha. De um tecido luxuoso, com bordas rebuscadas, Sarah ira com olhos extasiados. Karen pergunta se ela gostou — sabe que sim. O beijo demorado e o abraço sufocado confirmam a sua certeza.
Após vestir-se, Sarah vai correndo para mostrar a sua mãe. Assim que a vê, Amy fica encantada. As duas voltam juntas ao quarto. Empolgada, Amy também quer entrar na conversa secreta de ambas, mas Karen diz que (ainda) não, que depois conversará com ela. Amy, então, faz um bico, lamentando não poder fazer parte da cúpula, mas aceitando dar espaço as duas.
Com a porta trancada, Sarah ouve a jornalista. Karen fala que está perto de capturar um perigoso assassino que havia tirado — não queria dizer “matado” à sua irmãzinha — a vida de várias meninas — com a mesma idade da Sarah. E que ele pode ser preso, caso ela ajude, e assim parar com essa terrível barbárie.
Esse pedido... Sarah não entende do que se trata. Apesar de ser uma menina inteligente, ainda mais pela tenra idade, no fim, é bastante leiga a respeito da realidade de Agonia, ou melhor, da vida. Amy faz questão de tentar adiar essa porta que, inevitavelmente, será aberta. Porém, a jornalista não tem os mesmos interesses, e, sem nenhum juízo, não se importa com essa ideia sagrada. Está tão obstinada com a investigação que sugere a sua irmã que não conte nada à Amy. E a doce Sarah, flutuando, procura compreender o que esse pedido doentio significa, mas gosta de imaginar-se ajudando outras meninas.
Para o seu azar, Sarah aceita de bom grado com o seu tradicional sorriso estampado em seus lábios. Karen fica satisfeita, e explica que ainda levará um tempo, mas que logo chegará esse momento.
A conversa não demorou tanto assim. Sarah vê que a sua irmã a olha com brilho nos olhos — e a menina adora isso. Sente-se prestigiada. Sente-se necessária. Sente-se querida. Sente-se amada. Ainda mais por saber que poderá ajudar outras meninas da mesma idade, que são alvos de um homem “malvado”. Essa é a palavra proferida por ela para se referir ao aborto expelido do inferno. Então, Sarah é pega no colo e carregada até a cozinha. Amy as aguarda com pedaços enormes de torta de chocolate.
• • •
Assim, os dias começam a ar e as visitas da Karen ficam mais rotineiras. Sarah adora poder estar com ela. Ir ao parque para tomar sorvete. Ir à livraria para comprar quantos livros quiser. Bem, e está sendo assim há algumas semanas.
• • •
Enfim, o fatídico dia que colocará um prazo na sua curta vida chegou.
Sarah é levada até a casa de um sujeito não comentado. A menina imagina que seja um amigo da sua irmã, ou algo parecido. Não a por sua cabeça que se sentará diante do monstro que a matará. Sarah, por sinal, vê tudo isso como uma grande aventura. Pensa que, no futuro, se tornará uma espécie de salva-vidas. Não igual aos que ficam em prontidão, pertos de enormes bacias d’água. Ela será dos que ajudam vítimas de indivíduos malignos. Talvez a sua irmã a esteja influenciando, ou, talvez, seja um sonho infantil que se dissipará ao vento. Qualquer que seja o motivo, Sarah poderia fazê-lo, se quisesse, pois o seu mundo é um grande parque de diversões, banhando por sonhos e sorrisos.
Sarah voltará a vê-lo mais algumas vezes, e com a segurança que a sua irmã dá, começará a ver o homem, também, como um amigo. Não sentirá receio de estar perto dele sem a presença da jornalista, apesar de ter sido orientada a não comentar nada com ele, nem com a Amy, do que ambas fazem.
• • •
Bem, há alguns dias, Sarah vem tentando convencer a sua mãe e a sua irmã a irem até o Jardim das Orquídeas — a pequenina ama as flores. E, até agora, não estava tendo sucesso, mas aproveitando uma situação oportuna que surgiu, além de ter tido uma nova ideia, isso mudará. Primeiro, pelo fato de que várias encomendas, dos fantásticos doces feitos por Amy, precisaram ser remarcadas por causa de problemas na cozinha da casa.
Após Sarah insistir muito, Amy aceita o seu desejo. Finalizada essa primeira etapa, ela parte para a seguinte. E quanto a Karen, tem mais facilidade em convencê-la. Diz a ela que está em dívida por estar sendo ajudada com o seu trabalho. Karen acha engraçada a cobrança, mas não liga. Apesar de ser uma pessoa totalmente diferente, ela não desgosta de estar perto das duas, afinal, é a sua família.
• • •
Já faz alguns dias que Sarah e Amy estão bastante empolgadas com a visita que farão. Amy poderá estar em um lugar que o seu pai amaria muito em ver. Já Sarah tornou-se uma lunática endiabrada. E a jornalista, por incrível que pareça, está levando tudo numa boa. Agora, são as duas primeiras que não param de falar dos encantos aromáticos que os seus olfatos irão apreciar, e da salada colorida que os seus olhos irão saborear.
As três não costumam ear juntas com frequência. Antes de a Karen ir embora, Amy e ela saíam por Agonia, degustando surpresas de outras culturas. Sarah, de vez em quando, às acompanhava. Aliás, a caçula virou a chefe da família, principalmente da sua irmã. É ela quem está decidindo quais vestimentas à jornalista usará.
— Karen, você vai usar essas roupas. A mãe vai adorar te ver assim. E eu também, hehehehehe! — Sarah diz, enquanto aponta com o dedo indicador para algumas fotografias de uma revista (antiga) de moda. Apesar de não ter interesse por essa estética vintage, a mais velha acata as ordens da garotinha. Até mesmo o chapéu desconhecido, e que não a agrada, diz que usará.
— O que você vai vestir, Sarah? — Karen pergunta.
— O vestido que você me deu. Ele é lindo! — a jornalista sorri. — Vamos! Precisamos encontrar um lugar para encomendar as roupas!
E ambas vão, a pé mesmo, à procura de um lugar para fazerem as suas encomendas.
Após procurarem um pouco, as duas chegam a um agradável ateliê ao sul de Agonia. Lá, uma bonita modista as recebe. Ela se chama Matilda. De seios médios e pele clara, e curtos cabelos ondulados castanho-escuros, e olhos castanho-claros, acabou de ultraar a faixa dos trinta anos de idade. E vestindo um dos seus belos vestidos, branco e amaciado, serve de modelo para uma das suas criações ousadas. Com as costas desnudas e com um decote agradável, Matilda faz questão de usar as suas curvas bem delineadas como parâmetro para o seu ótimo trabalho.
Nos pés, ela usa um par de saltos vermelho-escuros. Batom rosa-pastel nos lábios finos. Por fim, a sua aliança mostra toda a sua classe e sensualidade de uma mulher oriunda de terras distantes. Matilda nasceu no extremo norte do país. Uma terra longínqua, quilômetros infinitos de Agonia, e que pode ser somente apreciada nas histórias que são contadas e nos sonhos que são vividos.
Matilda se mudou para Agonia após conhecer o seu marido durante uma viagem. Eles demoraram a morar juntos, já que tinham dificuldades de abrir mão das suas vidas, nas suas respectivas cidades. Por isso, no fim de muita meditação, optaram por se mudarem para uma cidade desconhecida. Um começo novo para ambos foi a solução encontrada. Assim, há três anos, Matilda reside em Agonia, trabalhando em seu ateliê vintage, chamado Agatha — o sobrenome da sua família.
Aliás, Matilda está assustada. Sarah não para de falar. Diz, igual a uma dama metida, precisar de roupas muito sofisticadas. Matilda vê o olhar de aceitação que salta dos olhos da jornalista, e, assim, atende as exigências da pequena senhorita.
As sugestões e as medidas são anotadas e tiradas, e escritas em um pequeno caderno de capa rosada. A agilidade que a modista tem com a fita e o manuseio com os tecidos são equiparáveis com a destreza que Amy tem na cozinha. Segurando agulhas nas mãos, e na boca, ela não tem dúvidas das ideias em que pretende usá-las. Matilda, então, não demora em fazer os cálculos, e logo informa que tudo estará pronto em dois dias. O prazo é muito folgado. Elas só farão o eio no sábado, três dias após já terem pegado as encomendas.
— Excelente, minha querida! Para mim, apenas o chapéu, então. É que a minha irmã já me deu um vestido muito lindo! — é assim que Sarah reconhece o magnífico trabalho da Matilda, que acha tudo muito engraçado. Uma menininha
desinibida que fala sério e, ao mesmo tempo, debochado.
— As suas ordens, my darling. O chapéu estará a sua espera — Matilda, entrando no clima, responde.
No fim, com os pedidos já encaminhados, e com Sarah deslumbrada com as vestimentas que a sua irmã usará, e o seu chapéu mágico, ambas partem em busca de uma cabelereira para marcarem um horário.
Os cabelos da Sarah são longos, mas os da Karen são curtos, e não há muito que fazer. Talvez uma hidratação — não que ela queira. Na verdade, ela não liga. É Sarah quem quer mudar o penteado.
Elas, após andarem por um tempo, chegam a um salão de beleza. Assim que entram, são muito bem recepcionadas.
— Bonjour! — a dona as recebe. Sarah fica toda cintilante.
A dona, de nome sofisticado, chama-se Angelique — com o “li” mais flexionado. Uma mulher já experiente, por volta dos quarenta e cinco anos de idade. A sua pele ainda é jovial e flexível, provavelmente consequência de muito cuidado que teve em sua vida. Os seus cabelos, que estão presos em um exótico rabo de cavalo, são mais negros do que as sombras espalhadas por Melancolia. Os seus seios são avantajados e firmes, e não parecem incomodados com o apertado espartilho que ela veste. E os seus olhos tão azuis, muito mais do que o extenso céu que nunca existirá em Agonia. Angelique é uma dama de classe, como se o tempo a tivesse expulsado, além da época em que deveria ter existido.
Angelique há muito tempo vive em Agonia. Mas antes, por causa da sua profissão de maquiadora, e de hair stylist, ela pôde, ainda bem jovem, viajar por várias partes do mundo. Acompanhando equipes de maquiagem em sets de filmagens, e trabalhando em semanas de moda com as mais lindas modelos. Trabalhos fantásticos que lhe proporcionaram andar por incríveis lugares. Contudo, cansou-se dessa agitação toda, diga-se: nem um pouco inoportuna. Então, decidiu repousar o seu corpo na cidade que a atraiu mais. Assim, há quinze anos, abriu o seu salão estonteante, chamado Moonlight — o seu sobrenome.
Sarah, após vasculhar por uma infinidade de revistas, enfim, encontra um visual que a agrada: tranças. Tranças e mais tranças. As duas adultas, que estão esperando por mais de uma hora, ficam incrédulas por ela ter escolhido um estilo tão normal.
— Tem certeza, querida? É algo bem simples, eu te digo — Angelique, sentada ao lado da Sarah, diz.
— Sim, tenho certeza. Tem coisa mais bela do que essas tranças animadas? — Sarah, com um sorriso nos olhos, diz, aguardando uma resposta parecida. Angelique fica com uma expressão inusitada.
— Definitivamente... não. Então... Façamos tranças! — Angelique se levanta com um sorriso amplo e vai próxima à Karen. — Ela é uma grande menina — fala para a mais velha. — Vocês disseram que farão o eio no sábado, então vou deixar marcado para o mesmo dia, bem cedinho. Não é algo complexo, mas que exige atenção redobrada — a jornalista responde dizendo que está tudo bem.
• • •
As irmãs, de mãos dadas, retornam à casa.
— É uma pena que o seu cabelo seja tão curtinho, Karen. Não há muito que fazer nele — Sarah, toda tristinha, fala. Karen não liga. Isso pouco lhe importa. Ainda assim, acha melhor demonstrar que está tudo bem com isso. — Mesmo assim. Olha, acho uma boa você deixá-lo crescer um pouquinho. Vai ficar maravilhoso vê-lo balançando por aí, igual ao meu. Assim, ficaremos mais parecidas — Sarah olha para a sua irmã, contente por ter esse desejo. A jornalista diz que pensará nessa ideia, apesar de não ter paciência para ficar cuidando dos cabelos.
Sarah, ao avistar a casa, sai correndo; Karen fica para trás. Assim que entra na residência, encontra as duas sentadas, conversando, ou melhor, em um monólogo da Sarah. Ela não para de falar das peças e vestimentas que escolheu para a mais velha: um vestido longo, branco e rendado, de mangas compridas; e um chapéu branco vintage floppy.
— E o calçado? — Amy pergunta.
Sarah, assim que é lembrada desse pequeno detalhe, aperta bem os olhos. Porém, Karen se prontifica em dizer que já tem algo planejado. A caçula fica mais tranquila.
— Mãe, o meu será o vestido lilás que a Karen me deu. E eu também quis um chapéu floppy. Rosa, para variar — fala, fazendo graça.
Curiosa a respeito do que Amy planejou, Karen pergunta o que ela usará.
— Será uma surpresa — silencia-se.
— Tá bom, mulher misteriosa — Sarah a provoca, dando-lhe um abraço.
• • •
Os dias seguintes am, parecendo que nunca existiram.
Como planejado, as irmãs, primeiramente, só que dessa vez de carro, vão ao ateliê para buscarem as roupas.
— Aqui, querida. Experimente (espero que você goste) — Matilda mostra as peças à Karen, que as veste.
— Uau! São lindas! Você está maravilhosa, Karen! — a jornalista meio que “concorda”. — E o meu chapéu também é incrível! Espera até a mãe ver! — Sarah abraça a Matilda, que não esperava tamanha afetuosidade, mas gosta de ser tratada com carinho pela menina. — Valeu, Matilda! Você é demais!
— Obrigada, meu bem! — Sarah sai cantarolando. — Sua irmãzinha é uma doçura. Você deve ter muito orgulho dela — a mais velha diz que...
• • •
Mais alguns dias vão embora, e falta apenas mais um lugar para irem.
No sábado, bem cedinho, as duas partem até o salão da esbelta Angelique Moonlight — um nome mais certeiro impossível.
No carro, Sarah, ainda com sono, boceja, causando estalos nas maçãs suaves e rosadas do seu meigo rosto. A pequenina não é fã do período matinal. Para ela, ter que levantar nesse horário, é um tédio. Pelo menos não antes do sol preguiçoso de Agonia estar no céu.
Assim que chegam, veem que, de fato, o que Angelique falou era verdade. E em pouco mais de uma hora, Sarah está de cabelos lavados e com uma trança linda.
— Magnifique, Angelique! — Sarah, esnobe, diz.
— Ce n’est pas? Tu ressembles à une vraie poupée! — Angelique responde.
— O QUÊ?! — Sarah, toda cômica, pergunta.
— Hahahahahaha! Eu disse que você parece uma verdadeira boneca — Angelique não para de rir. — Mas, Sarah, você ajuda. Parece mesmo uma
boneca, menina! É linda demais! — Sarah dá um sorrisão travesso. De fato, Sarah ficará uma boneca com ele jogado ao lado, sobre o ombro, e usando o seu chapéu rosado.
— Valeu, Angelique! — Sarah a agradece.
Já nos cabelos da Karen é feita uma hidratação bem trabalhada.
— Nossa... — palavras desgostosas são lamentadas por Angelique. — O seu cabelo precisava mesmo disso, querida. Apesar do brilho que tem, estava muito desleixado — Karen não dá nenhuma desculpa. Apenas fala que não se importa com vaidades femininas. Que o seu trabalho é o seu maior interesse. — Tudo bem. Vou fingir que acredito nisso — Angelique diz, finalizando de lavar os curtos fios cor de morango. Sarah gostou da invertida que sua irmã tomou. Também tem essa impressão falsa nas palavras que ela fala.
Após saírem, ambas voltam para se trocarem. Porém, quando chegam e vão procurar pela mãe, as duas se deparam com a surpresa que ela havia falado. Em seu quarto, Amy, usando um vestido vintage floral vermelho, que desce até o meio das suas pernas, olha-se no espelho. Por fim, uma sapatilha preta finaliza o seu look nostálgico. As duas filhas ficam irando. Faz tempo que Amy não se produz assim, tão divertidamente.
— Não fiquem aí paradas! Então, como eu estou?
— Você está maravilhosa, mãe! — Sarah não precisa falar mais nada. Karen concorda com essas palavras. Por causa disso, os olhos da Amy teimam em oferecer um pouco d’água.
— É isso aí! Era disso que eu estava falando! — Amy, animada, após enxugar as tímidas lágrimas, olha para as duas. — Mas e essa trança ousada, menina? — ela mexe no cabelo da filha. — Ficou muito bonita, Sarah. Parece uma dama clássica, iguais as da época de menina da sua avó — Sarah, contente pelos elogios, e pelo afago, sorri. — Agora, vão! Arrumem-se para que possamos sair. Ficaremos o dia inteiro fora, por isso é melhor irmos logo — as irmãs acatam a ordem e vão para os seus quartos.
E com todas bem vestidas, em posse das suas vestimentas elegantes e divertidas, irão aproveitar a última reunião das suas vidas. Pois, após esse eio, todas seguirão novos caminhos. Uma não estará mais viva. Enquanto as outras duas precisarão encontrar novas razões para continuarem seguindo.
• • •
O dia escolhido chegou.
O céu está como sempre: chato, com um tom cinza-preto, proibindo a agem do sol desbotado. O outono dessa época que é uma novidade. Mais quente do que o habitual, obriga os moradores de Agonia a abdicarem das suas vestimentas quentes. O vento sopra com empenho e, de forma grosseira, derruba os chapéus dos senhores, bagunça os cabelos das senhoras e levanta as saias das senhoritas.
É uma segunda-feira e, após ter voltado da escola, Sarah irá com a sua irmã para se encontrar com o sujeito — primeiro irão a outro lugar.
Antes de sair, Sarah dá um beijo em sua mãe, como sempre faz. Não é mais molhado, nem mais longo. É igual a todos os outros. Por que não seria, afinal? Amy se despede da mesma maneira que sempre faz. Retribui com o mesmo ato de carinho e dá um caloroso abraço. Não é mais forte, nem mais longo. É igual a todos os outros. Por que não seria, afinal?
Esperando já há algum tempo, Sarah, assim que ouve o som familiar do carro, sabe que a sua irmã aproxima-se. Então, sai correndo, toda alvoroçada, pois pensa que será o fim da linha para o cara malvado. Depois, poderá voltar a sua rotina de uma simples criança. Brincar bastante, ler bastante e comer bastante. Quem sabe, até mesmo, confessar para sua mãe que ajudou a capturar um perigoso assassino.
Alheia a toda essa loucura, Amy imaginou que a sua mais velha estivesse querendo compensar o tempo perdido com a caçula. A confeiteira não era de se enganar, raras vezes isso ocorria, já que a sua percepção da vida era muito aguçada. Contudo, infelizmente, talvez a sua aura materna tenha se encantado demais ao ver as suas filhas tão unidas, cegando-a para o que aconteceria.
Karen para o veículo em frente da casa. Sarah entra no carro e a cumprimenta com um beijo na bochecha; Karen a faz um afago nos cabelos. Ela irá levá-la até uma exposição literária que ocorre nos limites da cidade. Depois darão um basta na história sombria.
Durante o percurso, Sarah não para de falar da divertida aula de artes que teve. Karen ouve tudo, atentamente.
O caminho que elas fazem é quieto e isolado. Não há uma bendita alma em todo o trajeto, apenas um Impala arrogante, com uma motorista prepotente, percorrendo as estradas de Agonia. É um carro forte, resistente, bem protegido, e
que há muito tempo está na família. Mas esse Impala é incapaz de ar o impacto traseiro de um caminhão desconhecido.
Após algumas voltas no ar, o carro é arremessado no acostamento, quase colidindo com uma árvore robusta. O automóvel ou bem o impacto, tendo ficado com poucos danos. Agora, as duas, em compensação, sofreram. Sarah desmaiou, imediatamente. Já Karen, ainda acordada, sem entender o que aconteceu, apenas escuta o assobio do seu perseguido.
Por milagre, por azar, ou pela vontade dele, elas se machucaram só um “pouco”. Algumas escoriações leves atingiram a pequena Sarah. Mas a fratura no braço esquerdo, com o osso saltado, e um corte na cabeça, pôde acometer a mais velha. E para a infelicidade da jornalista, nem o choque por essa situação repentina fez com que ela apagasse, deixando-a exposta ao poder demoníaco do psicopata.
Ele se aproxima, ainda assobiando, e a olha, sorrindo. A jornalista treme de dor, de medo, de desespero. O seu coração sangra por ter que bater. E o maníaco, saboreando o momento sublime, enquanto espera o sangramento fazê-la desmaiar, não para de apreciar a tragédia que construiu. A sua face é fria, é fantasmagórica, é horripilante. E repleta por um fascínio degradante, tudo soa como uma maravilhosa canção que ele faz o prazer de louvar.
Sem ar mais, Karen desmaia.
Algum tempo depois, em algum lugar, Karen, completamente nua, acorda, sem saber onde está. E o seu braço fraturado, agora estranhamente tratado, ainda a causa uma dor inimiga. E a sua cabeça cortada, agora costurada, e enfaixada, berra com violentas batidas.
Sofrendo, ela veste a única roupa que encontra: uma comprida camisa branca, que estava largada no chão, e que vai até as suas coxas.
Ela está em um quarto escuro, úmido, com manchas verde-musgo nos cantos das paredes e do telhado. Também há bolor espalhado por todos os lados, e um cheiro de mofo toma cada parte. Desorientada, não tem noção de nada do que aconteceu, nem de como chegou até ali, e de onde Sarah está.
Karen, confusa, ainda sofrendo, e com sinais de que pode desmaiar a qualquer momento, precisa equilibrar-se com a ajuda das mobílias e paredes para poder andar. E procurando-a, ela grita o nome da sua irmãzinha, angustiadamente, e xinga pela tortura que salta do seu braço arrebentado e da sua cabeça lesionada. O eco que essa casa faz é horrível. Uma sonoridade deformada é a sua voz. Voz que ela jamais esquecerá.
Aterrorizada, Karen entra em alguns cômodos — todos vazios. Sai da casa e se vê largada no meio do nada, abandonada em uma imensidão vazia, engolida pelas sombras que se espalham no céu, e sendo agredida por ventos fortes. Agonia? Não sabe dizer, pois não faz ideia do lugar em que se encontra.
Ela dá algumas voltas pela casa, gritando o nome da sua irmã. Respira forte e mal se mantém em pé. Os seus olhos sofrem pelo nada que veem. A sua cabeça procura meios para voltar à realidade. O seu coração implora pelo medo que sente. Porém, após ouvir um barulho surgir no interior da casa, ela volta correndo. Tropeça, cai e dá de cara, e repete o mesmo comportamento anterior: grita, loucamente, o nome “Sarah”.
Karen volta a olhar todos os mesmos cômodos: continuam vazios. Entretanto, o quarto em que acordou tem novos visitantes. Uma canção suave, com delicados e meigos sons de pianos e violinos e uma voz triste de uma mulher a convidam:
As suas lágrimas mentem para mim
Os seus olhos não significam nada para mim
A sua boca ri por mim
A sua vida sofre por mim
A sua morte vive por mim
É tão insignificante, mas...
Por mim você canta esta canção de ninar
Por mim você vive esse seu pesadelo
Por mim você dorme com os seus sonhos
Por mim você deixa de existir
Por mim você deixa de tentar
Por mim você diz adeus
Adeus...
Por mim você diz...
Karen, anestesiada por essa situação irreal, e apesar do perigo visível que a nova escura luz infernal apresenta, vai em frente, pois a sua irmã é a única coisa que a guia. É a única coisa que lhe importa. E o que acontece? Novamente, uma surpresa ingrata. Sarah, deitada na cama, também nua, com uma fita de vídeo em cima da sua barriga e uma carta ao lado; também há uma televisão e um videocassete. A canção continua:
Eu não sinto nada por você
Eu não quero nada de você
Eu não desejo nada de você
Eu não espero nada de você
Apenas que você feche os olhos e diga:
Adeus...
A jornalista está com dificuldades para compreender o que vê. Ainda assim, ela grita e grita, até os seus pulmões pedirem para parar. Ela cospe. Ela baba. Ainda grita. Ainda grita com tanta força, com tanto desespero, com tanto pavor, mas de nada adianta. Deus também é evocado. Típico, nessas horas, Ele sempre é lembrado.
Devagar, conforme se aproxima do corpo da irmã, Karen vê várias marcas agressivas, feias, e vários hematomas espalhados pelo corpo. Arranhões, mordidas, beliscões, cortes, lesões. Tudo. Ela vê tudo. E os seus olhos eiam pela pintura macabra que está diante de si. Eles percorrem cada centímetro do corpo em silêncio, experimentando o abismo no seu mais profundo íntimo, no mais profundo desespero.
O fim já se aproxima
Pois o início jamais existiu
A morte sempre é bem-vinda
Já que a vida eu nunca quis
Tão insignificante...
Sim, foi tudo por você
Inclusive esta canção de ninar
Então, apenas feche os olhos
Pois não há mais nada que você possa fazer
A não ser dizer:
Adeus...
A canção é interrompida. Apenas um chiado, agora, é ouvido.
Até que, enfim, ela é visitada por uma epifania infeliz, por uma verdade maldita. Karen, então, recebe uma avalanche de pensamentos em sua mente destruída: ele sempre esteve milhares de os à frente. Sempre soube de tudo. Do suposto desconhecimento a seu respeito como possível suspeito e do plano para capturálo.
Karen, agora, não sabe o que fazer. Não chora. Não age. Não reage. Não corre. E
não grita mais. É tanta coisa que começa a funcionar em sua cabeça que o restante do corpo não consegue acompanhar. Por fim, ela pega a carta e lê.
Prezada Karen:
Olá! Bem, como devo começar? Hummm... Certo! Olha, gostaria de lhe dizer que foi muito bom todo o período que amos juntos. Não tenho palavras para te agradecer. Infelizmente, preciso continuar seguindo em frente, pois tenho outros planos, projetos e sonhos. Mas não se desespere. Por ter me dado um presente tão gratificante, te recompensarei com dois semelhantes. Primeiro, uma filmagem da Sarah e eu, e da paixão que partilhamos. Segundo, eu prometo que a verei novamente. Você é maravilhosa. É divertida. Nunca imaginei que fazê-la ficar ao meu lado pudesse ser tão proveitoso. Inclusive, sacrificarei tudo por você.
Agora, imagino que esteja com dificuldades para entender tudo isso e o que está sentindo. Mas não se preocupe. Posso te garantir que é algo normal. Várias famílias ficaram assim.
Novamente, agradeço pelo presente saboroso que me deu. Não esperava ser tão bem atendido. Ela tinha uma boca tão fofa. Talvez, por sempre estar beijando vocês duas. Contudo, preciso confessar que pensei em mantê-la comigo. Era uma garota especial e doeu ter que quebrá-la. Mas, Karen, você é mais.
Por fim, prometo que ainda nos veremos, pois adorei brincar com você, minha doce menina.
Karen não consegue acreditar. Ou não quer.
Ela fica fria, pálida, tremendo e vazando água, e outros líquidos, pelos olhos, nariz, boca e outros lugares. Faz barulhos dantescos, errôneos, indecifráveis, impronunciáveis. Fica toda suja, com as pernas lambuzadas, meladas, nojentas. A sua respiração é falha, distorcida, disforme. Um ruído torto acompanha o batimento putrefato do seu coração, em uma anomalia terrível. A sua mente esvazia-se, após ler o que ele escreveu. Tudo a sua volta gira em movimentos enjoativos. Talvez, esse tenha sido o motivo que a fez assistir o pesadelo fílmico.
Em torno de oito porções de vômito foi o que a sua boca soltou, deixando um cheiro apodrecido no quarto. Não há mais o que sair, mas as suas entranhas continuam forçando. Estrondos anormais saltam do seu estômago dolorido. Alucinada, Karen rasga a carta em mil pedaços e engole.
Karen ainda treme. Tenta puxar o ar. Os olhos ardem. O coração queima. O corpo parece uma máquina quebrada. Nada responde. Está truncada. É bizarro. Nem mesmo as sirenes longínquas, das viaturas, são capazes de trazê-la de volta.
Os policiais chegam e, assim que entram e veem essa cena decrépita, pedem a Deus para que não seja verdade.
Em choque, a jornalista precisa ser carregada pelos oficiais. Ela não responde a ninguém. Não está mais nesse plano. Nesse mundo. Nessa realidade. O corpo da pequena Sarah é coberto com uma camisa.
Posteriormente, a jornalista descobriria que havia ficado desaparecida por duas semanas. Que aquele filme era um compilado com o que ele havia feito com a Sarah, onde ele a obrigava a chamar pela irmã e a mãe, enquanto era morta. Horas e mais horas de sofrimento. Horas e mais horas de dor. Horas e mais horas
de medo.
• • •
Karen, assim que acordou no hospital, pôde notar, com o embaçado dos seus olhos, uma pessoa saindo do quarto... No enterro, à distância, viu toda a cerimônia de despedida... Quebrada, decidiu ir embora de Agonia... Quando retornou, precisou recorrer a uma antiga amiga.
CAPITULO 32. KAREN ROSE HEART:PARTE I
Acordo toda dolorida. Este colchão não é macio. Na noite anterior era igual a plumas aveludadas. Agora, tornou-se uma tábua de concreto.
— Este maldito pesadelo...
Já é de tarde. Dormi demais. Pelo menos me sinto mais sóbria a respeito do que houve no dia anterior. Este pesadelo deve ter “ajudado”.
Eu me levanto.
Os meus cabelos estão uma bagunça inacreditável. Eu os desembaraço e prendoos. A minha camisa está quase fora do meu corpo. Eu a ajeito. E a minha calça... está ali. Eu a pego e visto. Saio do quarto e vou ao banheiro.
Agora, parada em frente à entrada do quarto ao lado, eu vejo o Scar, sentado em uma cadeira dentro do quarto, lendo algo.
— Onde ela está? — ainda sonolenta, pergunto a ele.
— Dormiu bem, senhorita?
Faço uma cara feia.
— Onde ela está?
— Bem, a senhora Rose foi resolver algumas questões. Não se preocupe, logo ela estará de volta — eu o observo, tentando decifrá-lo. Essa figura misteriosa... Por que está ajudando a minha mãe?
— Senhora Rose... Certo... Bem, como você se sente por ter me mantida presa, por seis longos meses, naquela merda?
— Perdoe-me — ele não fala mais nada e não me olha.
— Esquece, cara. Não se desculpe. Eu sei quem deu as ordens — encaro-o. — Agora, irei te fazer algumas perguntas, tudo bem? — ele não responde. — Quem é você?
—...
— De qual buraco você veio?
—...
— Por que você se veste desse jeito?
—...
— Você também é uma vítima daquela desgraça? — com as mãos na cintura vou caminhando em sua direção.
—...
— Por que está ajudando a minha mãe?
—...
— Você deve algo a ela?
—...
— Você busca algo também? Justiça? Vingança?
—... — ele olha em meus olhos pela primeira vez. Mal consigo vê-los.
— Com isso, você me deu algumas respostas — ele parece intrigado com o que eu falo. Se não fosse por essa máscara bizarra... Eu me aproximo e tento encostar a minha mão, mas ele impede, de imediato.
— Por favor, não faça isso! — segura-a com força. Sua voz é mais firme agora.
— Que merda é você, cara?! — a minha voz é incisiva, mas não adianta. Ele não responde. Certamente, deve ter sido ordem da minha mãe para ficar quieto.
— A senhorita gostaria de tomar alguma bebida? — “senhorita?”. — Chá, talvez? — ele oferece, desconversando.
— Se quer ficar nas sombras, dane-se! Eu tenho mais o que fazer! — ele abaixa a cabeça. Parece ter sentido as minhas palavras. Que sujeito esquisito. — Olha... Desculpa aí. Eu não quis chateá-lo. Mas... Não, obrigada. Não quero nenhum chá.
Eu me sento na cama.
— Com licença, senhorita — Scar se retira. Vejo-o sair.
— Humpf! Bem, vamos ver como as coisas estão — ligo a televisão. — E continuam falando que eu sou uma foragida extremamente perigosa... E continuo
sendo caçada — como cheguei a este ponto? Dou uma coçada nos cabelos. — Mas... como ele consegue ser tão influente assim? Como ele consegue ter todo esse poder? Infiltrar-se em tudo quanto é lugar? Como... — até que... — Merda...! — eu vejo algo. Laura, enfim, apareceu.
O seu corpo estava escondido em um freezer, em Agonia.
— Droga!
Não faz nem um dia e isso já...
— Laura...
É dito que ela foi esquartejada.
—...
Já no restante da reportagem, o pessoal do meu jornal fala que, antes de sumir, ela andava assustada, insegura, diferente do que sempre foi; e dizem que eu estava ajudando-a.
— Estranho... Ela não estava assim, antes de eu ir para Melancolia. O que será que... — é claro! — Merda! Aquele bosta deve ter aparecido assim que eu saí.
Apesar das normais ofensas disparadas contra mim, por causa da minha personalidade, e da minha conduta, alguns ainda reconhecem que eu melhorara nos últimos meses. Inclusive, olha só, alguns não mencionam nenhuma característica ruim minha que justifique eu ter “feito” isso com a Laura. Outros, porém, incriminam-me sem nenhum pudor. Contudo, todos eles não negam nenhuma possibilidade, por mais insana que soe, afinal...
Eu sou quem sou.
Enquanto mudo de canal, vejo outros programas falando a meu respeito, e me deparo com diferentes abordagens. Os mais sensacionalistas, por exemplo, aproveitam para trazer de volta a minha linhagem sanguínea “real”, independente de eu nunca ter tido nenhum proveito dessa situação. Também falam sobre o meu pai ter sido deserdado. Eles acham uma boa ficar remexendo nessas porcarias.
Vejo que a família Elric Gillian vem sendo tratada como uma peste em Agonia. Todo o legado que os meus avós construíram, agora eu consegui destruir tudo de verdade. Ao menos a minha mãe não foi mencionada. Para eles, Amy deve ser uma mulher qualquer, sem relevância. Apenas uma confeiteira ordinária que engravidou do nobre Sam Elric Gillian.
Mas... Engraçado... Eles mencionam algo a respeito da minha avó estar...
Desaparecida...?
— Mas... ela não estava... não está... morta? — procuro respostas, mas nada surge na minha cabeça. — Desaparecida...? — não consigo nada. Continuam
falando sobre mim. — Isso nunca foi mencionado... A minha avó pode estar viva...? — o apresentador grita, xingando-me de tudo quanto é nome. — Elizabeth... A minha avó Elizabeth pode estar... Não! Esquece! Chega! Depois eu penso nisso! — Desligo a televisão. Saio do quarto, com pressa, e vou ler mais um pouco das anotações.
• • •
Perto do anoitecer, Amy retorna, exigindo a minha presença. Desço as escadas e sigo até a sala.
A sua intenção é simples: quer me usar como uma bomba suicída. Realmente não há maneira mais direta e eficaz para acabar com tudo.
Após ouvi-la, faço uma pergunta para ela.
— Amy, por que os jornais falam que a minha avó Elizabeth está desaparecida? O que isso significa? — ela olha para mim. O seu rosto fica raivoso.
— Continuam com isso?! Ignore esses imbecis! Querem apenas denegrir o nome do meu marido e da sua família! Você sabe muito bem que os seus avós estão mortos.
— Mas eu nunca fui vê-los no cemitério... Você tem certeza?
— Humpf! Você nunca foi por que não quis! E, sim, garota. Eu tenho certeza.
— Mas... O que...
— Já chega, Karen! Eu já te disse! Elizabeth está morta! No máximo, esses programas querem se aproveitar dessa situação toda para conseguirem mais audiência — talvez ela esteja dizendo a verdade, pois parece ter ficado muito incomodada com essa história. Mas...
Sei lá.
O meu instinto me proíbe de acreditar. Há algo estranho pairando no ar. Será que a minha mãe está... mentindo?
—... — fico olhando-a, sem saber o que pensar.
— Karen, você me ouviu?
— Como?
Ela me encara com desprezo.
— Menina, presta atenção.
Ela repete o plano.
— Certo... Mas... como iremos fazer isso? Eu não posso sair por aí, toda a polícia está atrás de mim. Sem contar que não temos ideia do lugar em que ele está.
— Não se preocupe com isso e não force a sua cabeça. Ela não é muito boa.
— Senhora? — Scar se prontifica. Amy dá a entender que irá sair.
— Ei! Esperem! Aonde vocês vão? — estou sem entender. — Vão me deixar aqui de novo? Até quando?! — resmungo, pois não aguento mais ficar escondida. — E por que o Scar está aqui? Quem é ele, afinal?!
— Garota burra! Você, ao menos, prestou atenção em suas palavras? — após me ofender, ela segura, por um breve tempo, um silêncio chato, e fica me olhando com ojeriza. — Pois bem, acho melhor falar de uma vez. Karen...
—... — quieta, eu continuo olhando-a.
— Ele e o Scar são irmãos — revela assim, do nada, sem eu estar preparada. — Agora, como eu te disse, irei me encontrar com a tal mulher, ou melhor, nós iremos — ainda estou presa no comentário de que aquela merda e esse sujeito creepy são irmãos.
— Irmãos?!
O seu olhar fica carregado de nojo.
— Perdoe-me, Scar. Eu não lembrava que ela era assim — ela dá uma suspirada de irritação com desdenho. Depois, olha no relógio na parede. — Bem, ainda temos algum tempo. Acho melhor falar tudo logo para, talvez, você se acalmar e parar com esse comportamento ridículo — e, antes de partir, ela decide me contar algo que não estava nas densas anotações que me entregou; também pede ao Scar para se juntar.
Vamos até o quarto onde está a televisão. Sentamo-nos. Ela acende um cigarro. Quando éramos uma família, ela não ava o cheiro dessa coisa.
Vejo que não é mais assim.
Ela começa repetindo o que disse há pouco: ambos são irmãos. Gêmeos, para ser mais precisa. Porém, Scar não sabe, exatamente, a história por trás de todo o mal que o seu irmão possui. Apenas que ambos foram separados quando tinham cinco anos de idade. Que, antes disso, aquele psicopata era uma criança normal — de acordo com o Scar, é claro —, que precisava lidar com as dificuldades do seu mundo. Contudo, desde então, Scar nunca mais soube o que houve com a sua metade sombria.
CAPITULO 33. O ANJO QUE CAIU DO ALTAR
No interior de uma cidade horrível, distante de Melancolia e Agonia, há quarenta e seis anos, nascia um garoto que destruiria muitas pessoas, muitas vidas. Ninguém sabe ao certo por quem, de que maneira, em que lugar. Apenas que, em um bairro degradado, tomado pelo tráfico e por outras centenas de situações obscuras, em algum momento indecifrável, esse garoto, predestinado a tornar-se uma mancha insolúvel, seguiria uma estrada tomada pelo caos. Um ser demoníaco, embebedado pelo ódio, pelo vazio. A sua dimensão se estenderia a diversos homens, a diversas mulheres, a diversas crianças. Porém, por um apreço desgraçado, devido a uma piada mortal, ele se fixaria em uma única pessoa para sempre. Até após a vida. Até após a morte.
• • •
A origem de ambos, contada por seu irmão mascarado, é vaga e dispersa. Resquícios da sua memória infantil, lúdica e fantasiosa. Histórias difusas, sem muita segurança nas palavras. Não há um começo. A coisa meio que se iniciou com o trem andando. Mas Scar se empenha em dizê-las. Porém, não é possível saber o que é real ou pura imaginação. Ainda assim, alguns trechos, diz ter certeza de serem verdadeiros — claro que isso não garante nada.
Scar conta, por exemplo, de quando ambos estavam escondidos em um beco sujo, à noite, vendo três homens praticarem uma orgia imunda com uma prostituta raquítica. Ele diz ter sido a primeira experiência dos dois com aquilo — tinham apenas quatro anos. Scar também conta de quando viu o seu irmão maltratando alguns garotos que também moravam na rua. Chutando, socando, cutucando, sorrindo. Diz que seu irmão parecia gostar do que fazia.
E Scar conta mais. Cada vez pior. Cada vez mais inimaginável. Mas antes de dar sequência, preciso voltar um pouco no tempo.
No dia em que eu “descobri” que ele era a pessoa que aterrorizava Agonia, não pude deixar de conter uma puta de uma histérica euforia. Após poucos anos trabalhando em casos menores — mas importantes, não vou negar —, pude encontrar uma trama tão instigante, quanto apavorante.
Eu não era uma mulher adulta, mas também já não era mais uma fedelha.
A “revelação” surgiu no auge dos meus dezenove anos. Eu já tinha experiência o suficiente para desbancar jornalistas convencidos — o que fiz bastante, principalmente com os arrogantes e ridículos que me enchiam. Eu era uma flecha imparável, retilínea, precisa. O atrito do ar não podia me deter e qualquer obstáculo que surgisse a minha frente eu desviaria sem maiores problemas.
Eu ainda não trabalhava para o Afonso. Bem, na verdade, eu não trabalhava para ninguém. Eu era uma freelancer. Eu era livre e podia voar para qualquer lugar.
Mas estou me adiantando.
Eu tinha dezoito anos quando dei início às investigações, e fiquei pouco mais de um ano investigando-o...
Até ele foder comigo.
O cara não era um iniciante ingênuo — como eu pensava —, que achava que jamais seria capturado. Ele era hábil. Era esperto. Era astuto. Não deixava nenhuma migalha por onde ava — não sem querer, ao menos.
Após meses sem conseguir nada, a polícia já estava sem esperanças; os federais também. Mas, eu, a garota de cabelos sangrentos, como alguns profissionais de veículos diferentes me chamavam, seguia em frente.
Quando eu o conheci, pessoalmente, outros suspeitos ainda rondavam o meu radar, e ele parecia ser o menos óbvio.
Como isso faz tempo...
O apertar das nossas mãos, sob o olhar de uma noite fria, em uma lanchonete próxima ao jornal, foi o elo que, para sempre, nos uniria.
Ele, sorrindo, cercado por algumas famílias. O seu cabelo preto penteado para trás, com a sua camisa social despojada. Charmoso e elegante devo dizer. Com um fatídico anel em seu dedo.
Quem poderia imaginar que ele era uma praga bíblica...?
Misturava-se com tanta facilidade, adentrando círculos sociais sem nenhum constrangimento, que a falta de conhecimento poderia causar. E eu, na maior cara de pau que sempre tive, aproximei-me importunando a todos, e dizendo ser
uma jornalista. Nunca fui de esconder a minha cara. Óbvio que ele não viu nada demais nisso. Hoje, acredito que ele já soubesse quem eu era, e o que eu queria.
Ele disse que chegara à Agonia há cerca de três anos. Perguntei de onde ele era, mas ele não respondeu, apenas falou que transitava por cidades. Mas também não falava quais cidades exatamente eram. Um nômade, eu o chame algumas vezes. Também perguntei o que fazia da vida e ele respondeu dizendo que já fizera de quase tudo. Marceneiro, fotógrafo, cozinheiro, taxista. Diversas profissões, diversas mentiras.
Sim, naquela lanchonete, eu tracei o meu futuro.
No começo, às vítimas não apareciam. As famílias ficavam em um martírio eterno. Depois ele mudou a sua conduta “profissional”, expondo-as a todos. Agonia inteira ficou estarrecida.
É claro! Ele quem quis assim.
Após chegar até ele, fiquei um bom tempo sem conseguir absolutamente nada, enquanto eu fazia, e me afundava, em minha investigação.
Posteriormente, da pior maneira possível, eu saberia que nada a seu respeito era verdade. O seu ado era uma puta invenção bem construída. E a sua origem uma mentira sem falhas.
Ele era uma sombra mascarada de ser humano. Por fora, uma santidade
sacrossanta. Por dentro, uma abominação catastrófica. Tinha o total controle da sua vida. ada, presente e futura. Qualquer um que tentasse adentrá-la, além do risco de queimar-se, precisaria de muita força de vontade.
E justo eu fui ter essa “força”.
Talvez, ele nunca tenha imaginado que alguém fosse olhá-lo como realmente era. Muito menos uma garota magricela, arrogante e babaca. Talvez, essa novidade improvável que o tenha deixado tão fascinado por minha pessoa. E nem mesmo a minha fama de exímia jornalista deve ter lhe representado uma ameaça.
Mas jamais pensei em desistir.
Nunca fiquei desanimada ou desmotivada. Por experiência vivida, eu sabia que quanto mais dura fosse a investigação maior seria a recompensa. Por isso, quando a primeira migalha mais rechonchuda apareceu, acreditei ter sido consequência da minha incrível habilidade. De uma persistência imparável. De uma inabalável sabedoria.
Mas eu descobriria que ele é quem deixara o rastro para eu tropeçar.
Já em nosso primeiro contato, como estratégia, forcei uma amizade do nada. E ele aceitou sem recusas. Graças a isso, amos muitas manhãs, tardes e noites juntos. Jogávamos conversa fora. Em lanchonetes, sentados em cadeiras de madeiras úmidas. Ou em bares abafados, cheios de pessoas fedorentas e burras. Ele era muito bom de papo e eu não fazia feio. Porém, o seu raciocínio, às vezes, ia para um mundo distante, inalcançável, que eu nem conseguia acompanhar. E quando ele percebia a minha cara de paisagem, voltava diversos os atrás
para se igualar à minha ignorância. Sim, ele conseguia me manter ligada. E além desses aspectos, o desgraçado também era forte e alto. Com certeza, isso facilitava a sua posse sobre as vítimas.
“Não sei se a minha irmã tentou lutar. Se ela tentou fugir. Não sei o que ela sentiu diante do demônio. Não sei o que ela sentiu diante da morte.”
No começo, nunca dei a entender que ele era um suspeito. Eu falava a respeito de todos os outros. Por exemplo, do cara grandão que tinha uma barba imensa e que fedia mais do que estrume. Do sujeito baixinho que tinha um nariz de coxinha, por onde escorria meleca toda vez que espirrava. E até mesmo de uma mulher quieta, de olhar frio, e que me lembrava de uma criatura de uma série de televisão que só se mexia quando ninguém a olhava. Todos esses, e mais um monte, ao cadenciar de uma tartaruga, foram sendo jogados no lixo. Eu acreditava estar me aproximando de uma afirmação, de uma resposta definitiva. Eu já podia senti-la, quiçá, tocá-la.
Mas o desgraçado sabia atuar.
Ele sempre era gentil e solícito. Gostava de me “ajudar”. Humpf! E eu achava que estava manipulando-o. Errei novamente, pois era o contrário. Ele nunca me disse, mas, com certeza, já sabia que eu o via como um suspeito.
Ainda assim, precisei tomar muito cuidado.
E teria me complicado se eu fosse uma pessoa normal, pois poderia tê-lo visto como um amigo, devido à proximidade que surgiu entre nós. Essa proximidade não era uma novidade. Eu já havia, de certa forma, atuado dessa maneira em
outros casos, apesar de nunca ter me aproximado tanto dos vagabundos a ponto de me tornar uma amiga. Eu, normalmente, pegava-os de longe, sem precisar sentir as suas presenças podres.
Mas essa investigação era diferente. Ele era diferente.
Agonia estava aflita, em alerta constante. Saber que crianças eram mortas, mas que antes eram... Isso deixava um clima amargo, viscoso e intragável no ar.
A cidade ficou sitiada por uma única pessoa.
E apesar de Agonia sempre ter sido um lugar desgraçado, com casos e mais casos horríveis, dessa vez era algo a mais. Afinal, eram...
Crianças.
Sempre eram encontradas em situações degradantes, sem nenhum tipo de respeito. Tudo era muito macabro, diabólico. Ele não tinha limites no que fazia. O pior foi que, após esse período, casos similares começaram a brotar na cidade — como o que houve com a Alícia. Não eram tão difíceis de serem resolvidos. Os criminosos, na maioria, eram muito estúpidos, e, de certa forma, amadores.
Agora, após toda a merda que houve, quando me recordo dos momentos daquela época, vejo alguns eventos sóbrios.
Ele nunca deixava de ter um jornal embaixo dos braços. Eu sempre xingava os veículos de comunicação por exporem o andamento das investigações, já que isso só devia facilitar para ele, dando indicativos a respeito da parte em que a imprensa e a polícia estavam.
Mas, na real, isso nem devia fazer diferença.
Já devia estar a par de tudo. Quais eram os jornalistas, detetives, policiais, federais e demais interessados que trabalhavam para poder capturá-lo — mesmo sem saberem que ele era o maníaco.
Ele...
Eu me lembro da primeira vez que ele me levou para conhecer o seu apartamento.
Ficava em um bairro afastado, isolado do centro. Era amplo e tinha poucos móveis, mas havia muitos quadros espalhados pelas paredes. Parecia uma verdadeira exposição artística. Eu não fazia ideia às quais artistas pertenciam àquelas obras, por isso ele precisou me referenciar a respeito de tudo.
Lá, também tinha uma televisão solitária, por onde devia observar o seu circo. Por fim, uma estante lotada de livros, com uns bens sinistros. Desde histórias canibalescas até culturas que vangloriavam o incesto; e de assassinos seriais, cheias de condutas deploráveis e obscenas. Eu perguntei por que ele lia esse tipo de coisa, e me respondeu dizendo que gostava. Simples assim. E isso até poderia silenciar o inquisidor menos incisivo, mas eu, já cogitando ser ele, o monstro, não aceitei essa resposta enfadonha. Entretanto, eu evitava confrontá-lo com
certas perguntas, pois temia deixá-lo em alerta — se bem que ele sempre esteve. De resto, não havia nada demais em sua residência.
Nesse dia, amos a tarde toda bebendo e conversando a respeito de qualquer porcaria. A respeito da vida, talvez. E ele me falou dos seus gostos, hábitos...
Sonhos.
Tudo mentira, obviamente. Mas ele era um bom criador de histórias.
E eu me abri também.
Falei a respeito de uma parte da minha família, que eu nunca pude conhecer por questões que nunca foram resolvidas. Falei do meu pai, que morrera por causa de um câncer, quando eu era uma criança.
E falei da saudade que eu sentia dele.
Não forcei um comportamento para tentar enganá-lo. Tudo o que eu falei era verdade. E ele apenas ficou em silêncio, ouvindo, com os seus olhos de uma profundeza sem fim, de uma obscuridade impenetrável. Talvez o preto que os comia fosse o responsável por isso.
Posteriormente, quando eu tive o vislumbre da minha investigação confirmada, comecei a agir erroneamente, igual a uma idiota do caralho.
E foi aí que fiz as piores jogadas.
Quando eu disse que descartara todos os possíveis suspeitos e que restava, agora, apenas um, ele arqueou a sua sobrancelha direita como se tivesse finalmente ganhado.
— É mesmo? E quem é? — foi o que ele perguntou, sorrindo sutilmente. Não queria deixar transbordar a sua vitória anunciada.
Eu não fiz questão de esconder o meu entusiasmo. Fiz o oposto, na verdade.
Sem dizer que era ele, eu ofendia e menosprezava o desgraçado, chamando-o de burro, de imbecil. Na sua cara, eu cuspia a minha vitória, a minha soberba. Eu parecia uma menina esnobe e patética que se sente superior perante os colegas de classe, simplesmente por sua condição financeira, independente de ser uma ameba acéfala. Eu também falava como iria capturar o animal de maneira humilhante e depreciativa. Que era uma questão de tempo até ser feita a maior revelação jornalística daquela cidade e da minha vida.
Agonia seria pouco para aquela história e para mim.
Eu seria uma mulher reconhecida internacionalmente em qualquer pedaço e parcela do mundo. Seria respeitada por todos, inclusive pelos jornalistas gordos e fedorentos que me provocavam. Seria referenciada nos manuais de redação como uma ideia a ser, não seguida, endeusada. Eu, realmente, não ligava para nada disso, mas quis provocá-lo.
E ele não falou nada.
Apenas manteve uma cara alegre, com um sorriso divertido, olhando para o meu rosto. Nunca consegui deduzir se ele estava odioso e revoltado por causa das minhas palavras, ou se achava tudo uma grande brincadeira, uma grande piada. Talvez, ter me chamada de doce menina denote a segunda opção.
No fim, para variar, errei novamente.
A polícia confiscou todo o material que eu levantara. A filmagem da perversão que ele fizera com a minha irmã foi levada, e trancafiada, para nunca mais ser vista. Fui taxada como a responsável pela morte da Sarah e por ele ter escapado. Criticaram a minha conduta, chamando-a de antiprofissional e burra. Falaram que eu deveria ter alertado as autoridades ou qualquer órgão responsável por esse tipo de coisa, desde o começo. Falaram que eu deveria ser presa — e quase fui. E falaram outros milhares de merdas a meu respeito. Falaram o que tinham que falar. Falaram o que eu tinha que ouvir.
Profissionalmente eu estava acabada.
Toda a credibilidade e respeito que eu construíra com muito esforço e suor, foram desmanchados, igual açúcar ao tocar a água. Ninguém mais iria colaborar com a cretina que oferecera a irmã para o psicopata. Nem mesmo a mais desesperada família, clemente por ajuda, faria.
Nada. Ninguém. Eu fiquei perdida. Isolada. Sozinha.
Minha mãe me deixou só. Afonso deve ter tido os seus motivos — nunca perguntei a ele. A Sofia... eu não podia. Ninguém queria aproximar-se, por isso decidi fugir, para longe de tudo, para longe de todos...
Inclusive de mim.
Fiquei dois anos desaparecida. Não sei o que eu fiz ou deixei de fazer. Não sei onde estive. Não tenho o menor registro dessa época em minhas memórias. Apenas uma lacuna negra e extensa, um vácuo sufocante. Sei lá, talvez eu tenha tentado me reerguer, dar a volta por cima, vai saber... Não consigo ver o que se ou neste pedaço obscuro da minha existência. O único lapso que tenho é, por algum motivo escuso, de estar em um ônibus, retornando à Agonia e batendo à porta da Sofia, em uma manhã fria.
Eu era um fragmento do que fora. Eu estava muito magra, ossuda, com a pele azulada e fina. Acredito que eu tenha perdido uns vinte e cinco quilos. O meu cabelo estava enorme — mais do que agora. O meu semblante disperso, sem uma direção definida. E a minha gentil Sofia, a única amiga que eu já tive, ficou desesperada com o que viu em frente a sua porta: um esqueleto franzino. Uma carcaça destroçada. Uma pessoa aniquilada.
Sofia ficou sem palavras para falar, mas os seus olhos fizeram questão de me mostrar o quanto eu, por ela, ainda era querida. Ela me pegou pelos meus braços cadavéricos e me levou até o interior do seu apartamento curador. E foi ela que me deu banho. Foi ela que forçou a comida em minha boca.
Foi ela que me salvou de mim mesma.
Sofia não perguntava o que eu fizera ou onde estive durante os anos em que desapareci. Porém, quando ela pensou em cortar os meus cabelos, que mais pareciam enormes tecidos vermelhos, pôde presenciar as minhas primeiras palavras em muito tempo.
— Sarah... não corte... gostaria... deles... assim... — não falei mais nada durante um bom tempo. A minha querida Sofia ficou tão triste com essas palavras. Nem mesmo o seu cabelo fino e esvoaçante, de um loiro alegre, dançante, pôde impedi-la de chorar.
Ela falara para o Afonso que eu estava na cidade. O jornalista ficou desesperado, e correu até o apartamento dela para poder me ver.
Mas eu não quis.
Eu apenas queria ficar escondida. Eu apenas queria ficar remoendo tudo o que eu fizera comigo. Eu apenas queria ficar remoendo tudo o que eu fizera com a minha família. Eu apenas queria encontrar um motivo para não acabar com a minha vida. Eu apenas queria encontrar um motivo para não querer desistir.
CAPITULO 34
Voltando a falar a respeito daquele merda, pior do que ter me aproximado demais dele, foi quando eu disse que iria apresentar a minha irmã. Sei que ele gostou quando sugeri essa loucura. Não ficou empolgado, nem contido. Agiu naturalmente. Deve ter sido a primeira vez que uma pessoa tenha lhe oferecido à vítima. Mas...
Eu me lembro de ele ter feito um olhar diferente.
Sua negridão era lustrosa, espelhada. “Será fácil assim?”, posteriormente, imaginei que ele tenha pensado.
A sua vida deve ter alcançado um significado tão poderoso que, provavelmente, começou a acreditar que, de fato, ele era mesmo a figura na qual o seu nome se apoiava.
Talvez, ele tenha recebido o toque de alguma concepção maligna, ou tenha sofrido um trauma tão profundo que o fez (faça) agir com tamanha crueldade com todos. Talvez, ele tenha sido corrompido por ideias torpes, lidos de um livro errôneo, ou tenha adquirido o gosto pelo sofrimento alheio por osmose. Talvez, ele tenha aprendido a viver dessa maneira como uma forma de sobreviver, ou tenha sofrido uma doutrinação tão precisa que o deixou incapacitado de regredir ao que o ser humano finge ser. Ou, talvez, essa seja a sua natureza, a forma que a vida decidiu concebê-lo. A forma que a vida achou que seria a mais divertida para satisfazê-la.
Nas semanas seguintes, eu trabalhei em uma maneira de fazê-lo ser pego no ato. Tive algumas ideias, mas a “melhor”, posso assim dizer, foi a que fodeu com tudo.
Eu não tive o menor pudor em pedir a minha irmã para se envolver. A minha consciência, em nenhum momento, foi abalada por essa loucura. Evidente que eu não mencionei a ela qual seria o papel que assumiria. Para piorar, também nunca o apresentei a minha mãe, pois fiz a Sarah manter segredo. Não por preocupação ou cuidado. Simplesmente...
Por achar que a minha mãe não me ajudaria, além de poder atrapalhar, caso tomasse conhecimento.
Minha mãe...
Agora, pude ter um vislumbre de como ela se sentiu, de como ela se sente, após tudo ter sido revelado. E...
Prefiro manter assim.
Não acho que coisa boa sairá dela, se eu for mais fundo. No enterro da Sarah, ela parecia não acreditar no que acontecera. Parecia não acreditar...
No que eu fizera.
E aquele merda nunca expôs a sua impressão a meu respeito. Tudo o que eu concebi, após aquela época, foi por deduções intuitivas, e por suposições fundamentadas em minha percepção jornalística. Modéstia a parte, não acho que eu estivesse errada. Não acho que eu esteja errada. Mas eu gostaria de saber, de fato, onde ele começou a me enganar. Quando percebeu quem eu era. Quando decidiu criar o seu jogo. Quando decidiu encerrá-lo. E...
Por que eu fui a sua escolhida.
CAPITULO 35. SCAR
Scar, o pequeno menino condenado a ter a mesma feição do monstro que mataria a Sarah, pôde viver uma vida tranquila até tudo ser destruído.
Ele foi levado para Melancolia por um casal que o resgatou, tirando-o das ruas. Era um casal de artesãos, bem simples, bem humildes. Eles avam, por acaso, pela rua em que Scar estava, quando o viram. E ao verem o pequeno garoto submerso na fossa, não fizeram nem questão de perguntar se ele tinha alguma família — e mesmo se Scar tivesse, ele não abriria mão da loteria premiada que a vida estava dando. Porém, por causa disso, não pôde se despedir do seu irmão. A última vez que os gêmeos viram-se foi na manhã desse mesmo dia, quando ele partiu para arrumar algum dinheiro, e Scar ficou para trás, tendo que cuidar da própria vida.
• • •
Anos após de ter sido salvo de um futuro podre, Scar vivia em paz com a sua família, ao norte de Melancolia. Trabalhava com a sua esposa, Lisa, no restaurante que ambos haviam erguido com muito esforço. Scar havia se tornado cozinheiro. O ofício: aprendido com o tio que havia ganhado. Ele levava a sua vida assim, sem maiores alardes, sem maiores surpresas.
O dia que pôs um fim em tudo começou sem nada demais. Era mais um dia comum, mais um dia tedioso. Numa manhã tranquila, aproveitando um feriado na cidade, onde o estabelecimento não abriria, Lisa havia ido com a filha do
casal, Olivia, comprar alguns condimentos, necessários para o cardápio, em outra cidade. Mas como nada é de graça, a vida quis tirar aquilo que havia dado ao Scar. E nesse dia chato, burocrático, maçante, todo um evento caótico se originaria para algumas existências infelizes.
Ainda era de manhã, por volta das dez e quinze, quando Scar também partiu. Foi até Agonia em busca de especiarias específicas, pois lá tinha muitas coisas interessantes. Ele chegou à tarde, já que as duas cidades são afastadas.
Já em Agonia, enquanto eava pela feira, indo de barraca em barraca, deparou-se com as notícias que mudariam tudo. Um homem, com a mesma feição que a sua, era mostrado na televisão de um mercado, enquanto coisas ruins eram faladas a respeito dele. Scar, que sempre havia vivido longe dos noticiários, e agradecia por Melancolia ser uma cidade desinteressada por esse tipo de conteúdo, ficou imóvel ao ver o seu reflexo na televisão. Ficou imóvel ao ver o seu irmão.
Distraído, enquanto acompanhava o telejornal, Scar não percebeu a aglomeração que surgia a sua volta. Os moradores, possessos e ensandecidos, de imediato, reconheceram aquilo que estava na televisão, ali, bem próximo deles. E, obviamente, a violência foi a resposta escolhida. Pobre Scar, não teve o que fazer. Foi considerado o mesmo monstro que a reportagem apresentava. Foi considerado um erro. Uma perversidade maldita. Um maníaco perigoso. Uma ferida repulsiva.
Em meio à loucura que rapidamente se instalava, Scar precisou se defender dos moradores que estavam incriminando-o de maneira brutal. Ignorantes e raivosos, eles queriam agredi-lo de qualquer jeito, até mesmo matá-lo.
Assustado, Scar tentou fugir, todo atabalhoado e tropeçando, por onde fosse
possível. Mas, perante o alvoroço, a sua presença era bloqueada em qualquer canto em que tentava entrar. Ainda assim, tentou explicar a sua origem, mas ninguém queria escutar. Estavam todos revoltados com o assassino. Estavam todos revoltados com a jornalista. E, de qualquer forma, Scar tinha o mesmo rosto que ele. Os mesmos olhos que ele. O cabelo tinha outro penteado, mas o mesmo comprimento e cor.
Scar correu como jamais pensou que seria capaz. Conseguiu entrar em seu carro por milagre, e partiu dali com o coração saltando no peito.
No caminho até a sua casa, ligou várias vezes para a Lisa, mas ela não atendia. Scar ficou aflito, pois Lisa, junto à Olivia, tinha ido até a cidade em que ele havia nascido.
O casal costumava frequentar o comércio de lá, e até já haviam sido fotografados pelo jornal local. Também eram queridos pelos moradores. Essa fama aconteceu por causa do Scar, que havia conseguido sucesso fora, na irada cidade da noite eterna. Ele sempre agradeceu por essa hospitalidade com muito carinho, e Lisa também aproveitou dessa situação gerada. Agora, o problema, para a infelicidade das duas, era que essa cidade não era amigável. Era uma cidade hostil, de ânimos exaltados, e de uma perturbação reprimida. Era uma cidade complicada. Uma cidade arisca.
Scar dirigiu, parando apenas para abastecer o veículo. Agradeceu por não precisar descer do carro, pois escutou algumas pessoas despejando palavras raivosas sobre o que havia acontecido em Agonia.
Quando chegou à Melancolia, Scar, extenuado, viu que o seu humilde restaurante ainda estava intacto. Pensou que poderia ser alvo da fúria descontrolada de moradores que bancariam os justiceiros. Isso não aconteceu,
pois sabiam quem ele era.
Sem pausa para descansar, Scar recebeu a ligação que tanto buscava. Era a sua amada Lisa, desesperada, ofegante e implorando para que ele pudesse ir ajudálas. Scar perguntou o que estava acontecendo e Lisa respondeu falando que os moradores, os mesmos que os iravam, queriam matá-las.
Lisa, perturbadíssima, correu por vielas desconhecidas, segurando fortemente na mão esquerda da Olivia — angustiada, sem entender absolutamente nada. Porém, Scar entendia. E apavorado, enquanto voltava para o seu carro, pedia à Lisa para procurar alguma maneira de se esconder, e que, logo, chegaria até elas. Mas não houve tempo. E quando a ligação cortou, Scar soube que elas haviam partido.
Em choque, por não entender tamanha brutalidade, caiu aos prantos, enquanto buscava meios de compreender como um dia pacífico havia se tornado em uma experiência aterrorizante, em um inferno escaldante. Em como tudo havia se perdido.
Com o avançar do tempo, em Melancolia, a sua vida nunca mais foi a mesma.
Apesar da segurança física, a sua presença, aos poucos, tornou-se desagradável. Começou a ser tratado com repulsa por aqueles que o viam. Os antigos amigos não queriam mais contato com ele. E sua família, que anos atrás o havia recebido de braços abertos, acolhendo-o com afago e ternura, creditava-o como responsável pela morte violenta da Lisa e Olivia. Ambas foram espancadas e, posteriormente, queimadas vivas.
Pobre Scar. Essa sua cidade natal tinha algumas qualidades (ocultas) boas. Porém, a maior parte, as feias, eram feridas expostas, com sangue e pus jorrando por todos os lados. E apesar de tentar contê-las, era uma cidade conturbada, tensa, que por qualquer fagulha mais ardida poderia tornar-se um formigueiro agressivo. E Scar havia se esquecido disso. A paz que Melancolia trouxe o fez esquecer a sua origem, e de onde havia saído: das trevas a céu aberto, de uma malignidade fétida e poluente, e que não perdoa, nem mesmo, os seus descendentes.
A iração que recebia dos moradores o deixou cego. Cego para a verdade terrível que sua cidade carregava. Consequência disso: Scar culpou-se. Sempre pensando que não deveria ter deixado as duas irem sozinhas. Que deveria ter ficado ao lado delas. Que deveria ter sido menos ingênuo. Que deveria ter sido mais forte. Pensou, até mesmo, que o seu irmão estava certo.
Após a sua queda, Scar vagou por Melancolia durante anos, retornando para o lugar de onde havia saído: as ruas.
Scar perdeu tudo, pois tudo se foi. O seu restaurante, os seus amigos e a sua família. E cansado desse pesadelo, entregou-se a todo tipo de bebida e a todo tipo de droga, pois não ava mais ter que viver com as suas enormes perdas. E pior do que isso, ele não conseguia mais olhar o próprio reflexo, pois a imagem que refletia não era a sua, era a do monstro que havia acabado com a sua vida.
Em algum momento, Scar, perturbado, beirando a insanidade, colocou um capuz e botou uma máscara, encontrados jogados no lixo, embaixo de um monte de merda. Para piorar tudo, também pensava em matar-se quando o teor alcóolico baixava e o efeito das drogas diluía-se. Chegou a tentar algumas vezes, mas era fraco e covarde.
Após viver anos à mercê da sorte, foi visitado por uma mulher sombria, de olhar impaciente e agudo, que parecia amedrontar, até mesmo, a escuridão perpétua que há no mundo. Sem perguntar nada, ela pediu ao seu empregado para pegar e enfiar Scar no carro. A mulher o levou, apenas dizendo que ele teria uma missão a cumprir.
Assim, enquanto era obrigado a enfrentar os próprios demônios, Scar também era instruído a aceitar a sua condição imposta. Como sempre, o começo foi difícil, mas o tempo deu um jeito e, por linhas tortas, ele conseguiu lidar com essa inesperada reviravolta. E a proposta oferecida lhe soou como um acalento em meio à tempestade: teria a oportunidade de punir o ser que acabou com a sua vida.
Scar recebeu uma educação como nunca havia tido antes. De um humilde cozinheiro de bom coração, tornou-se um versátil capanga, capaz de lidar com difíceis situações. E em pouco tempo, ele começou a trabalhar para Amy, na busca pelo mesmo ideal: acabar com o psicopata e com a outra metade, que poderia ser igual.
CAPITULO 36. KAREN ROSE HEART: PARTE II
-E u nunca soube que o Scar esteve em Agonia. Aliás, eu não sabia de nada disso — como eu nunca soube a respeito dele? Pergunto a mim mesma.
— Há muita coisa que você não sabe, Karen.
— Bem, e como você conseguiu tudo isso?
— Veja, depois do que você causou, como eu te falei, procurei me afastar de tudo. Do inferno que você trouxe à minha vida. Mas vi que jamais conseguiria. Então, procurei meios para poder enfrentar este caos que você jogou em cima de mim.
— “Meios?”. O que isso significa? Você era uma confeiteira. Agora mais parece um chefe do crime.
— As diversidades nos obrigam a adaptarmos. Apenas fiz o mesmo. Consegui recursos. Com dinheiro tudo é mais fácil — nossa... A voz dela é morta.
— E onde você arrumou esse dinheiro?
— Isso não lhe diz respeito. Na verdade, nada lhe diz respeito.
—... — eu me levanto. — Então, quando faremos o que você falou?
— Em breve. Antes, Scar e eu precisamos ir.
— Você tem certeza? Que garantias têm de que ele te deixará em paz?
— Como eu falei, garanti a eles que irei te entregar, e a garota falou que isso o agradou.
— Quer mesmo apostar nisso? Na palavra dele? Você está sendo muito ingênua. Aliás, qual é a dele? Não parece errado uma mãe querer entregar a própria filha para o cara que matou a sua outra filha? Onde isso faz sentido? — ela sorri, assim que termino de questioná-la.
— A garota me falou, exatamente, essas palavras — minha mãe age como se tivesse com o controle de tudo. — Eu apenas falei que queria dar um basta na difamação que toda essa situação está causando ao nome do meu marido. E que eu quero te ver morta, pois te odeio mais do que tudo, a ponto de entregá-la ao homem que matou a minha verdadeira filha. Não precisei mentir e, certamente, a garota também viu isso — percebo a verdade em sua voz. — Também pedi que ele faça com que os veículos de comunicação parem com toda essa imundice a respeito do Sam.
— Então... é isso... — mais uma coisa estragada por mim. — Lamento por estar
sujando o nome do meu pai.
— Humpf! Não me venha com compaixão agora, Karen! — nojo é o que a sua voz torna-se. — Não depois de ter envolvido à Sarah em suas merdas, pelas minhas costas! Não depois de você ter causado a morte dela! — eu tento ignorar essas últimas palavras, mas não é fácil. — Não, Karen. Você não merece desculpas. Você não merece perdão. Você não merece nada! Nada! — ela me olha com puro ódio. Até parece eu...
Com ele.
— A senhora está subestimando-o. Está cometendo o mesmo erro que eu cometi. Não há nada por trás das palavras dele. Ele não vai te deixar em paz. Na verdade, vai te perseguir até o inferno.
— Posso te garantir que sei o que faço — quanta arrogância.
— Era exatamente isso o que eu dizia.
— Por favor, Karen. Não me compare a você — quanta prepotência.
— Por que acha que será diferente? É bem provável que ele saiba que a senhora o estava investigando durante esse tempo todo. E é bem provável que ele estará observando o encontro de vocês.
— Isso é improvável. E mesmo se essa pequena porcentagem for real, não fará diferença.
— Como assim?
— Eu também tenho algo a mais.
— Refere-se ao Scar? Você acredita que ele irá perder tempo com esse lance de irmão desaparecido? Porque eu duvido.
— Scar não é uma isca, se é o que está pensando. Ele não deve saber que o seu irmão está vivo.
— Então, qual é a charada?
— Aguarde. Se for preciso, você saberá.
Ficamos nos encarando.
— Amy, você sabe que ele esteve atrás de mim, em Melancolia, certo?
— Você sabe que sim, Karen.
— Bem, e você também sabe que ele usou uma velha amiga sua, chamada Piedade, para me atrair? — o seu rosto diz que não.
— Piedade...? Essa mulher morreu há anos... Quando foi que isso aconteceu?
— No dia em que eu fui à sua antiga casa. Foi ela quem me fez ir até lá. E foi ela quem me entregou uma carta escrita por ele.
— E por que você não contou isso antes, garota!
—... — não a respondo.
— Ah! Que seja! Mais alguma coisa?
— Bem, eu também me lembro de ter ouvido, de uma mulher que apareceu lá na casa, algo bem estranho. Ela falou: “As duas ou nada”. Isso significa algo para você?
Os dois olham-se.
— Hahahahahahaha! Bem, parece que ele já sabia, afinal.
— Sim, senhora.
— “Sabia?”. Sabia o quê? — pergunto para ambos.
— Nada. Agora, com licença. Nós precisamos ir — ela se levanta e sai. Scar vai logo atrás.
— Por favor, senhorita. Não saia daqui — mas, antes, despede-se de mim.
— Não se preocupe, não sairei — ainda estou incerta quanto a isso.
Minha mãe parte com o seu guarda-costas.
O que foi essa risada? E o que será que ela quer dizer com tudo isso? Parece um monte de enigmas essas suas palavras. Mas ito que haja bastante coisa a respeito dos crimes que ele cometeu — mas algumas anotações são muito subjetivas. Ao menos, algumas materialidades podem me dar um norte a respeito do comportamento daquele bosta.
— Mãe... — não consigo deixar de pensar em como ela está mudada. Não imaginei que isso é o que acontecera. É triste. É Infeliz. É...
É injusto.
A garota amável que se apaixonou por meu pai, na primeira vez que o viu, não existe mais. A força e a determinação ainda residem nela, mas todo o resto foi corrompido. Todo o resto foi contaminado. Todo o resto foi dizimado. E apesar de ser eu a causadora, lamento por essa mudança amarga.
— Mãe...
• • •
Já faz uns bons minutos que estou divagando, viajando em meus pensamentos.
— Eu preciso ir! Não posso mais ficar aqui! — até que me canso. Corro para fora da casa. — Droga! Eu não devia tê-los deixado ir sem mim! — não consigo identificar nada no meio do labirinto de árvores. Volto ao interior da casa.
Então, começo a procurar possíveis desfechos para o encontro dos três.
— É melhor pensar no que pode acontecer, caso as coisas acabem tomando outros rumos — pego um caderno para começar a anotar. — Pois bem, dito isso...
Primeiro: ele estará por lá, irá matá-los e depois dará um jeito de me encontrar. Talvez os torture antes para que digam onde estou escondida. É uma possibilidade crível.
Segundo: apenas irá torturá-los, com o mesmo propósito da primeira opção. O que fará depois... Mas é pouco provável que ele acredite em minha mãe. Apesar de estar tão odiosa comigo, não acho que ele deixará de supor alternativas. Afinal, ele matou a filha dela. E ele não é ingênuo a ponto de abrir mão de todas as possibilidades, por mais que a minha mãe possa ter dito algumas verdades.
Terceiro: caso ele não esteja lá, os dois podem forçar a mulher a falar onde ele está escondido. Aí eles podem dar um fim nele. Até que é possível, principalmente por Scar, que quer realmente matá-lo. Porém, minha mãe quer que eu vá junto. Hummm... Ela o mataria e depois viria atrás de mim...? Acho que só se tudo der errado. Mas e se o Scar agir sozinho? Hummm... Não. Duvido que ela o deixe fazer qualquer coisa do tipo. E ele parece ser fiel a ela, ainda mais após o que ela fez por ele.
Quarto: minha mãe perde o controle, acaba com tudo e ignora a minha existência. Ela pode obrigá-la a falar a localização dele e... Não, acho difícil. Ela quer o meu fim, mais do que tudo, e da forma que ela planejou.
Quinto: tudo ocorre conforme o combinado e ele acreditará no que ela for dizer, porém, colocará os seus termos a serem seguidos. Esse eu acredito que seja o menos provável de acontecer. Minha mãe não é de ficar de quatro para ninguém, e ela não vai aceitar mudanças no acordo.
Sexto:...
— Ah, chega! Isso é um labirinto sem fim! — jogo o caderno com as anotações na parede. — Não dá para confiar em nada do que ele fala, falou ou falará! Eles estão em perigo! Preciso sair daqui imediatamente! — eu me levanto irritada por minha ividade.
Visto algumas roupas novas que há por aqui. Vou toda agitada para fora.
— Droga! Como eu saio dessa porra de floresta?! — é tão densa e vasta. — Não tem jeito. Terei que andar até encontrar uma saída — eu me enfio no meio das árvores, sem ter nenhuma noção de qual é o caminho. — Eu deveria ter pensado nisso antes. Conhecido melhor este lugar. Merda! — saio xingando, enquanto me embrenho pela mata.
• • •
Após um tempo, continuo sem saber aonde ir.
— Arf, arf, arf, arf, arf, arf, arf... Merda! — este tormento inável precisa... Ele precisa morrer. Pelas minhas mãos. Pelas minhas...
Ele tem que morrer.
— É isso o que importa... Só isso o que importa.
Não quero... Não quero mais...
— Essa história...
Não quero mais...
— Essa história tem que acabar.
Não quero mais ficar sozinha.
Contudo, enquanto ando por entre árvores largas e cheias de folhas, fico impotente. Não tenho capacidade de encontrar uma saída a menos que elas queiram. É uma masmorra inviolável, sem a menor pretensão de me deixar ir embora.
— Eu preciso sair daqui!
CAPITULO 37
No relógio que o Scar me deu, diz que já ou uma hora e meia, desde que eu me enfiei nesta desgraça impossível. E a escuridão, que antes conseguia me interessar, agora é mais um empecilho em minha busca por uma saída. E essa forte chuva só piora tudo. E esta floresta é tão densa e fechada, que mais parece ser uma filha perdida de Agonia. Por lá, este tipo de terreno que é o normal.
— Eu pensava que Melancolia fosse uma selva de pedras e... Bem, na verdade ela é. Isso aqui fica do lado de fora da cidade — o que estou falando?! — Ah! Que seja! Acho que nunca irei sair deste buraco! — eu me apoio em uma árvore para recuperar um pouco do fôlego. — Arf, arf, arf, arf, arf, arf... Isso só pode ser... uma piada... — eu me rastejo igual a um zumbi, sem ter a mínima ideia aonde ir. — Minha mãe indo ao encontro daquele lixo com o seu irmão gêmeo. Nem mesmo o meu avô teria tido uma ideia tão absurda assim — continuo, tomando cuidado com o terreno, agora, escorregadio.
Mas estou cansada.
— Droga! Eu não deveria ter concordado com tudo isso! O que me ou pela cabeça?! — paro de novo, olho para cima e enfrento o véu negro choroso que me acompanha. — O que a minha mãe quis dizer com ter “algo a mais”? — volto a caminhar. — Parecia ser algo que irá surpreendê-lo. Mas não imagino o que possa ser. Descobri que não sou tão boa assim, quanto imaginava.
Até que, após este tempo todo caminhando a esmo, e mais um pouco, eu ouço,
distante, um som de carro. Tento encontrar, mesmo com as gotas, que explodem no chão, atrapalhando, a direção com os meus olhos extenuados, e corro na direção que imagino ser a correta. Porém, quanto mais eu corro, mais longe e baixo o som fica. E após eu tropeçar em uma raiz mais corpulenta, e ir de cara a terra úmida, o som desaparece por completo. As minhas roupas ficam todas sujas e encharcadas. O meu rosto todo lambuzado de lama — que também entra na boca.
Estou acabada.
Não sou, nem de longe, o reflexo da mulher que viveu para vingar a irmã assassinada...
E a si mesma.
Não que eu fosse um poço de plenitude e perseverança, muito pelo contrário. Mas, ao menos, não era assim, tão indefesa e fraca. Agora, sou apenas uma mulher ridícula que já não sabe mais o que fazer, após tanto tempo afundada em uma existência apagada.
— Hahahahahaha! — dou uma risada trágica, enquanto viro o meu rosto para cima. — Ai, ai... Que situação mais patética, Karen — deitada, sendo agredida pelas gotas pálidas, olho para as nuvens negras que pairam sobre as árvores. E eu já não sei mais o que há comigo. É uma mistura difusa. Uma mistura dispersa. As partes do meu ado depressivo se juntam com novas formas desconhecidas. Vontade de desistir e de dizer adeus a tudo. Vontade de buscar a saída que eu tanto desejo, sem me importar se irei levar aquele merda junto. Vontade de voltar à casa e ficar escondida por lá para sempre. Vontade de voltar à minha vida, antes de perder à Sarah. Vontade de voltar a ser criança e fazer as escolhas certas. Vontade de ter sentido, ao menos, uma vez na vida, algo além
desta angústia infinita.
E enquanto eu aprecio a minha insignificância sozinha, aqui, deitada nesta terra molhada, sendo provocada por gotas geladas, revejo tudo o que eu fiz. Revejo tudo o que eu destruí. Revejo tudo o que existe dentro desta vida arruinada que eu concebi.
A minha vida não é como eu esperava, quando mais nova. Não que eu tivesse feito planos. Na verdade, nunca pensei em nada. As coisas meio que foram acontecendo. Jamais olhei para frente. Para o depois. Para o futuro. Afinal, nada, nunca teve sentido. Mas... Ser jornalista... Ir atrás de monstros... Ser uma cretina... Estas escolhas eu fui escolhendo pelo caminho, mesmo sem saber o porquê as fazia.
— Escolhas...
Eu só fiz escolhas erradas.
Por que eu fui ficar obcecada com psicopatas, sociopatas, maníacos e homicidas? Eu poderia ter tentando viver uma vida feliz. Eu poderia, ao menos...
— Ter tentado...
Agora, sendo surrada por uma chuva raivosa, percebo o quanto eu fui...
O quanto ainda sou uma idiota.
Esta angústia sempre me consumiu... O meu abismo... O meu vazio...
A minha vida nunca parou de gritar. Mas eu pude, bem cedo, tomar consciência destas marcas. Porém, eu nunca soube, de fato, lidar com elas. Ficando em suas companhias? Satisfazendo-as? Sendo submissa? Dando sucesso e reconhecimento? Sendo uma desgraça? Uma pessoa quebrada? Uma repulsa maligna? Uma mulher sem vida?
— Silêncio...
Apenas o silêncio da morte pode me dar o que eu mais quero. O silêncio que me fará parar de ouvir a minha voz. O silêncio que me fará parar de ouvir o meu coração. O silêncio que me fará parar de ouvir a minha vida. O silêncio que me fará parar de ouvir a minha existência. O silêncio que me fará poder sonhar sob o cântico do fim.
— Sim... Essa é a única saída.
Pois, hoje, deitada aqui, vejo que isso jamais terá um fim. Mesmo se a Sarah ainda estivesse viva. Mesmo se a Amy ainda fosse aquela doce menina. Mesmo se o meu pai ainda existisse...
— Eu ainda seria assim...
CAPITULO 38. DISSONÂNCIA
MEIA HORA ATRÁS, DENTRO DE MELANCOLIA:
A chuva torrencial não para de cair.
Amy e Scar chegam ao local em que haviam combinado com a mulher. É uma casa abandonada ao norte de Melancolia. Os dois entram com cuidado. Para o azar de ambos é apenas uma miragem, e por mais de três horas ficam esperando. Com razão, pensam que foram enganados. Até que, de repente, o telefone toca, informando-os que devem ir até o local correto. Ambos voltam até o carro.
— A senhora estava certa — Scar diz.
— Sim. Mas isso não importa.
Fica um silêncio entre eles, por um tempo.
— Senhora?
— Sim?
— Talvez nós não devêssemos ter deixado a sua filha sozinha. Ela não parecia estar muito bem — Scar, dirigindo com cuidado, fala.
— Karen. Não minha filha. E não se preocupe com isso. Ela não ficará por lá — com a face intrigada, Scar a olha. — Eu a conheço. Sei que tentará vir até nós. Por mais que eu tenha ordenado para nos esperar, aquela pirralha não me dará ouvidos.
— Então... Foi por...
— Sim, sim! — Amy sorri. — Pois assim é mais divertido! — uma risada desconfortável se apresenta em seu semblante. — Aquela floresta é muito densa. Ela terá dificuldades em escapar (se escapar).
— Outra forma de torturá-la? — Scar pergunta. Amy o encara. — Certo... Bem... e quanto a Jas...
— Quanto a ela, eu disse para ficar longe. Agora não é o momento para lidarmos com os seus problemas.
— Espero que ela te obedeça.
— Você sabe que, diferente da Karen, ela não é uma estúpida. Mas se eu estiver enganada, farei com que ela pague — Scar treme ao ouvir essa última frase.
Eles chegam ao local.
O bairro é quieto, silencioso, e com poucas casas em volta. Apenas a chuva traz um pouco de ânimo — aliás, muito ânimo.
Eles avistam a casa indicada. Amy desce primeira, segurando um guarda-chuva, pois a enxurrada que vaza das nuvens não dá trégua. Ela olha para cada canto, deduzindo possíveis armadilhas que possam atingi-la, e surpresas que possam derrubá-la. Sim, a sua capacidade foi levada ao extremo pelo ódio. E a menina que não gostava de perder tempo com conteúdos desinteressantes, para poder aproveitar os primores da juventude, já não existe mais.
Logo depois, Scar também desce, sem proteção contra a chuva, apenas vestindo o seu sobretudo negro, e surgindo atrás da sua senhora.
Ambos olham-se e Scar assente com a cabeça, entendendo o que os olhos dourados dizem. Partem em direção da casa. Scar vai à frente e abre a porta. Assim que entram, veem que há uma mulher sentada no sofá.
Com as lâmpadas desligadas, e somente a luz da televisão iluminando, a mulher está fumando e assistindo algo. Amy, quando repara o que é, fica paralisada, e compreende com quem está “brincando”. E apesar de o seu corpo esboçar reações desagradáveis, consegue segurar o seu ímpeto, não avançando na jugular da desgraça sádica. Já Scar fica atônito com as imagens que presencia. Os seus olhos se escondem por trás da máscara. Mais ainda por causa da estranha que se esbalda, assistindo as cenas demoníacas. Essa mulher é a tal da Mary. E como a Karen supôs: é tudo uma grande farsa. No lugar dos cabelos loiros, um grande volume enegrecido, lustroso e polido, escorre sobre os seus ombros. Os olhos
são vermelhos, não verdes, e parecem duas bolhas de sangue. E a pele é bem branca, em vez de morena.
Mary não faz nem questão de olhar para ambos, mas exige que os dois se juntem a ela, pois quer que eles assistam. Amy recusa, pedindo-a que desligue o vídeo.
Delineando a sua sensualidade, Mary se apoia no braço do sofá, vira-se para eles e dá um sorriso erótico. Ela acha engraçado ver a mãe tendo que assistir o maldito filme da sua filha sendo...
— Tá bom! Vou desligar, então! — Mary, toda animada, desliga a televisão. Levanta-se divertidamente e pede que a sigam. Os dois esperam um pouco, olham-se e a acompanham à cozinha.
Mary está em frente à janela aberta, preparando um chá, tranquilamente. E sob a luz da lâmpada, os dois conseguem vê-la. Mary tem os seios fartos, macios e acalorados. Os seus lábios, protegidos por um batom vermelho-escuro, e que ela tem o hábito de dar algumas mordiscadas, são carnudos e tarados. Em seu corpo erótico, de curvas primorosas e elaboradas, ela usa um fino vestido vermelho, todo fechado em cima, com gola alta e mangas compridas. E o vestido, que parece ser a sua própria pele, de tão apertado que está em seu corpo, e que desce até o fim das suas belas coxas, possui um corte em uma das laterais. E as sensuais meias-calças pretas se agarram às pernas e coxas. Em seus pés, um par de tênis pretos. Por fim, um solitário anel em um dos seus sedosos dedos, repousado em uma das suas delicadas mãos.
— Quem é... Isso? — Mary aponta para o Scar.
— Ninguém importante — Amy responde.
— Será mesmo, velha idiota? — Mary a provoca. E com uma mão na sua cintura fina, Mary, com a outra, leva a xícara até a sua boca macia.
— Humpf! — Amy expõe o seu descontentamento. — Eu imaginei que encontraria uma mulher digna. Mas vejo que é somente outra vadia — devolve o insulto, sem desviar o olhar, nem abaixar a cabeça.
Mary dá uma risada excitante.
— Tudo bem, minha senhora! — sua voz é prazerosa. — Te chamarei pelo nome, então — ela dá um doce e infantil sorriso. — Mas, por favor, quanto a mim, pode continuar a me chamar de vadia. Vejo isso como um elogio — ela senta em uma cadeira, das duas que há, em torno de uma mesa. — E aí? Gostaram de ficarem três horas naquela merda? Foi ideia minha — Mary dá uma leve ajeitada nos cabelos. — A ideia era só com você, vovó. Mas já que apareceu com esse sujeito estranho, meio que foi para os dois, então — ela faz um bico luxurioso.
— Não foi nada demais — Amy responde, mantendo-se firme.
— É mesmo? — Mary a provoca com os olhos. — Que seja. Mas, sabe... — ela se ajeita na cadeira. — É como eu falei: achávamos que você viria sozinha... Amy — o seu semblante muda e ela atira um olhar ameaçador para os dois.
—... — Amy, quieta. Os seus olhos gélidos, retos.
— Hahahahahahaha! — Mary solta uma gargalhada esvoaçante. — Sabe, você não devia ter desaparecido com ela. Ele havia começado a brincar, após tanto tempo. E você ainda teve a cara de pau de oferecê-la, como se nós devêssemos algo para você — Amy não responde. — Hahahahahahaha! Tá bom, tá bom... Bem, vamos aos negócios — Mary, fechando os olhos, e dando um bocejo meigo, dá uma fofa espreguiçada, levando os braços até atrás da cabeça. Os seus seios saltam devido o movimento que ela faz. Depois, na mesa, ela repousa o seu braço direito, apoiando o seu lindo rosto sobre a palma da sua mão. E com a sua face pervertida, encara a Amy. — Então?
— É simples... — Amy diz, sentando-se em seguida. Scar continua em pé, atrás, resguardando-a. — É como eu te falei. Irei entregá-la e ele para com toda essa loucura. E deixa o nome do meu marido, e da sua família, em paz.
— Vai ser só isso mesmo, velha? Parece muito pouco por algo tão valioso. Ou melhor, valiosa. Não quer por algo a mais na mesa? Ele está disposto a pagar. Quem sabe um pouco de cosméticos ou algumas cirurgias plásticas. Você tem o quê? Quase sessenta? Está de parabéns! — Mary a aplaude. — Ainda é uma mulher muito bonita. Mas a idade já mostra os seus efeitos — ela cruza as pernas e a olha, sem levá-la a sério.
— Não estou interessada em mais nada, muito menos vindo dele. Quero apenas dar um fim nisso.
Mary a olha, depois ira a si mesma no reflexo da xícara, eando a sua língua voraz por seus lábios libidinosos. E a olha de novo e ira a si mesma. Faz isso umas seis vezes.
— Então, velha. Quem é ele? — o seu semblante provocativo, de repente, fica sombrio. O tom que sopra da sua boca, antes debochado, é frio e inquisitivo. O clima, se não leve, mas aerado, dá lugar a uma sala pesada. — Ele não foi convidado. Nós dissemos que era apenas você quem deveria vir — a feição da Mary fica repulsiva.
— Ele é apenas a minha segurança — Amy não demonstra estar assustada.
— “Minha segurança?”. O que isso significa? Sua puta arrombada! — Mary, então, puxa uma faca afiada, que estava presa em uma das suas coxas, fincandoa com força na mesa, e demonstrando que não é apenas um corpo, rosto, olhos, orelhas, nariz, boca, pernas, coxas, braços, mãos, seios e cabelos, inacreditavelmente, maravilhosos.
— É como eu falei. Agora, podemos conversar? Igual a duas mulheres civilizadas?
— Humpf! — Mary cospe no chão. — Ele não devia estar aqui! — ela se levanta agressivamente, pega a faca e parte para cima do Scar. Mas é parada por uma simples palavra.
— Lavínia! — Amy, com o seu corpo imóvel, grita.
Mary é exposta. O seu verdadeiro nome pronunciado. Não é uma louca desvairada, recrutada pelo acaso.
Mary... Lavínia fica paralisada, e não fala nada. Percebe que não conversa com uma desavisada. Se Amy teve a capacidade de obter essa informação impossível, o que mais ela tem? Por isso, Mary... Lavínia não arrisca. Deixa a faca sobre a mesa e volta ao seu lugar. Engolindo a seco, ite a sua breve derrota para a velha senhora.
— Então... você sabe? — Amy não responde. — Vejo que te subestimamos, vovó. Mas o que espera conseguir com isso? Ninguém sabe que eu sou a filha dele. Na verdade, ninguém sabe que ele tem uma filha. Hahahahaha! Ninguém sabe quem ele é.
— Não tenha tanta certeza quanto a isso — Amy, abrindo um provocativo sorriso, diz.
— Humpf! Vaca desgraçada! Acha que ele verá isso como uma ameaça? — Lavínia não tira os seus olhos, cheios de raiva, de cima dela. — Pois saiba que você só jogou mais lenha na fogueira, cadela imunda! — sua gula depravada a incita a degolar os dois, mas se mantém contida.
— Eu te garanto que tenho mais algumas informações bem interessantes. Talvez você queira ver do que elas são capazes? Que tal? Devo ir embora e expor toda essa palhaçada?
— “Palhaçada?!” — Lavínia não gosta do tom ameaçador que sai da boca da Amy. Isso a deixa ofendida, humilhada. — Muito bem... Amy. Aceitamos a sua oferta — Lavínia se contorce toda. Parece uma boneca com as articulações travadas.
— Simples assim? Não irá pedir a permissão dele? Sua mulher asquerosa! — Amy começa a jogar.
— Vá à merda, sua velha do caralho! — Lavínia fica possessa. — Eu não sou a escrava dele! Tenho autonomia para dar a última palavra!
— Tem certeza? Sua barata patética! — Amy ergue o seu rosto vitorioso, depreciando Lavínia, de cima a baixo. — Eu tenho pena de você, fedelha. É apenas a cadelinha do papai. Uma marionete sem vontade.
Nesse momento, a represa é rompida. Lavínia deixa a sua real face aparecer: uma mulher selvagem, sádica, vil, cínica, cruel, má, e que não aceita estar à mercê de outras pessoas. Que não aceita ser subjugada. Que sente prazer em provocar dor em qualquer coisa viva. Que sente prazer em alimentar-se com o fim da vida.
— Eu... não... sou... isso! — o seu corpo se retorce todo. Com os braços sobre a mesa, Lavínia quer comer a carne e os ossos de ambos. Ela baba, grunhe. Uma criatura faminta começa a surgir no seu lugar.
— Tem certeza? Enquanto ele montava em você, era isso o que você falava para se convencer que não estava sendo fodida pelo próprio pai? Sua porca depravada! — com essas palavras, Amy põe tudo a perder.
Lavínia, ensandecida, pega a faca, levanta-se, sedenta por sangue, e ataca. Mas em segundos milimétricos, Scar a imobiliza, tirando a faca da sua mão assassina.
Ela se debate, tentando se livrar do homem de mãos pesadas.
— Ahhhhhhhhh! Vagabunda nojenta! Você vai morrer! Eu vou comer as suas entranhas! — Lavínia profere palavras verdadeiras, que serão executadas se for possível. — Sai de cima de mim, filho de uma puta do caralho! — os seus dentes rangem. — Eu vou arrancar o seu coração pelo teu cú! Sua porra imunda! — Lavínia está possuída. — Você queria ser deixada em paz? Esqueça! Está tudo perdido agora! — os seus olhos ficam tomados por nervos. — Hahahahahaha! Você vai morrer! Vamos matá-las! — Amy se levanta... — Vamos matar vocês duas e depois comer os seus corpos! Hahahahahaha! E foder com eles até não aguentarmos mais! — e vai até ela.
— Escuta bem, sua porcaria miserável! — Amy puxa os cabelos da Lavínia, olhando-a com desprezo. — Você irá voltar até ele e dizer que não quero mais nada. E se ele achar que é pouca coisa, uma bobagem, ou uma piada, irá arcar com as consequências — Amy solta os cabelos sedosos da Lavínia, explodindo o rosto dela no chão. Com um gesto de cabeça, ordena que Scar saia de cima. — Faça algo e você irá se arrepender.
Lavínia se levanta. Escorre sangue do seu nariz. Ela lambe.
— Ha... Haha... Hahaha... Hahahahaha... Hahahahahahahaha! — Lavínia solta uma gargalhada indecifrável. — Eu vou beber o sangue de vocês! — e parte para cima.
Scar está prestes a agir. Mas não precisa.
Quando a primeira bala, que entra pela janela nua, perfura a sua pele cheirosa,
Lavínia imagina ser um pesadelo, algo impossível. Ela olha para o seu braço fragmentado, sem entender o que acabou de ocorrer consigo. E em uma fração de segundos, tudo começa a ir embora. Tudo começa a perder-se no infinito.
E quando a segunda bala, agora, atravessa a sua mandíbula, explodindo-a, Lavínia tem a certeza de que é um simples ser humano, sem nenhum valor. Um ser inútil. Uma criatura irrelevante. Uma porção de carne insignificante, igual aos que ela tanto machucou. Igual aos que ela tanto saboreou.
Amy é protegida por Scar, que usa o seu grande corpo, jogando ambos no chão. Apenas veem Lavínia ser feita em migalhas pelos intermináveis projéteis que a destroçam. Os seus olhos saem como duas geleias espessas, explodindo no ar. A sua língua é arremessada contra a parede, manchando-a de sangue. A sua cabeça é aberta, expondo as sinapses que a faziam funcionar. O seu corpo perfeito é desmembrado.
Já morta, mas ainda em pé, Lavínia dança no ritmo de um balé infernal. Leva alguns microssegundos até ser dissolvida. Quando acontece, o som que a carne faz, ao colidir com o chão, é dantesco. E a concepção do que deveria ser um ser humano, já não é mais identificável. E após atingir o solo, espalhando-se em milhares de porções de vermelho, branco e rosa, a celebração mórbida é encerrada. O que Lavínia virou, bem, é algo impronunciável.
As balas cessam. Amy e Scar, aos poucos, levantam-se. Os dois, tendo que olhar para a “Lavínia”, pensam ser uma resposta para a fraqueza demonstrada por sua filha. Uma resposta sem perdão. Uma resposta sem misericórdia. Ambos estão errados. A resposta correta está mais perto do que imaginam.
CAPITULO 39. NOITE DISTORCIDA
-A rf, arf, arf, arf, arf, arf... Floresta de merda! — não consigo achar uma saída.
E enquanto sou rendida pelas minhas fraquezas, continuo sendo agredida por essa chuva interminável.
Sigo, entregue a minha insignificância, sem perspectivas de sair desta masmorra de folhas. Graças a isso, começo a ser visitada pelas antigas feridas de quando eu ficava trancada no quarto da Sofia. Aquela sensação sufocante, que me exigia o suicídio, lentamente, começa a retornar.
As grossas gotas frias, que sangram do céu, ficam mais pesadas. E elas, irritadas e cansadas por ainda me verem por aqui, esforçam-se, querendo que eu vá embora.
Mas é em vão.
Eu volto a ficar prostrada neste lamaçal. E sentada sobre os pés antipáticos desta floresta, e olhando para a grama inundada, eu me sinto exausta — físico e mental; e também estou com fome. A energia que me fez sair da casa foi pulverizada. Aniquilada. Obliterada. Nunca experimentei uma euforia imparável e desânimo profundo em tão pouco tempo.
Mark...
Mark? Por que a imagem do Mark me vem à cabeça, justo agora? Desde que fugi daquele hospício, nunca mais o vi. Não fiz questão de retornar àquele buraco, depois que a Adriene conseguiu me atingir. Achei que seria melhor eu me afastar. Mas... Mark não foi o culpado. Ao contrário. No primeiro momento em que nos vimos, ele sempre demonstrou um estranho carinho por mim. Eu fui uma idiota por ter ficado zangada. E ele tinha aquela capacidade misteriosa de entrar na minha mente.
— O que será que houve com ele? O que será que... — eu vejo algo surgir bem distante e... — O quê...? — aproximar-se de mim.
Para os que acreditam em merdas de milagres, em bostas de revelações divinas ou mensagem da porra de Deus, deve ser mais fácil. Eu já vejo por outro ângulo. De uma posição incrédula, desconfiada. Sim, essa minha postura é moldada pelo que sou. O desapego que eu tenho contra entidades celestiais, santificadas e imortais, é uma conduta estabelecida por meu desgosto pela vida. Porém, quando situações impossíveis surgem, nas circunstâncias mais inesperadas, é difícil não recorrer a uma explicação intangível — talvez por ser mais fácil. Mas o meu ceticismo não é fraco, tão pouco ível de ser revertido em uma fé decrépita. E mesmo descrente a respeito dessas besteiras etéreas, ainda prefiro me ater à explicação de que certos eventos estão fixados na engrenagem do tempo, onde nenhuma ação externa é capaz de evitá-las. E por mais que meios sejam buscados, e táticas elaboradas, a sua execução sempre será realizada. Nem Deus pode interrompê-las. É claro...
Se Nele eu acreditasse.
E quando a vida me mostra mais uma das suas facetas, que já nem sei mais quantas são, tenho a certeza de que, de uma vez por todas, eu não o de uma desprezível peça de xadrez. Uma obsoleta e descartável ferramenta. Uma ínfima e inutilizável porcaria, neste grande tabuleiro em que estou presa. E é óbvio que não sou a rainha.
Também não sou o rei...
Ou o cavalo...
Ou o bispo...
Ou a torre...
Sou um simples peão miserável.
Aquela coisinha frágil, humilde, e que pode, somente, atacar com todo o seu ímpeto no começo da batalha. Mas que depois é obrigado a seguir em frente de maneira resignada, estúpida, até que algum desavisado o dê a lateral para que possa bater. Sim. Uma pequenez aleatória, sem um propósito válido. Sem um sentido vivo.
Eu sou isso.
Mas ito que ver essa luz intensa, sólida, branca, de uma força tão grande, e
que quase me cega, é uma surpresa e tanto. E por trás dessa luminosidade, ainda vejo uma garota. Parece não se importar em estar sendo agredida por essa chuva hostil.
Então, quando ela surge, de repente, na minha frente, segurando uma lanterna, é o momento em que o meu corpo decide reagir. Inutilmente, tento tampar o meu rosto para proteger os olhos, só que a jovem quer me cegar. Ela não desvia a lanterna da minha cara. Parece determinada a provar que eu sou quem ela...
Procura?
— Karen? — uma voz firme pergunta.
— Sai! — eu me levanto, ainda protegendo o meu rosto.
— Karen...!? É você mesma?! — como é que ela sabe o meu nome?
— Quem é você?! — eu me afasto, andando para trás.
— Preciso que você venha comigo — ela me acompanha. — Sua...
— Apenas... Vê se me deixa em paz! — ela para de andar. Eu faço o mesmo.
Ela continua apontando a luz cortante em minha direção. De repente, do nada, com quatro os ela acaba com a distância que nos separavam. Ela segura a minha camisa, com uma força que não faz jus ao seu tamanho, empurrando-me contra uma árvore. E com os nossos rostos colados, percebo o que está diante de mim.
— Você... É... Impossível!!!
— Por favor...
— Porra! Você é a cara dele! — os meus olhos não acreditam no que veem. — Lavínia?!
— Eu sou a Jasmim — ela me solta, e eu acabo caindo no chão. — Agora, por favor, vamos! Precisamos ir até a sua mãe e ao meu tio.
— O quê?! O seu tio?! Como... Como você... Como você me... — não consigo terminar uma pergunta. Estou tão desnorteada com essa surpresa que o meu cérebro entra em parafuso.
— Eu vou te explicar tudo no caminho, Karen. Mas, por favor, vamos logo! — ela estende a mão, oferecendo ajuda. Eu tento me levantar sozinha, mas ainda estou sem forças.
— O que você faz aqui? E por que quer me ajudar? — seguro em sua mão.
Ela apenas me olha.
— Não é bem assim.
CAPITULO 40
Peço à Jasmim para me levar de volta à casa, mas ela diz que não há tempo para isso. Então, vamos até o seu carro.
Voltamos em silêncio.
Ela conduz todo o caminho, e parece saber exatamente por onde seguir. Essa jovem, trajando vestimentas orientais, com uma das mãos segurando uma lanterna, que cospe uma luz brilhosa, ilumina o caminho. Com a outra, ela me apoia.
A chuva torrencial não dá folga.
Quando chegamos ao seu grande carro, estamos ainda mais encharcadas, mas eu sinto um alívio salvador. Finalmente pude escapar daquela floresta impossível.
Jasmim me ajuda a entrar no veículo. Eu fico no banco de trás. Ela entra com agilidade e senta no banco do motorista — antes, pegou um saco preto no portamalas.
O espaço interno é bem amplo, dando-lhe possibilidade de se trocar. E sem pudor, ou vergonha, por estar com uma desconhecida, Jasmim retira toda a sua
roupa. Completamente nua, começa a enxugar, com uma toalha branca, a sua pele de caramelo.
A luz do interior do veículo deixa aparecer à beleza contida no seu pequeno corpo. As suas costas lascivas, provocativas, parecem flutuar. Os seus seios médios, e redondinhos, conforme ela se mexe, balançam, suavemente. Dançam, alegremente, no corpo sensual da sua dona. O seu pescoço simétrico tem a medida exata que a sua cabeça exige. As suas coxas fortes explicam como ela consegue movimentar-se tão depressa. Os seus belos e lisos cabelos pretos, que vão até o meio das suas costas, são brilhantes e vaidosos. E após enxugá-los bem, mas com carinho, ela faz um coque para manter toda essa colmeia sedosa unida. Ela os enrola, algumas vezes, para deixá-los bem presos. Mais alguns tapinhas para ter certeza que ficará bem firme. E a sua face fofinha, que possui lábios pequenos, pintados por um batom vermelho, é jovial. E retirando o batom, ela mostra o tom natural dos seus lábios. Uma pétala de cerejeira é a sua boca. Por tudo isso, eu diria que a Jasmim é uma flor no corpo de uma humana.
É claro, se não fosse por essas cicatrizes enormes espalhadas por seu corpo.
O que... O que é isso?! São grosseiras, inchadas... Parecem profundas, dolorosas... Que merda houve com ela?!
— Karen?
— Sim?!
— Tudo bem?
— Sim...
— Parece distraída. Eu disse que há roupas aí. Pode se trocar e...
Os olhos... Porra! Os olhos têm a mesma cor que os daquele lixo! Negros. Sombrios. Escuros. Mas os seus parecem buscar maneiras de rejeitar a monstruosidade que existe em seu pai. Os seus olhos parecem buscar transmitir segurança, resistência, perseverança e... raiva, ódio, vingança...? E esse olhar é... é... é indecifrável. Que olhar é esse?!
— Karen! — ela grita.
— Desculpa! Vou me vestir sim.
Essa pequena de pele de mel, em muito, traz semelhanças perfeitas com ele. Os olhos, a mandíbula, a estrutura facial, o nariz, a cor dos cabelos. Porém, ainda não sei dizer se o sorriso é o mesmo. Muito menos o que há por dentro. E essas cicatrizes?
Jasmim vestiu uma kurta vermelha e uma calça preta; pôs um tênis também.
Ela dá a partida no carro. Saímos.
Segundo as anotações da minha mãe, Jasmim tem dezenove anos de idade — apesar de aparentar ser bem mais nova do que isso. E ela vive em um país no exterior, na Ásia.
— Então, Karen. A Lavínia é a mulher com quem a sua mãe foi se encontrar.
— Como?! Ela não me falou isso!
— É, pois é — ela fala como se isso fosse o normal.
— É... Certo... E como você sabia onde me achar? — pergunto a ela, enquanto também visto algumas roupas. São vestimentas típicas do país em que ela vive, só que mais grossas e quentes. Outra kurta, só que preta, é o que eu visto; e uma calça preta também. Felizmente, apesar de ser mais baixa do que eu, a minha magreza permite que as suas roupas pequenas, se não perfeitas, caibam em meu corpo. Fica no limite da calça não alcançar os meus tornozelos, e da kurta não deixar amostra a minha barriga (ou no que ela se transformou).
— Bem melhor com roupas secas, certo?
— Sim.
— Bem, e quanto a sua pergunta: eu não fazia ideia onde te encontrar. Apenas intuí que pudesse estar por aquela área. Afinal, é uma floresta difícil de escapar — ela não para de acelerar o carro. — E conhecendo a sua...
— E qual é o propósito de tudo isso? — interrompo-a. — Quero dizer, por que você veio me resgatar? E por que você está aqui, em Melancolia? Como você conhece a minha mãe e... Scar é o seu tio!?
— Calma, Karen. Primeiro, eu não fui te resgatar. Só não acho que você deva ficar de fora.
— “Ficar de fora?”. O que você quer dizer com isso?
— Já te falo. Apenas saiba que eu sei o que estou fazendo. Há uma única maneira de tirá-lo do buraco — sua risada é sofrida. — E acabar com tudo isso. Até mesmo com a... Lavínia.
—?
— Não se preocupe. Ainda falta um tempo até chegarmos. Responderei tudo o que você me perguntar. E contarei um pouco sobre mim, minha irmã e o meu...
CAPITULO 41. JASMIM
Ao norte de uma calma cidade, uma pequena garotinha viria ao mundo. Filha de uma mulher escolhida pelo egocentrismo da vida, a sua chegada à Terra seria consequência de qualquer coisa que o seu pai sentiria. Ele mesmo. O homem que faria o planeta sangrar havia decidido que era a hora de trazer mais um descendente seu a vida.
Ele tinha apenas vinte e sete anos, mas já era um desgraçado. E não foi difícil para conquistá-la. Afinal, era — e ainda é — um profissional da persuasão. E o seu carisma também colaborava. E o seu charme foi a cartada final. Por isso foi impossível para Margareth resistir a qualquer tentação. A lábia dele tomou-a por completo. E em menos de uma semana, já haviam dormido juntos. Ele não queria perder tempo, pois a sua missão urgia. E Margareth acreditou ter encontrado o seu príncipe encantado. Óbvio que ela estava errada.
Há dezessete anos:
Já faz dois anos que Margareth não o vê. Após engravidá-la, ele sumiu. Mas ela ainda tem sentimentos por ele. Essa pobre mulher, que se mata de trabalhar para cuidar da filha, da pequena Jasmim, mantém a esperança de que ele voltará.
— Você vai vê-lo, Jasmim. O seu pai é um grande homem. Sabia que ele é muito divertido? — Margareth, enquanto dá banho na filha, diz, sorrindo. Jasmim dá finas risadas.
Porém, após esses dois anos de luta, de muito trabalho e dedicação, a vida decidiu vir buscá-la com juros e correções, dizendo que ela já havia conseguido o bastante. Mais do que precisava. Mais do que merecia.
É de noite. Ela conseguiu fazer a Jasmim dormir e voltou ao seu quarto. E Margareth, flutuando entre o estar acordado e dormindo, sente algo tocar a sua perna.
— Sai... Vê se me deixa... — ela, com uma voz sonolenta, fala, pensando ser a sua gata, Mika. — Estou cansada, Mika... Então... Arghhhhhhhh! — Margareth é pega pelo pescoço com tanta brutalidade que o seu coração explode dentro do seu corpo.
Ela é arrastada até o porão. Mal consegue se mexer, pois a pressão que é feita a machuca muito. Ainda assim, mesmo com a escuridão da noite, e com as lâmpadas apagadas, tenta ver quem é a pessoa — mas não consegue. A sua cabeça, então, começa a entrar num redemoinho de puro pavor. Não entende, em nenhuma possibilidade, o que está acontecendo.
Ela é solta e, assim que vai gritar, leva um soco no rosto, deixando-a atordoada. Depois, tem a sua boca tampada por uma grossa fita adesiva preta; e um capuz é colocado sobre a sua cabeça. Margareth também tem as mãos e os pés amarrados com cordas robustas. A pessoa sai. E Margareth, que aos poucos vai recuperando-se da agressão, começa a se debater toda. A pessoa retorna, carregando uma corrente bem sólida. Com os olhos cheios de desprezo, e prazer, ele ignora o sofrimento no corpo dela.
Margareth não para de derramar incessantes lágrimas. A sua mente está tomada
por sua filha, com medo do que possa acontecer com ela. Porém, esse filme piora ainda mais, assim que ele pega a corrente e a em volta do seu pescoço fino. Imobilizada, com as suas pernas e braços trancados, impedindo-a de lutar e fugir, Margareth é alçada as alturas ao ser pendurada em uma viga grossa que sustenta a casa. A pessoa sai, deixando-a sozinha, imersa no próprio desespero.
Margareth até tenta deixar algumas palavras saírem da sua boca selada, mas apenas sons indecifráveis são ouvidos. E suspensa, com o momento prestes a ser alcançado, o seu corpo se debate igual a um peixe que é colocado para fora d’água. E nesses segundos que precedem a sua morte, Margareth tenta buscar respostas que expliquem todo esse inferno que está experimentando.
Poucos segundos depois, a pessoa retorna, agora, carregando algo no colo. Margareth, sufocando, tendo o seu pescoço apertado, é liberta do capuz. E quando os seus olhos, já pertos do apagar da luz, conseguem ver quem é a pessoa, faz a sua alma quebrar em vários pedaços.
Ele, com Jasmim sob a sua posse, faz questão de mostrar o fim da mãe para a filha. A pequenina não faz ideia do que é todo esse evento maldito. Já Margareth começa a dormir pela última vez, querendo acreditar que, mais do que tudo, nada disso é verdade. E no apagar dos seus olhos, ela tem a certeza de que havia ficado com uma aberração inconcebível. Com uma monstruosidade inominável. Com um ser podre. Com a morte na beirada do precipício. E pior do que ter essa verdade revelada, é saber que a sua filha, querida e amada, terá que chamar essa coisa de pai.
Na manhã seguinte, Jasmim está com ele, já bem longe da cidade. E a fumaça, da casa que ele botou fogo, está perto do fim, após os bombeiros terem trabalhado durante toda a madrugada. A residência e o corpo foram levados pelas chamas. Está sendo difícil para os vizinhos acreditarem que a mãe e a filhinha estão mortas.
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Após horas de viagem, ambos chegam a uma casa afastada de qualquer município. Ainda fora dela, Jasmim tem uma surpresa: outra criança, também uma menina, aguarda-os. Sorridente e de voz adocicada, ela salta na direção do homem.
Essa garotinha é diferente, mas não apenas fisicamente. Ela tem oito anos. A sua pele é clara, branquinha. Os compridos e lisos cabelos pretos são iguais aos do seu pai. Mas existe um algo a mais no ar. E, para Jasmim, são os olhos. As duas esferas avermelhadas, carnívoras, parecem querer comê-la. E apesar da diferença de cores dos olhos, entre pai e filha, o interior é o mesmo: duas pessoas más.
Jasmim, ao ouvir que a outra menina, chamada Lavínia, é a sua irmã, só que filha de outra mãe, reage da maneira esperada: não faz nada. Apesar de novinha, ela está confusa com tudo que ocorreu. Não há como entender o que houve com a sua mãe, ou o porquê do seu pai tê-la obrigada a assisti-la morrer, e, posteriormente, ver a casa ser incendiada. Dois anos. Jasmim tem apenas dois anos.
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Os três vivem juntos há quatro meses. Jasmim meio que se afeiçoou a sua meiairmã. Já Lavínia, pela primeira vez na vida, experimenta o prazer de ter uma amiga. A sua relação com a pequena, cor de mel, é uma amizade sincera entre meninas. O problema é que Lavínia também tem as suas sombras permeadas por ecos malignos. Ela gosta de torturar animais que rondam pelo terreno, só para vê-los implorarem por misericórdia. Extirpa-os usando facas, tesouras, agulhas,
martelos, fogo. Os próprios dentes e, até mesmo, a própria língua. Até chega a sorrir, enquanto saboreia a dor dos pequenos seres.
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Então, ou um ano. Depois dois. Três. Quatro. Cinco...
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Jasmim, agora com sete anos, vive, pode-se dizer, sob os “cuidados” da sua irmã — com treze anos — que sabe como se virar. As duas am muito tempo sozinhas, já que o pai delas some e volta esporadicamente. Aliás, já faz algum tempo que ele não retorna.
E além de “cuidar” da irmã, Lavínia, há pouco mais de um ano, vem torturandoa. Graças a isso, Jasmim anda acuada, e a promissora relação delas já não existe mais.
Lavínia costuma trancá-la no porão, depois apaga a luz e a deixa lá, por horas. De vez em quando, até mesmo com carcaças de animais estraçalhados, embebedados no próprio sangue, espalhados pelo chão. E Jasmim, pobrezinha, desesperada, grita, pois, além de ter medo do escuro, também acaba sujando-se toda, pisando em cima dos cadáveres. Mas Lavínia não dá à mínima, e até fica excitada. E quando Jasmim adormece, após muito chorar, ela entra usando uma máscara feita com a pele de animais, e com umas garras, assustando-a ainda mais. Jasmim, apavorada, molha-se toda. Lavínia, então, é parada por causa das risadas que solta ao vê-la sofrendo.
Ela também costuma forçar a sua irmãzinha a outras situações limites. Desde sufocá-la com a almofada do sofá até segurar a cabeça dela dentro de um balde cheio d’água. Mas o que ela mais gosta é de ficar machucando-a. A mais nova sempre tenta fugir, mas nunca consegue. Então, é amarrada, para depois ser espancada com vários chutes e socos. Também cortada e arranhada pelas unhas afiadas da garota. E, de vez em quando, queimada. Nem no inferno Jasmim sofreria tanto.
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Alguns dias depois, após tanto tempo ausente, o pai delas finalmente voltou.
Lavínia, então, deixa Jasmim no banheiro, encoberta pelo próprio sangue, e vai até ele, toda empolgada — somente ela quem a tortura. Ele não se importa, apenas fala para não matá-la.
Bem, e é nesse momento, após arrastar-se pelos corredores da casa, com uma dor inumana sobre o seu pequeno corpo, que Jasmim descobre uma verdade inimaginável: a relação incestuosa dos dois. E isso lhe é a gota d’água. Jasmim já pensou milhares de vezes em tentar fugir, mas tinha (e ainda tem) medo. Medo de que eles a pegassem e fizessem coisas piores do que a Lavínia faz sozinha. Só que isso já não importa mais. Não após ver essa cena asquerosa. Após ver essa cena doentia.
Jasmim, cansada de viver nesse abismo desgraçado, e mesmo com uma dor inável, tem a coragem de confrontá-los. O seu pequeno coração bate rápido demais. Ela sente-se corajosa, sente-se confiante, até... a sua face atingir o chão com o soco que ele dá.
Esse evento vai desencadear uma série de semanas violentas e humilhantes. Trancada em um quarto escuro, Jasmim será espancada, irrestritamente, sem a menor piedade por Lavínia, que adora vê-la implorar pela vida. Implorar para que pare. Implorar para que a deixe ir.
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Após dias intermináveis, ele decidiu que a punição já foi o suficiente.
Recuperando-se, Jasmim está toda machucada, com vários hematomas esparramados por seu corpo. Porém, de alguma maneira, ainda possui forças para escapar desse inferno. E pelo acaso, impossível e raro, um carro a por esse mundo esquecido, criado pelo diabo, no dia em que Lavínia é levada por seu pai à outra cidade.
Quem está no carro é um casal de orientais — com a pele igual a da Jasmim — com problemas de localização. Sem soluções, vão até a casa para solicitarem alguma ajuda que os guiem pelo caminho certo. Mas tudo o que encontram é uma garota desesperada, e que não para de falar, gritar e chorar. Eles a veem e ficam estáticos.
Tremendo, Jasmim, mal conseguindo ficar em pé, consegue convencê-los a ajudarem. As suas palavras são duras, pesadas. E apesar de não falar o que vem ando, ela os faz sucumbir a sua vontade. Jasmim desmaia. O marido a pega no colo, e correndo a leva até o carro. Eles partem. Jasmim está salva.
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Já faz dois anos que Jasmim vive com eles, na cidade natal do casal, em um país de temperos fortes e clima ainda mais; e de uma cultura fascinante. E ela segue em frente, em memória à sua mãe. E ela segue em frente, por si mesma.
E nessa terra afastada, ao caminhar de um jabuti, Jasmim convive com a sua tremenda ferida, cravada na sua pele, cravada na sua alma. Nunca a superou, pois não há como. Mas não se entregou aos terríveis pesadelos que tem quase todas às noites. Apenas entregou-se ao ódio, que a faz, mais do que tudo, querer revê-los uma vez mais.
CAPITULO 42. JASMIM: PARTE II
Jasmim, já com dez anos de idade, enquanto estuda para as provas escolares, vê o jornal dar a notícia do que ocorreu em um país distante, em uma cidade chamada Agonia. É a respeito de uma jornalista que foi culpada pela morte da irmã. Até aí, nada demais. Mas quando a imagem dele aparece na televisão, e ela revê os mesmos olhos, Jasmim fica paralisada. E tudo vem à tona em sua cabeça, como um deslizamento de pedras grandes e pesadas, de uma só vez.
E ter que ouvir que a pobre menina, chamada Sarah, sofreu o pior que se pode imaginar, sendo torturada, humilhada, para depois ser morta, faz Jasmim odiar ainda mais a sua relação sanguínea com o ser que ela, durante um período perdido no tempo, chamava de pai. Porém, esse evento a faz ter certeza de que buscará meios para derrotá-lo — ou melhor, derrotá-los. Não é apenas para que isso nunca mais aconteça com outras meninas. Tem um algo a mais no ar. É um incômodo que não a deixa em paz. Que nunca a deixou em paz. É um desejo individual, egoísta, talvez. O que Jasmim quer é poder ver nos olhos deles o mesmo que eles viram nos seus, e devolver igual.
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Quatro anos depois, Jasmim, agora, com quatorze anos de idade, vive com um objetivo traçado: reencontrá-los. Porém, ainda mantém uma distância bemvinda. Ela não é burra, por isso não sai da cidade em que vive, pois ainda está preocupada se eles podem estar procurando-a. Sabe como é o seu pai, e a obsessão que ele tem pelas filhas. Jasmim, inclusive, lembra-se da angústia que ele sentia só de pensar em perdê-las, e o quão transtornado ficava. Era Lavínia quem embutia essas conversas na casa, e esses pensamentos nele. A menina
gostava de vê-lo ficar agressivo e partir para cima. Mas esse seu fascínio pelas filhas não é um simples ponto fora da curva. Talvez seja uma fraqueza que possa ser explorada.
— Mas como? — Jasmim indaga-se.
Por mais que seja inteligente, está limitada pela nova vida que tem, longe do país em que nasceu. Mas foi graças a isso que ela pôde descobrir uma verdade pertencente a muitas pessoas: ter uma família. Ser amada. Receber carinho. Um sorriso. Um beijo. Um abraço. Porém, Jasmim também quer matar a sua sede. Ela precisa vê-los cair para nunca mais se levantarem.
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Após mais três anos, Jasmim, já uma bela adolescente, continua com a sua caminhada, mas a os tão lentos que o destino jamais será alcançado.
Contudo, em certo entardecer, enquanto volta para sua casa, após ear com alguns amigos, e faltando apenas mais alguns metros para chegar à sua residência, Jasmim é abordada por um veículo desconhecido.
O vidro da frente é abaixado. Jasmim não se assusta com o motorista creepy, que usa uma máscara estranha, e que a encara com afinco. E apesar de estar em uma situação inusitada, ela não demonstra medo. Mas quando ouve uma voz, que vem do banco de trás, dizer que pode lhe dar tudo o que mais deseja, suas pernas estremecem.
— Como assim? — Jasmim pergunta.
Então, a janela é abaixada, mostrando quem está lá. Uma senhora com mais de cinquenta anos de idade, de cabelos vermelhos intensos e olhos de ouro.
A senhora fica encarando a menina de mel, e os seus olhos dourados pedem para que ela entre no carro. Jasmim aceita. E com seu raciocínio rápido, supõe quem ela seja. E sem frescuras de cordialidades, Jasmim logo inicia o próprio interrogatório.
— Acredito que a senhora seja a mãe daquela jornalista. Karen, não é? Os olhos são idênticos e esse cabelo é o mesmo.
— Muito perspicaz de sua parte.
— E acho que posso dizer que a senhora está com a mesma ideia que eu.
— Sim. Pode-se dizer que sim.
— Mas como soube onde eu estava?
— Olha, não perca tempo com essas perguntas. Apenas saiba que eu estou aqui para ajudá-la — a senhora puxa uma fotografia de dentro da sua bolsa e a entrega. Jasmim, assim que vê a figura presente na fotografia, sente vontade de arrancá-la do papel e matá-la. Os seus olhos negros se acendem. A sua boca
arqueia para baixo, tornando-se feia. O seu coração imita a de um beija-flor.
— Lavínia... Ela está diferente... Mais bonita... — os seus dentes rangem, provocando um ruído aflitivo. — Sabe onde ela está? — pergunta, enquanto mantém os olhos na fotografia.
— Sim. Sei exatamente onde ela está — Jasmim fica contente pela resposta, mas quer um pouco mais.
— Onde?! — a sua voz é afobada.
— Não é o momento para essa pergunta, garota — a senhora é fria na resposta.
— Humpf! E quanto a ele?
— Ainda não. O seu pai é um fantasma. É impossível localizá-lo. Depois do que houve com a minha filha, e toda a repercussão, ele se entocou.
Jasmim devolve a fotografia para a senhora, que diz a ela que pode guardá-la.
— Ele não está entocado. Provavelmente tem pessoas trabalhando ao seu lado. Lavínia com certeza está.
— É o que supomos.
— Mas duvido que a senhora vá encontrá-lo.
— É por isso que eu vim vê-la. É aqui que você entra nessa história — a senhora a olha com um sorriso malicioso.
— E o que espera que eu faça? Eu não os vejo há cerca de dez anos.
— Jasmim, não comece com essas bobagens de adolescente para cima de mim. O meu tempo não é para ser desperdiçado com esse tipo de tolice — agora, a senhora a olha com arrogância, de cima a baixo. — Apenas diga se irá me ajudar ou não.
— Humpf! Vejo de onde a jornalista tirou aquela atitude prepotente que os jornais tanto falaram — ela faz questão de mandar essa. — Tudo bem, ô dona. Eu irei ajudá-la, então. Aquele animal imundo e a minha irmãzona “doente” terão o que merecem.
A senhora fica em silêncio por alguns segundos. Gostou das palavras que Jasmim disse, até mesmo da provocação que fez.
— Bem, não é só isso. Tenho os meus próprios interesses também. Mais do que ver o seu pai morto — Jasmim fica intrigada. Como assim: “Mais do que ver o seu pai morto?”. O que pode ser mais importante do que matar o homem que matou uma das suas filhas?
— Tá, tanto faz. Só mais uma coisa. Qual é a desse cara? Com essa máscara horrível e essa roupa péssima? — Jasmim aponta para o motorista, ainda olhando para a senhora.
— Logo, você saberá.
Quando o carro para, Jasmim já está em casa.
— Isto é para podermos nos falar — a senhora mostra um celular. — Se quiser evitar perguntas incômodas, não deixe que os seus pais o veja. Esconda-o bem. E se eu ligar e você não puder atender, retorne-me o mais rápido possível. Não deixe para depois, entendeu?
— Tudo bem — Jasmim diz, enquanto pega o aparelho.
— E ouça com atenção, Jasmim. Isso é apenas o começo. Ainda há muitas coisas a serem resolvidas. Muitas coisas a serem feitas. E nem todas serão agradáveis.
— Imagino que sim.
— Certo. Bem, entrarei em contato em breve. Até mais, garota — Jasmim sai do carro, que parte, levando a mulher embora.
• • •
Após dois meses, a senhora ainda não entrou em contato com ela.
E esses dois meses que a Jasmim teve que ar, que mais pareceram uma vida toda, não foram fáceis. Eles fizeram a sua ansiedade ficar muito evidente.
Os seus pais perguntavam o que estava acontecendo e ela sempre precisava inventar alguma mentira. Culpa do último ano escolar... Um garoto que se interessou por ela... O vestibular... Tudo o que podia para deixá-los acalmados. Mas a si mesma não conseguia acalmar. A garota se viu imersa em novas emoções, novos sentimentos. Ela não pensou que ficaria assim, tão aflita. Isso a deixou um pouco decepcionada, pois não queria saber que era incapaz de se manter tranquila, mesmo contendo tanto ódio.
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Enfim, Jasmim tem a tão aguardada ligação.
De noite, em seu quarto, sentada na cama, logo de cara quer confrontar todo o tempo que precisou ficar em stand by. Mas as notícias, que não são nada boas, não a deixam.
— Então... terei que ir embora com a senhora... para Agonia... — Jasmim, chateada com a decisão que terá que tomar, pois sabe que irá tomar, lamenta.
— Exatamente. Se eu não me engano, as suas aulas acabam dentro de duas semanas. Então, irei pegá-la no fim desse período, à meia-noite, próxima do templo hinduísta.
— Como?! — Jasmim fica surpresa com o plano já elaborado.
— Não se preocupe, irei explicar tudo. E não se esqueça: os seus pais não podem saber de nada. Conte uma mentira tão crível que não os faça suspeitarem, muito menos acionarem a polícia, pois isso estragaria os meus planos. E evite ser seguida e vista por algum conhecido. A última coisa que eu preciso é da intromissão de algum imbecil.
— Certo... — Jasmim, triste, pois terá que deixar o casal responsável por ela ainda estar viva. E o pior de tudo: terá que inventar mais uma mentira, só que muito maior. Ela não é nenhuma santa, mas mentir é uma das coisas que mais odeia fazer. E com os seus pais adotivos isso se multiplica mil vezes. Mas não há saída. — Eu estarei no local combinado — ambas desligam. O pesar fica apenas com Jasmim.
Deitada na cama, o seu estômago revira de maneira inusitada. Não é medo, nem temor. Mas a certeza de que o seu ódio, acumulado e cultivado por tanto tempo, quer libertar-se. O problema é que ainda falta a desculpa a ser dada aos seus pais de alma. Assim, Jasmim a o resto da noite montando uma justificativa, se não honesta, ao menos capaz de convencê-los sem machucar os seus corações.
Na manhã seguinte, em um sábado ensolarado, tão destoante do que há em Agonia, enquanto Clara e Vincent, o casal que a resgatou, tomam o café, sentados à mesa, Jasmim põe em prática a sua inverdade — ela não quer perder tempo. O pilar será: poder lidar com os seus traumas do ado. Quer contar algo real, verdadeiro, que não precise ser tudo uma grande poesia falsa. Pois as
feridas são concretas, eles puderam ver naquele dia e nos demais seguintes. Sabem que algo terrível aconteceu com a menina de olhos de carvão. E por mais que ela nunca tenha falado a respeito, sabem que se trata de algo grave.
Jasmim diz que necessita rever essas lembranças latejantes, que só podem ser encontradas lá, de onde fugiu, pisando com os seus pés, caminhando com as suas pernas. O casal amável consente, apoiando-a com todas as suas forças. Só que Jasmim tem mais. Que essa viagem pode levar muito tempo. O casal não se opõe a essa possível situação. Sim, já estão tristes pela iminente ida da filha querida, mas dispostos a sofrerem por essa decisão que possa fazer tão bem a ela.
Bem, tudo parece perfeito para Jasmim. Porém, prestes a terminar a sua refeição, Clara decide fazer uma pergunta:
— Jasmim, você não pretende ir atrás das pessoas daquela casa, certo? — ela recebe essa sem estar preparada. O casal não faz ideia que ela é filha de um psicopata. Jasmim segura as suas verdadeiras razões, escondendo-as bem no fundo do seu pequeno corpo, e mente mais um pouco.
— Não, não pretendo. E nem quero isso — Jasmim pensa em fazer gestos, expressões, caras, a fim de convencê-la, mas apenas diz essas palavras de forma direta, sem pantomimas inconvenientes. Os seus pais são bondosos, e companheiros, mas pecam por uma exagerada ingenuidade. Acham que a filha fala a mais pura verdade e não a questionam mais. — Mas há mais uma coisa... Pretendo partir logo, talvez em duas semanas — o casal fica assustado com uma data tão próxima. Por isso, ela mente mais um pouquinho: diz que quer ir logo para que, caso demore, dê tempo de ingressar na faculdade. Clara e Vincent se olham e, por fim, aceitam a explicação da filha.
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Chega o dia que precede a ida da Jasmim.
Uma grande festa de despedida está sendo dada. E em meio a tantas lágrimas, ainda há espaço para brincadeiras e, até mesmo, risadas. E em meio às lamentações, os desejos de sorte também surgem. Porém, Jasmim está muito triste. Ela ama a sua família. Pai, mãe, tias, tios, primas e primos... Cada um é uma parte importante em sua vida. Ela não quer deixá-los. Afinal, ninguém se opôs a sua estranha vinda. Pôde ser acolhida com tanta amorosidade e delicadeza, sem nenhum problema. E sem os dois seres podres a sua volta, um novo caminho pôde ser encontrado.
Ao término da festividade, com todos já tendo ido embora, Jasmim está sentada na mureta no fundo da sua casa. Ela olha as estrelas, com sua cabeça imersa em vários pensamentos, onde nem todos são agradáveis. Não desgruda a sua atenção das belezas celestiais que iluminam o céu.
Vincent é o primeiro a ir falar com ela. E já sentindo a saudade batendo à porta de ambos os lados, aproxima-se com segurança e cuidado. E além de fazer perguntas variadas, por não querer entrar no tema que proporcionou essa celebração acalorada, também faz algumas piadas. Jasmim, ao ouvi-las, dá leves risadas gentis. Dá-se muito bem com o seu pai. São verdadeiros amigos.
Por ter vivido uma infância conturbada, Vincent entende o que a sua filha quer. Essa necessidade seca, que deixa a boca arenosa, precisa ser molhada. Vincent também ou por maus momentos na primeira fase da sua vida. Ele, filho de uma mãe desajuizada, precisou, ao lado das irmãs, lutar duro para superar os dias em que a comida era escassa e a sede uma brutal realidade.
Os dois olham-se, com a dor no pescoço já pendendo para ambos os lados, e dão um generoso abraço. Jasmim diz que o ama e ele responde com a mesma afirmação. A relação que os dois construíram faria inveja a muitas famílias. Vincent é o pai que sempre sonhou em ser, e o que a Jasmim sempre quis ter. E Jasmim é a filha que ele sempre sonhou em ter.
Com um beijo na testa da sua filha, Vincent encerra a sua despedida. E enquanto volta para o interior da casa, Clara vem na direção contrária. É a sua vez de conversar com a filha.
Clara faz questão de expor toda a sua tristeza. Os seus olhos marejados e a sua voz trêmula são as suas primeiras reações. Jasmim precisa se segurar para não descambar para a mesma cênica.
Clara é muito apegada à filha, e uma mãe realizada; e Jasmim é uma garota excepcional. Não reclama de nada. De ter que acordar cedo para ir até o colégio a pé. De ter que, após o término das aulas, ajudar os pais no comércio que eles têm. Nem de ter que fazer algumas entregas para os seus tios açougueiros e o outro, o padeiro. Não reclama dos dias em que os seus pais ficam nervosos e irritados, por situações corriqueiras da vida, e gritam consigo, apesar de não ter culpa de nada. Na verdade, Jasmim não reclama dessa sua realidade, pois é melhor, em toda a sua totalidade, comparada com a anterior.
Clara não se cansa de dizer que é uma mãe orgulhosa, pois tem uma filha incrível. Jasmim gosta de ouvir essas palavras. O problema é que, nessas ocasiões, sempre é empurrada para o dia em que viu a sua mãe verdadeira ser enforcada. Essa cena nunca saiu da sua cabeça. Naquela época, quando estava presa aos dois animais, não fazia ideia do que havia acontecido. Foi nos anos seguintes que tomou consciência da crueldade que foi obrigada a testemunhar. Por isso, Jasmim adoraria poder voltar àquele dia e impedir colossal maldade.
Ambas voltam juntas. Se não soubessem que são de famílias diferentes, poderiam dizer que são, biologicamente, mãe e filha. O tom da pele ajuda nessa impressão, mas os sorrisos também têm as suas parcelas de culpa.
Todos estão dormindo. Jasmim, então, põe em prática a sua última mentira. Disse que iria partir no amanhecer seguinte. Mas antes do relógio marcar vinte e três horas, ela sai rumo ao local combinado.
O carro ocupa um espaço escondido ao lado do templo. O motorista a aguarda, lendo um livro. Jasmim, que está carregando uma grande mochila nas costas, vê de longe. E antes de correr até o carro, ela dá uma olhada em volta para ter certeza de que nenhum conhecido está por ali. Constatado que não há ninguém, ela corre até o veículo. Assim que chega, bate no lado do ageiro. A porta é destrancada. Ela entra e se senta ao lado do estranho homem.
Scar se apresenta com cordialidade. Ela não acredita na voz suave que ele tem.
Por ter pensado que a senhora também estaria, Jasmim pergunta onde ela está. E quando ouve a resposta, dizendo que ela já não está mais no país, pois tinha assuntos urgentes a serem tratados, Jasmim tem a convicção de que a velha mulher está determinada a alcançar os seus objetivos.
— O que foi? — Jasmim pergunta ao Scar.
—... — Scar nem ouve, e não tira os seus olhos de cima dela.
— Ei! Está me ouvindo?! — Jasmim, estranhando a situação, estala os dedos na frente do rosto dele.
— Me desculpe, senhorita! — Scar, todo assustado, retorna.
Scar, na primeira vez em que se viram, tinha a sua atenção na jovem mais disfarçadamente. Mas agora, lado a lado, está bem mais focado nela. E ele não sabe exatamente o que está sentindo, pois Jasmim é uma lembrança esquecida do seu irmão. E não é só isso. Scar consegue enxergar a mesma face dele no rosto dela.
Quando Jasmim contrai as sobrancelhas, incomodada com a fixação que ele está pondo si, Scar pede desculpas por seu comportamento estranho, mas não dá nenhuma explicação. Depois, pergunta a ela se está tudo bem. Também diz que, provavelmente, ela nunca mais verá a sua família.
— Por que diz isso? — Jasmim pergunta. Scar fala que conhece o caminho que ela trilhará, e que o fim é sempre o mesmo.
— Mas espero estar errado — Jasmim vê que ele é cheio de observações enigmáticas, e isso a faz se lembrar de alguém.
— Não se preocupe. Espero por tudo isso há muito tempo. E mesmo que eu não volte a rever aquelas pessoas maravilhosas, que me acolheram com tanto carinho, será uma troca justa, contanto que eu possa acabar com aqueles dois — Jasmim não quer parecer fraca, mas é inevitável o seu triste sorriso. E não é bem isso o que ela quer.
Scar dá a partida no carro.
— Jasmim... — Scar, antes de sair com o carro, distrai-se com uma mãe que anda com a filha pela calçada. — Você irá revê-la — diz, com uma voz mais firme.
— Eu sempre acreditei nisso, até quando parecia um sonho impossível — a sua voz reta não representa o que ela sente ao ouvir que a sua meia-irmã pode ser reencontrada. Sua face fica séria, fazendo os ossos se destacarem. Sua respiração, mesmo cadenciada, muda de entonação. E Scar entende: por mais que ela deteste o próprio pai, no fim, tem problemas mesmo é com a Lavínia.
— Sim, você irá revê-la. A senhora Rose está cuidando de tudo.
— “Senhora Rose?”. É assim que você a chama? — Jasmim não pretende se referir a ela desse jeito. — Heart Rose... Qual é o primeiro nome dela mesmo?
— Amy — Scar sente-se mal por falar essa palavra. É como se ela pudesse amaldiçoá-lo. — Estranho você não saber.
— Quem disse que eu não sei? — Jasmim, olhando para rua, responde. Scar fica sem entender. — E o parentesco dela com os Elric Gillian? — Scar não responde. Jasmim vê que ele não se sentiu confortável com essa simples pergunta. — Amy Rose Heart... Humpf! Os noticiários mal se deram ao trabalho de falar a respeito dela. Apenas da família famosa da jornalista.
— Mas, para nós, isso está sendo muito útil. Deixá-la de fora, de tudo o que houve, na verdade nos favoreceu — Scar volta a falar, após o assunto ser desviado.
Jasmim ouve essa afirmação e se indaga. Afinal, quem é esse cara?
— E você? Qual e a sua parte nessa história toda?
— A mesma que a sua.
— Caramba! Cara, você é cheio de enigmas, sabia? Deve ser por causa dessa máscara horrível (e essa roupa também não ajuda) — Scar assente com a cabeça.
Ambos seguem até o aeroporto e, de lá, partirão para Agonia.
CAPITULO 43. AGONIA
Já é de noite e o avião está prestes a pousar.
Jasmim, cansada devido à longa viagem, quer esticar as suas pernas; e também uma cama mais do que tudo.
— Logo você poderá dormir de verdade. A senhora Rose está nos aguardando em um hotel agradável — Scar a informa, enquanto o avião, cada vez mais, aproxima-se da pista.
— Uaaaaaaaaaah — Jasmim dá um bocejo tão forte que faz a sua mandíbula estalar. — Ai, ai... O meu corpo está todo dolorido. Não lembrava que voar de avião fosse tão ruim — ela olha pela janelinha, curiosa. — Sempre quis conhecer esta cidade. Quando eu era mais nova, sempre lia a respeito. Não sei por que, mas ela me fascinava.
— É mesmo? A senhora Rose disse que você ficou triste quando soube que teria que vir para cá.
— Humpf! Eu fiquei chateada por ter que sair de casa, não por ter que vir para Agonia. Aquela mulher é lerda! — Jasmim vê o incômodo que Scar sentiu com suas palavras. — Você não gosta quando eu falo mal dela, não é mesmo?
—...
— Certo... Desculpa aí... Pode falar sobre a cidade, então.
— Bem, Agonia não é muito bem quista, apesar de ter uma boa economia e ótimas universidades — Scar é muito rápido para desconversar. — A sua origem é marcada por sangue e morte, e até hoje isso ecoa por ela. Milhares de crimes a assolam, anualmente. E as autoridades não conseguem desvendar a maioria.
— Sim, eu sei disso. E eu também sei que a Karen contribuía muito, resolvendo coisas terríveis. Você sabe se ela ainda está por aqui? — Scar ouve certo tom de amizade nas palavras proferidas.
— Vejo que estudou a respeito. Bem, eu não a conheço, apesar de trabalhar para a sua mãe. E a senhora Rose quase nunca fala sobre o ado de ambas. Mas sei o que ela fez por Agonia. E, sim, ela ainda está por aqui, mas já não é mais a mesma.
— “Já não é mais a mesma?” Hummm... E nem tem como, né, cara? ar pelo que ela ou — sua voz é de complacência. — Sabe... Eu sei bem como ela deve se sentir — Scar não a responde. — Enfim... Mas eu gostaria de conhecêla. Acho que é ela quem deve acabar com tudo.
— Perdão? — Scar não a entende.
— Esquece. Coisa minha.
O avião pousa. Assim que saem, vão até um veículo, entram e seguem ao encontro da senhora Rose.
O carro adentra ruas cada vez mais largas. Os vastos edifícios, cheios de luzes e poses, exibem-se pomposos e esnobes. Os veículos caros, e blindados, dão o tom da localidade que Jasmim entrou. É o bairro mais caro da cidade. Amy, desde que retornou à Agonia, mora nesse lugar. É uma região precavida, onde a segurança é redobrada — se bem que isso não é garantia de nada. Nos tempos da sua adolescência, pôde visitar pouquíssimas vezes. Ela jamais imaginou que, um dia, fosse voltar.
Jasmim e Scar chegam a um prédio gigantesco, de uma altura infinita. E assim que ela desce do carro, sente diversos olhares à sua aparência, deixando-a perplexa. “Como um homem vestindo um sobretudo negro, capuz e uma máscara bizarra, não chama atenção?”, é o que ela pensa.
— Por que todos estão me olhando? — ela pergunta ao Scar.
— Não se preocupe. Devem te achar diferente. Eu também ei por isso no começo — ele responde como se fosse a coisa mais normal do mundo.
— Maravilha! Vou ser vista como um animal exótico! — Jasmim, resmungando, e ainda incomodada com a atenção que recebe, acompanha o Scar até o saguão do hotel.
Scar a conduz até o quarto em que Amy os espera. Eles chegam e são
recepcionados por um olhar austero.
— Como foi a viagem? — Amy pergunta, sem especificar a quem.
— Nada boa. Não estou acostumada a viajar de avião, como eu pensava. O meu corpo está todo dolorido — Jasmim, olhando o quarto sofisticado, fala. — E esse cara não respondeu quase nada do que perguntei. Mas adora falar sobre comida. Ele é muito esquisito — Jasmim diz, obedecendo ao Scar, que a indica onde será o seu quarto; Amy a acompanha.
— Scar é um bom ouvinte e uma ótima pessoa para conversar. Mas ele não vai falar mais do que deve. Tenha isso em mente, Jasmim.
— Humpf! — Jasmim joga a sua mochila na cama. Amy senta em uma cadeira.
— Jasmim, quero que saiba que estou satisfeita por ter aceitado a minha oferta. E espero que a festa de despedida tenha sido o suficiente, e que não fique com tantas saudades da sua família — Jasmim ouve isso e, imediatamente, sabe o que Amy quer dizer de verdade.
— Tudo bem, quanto a isso. Estou aqui para uma tarefa. O resto eu vejo depois — Jasmim a encara, com os seus olhos determinados. Amy a olha com o mesmo semblante.
— Certo — Amy se levanta e anda em direção de uma mesa. Parada, fica olhando para uma fotografia antiga, dentro um porta-retratos velho, que está em
cima do móvel. É uma fotografia onde a Karen está sorrindo (devia ter uns doze anos de idade). Amy pega o porta-retratos e o vira para baixo. Por essa simples ação, Jasmim sente o ar diminuir a sua volta. De costas, Amy fala: — Jasmim, provavelmente iremos entrar no inferno — sua voz é fantasmagórica. — E enquanto estivermos por lá, quero que saiba que tentarei de tudo para sair com vida. Não estou dizendo que irei te deixar para trás, mas não abrirei mão de qualquer oportunidade que surgir, e que possa me ajudar a escapar. E, principalmente, acabar com eles três — Jasmim ouve essas palavras e não se importa, pois fará igual se for preciso. Porém, fica intrigada com o “três”.
— “Três?”. O meu pai, a minha irmã e... Quem é a outra pessoa?
—...
• • •
Já faz alguns dias que as duas estão trancadas no quarto, conversando sobre toda a investigação que Amy fez. Amy, aliás, falou como que descobriu que ele tinha duas filhas — Jasmim ficou surpresa ao saber. Também falou como soube onde a Jasmim estava, e falou um pouco sobre a sua própria história. Amy abordou cada linha da investigação anotada ao longo dos últimos anos. Porém, preferiu deixar de lado alguns pontos. Não mencionou que o Scar era irmão dele. Também não disse o que ela fez nos anos anteriores, quando decidiu começar a procurá-lo.
Bem, nesse momento, uma notícia que deixou Jasmim animada foi ao ouvir onde a Lavínia encontra-se. Saber o seu paradeiro é um grande agrado.
— Por enquanto, deixaremos ela livre. Precisaremos dela, mais adiante — Amy
a informa. Porém, Jasmim não pensa assim. Quer dar um basta o quanto antes e já começa a tramar um meio de ir até ela, sem que Amy e Scar saibam. — Jasmim? Você me escutou?
— Sim, escutei.
—...
• • •
Após dias inteiros sem sair do hotel, Jasmim quer aproveitar um pouco da folga que Amy deu.
— Vá conhecer um pouco da cidade. Não é apenas de tragédias que Agonia é feita. Há muitas coisas boas por aqui. Mas lembre-se: tome cuidado — Amy lhe diz isso, já saindo para fazer as suas atividades desconhecidas. E Jasmim até que lhe dá ouvidos, só que em partes. E antes de sair, veste-se, colocando as suas belas roupas. Uma linda calça rosa, de tom suave, sobre as suas jovens pernas. Um par de sapatilhas brancas em seus pés pequenos. Por fim, uma anarkali kurta rosa-escuro, de um tecido sedoso e leve, com detalhes em dourado, sobre o seu corpo floral. Jasmim tornou-se uma verdadeira obra de arte.
Já fora do hotel, é apenas a segunda vez que ela caminha pelas ruas de Agonia. Na primeira, mal teve a chance de aproveitar coisa alguma. Somente para descer do avião, entrar no carro e no hotel. Agora, após ficar vários dias enfurnada no quarto, ela tem os planos de uma turista animada: aproveitar para conhecer a respeito da cultura da cidade; visitar as construções históricas; saborear da gastronomia local, e ir atrás da sua irmã maníaca.
Percorrendo Agonia, Jasmim está sendo vista como uma excentricidade lírica. Os olhares da população não disfarçam o encanto pela estrangeira de aparência poética. As roupas têm a sua parcela de culpa, mas a sua beleza também contribui. E por ser jovem, e muito bonita, vem recebendo alguns assobios. Mas sem o mínimo de interesse, ela os ignora com uma facilidade incrível. A sua atenção está voltada para as diversas construções erguidas — e para outra coisa.
Depois de caminhar muito, Jasmim decide ir até o local em que Lavínia está — obviamente, sem ter avisado a Amy e o Scar.
Ele está longe, por isso mandou a filha fazer o seu trabalho sujo, procurando pelas vítimas em seu lugar. Lavínia é quem convence as mulheres e as leva até ele, em algum buraco obscuro, afastado dos olhares do mundo.
Quando Jasmim perguntou à Amy o porquê de ela não partir para cima da Lavínia, forçando-a a abrir a boca e contar onde o seu pai está, Amy disse que ainda faltava uma peça a ser adquirida. Na verdade, Amy está aguardando o momento certo para chegar até ele, pois não quer matá-lo de imediato, apenas saber a sua localização para poder fixar os seus olhos. Sua ideia é não deixá-lo livre, até o dia escolhido.
Jasmim chama um táxi.
Dentro do carro, quem está dirigindo é um senhor bem sorridente, e que não para de contar histórias — que Jasmim não faz nenhuma questão de saber. Ao menos os elogios são gentis, diferente dos olhares maliciosos e cheios de luxúria que estava recebendo.
Após alguns minutos, Jasmim chega ao seu destino. É um bairro afastado e bem arborizado. As casas, de muros altos, e portões escuros, não permitem saber o que se esconde no interior de cada.
Depois de pagar o velhote, que vai embora tagarelando, Jasmim puxa uma faca assustadora, que estava amarrada em uma das suas coxas. Três dentes afiados que podem cortar, até mesmo, o mais resistente dos metais é o que ela segura em uma das suas mãos. Antes de seguir, ela olha em volta, para ter certeza de que não há ninguém por perto. Constatada a sua precaução, parte rumo à casa indicada nas anotações da Amy.
Ainda sem se aproximar muito, Jasmim anda com cuidado, a um ângulo que a permite ver se há alguma câmera de vigilância. E com a comprovação de que nada monitora a parte externa da residência, ela segue, com os firmes, até o portão. Toca a campainha e o portão abre, instantaneamente. Uma voz mecanizada, que sai do interfone, diz para ela entrar. Jasmim segue em frente com o seu plano. Segue em frente com tudo isso por causa do seu ódio. O seu ódio por Lavínia é uma cratera que não cabe em seu pequeno corpo. Porém, assim que entra na casa, que tem uma grande sala, Jasmim logo percebe que caiu em uma armadilha. Não é a Lavínia quem a aguarda.
— Eu deveria saber. Mais uma fedelha estúpida! — Amy, com uma decepção real, sai detrás de uma porta, expondo a sua feição frustrada. — Achou mesmo que viria até aqui, encontraria a sua irmã e a mataria? Garota burra!
Jasmim não se deixa abater, mesmo surpresa e com a presença ameaçadora de Scar as suas costas. Ela avança até a Amy, ainda com Scar em seu encalço, sem temer a imponente mulher.
— Então, é isso? Um teste para saber se eu sou confiável? Humpf! O que você esperava? Que eu fosse ficar sentada, sabendo que poderia estripar aquela porca nojenta!
Em silêncio, Amy a olha, pensando no que falar.
— Jasmim... Acredito que você entenda muito bem o porquê de tudo isso — Amy caminha até uma das janelas, olhando a si mesma no vidro. — Você não é a única que sofreu nas mãos dele — ela direciona o seu olhar para o Scar, depois volta a olhar o próprio reflexo no vidro embaçado. — Podemos não ter ado pelas mesmas coisas que você, mas sofremos também. Não de uma maneira maior ou menor. Apenas... sofremos — Amy volta a olhá-la com os seus olhos banhados por um dourado sagrado. — Nunca ei por nada parecido, mas a minha filha... sim — Amy sofre só por lembrar. — Ela foi torturada... Obrigada a fazer coisas que, eu acredito, você conheça muito bem — Jasmim desvia o olhar. — E foi morta, logo em seguida — Amy caminha até ela... — Agora, não pense, sob nenhuma circunstância, que eu não saiba o que é sofrer. O que é sentir dor. O que é chorar — e para diante da jovem. — Nós dois somos vítimas dele, tanto quanto você.
Jasmim sente tudo o que é falado. As respostas e ofensas que já estavam na ponta da sua língua, são engolidas sem nenhum receio. Jasmim olha para o Scar.
— Então, ele também é uma vítima do meu pai? — ela continua encarando-o, tentando descobrir o que há por trás da máscara. Amy assente para que o Scar, saindo das sombras que as cortinas fazem, retire a máscara que ele protege com tanta dedicação, e que manteve a sua vida.
— Você ainda é muito jovem, Jasmim... — Scar, olhando para baixo, também retira o capuz e puxa o seu cabelo, que tampa o seu rosto, para trás. — Ainda há
muito que viver... Muito que conhecer — Scar, então, olha para Jasmim. Quando ela vê o mesmo rosto que ainda tortura a sua alma, solta a faca da mão, e quase cai no chão.
A luz fina, que se esgueira por entre as frestas das janelas, e que banha o seu rosto cor de mel, não é forte o suficiente para impedir as lágrimas que começam a sair dos seus olhos negros, inesperadamente. E a sua mente decide mergulhar em um oceano complexo. Zangado por estar sendo agredido, mas satisfeito por estar sendo tocado.
Porém, a força ilimitada, que a fez ar (de) tudo, perde a segurança. Amy precisa ajudá-la. E amparada pela nobre confeiteira, Jasmim pode contemplar a dimensão da podridão que o seu pai representa. A sua capacidade de destruir vidas não possui limites, chegando ao ponto de obrigar uma pessoa, o próprio irmão, a ter que esconder a própria face para não se lembrar de que é igual a ele. Contudo, as trevas que amedrontam Jasmim não se fazem presentes nesse homem. Scar não possui o vazio em sua face, apenas uma mistura de ternura com tristeza. Jasmim nunca imaginou que algo assim pudesse existir nesse rosto.
— Tio...? — Jasmim é preenchida por emoções desconhecidas.
— Sim... — Scar diz algo que sempre quis.
Jasmim, num primeiro momento, confusa pela inesperada revelação, refuga. Depois, obedecendo a uma vontade invisível, livra-se da Amy e sai correndo para abraçá-lo. Scar a aceita com todo o sofrimento que o seu irmão lhe deu.
Jasmim o abraça como se tentasse segurar as suas recordações mais afáveis. As
suas recordações que nunca puderam ver à luz do dia. Jasmim o abraça com medo de que elas pudessem deixá-la. Com medo de que elas pudessem nunca existir. Para Jasmim, saber que ainda há uma pessoa com o mesmo sangue que o seu, mas que não é igual àqueles dois, é um presente inigualável. É um presente que ela jamais sonhou em poder ver.
— Uma última coisa, Jasmim — Amy, em posse de um gélido amargor em sua face, vira-se para olhá-la bem no fundo dos olhos. Jasmim, intimidada pela nobre senhora, dá atenção ao que será falado. — Me desobedeça outra vez e eu farei com que você se arrependa — Amy diz, com sua voz que rompe qualquer barreira imposta pelo tempo. E Jasmim, nesse momento, percebe quem é a mulher que está diante de si. — Agora, ouça. Ainda temos muito que conversar.
CAPITULO 44. ELIZABETH ELRIC GILLIAN
Elizabeth, prestes a completar setenta e cinco anos, vive reclusa na mesma mansão em que sempre morou, ainda lamentando a decisão tomada há vários anos. Ela lamenta por não ter visto o seu amado Sam ter se tornado o médico que tanto queria. Lamenta por não ter visto as duas mãos, prometidas ao piano ou ao cinema, tratando com muito carinho os pacientes necessitados. Lamenta por não ter visto as duas netas que tinha. Lamenta por não ter visto nada. Elizabeth foi uma vítima da sua própria vida, das suas próprias escolhas.
Agora, já está aposentada da sua carreira de pianista. Faz quase vinte anos que abandonou a profissão. A paixão já lhe faltava, pois o arrependimento nunca a deixou em paz.
Nos primeiros anos longe do seu filho, ela pouco sentiu a sua ausência. Estava na casa dos quarenta, e acreditou estar imune a sentimentalismos — claro que ela se enganou. E quando entrou nos cinquenta, e notou que não tinha uma família, percebeu um pesadelo real. Era possível consertar? Talvez, só não fazia a menor ideia de como. Bobby e Katarina, que poderiam ter sido os seus aliados, já haviam partido, anos atrás. Bobby foi para o outro lado do país para aguardar o fim de vida ao lado de alguns parentes distantes. Katarina ficou mais um tempo na mansão, mas após algumas semanas, tomou uma decisão similar, pois não se sentia mais confortável em ficar. Conheceu um senhor da mesma idade, casou e decidiu viajar pelo mundo, aproveitando os poucos anos que lhe restavam.
Elizabeth, agora, não quer mais estar sozinha. Não quer mais ser sozinha. Há anos está angustiada. Há anos está aflita. Há anos está desesperada, precisando
conectar-se com alguém. Sim, o seu marido seria a resposta mais óbvia, mas Brian também se quebrou. Sempre evitava voltar à mansão, por isso aceitava qualquer trabalho para poder ficar o mais longe possível. E mesmo velho, ainda tinha gás para dirigir filmes, onde quer que fosse. Mas isso foi quando ele ainda era vivo, pois, agora, já está morto. Faleceu há alguns anos, longe dos olhares de todos. Dos olhos da esposa e, inclusive, dos próprios.
Elizabeth também ficou, durante anos, com medo de visitar o filho no cemitério. Não tinha coragem. Não tinha confiança. Sentia-se culpada por ele estar enterrado, preso em um caixote de madeira, no sono eterno. Porém, quando tomou a decisão de ir vê-lo, arrependeu-se amargamente. Não conseguiu aceitar que o seu filho, o que ela nunca deu atenção, nunca deu afeto, nunca deu amor, não voltaria mais a andar, a respirar, a estar ao seu lado. E com gritos ardentes, primais, pediu a Deus para que ela pudesse voltar no tempo. Mas não pôde. Mas não pode. Pois ninguém tem esse direito.
Sem o seu marido, em algum momento, ela procurou revisitar o seu estimado piano. Foi inútil. Um paliativo ridículo, incapaz de trazer algum efeito. Então, atualmente, ela faz a única coisa que pode: vagar igual a um fantasma pelos corredores da sua grandiosa mansão.
Sozinha, Elizabeth continua remoendo os seus erros. Sozinha, Elizabeth continua remoendo as suas escolhas. Nunca conseguiu superá-las. Nunca conseguiu esquecê-las.
Bem, e mesmo após todos esses anos, após tudo o que teve que lidar, Elizabeth, em partes, ainda lembra a mulher que foi um dia. As suas madeixas escuras continuam lindas, mas, agora, misturam-se com o branco. A sua pele, que está mais murcha, já que o tempo é imparável, ainda consegue manter a sua elegância em pé, com dignidade. E mesmo com a sua visão usufruindo de um par de óculos desengonçados, e as suas costas urgindo por remédios diários para aliviar as dores crônicas, ela não deixa de ter uma postura clássica.
Elizabeth, provavelmente, morreria assim, largada as sombras, aos ecos do ado. Porém, uma lembrança longínqua, quase irreal, viria tirá-la desse caminho certo, fazendo-a olhar para os olhos que um dia foram irados por ela.
• • •
Em uma manhã molhada pelo sereno da noite, onde o relógio nem aponta seis horas, alguém bate à porta da mansão. Elizabeth dispensou quase todos os seus empregados, mantendo somente os que ela considerava essenciais. E o responsável por atender, e abrir a porta, não era um deles.
— Quem será a essa hora? — Elizabeth sai da cama, vestindo um pijama grosso, de seda importada, costurada a mão por alguma habilidosa modista. Desce as escadas, calçando um dos seus chinelos de lã confortáveis, e vai ver quem pode ser o indivíduo que teve a audácia de adentrar a sua propriedade, sem a sua autorização.
Assim que chega à frente da porta, não imagina o que está prestes a acontecer. A sua linha do tempo, se não definida, agora apontou para um caminho inesperado.
Ao abri-la, Elizabeth se surpreende com o que vê: uma mulher de idade, próxima dos cinquenta anos. Os cabelos são de um vermelho vivo, capazes de acenderem as mais quentes chamas. Isso ainda é o mesmo. O que mudou são os olhos. Os olhos que contrastam com o tempo, que contrastam com a vida. O amarelodourado, que um dia foi iluminado, agora reluz uma imensidão opaca, de um desgosto odioso, de um brilho caótico, de uma existência falha. Agora reluz o nada. Elizabeth sabe quem é essa mulher de ombros largos e postura ereta.
O céu fúnebre, como sempre em Agonia, mas agora estranhamente complacente, parece dedicado a permanecer nesse estado para a mulher de aura sombria que aguarda do lado de fora da mansão. Amy, sem um pingo de generosidade, permeada por um pandemônio atroz, não diz nada, apenas esperando ser convidada a entrar.
Elizabeth, olhando para o semblante maligno da Amy, fica atônita. Ela ainda não acredita. Não acredita, pois, jamais pensou que fosse rever a garota por quem o seu filho se apaixonou. Por isso que, ao vê-la, Elizabeth começa a acreditar ser um ato de misericórdia da sua recente fé adquirida e religião praticada. Um ato do seu Deus bizarro. Mas não é nada disso. Amy não quer gentileza, nem solidariedade. Ela veio em busca de outras coisas pouco amigáveis, ou íveis da sua personalidade afável, que já não existe mais.
Elizabeth consegue interromper o seu próprio corpo paralisado. E após esperar por um tempo, Amy é convidada a entrar. Elizabeth a deixa sentada no sofá da sala e vai buscar alguma bebida para servi-la. E enquanto espera, a confeiteira olha para as paredes, para os quadros, para as mobílias, e isso faz com que lembranças de outra vida queiram revisitá-la. Elas vêm de uma fenda no tempo que permanece protegida por guardiões sagrados. De um período adocicado, cheio de esperança e sonhos. Lá, uma menina continua sorrindo, feliz por apreciar simples bobagens. Uma tiara de plástico ou fitas coloridas desfiadas para os cabelos. Brincos descascados de flores para as orelhas. Dias chuvosos, de braços abertos para os pingos d’água. Romances melosos que fariam qualquer pessoa mais sensível se debulhar em lágrimas. Dias ocupados onde o trabalho na cozinha não para. eios no parque, segurando a mão do seu namorado. Tudo isso se mantém intacto, longe da perversidade que lhe deu a mão. E Amy, se quisesse, poderia voltar a uma época normal, sem planos mirabolantes, nem vinganças rancorosas contra um assassino diabólico, e contra uma filha repugnante. Se quisesse...
Cansada de esperar, Amy decide andar pelos corredores da mansão, ainda
encarando lembranças perdidas que há tanto tempo transitam pelas paredes do seu coração. Assim, Amy pode rever a festa que celebrou o aniversário do Sam e o seu próprio. Ouvir a Natally e a Chris fofocarem, falando que se dariam bem. Olhar para as muitas amizades que havia começado a criar. Amy até lembra-se do ágil Jimmy, o responsável por fazer as compras do mercado da mansão. Ele era agitado e não parava de falar a respeito da sua esposa. Estava muito animado com o fato de que se tornaria pai em breve. Amy também se lembra da jovem Serena, que ajudava Alan, o seu pai, com os cuidados dos animais na pequena fazenda que se escondia atrás da propriedade. Ambos gostavam muito de escovar os cavalos, alimentar as galinhas e os leitõezinhos, que chamavam muita atenção. Serena também gostava de olhar a mamãe pata guiando os seus filhinhos pelo lago próximo ao estábulo. E também se divertia com os quatro cachorros que podiam fazer qualquer tipo de traquinagem se achassem que seria divertido. Amy os reencontra, intangíveis, etéreos, vagando por outra realidade. Ela pode ver essa pintura antiga de longe, sem o perigo de quebrá-la. E ela os vê e não se abala. Não se importa. Tudo isso não significa mais nada.
Amy retorna à sala e se depara com Elizabeth, sentada no sofá, olhando para uma fotografia onde o seu filho está sorrindo. Amy nunca falou, para o Sam ou para as filhas, mas sempre imaginou que Elizabeth fosse se arrepender por tê-lo expulsado de casa, e da sua vida. Sempre imaginou que a pianista não estava convencida da decisão tomada, décadas atrás.
Amy não se senta, apenas fica circundando Elizabeth, que não se importa em vêla indo de um lado ao outro, como se mandasse em tudo. E olhando para Amy, Elizabeth, agora, sabe que deveria ter deixado o seu orgulho de lado e ido falar com a sua nora, e, principalmente, ido brincar com as suas netas. O problema é que, agora, não adianta mais. Escolhas erradas trazem consequências justas.
Elizabeth não sabe como se comportar perante a menina que se tornou uma senhora. Porém, ainda é capaz de ficar diante dela — ao menos é o que pensa.
Amy se cansa de caminhar. Senta-se de frente para Elizabeth, sem parecer que a sua presença, ali, é repentina e estranha.
— Gostaria de falar como eu sinto muito... Amy. Mas não seria justo... — Elizabeth puxa a conversa, olhando para o semblante sério da sua nora. — Após tantos anos, eu...
— Preciso que você cale a boca — Amy a interrompe, com uma voz tenebrosa, deixando a pobre idosa assustada. — Tenho uma oferta para te fazer — diz, enquanto leva a xícara de chá à boca.
Elizabeth sente-se acuada pela grosseira interrupção que sofreu da figura sombria que está sentada em sua frente. Ainda não entendeu que essa Amy é outra pessoa. Não é mais a doce figura amorosa e educada das suas antigas lembranças.
—... — Elizabeth não diz nada.
— Não vai perguntar sobre o que é? — Elizabeth continua quieta. — Bem, já que é assim... Elizabeth, eu preciso que você me dê todo o seu dinheiro — Amy fala como se fosse a coisa mais natural do mundo. — Você já está muito velha, prestes a morrer. Não tem mais um marido. Não tem mais um filho. E a sua neta não merece um pingo de compaixão de ninguém. E você também não possui mais nenhum familiar, se eu não estiver enganada. Ou seja: eu sou a sua única família restante. Por isso, quero que você me dê toda a sua fortuna — ela finaliza.
Elizabeth, após ouvir esse pedido descabido, levanta-se, anda, senta-se e toma
mais de três xícaras de chá de camomila para ver se dá um pouco de calma. Levanta-se e começa a andar de novo.
— Peço que decida logo. O meu tempo é valioso e não posso ficar desperdiçando com uma inútil — Amy não faz a menor questão de segurar as suas ofensas, e as despeja à vontade. Quando Elizabeth parece voltar a si, Amy impõe, ainda mais, a sua atitude misteriosa para cima da pianista aposentada. — Quero que entenda este meu pedido como algo sério. Não é para algum tipo de tolice — Elizabeth volta e se senta.
— Como assim dar todos os meus bens para você, Amy?! — Elizabeth deixa a sua voz confusa aparecer.
— Eu não quero os seus bens. Eu quero o seu dinheiro — Amy, em pé novamente, aproxima-se da Elizabeth, olhando-a bem nos olhos.
— O que você pretende fazer, Amy?
— Você não irá saber. Apenas pense que é para algo bom.
O contraplongée que a cena apresenta, com Amy em pé, olhando para Elizabeth sentada, poderia ser facilmente uma cena de algum filme dirigido por Brian. Mas não é. É apenas a consequência das posições que cada uma encontra-se. Amy, determinada a reaver os personagens causadores das suas perdas e dores, está disposta a pagar o preço que for. Já Elizabeth, recaída sob o peso das suas escolhas equivocadas, tornou-se uma débil sombra. Uma volta completa deixou essas duas mulheres em circunstâncias tão diferentes que elas mesmas não acreditariam se as suas versões mais jovens pudessem viajar pelo tempo.
Elizabeth vê nos dois abismos dourados, que se esparramam pela face obscura, que Amy não aceitará outra decisão que não seja a exigida. E por mais absurdo que soe, Elizabeth acha justo. De fato, para quem vai deixar toda a sua fortuna incalculável, assim que morrer? Amy é a resposta mais óbvia a ser encontrada.
Elizabeth também não acredita que Amy seja uma pessoa má, por isso sente que merece ouvir todas as suas ofensas. Afinal, quem mandou expulsar o próprio filho e ignorar a existência das duas netas? Quem é ela para negar esse pedido da Amy? Que a única coisa que fez foi amar o Sam, incondicionalmente, até o dia em que ele partiu. E por isso, em um lapso de consciência pesada, Elizabeth acha correta a proposta ofertada.
— Entendo... Talvez... eu deva aceitar o que você me pede — assim, o clima carregado que pairava pela sala é clareado. — Mas, Amy... para que você precisa de tanto dinheiro? — acanhada, ela pergunta.
— Não te interessa, Elizabeth — Amy a responde com a força de um meteoro que colide contra um planeta. — Sua participação se limitará a isso.
Elizabeth precisa retirar forças do fundo do seu corpo para continuar na presença esmagadora da confeiteira. A pianista está insegura, pois percebe a aura nefasta que emana da senhora ruiva.
— Você me odeia... Amy? Por ter expulsado... Sam? — a pianista, com um sorriso triste, olha para o chão, que reflete a sua expressão apagada.
— Sabe, Elizabeth, a última vez que eu estive aqui foi para pegar os pertences do Sam, após vocês o terem expulsado. Lembra-se disso? Pois eu me lembro até hoje. Também me lembro do comportamento asqueroso do seu marido, que não demonstrou um pingo de compaixão. Lembro-me de chegar a minha casa e ver o seu filho chorar como nunca, por causa das coisas que eu carregava. Lembro-me de tê-lo abraçado com todas as minhas forças, agarrando-o ao meu corpo. Lembro-me de vê-lo sofrer de uma forma desesperadora. Lembro-me de tudo, Elizabeth. E você, lembra-se de algo?
—... — Elizabeth, calada, sofre ainda mais pelas palavras proferidas.
— Bem, agora, se eu te odeio? Não, Elizabeth. Eu não te odeio. Eu nunca te odiei por ter tratado o seu próprio filho como um ninguém. Por tê-lo ignorado por toda a vida. Por ter desprezado todos os seus sonhos e desejos. Por tê-lo tratado como um ingrato. Por ter dado prioridade a droga da sua carreira. Por não tê-lo visto morrer. Na verdade, Elizabeth, eu não sinto nada por você. Ódio, raiva, rancor, mágoa... Nada — Amy volta a se sentar, e bebe mais um pouco de chá. — Tudo o que aconteceu com a minha família, com a minha vida, em nada você tem culpa — tudo o que é falado corta a pele da pianista. Cada palavra a machuca como ferro em brasa na carne. — Agora, se você quer corrigir um pouco dos seus inúmeros erros, faça o que estou lhe pedindo.
Elizabeth permanece em silêncio por alguns segundos.
— Amy... Eu quero ver a Karen... — apesar de tudo, ainda sonha em poder ver uma das suas netas, por isso pede a Amy que dê essa possibilidade.
— Não se aproxime daquilo! — a resposta que Amy dá não é amigável — Não há nada de bom em ver aquilo! Por isso fique longe dela! — a sua face fica dantesca. As veias se sobressaltam, as maçãs do rosto estufam e os olhos
mergulham em um profundo lago pantanoso no mais vasto abismo negro. Elizabeth fica apavorada. Mas, ainda assim, retira forças de algum lugar.
— Ela ainda está em Agonia? — pergunta, desconhecendo a própria coragem.
Amy, olhando-a com desprezo, não acredita no que ouve. Hesita um pouco, fica quieta por alguns segundos, contorce o rosto e, enfim, responde:
— Sim — sua voz é indecifrável.
Elizabeth segura essa resposta. Levanta-se e, por um tempo, caminha pela sala. Quando volta, por fim, já tem uma decisão.
— Está bem. Farei o que você me pede. Já estou cansada de ter que cuidar de tantas propriedades mesmo. Venderei todas elas, assim poderei recuperar uma pequena porcentagem do que irei te dar.
— Humpf! Quanto a isso, faça o que você quiser — completamente desinteressada, Amy fala.
— Certo... — Elizabeth, insegura, concorda. — Mas quero que saiba que irei procurar a Karen. Ela é a minha neta. É a única pessoa viva que ainda possui o meu sangue. E eu preciso vê-la, antes que seja tarde, Amy — Amy fica encarando Elizabeth, que se esforça para manter os olhares cruzados.
— Faça a transferência o mais depressa possível — Amy entrega o número da sua conta escrita num papel. — Também deixarei o meu telefone. Então, ligue assim que for feita a transação — Amy, já sob a porta — Quanto à ideia de ir ver a... Espero que reconsidere — sai, sem despedir-se. Elizabeth não reconsiderará essa decisão.
• • •
Como o combinado, em um mês, Elizabeth cumpriu com a sua palavra. Amy, então, tornou-se uma senhora em posse de mais dinheiro do que todos os moradores de Agonia juntos. Já os demais bens também foram vendidos, com alguns de maneira bem rápida, aliás. E apesar de não ter mais o respeito e fama outrora, os ricaços não quiseram perder as oportunidades de adquirirem excelentes propriedades em diferentes regiões da cidade. Apenas a mansão permaneceu com ela, pois não queria dizer adeus ao lar em que viveu com a sua família.
E agora, sem perder mais tempo, após resolver burocracias chatas, Elizabeth decide ir ver a sua neta no jornal em que ela trabalha. Arruma-se com todo o cuidado possível, como se estivesse indo a um baile de galas. Mas, ao invés dos vestidos elegantes, coloca um suéter pacífico e sem nenhuma graça; e uma calça de moletom. No fim, o seu cabelo é a única atração em seu corpo velho. E como Elizabeth não dirige mais, decide chamar um táxi.
No trajeto, conta quem ela é (era) para o jovem motorista, que fica boquiaberto pela figura importante sentada no seu banco almofadado. O jovem tagarela diz já ter ouvido algumas das suas músicas, e maravilhado a elogia. Infelizmente, esse encontro de gerações está condenado a ter um fim trágico. O rapaz não é um taxista, mas um vagabundo contratado para dar um fim na velha pianista. E no instante em que Elizabeth percebe que está fora dos limites de Agonia, procura confrontá-lo. Mas já é tarde demais. Quando ele abre a porta, atirando-se no gramado, ela só pode sentir o impacto no carro ao atingir o vasto lago negro que
se esconde dos olhares da cidade.
Enquanto batalha desesperadamente para evitar a morte submersa, um raio repentino emerge da sua mente. E enquanto se afoga no túmulo molhado, que a engole com ferocidade, Elizabeth não acredita que o seu fim se dará assim, dessa maneira, por um simples desejo, por uma simples vontade.
Apesar de a boca implorar para que a água pare de entrar, Elizabeth luta com força para não deixar apagar-se de toda a vida que ainda lhe resta. E com as suas mãos ossudas, e a sua magreza apática, que em nada podem fazer contra uma montanha d’água, tenta safar-se dessa armadilha inquebrável. Mas não consegue. E quando a visão fica turva e, logo em seguida, negra, a morte já a observa, escondida, à espreita E quando os seus pulmões já não podem mais exercer as suas funções, e o seu coração aceita a impossibilidade de bater, tudo se desliga. Elizabeth tem a sua vida, o seu corpo, o seu ser, jogados de encontro ao nada. Ao menos as memórias são as últimas a irem. As majestosas apresentações, que tanto iluminaram milhares de corações, e que lhe trouxeram tanta satisfação, são as primeiras a aparecerem. Brian vem na sequência. E por mais que fossem péssimos como pai e mãe, os dois se amavam da maneira mais pura que poderia ser. Era um conto de fadas de verdade. Ela se apaixonou por ele por vários motivos. A sua criatividade ilimitada. A sua ousadia sensual. A sua determinação imparável. Tudo o que nele reluzia era uma dádiva para os seus olhos angelicais. E mesmo sem ver, Elizabeth o amou até que a morte veio buscá-lo. Brian foi o único homem da sua vida e ela não poderia desejar nada melhor. Agora, segue para encontrá-lo. Porém, quando imagina ter terminado as suas memórias, Elizabeth é presenteada. Sam é o escolhido para o apagar das luzes.
O filho, de braços abertos, ainda um garotinho, o mesmo que sempre quis ser amado, expõe um amigável sorriso à espera da sua mãe para ir abraçá-lo. Uma pena que isso nunca aconteceu. Por mais que tentasse, por mais que quisesse, Elizabeth jamais conseguiu dar afeto a ele. Não igual Amy fez por Karen e Sarah. Não igual Esmeralda e Thomas fizeram por Amy. Não igual ao que Sam fez por Amy, Karen e Sarah. Elizabeth foi uma terrível mãe em todos os
sentidos. Por isso, essas memórias são as últimas a deixá-la. É para mostrar tudo o que ela ignorou e deixou para trás. É para mostrar que quando ainda era possível tentar reavê-las, jamais tentou voltar para pegá-las. É para mostrar que sempre há um preço a se pagar pelas escolhas tomadas. É para mostrar que sempre há um preço a se pagar pelas escolhas erradas.
Já sem consciência, Elizabeth retorna para uma das suas composições preferidas. Uma que retrata toda a tristeza que se pode enfrentar na vida, mas que, mais adiante, será barrada por imensuráveis alegrias. Era isso o que esperava que a Karen pudesse conquistar. Era isso o que esperava que a Karen pudesse lhe dar. Era isso o que queria dar a ela, pois conhecia a história da sua neta e a consequência que isso causou nela. Mas não se importava, pois o seu desejo era tê-la conhecido, independente de qualquer coisa. E por mais que a Karen tenha cometido um erro imperdoável, Elizabeth torcia para ela ser capaz de libertar-se dessa culpa. Culpa que Elizabeth sabia que Karen carregava. Culpa que Elizabeth sabia que Karen se afogava. Elizabeth, por alguma razão, acreditava que a Karen poderia ser salva.
CAPITULO 45. KAREN ROSE HEART:PARTE III
-E la... Ela a matou?!
— Não tenho como te garantir isso, mas considero essa possibilidade a mais provável. Sua mãe disse que foi uma infelicidade. Uma coincidência — Jasmim faz uma cara incrédula. — Até parece, né? Eu nunca acreditei nela.
— Merda! O que ela se tornou?! — o buraco que deve ter surgido é mais profundo do que imaginei. — Eu achava que começara comigo, mas... vejo que eu estava enganada. Você, Scar, minha mãe...
— Todos nós sabemos qual será o fim, Karen — Jasmim diz, dirigindo mais veloz do que um morcego que tenta fugir do inferno. — Estamos quase lá.
Após mais um tempo, finalmente chegamos.
A chuva segue firme, nervosa. Jasmim estaciona longe da casa. Scar e minha mãe estão lá dentro, esperando que Lavínia apareça.
Aguardamos.
Com um binóculo, que ela tirou de algum lugar, mirando para casa, Jasmim diz que não deveria estar aqui, pois minha mãe ordenou que ela esperasse no local em que estava. Mas a garota não quis saber de ficar de fora do reencontro com a sua irmã.
E, por muito tempo, ficamos esperando qualquer movimento no interior da casa.
O meu corpo está cansado, e por algumas vezes eu preciso voltar do sono que já começo a mergulhar. Minha aventura por aquela mata consumiu muito da minha energia. Quanto a Jasmim, ela está séria, com cara de poucos amigos. Eu não consigo decifrar o que sai dela... Suponho certa ansiedade em seu corpo por algum desfecho que seja satisfatório.
De repente, para a nossa surpresa, Scar e minha mãe saem e entram no carro. Ajeitamo-nos ao mesmo tempo, pois sabemos que teremos que segui-los.
— Vamos! — Jasmim diz, mas nem precisava.
Jasmim mostra ser uma boa perseguidora, mantendo-se quieta e afastada, sem perdê-los de vista.
Scar estaciona o carro; nós logo atrás. Eles entram em outra casa. Jasmim e eu nos olhamos. Pergunto o que ela irá fazer, mas fica calada. Insisto e ela também. Acho muito estranho esse seu comportamento, apesar do pouco tempo que estou com ela. Eu não consigo compreendê-la...
Dou uma olhada em volta e sinto que sei onde estou. Este lugar...
Minha mãe já me falou dele. É um dos vários bairros que ela pôde conhecer. É um dos vários bairros onde ela pode sorrir.
Mãe...
Merda! Para variar, esses devaneios persistem em me balançar. E já não sei mais se quero andar com ela por estas ruas escuras, sem ter que lembrar que não somos mais mãe e filha.
O dilúvio, de repente, para.
Sem mais a presença da chuva, Jasmim sai do carro, sem dar avisos. Eu a sigo. Ela vai até o porta-malas e retira uma imensa mochila.
— Jasmim... O que é isso? — pergunto, mas ela não responde. Seja lá o que for, é algo comprido e pesado, pois o esforço que ela faz é gigante. E após ter pegado a mochila, além de ter ficado nervosa, os seus braços começaram a tremer e o seu caminhar ficou duro. — Jasmim? — ainda não me responde.
Vemos uma luz acender na casa, e Jasmim, aparentemente, desenvolve um plano em segundos. O seu nervosismo vai embora e uma força desconhecida brota do nada. Ela sai correndo igual a um míssil — nem parece que está segurando um trambolho —, e sou obrigada a segui-la até uma elevação que permite que vejamos a cozinha inteira.
Scar, Lavínia e minha mãe estão lá dentro, sentados.
Eu me distraio com o evento que se desenvolve pelas três figuras. Quando retomo a minha atenção, vejo o que a Jasmim carregava em sua mochila misteriosa: uma metralhadora assustadora, daquelas que disparam centenas de balas, e que pode até derrubar helicópteros.
Onde ela arrumou isso?!
E, de imediato, sei o que ela pretende fazer. E apesar de eu estar muito enfraquecida, tento impedi-la.
— Não! — vou para cima dela. Não, eu não estou preocupada com a Lavínia. Por mim, ela que se foda. Porém, não neste momento, pois ainda há uma função para ela. A única que faz sentido para querermos poupar sua bosta de vida.
Preciso itir: estou envergonhada por ser incapaz de lidar com uma garota, ainda por cima pequenina. Sou nocauteada com um belo gancho na cara. Não chego a perder a consciência, mas não estou mais em órbita.
Enquanto tento voltar ao plano terrestre, vejo a Jasmim descarregar uma rajada na mulher que chamava de irmã. A sua fúria por ela deve ser um eco impiedoso, daqueles que fazem questão de ficar comichando no ouvido pequenos sussurros odiosos, para que uma decisão seja tomada. E Jasmim tomou a sua decisão.
O meu âmago se restabelece do impacto que a pequena mão de aço o deu, e as vertigens dissipam um pouco. Então, percebo que Scar, o primeiro a se levantar, olha para nós. Ele desaparece da moldura que o enquadramento da janela cria, e vem correndo em nossa direção.
— Karen, peço que se afaste — Jasmim fala, com a sua voz ofegante, mas aliviada. Parece saber o que a aguarda. — Ai, ai... Lá na frente, você vai me agradecer por isso, garota (desculpe pelo soco).
— O quê? — ela sorri.
Scar nos alcança, mas não age da maneira que estou acostumada. Agarra a Jasmim pelo pescoço, arrastando-a como um animal abatido, prestes a ser escalpado e servido no jantar. Ele me manda segui-lo; obedeço, apesar de ainda estar um pouco atordoada. Rapidamente, chegamos ao carro em que viemos e presenciámos a minha mãe partir, dirigindo o veículo em que eles chegaram.
Scar joga a Jasmim dentro do carro como se fosse um saco de bosta que precisa ser despejado o mais depressa possível; eu entro atrás. A chave esta na ignição. Ele liga e dá a partida no veículo.
Enquanto fugimos, Scar diz, na urgência de sairmos do local, que minha mãe teve que tomar uma decisão drástica: atear fogo na casa como uma medida para evitar que o corpo — ou o que restou — da Lavínia pudesse ser identificado — não que isso faça alguma diferença. Ela pegou algum líquido inflamável e, rapidamente, espalhou por todos os lados e pelo corpo estraçalhado daquela imundice.
Mesmo de longe, é possível ver o fogo. As chamas se levantam com louvor, gritando pelo céu de Melancolia. Ardem com sadismo, pois a sua origem foi macabra.
E no restante da fuga, Scar não fala mais nada; Jasmim faz o mesmo. E a sua quietude explica tudo: fez algo que não devia e agora irá receber a punição merecida.
Quais serão?
Minha mãe mostrou ser uma torturadora e, certamente, uma assassina. Elizabeth primeira. Eu, logo depois. Do que mais ela pode ser capaz? A sua índole tornouse cruel e repugnante, como se gostasse em ver os outros sofrerem. Se bem que...
Eu não sou melhor do que isso.
O cara que se enforcou e eu fingi que não vi. As várias famílias que sofreram por seus entes desaparecidos ou mortos, e que usei como objetos descartáveis. Se bem que...
Eu realmente não me importo com nenhum deles.
De volta à casa, vemos que minha mãe já chegou. Ela já está lá dentro.
Scar, aparentemente mais calmo, desce do carro e abre a porta do lado da sua
sobrinha. Jasmim sai cabisbaixa. É uma mulher prestes a ser executada. Scar também abre a porta para mim. Diz para eu acompanhá-la, pois ele irá voltar até a cidade para ver se alguém nos viu. Vou à frente da Jasmim como se eu fosse a sua protetora.
Mas não sou.
Eu não ligo para o que possa acontecer com ela. Não é meu problema. É problema da minha mãe. Foi ela quem quis recrutá-la. Agora terá que arcar com as consequências da sua escolha.
Eu me aproximo da porta, perto da luz que vaza do interior da casa. Viro-me e vejo a Jasmim olhando para o céu — agora límpido. Parece estar agradecendo por ter conseguido cumprir o que veio buscar.
Retorno até ela.
— Deveria estar mesmo feliz? Minha mãe irá acabar com você — digo, com vontade de enfiar em sua cara o mesmo soco que me deu. — E o seu pai ainda está vivo. Não era ele o seu principal objetivo? — Jasmim devolve o seu rosto para mim.
— Também, mas... eu vi que o meu problema era mesmo com a minha irmã.
— Então? — ela não entende por que eu insisto.
— Não, Karen. Na verdade... ele não me pertence — estou sem entender. — É simples. Essa história toda só terminará de duas maneiras: com a sua mãe ou com você.
— Por que diz isso? Ele fez tão mal a você quanto a nós. Ele matou a sua mãe!
— Sim... Eu sei disso — os seus olhos começam a lembrar. — Sabe... ter visto a minha mãe... Tudo o que ele fez com ela... comigo... Eu entendo você e todas essas trevas que há em seu coração. Mas... eu... agora eu tenho uma nova família... Uma família que espera por mim, Karen. E eu também quero revê-los — ela segura a voz com coragem. — Por isso, agora, após ter acabado com aquela merda, eu não quero mais seguir por este caminho. Eu quero voltar para a minha família o quanto antes, Karen. Pois faz anos que eu não os vejo... Há anos venho contando mentiras, e adiando a minha volta... Há anos estou aqui, presa em Agonia... Eu preciso voltar, Karen. E de uma vez por todas, deixar toda essa porcaria para trás, bem longe de mim, mesmo que... que... — lágrimas caem dos seus olhos. — Que eu não vingue a minha mãe — ela me olha sorrindo, mas de uma maneira tão... tão triste.
— Jasmim... — ela volta a olhar para o céu.
— O que ele causou a vocês duas... — ela fala como se a sua vida fosse menos fodida do que a nossa. — Veja: a sua mãe perdeu a consciência e está disposta a levar qualquer um para o inferno com ela. Claro que ela não quer morrer, mas irá sacrificar qualquer pessoa que julgar necessário. É amarga, perversa, sádica, e o pior de tudo: finge ser amiga, mas está disposta a apunhalar pelas costas.
—...
— E garota, ela te odeia muito.
— Eu sei.
— Karen... Meu Deus, Karen!!! Como você foi fazer isso com a sua própria irmã?! Como você pôde dar ela àquele animal?!
—...
— Enfim... Por isso fiz o que eu achei que tinha que fazer. Não confio em sua mãe. Provavelmente iria foder comigo em algum momento. E quanto a você, Karen... — ela está me olhando com... pena? — É uma mulher autodepreciativa que anseia pela morte. Não tem amor próprio, nem compaixão por nada. É isenta de empatia, até mesmo por sua mãe. Alterna de humor por qualquer dificuldade que surge. E também tem certos resquícios dela. E com tudo o que a Amy me falou, e mais o que eu obtive em pouco tempo ao seu lado, sou capaz de sentir toda essa sua vida desgraçada. Desculpe-me por dizer isso, mas... você é patética, Karen. Eu sei que não sou exemplo para nada, para ninguém, na verdade, mas ainda há alguma humanidade em mim. Quanto a você... Quanto a vocês duas, isso já deixou de existir há muito tempo.
—... — eu apenas a olho. Não por estar zangada com essas verdades que expôs. É por concordar com todas. Eu sei que sou assim. Eu sempre soube que era assim.
— Novamente, não sou exemplo para ninguém, mas talvez você possa me ver como um modelo a ser seguido, pelo simples fato de eu não estar disposta a dar a minha vida como encerrada — ela anda até uma árvore, cava a terra e retira uma
faca. — Por isso não aceitarei ser morta por ninguém. Nem por ele, nem por meu tio, nem mesmo por sua mãe. E se você quiser me impedir, fique à vontade, mas saiba que irei lutar com todas as minhas forças — apesar dessa frase bonita, eu vejo o medo, em sua forma mais bruta, nos olhos dela. Jasmim acredita estar disposta a resistir.
Mas será capaz?
— Humpf! É sério? Com uma faca? Então por que você não foge daqui? Saia correndo! Scar está longe e minha mãe não tem como segui-la — Jasmim dá um triste sorriso.
— Não. Amy é uma merda detestável (pois é! Eu deveria ter escondido uma arma) — agora o sorriso ficou bizarro. — Não irá me deixar em paz, independente de onde eu esteja. E apesar de ser o meu tio, Scar é fiel a ela. Tenho certeza que eles irão me encontrar em algum momento, em qualquer lugar. E não tenho dúvidas: ela vai tentar ferir a minha família, só para me atingir. Por isso prefiro tentar dar um basta nisso agora, para voltar a minha casa, onde minha família aguarda o meu retorno, e mantê-los seguros — a sua maior dor não deve ser a que o seu pai e a Lavínia causaram, ou pelo que possa vir a sofrer nas mãos da Amy e do Scar. Deve ser por estar longe das pessoas com quem mais se importa.
— Jasmim... Por que você me levou até lá? Eu não fiz diferença. E por que você disse que eu iria te agradecer depois?
— Bem, é que eu queria que você visse, Karen. Visse uma parte dele ser derrubada. Visse uma parte dele ser morta. Porque, agora, graças a isso, ele irá sair do buraco, e virá atrás de você — ela fica em silêncio. — Karen, é aqui o início do fim.
— O que você quer dizer com isso?
— Minha irmã foi o seu gatilho. Restará a você ser à bala.
Será...?
— Jasmim... — Ela continua me olhando, ainda sorrindo. — Desgraçada! Você botou um alvo em mim! É isso, não é?! — ela dá uma risada debochada.
— Ele achará que foi você, garota. E mesmo se souber que não foi, ainda botará a culpa em você. Pelo que a Amy falou, existe um fascínio depravado entre vocês dois — ela acha isso engraçado? — Pode confiar em mim. Ele vai aparecer.
— Vadia! Agora, mais do que nunca, ele não vai parar! Sua porra burra! Agora ele vai matar todo mundo! — ela dá com os ombros. — Você...! — não é à toa que eu não consegui lê-la.
Jasmim anda até a casa, abre a porta, entra e fecha em seguida.
Mesmo com tudo o que ela falou, ainda assim, penso em ir ajudá-la. Mas não vou. Como ela disse: eu sou à bala. Minha vida de bosta tem um alvo específico. Uma única bala para um único tiro, e eu tenho que guardá-la. E Jasmim, no fim, está certa. Eu não me importo com nada, com ninguém. Nem com ela. Nem com a minha mãe...
Nem comigo.
— Você não deveria ter feito isso, Jasmim — eu me sento nas folhas molhadas.
E do lado de fora, encostada em uma árvore, em uma digressão profunda, busco o rosto da Sarah. Busco o rosto do meu pai. Até que ouço o primeiro disparo. O segundo e o terceiro que não demoram a sair. Também ouço o seu grito.
• • •
Devo ter cochilado um pouco, pois vejo o Scar retornando.
— Ei! Scar! — assim que ele para o carro, e desce, eu pergunto o que houve. Primeiro, diz que ninguém nos viu. Depois, fala que os bombeiros apareceram cerca de dez minutos após nós termos saído; e que foram muito eficazes em conter o incêndio. Mas que não conseguiram evitar a pulverização do corpo — e da casa — ali deixado. Bem, parece que a Lavínia foi apagada do mundo e apenas os seus ossos poderão contar a sua história. E o único que vai chorar por ela será o seu maldito...
Após me responder, Scar entra na casa. Eu acabo dormindo.
Já é de manhã, e sou acordada por Scar. Devagar, por causa da noite que enfrentei, recobro a percepção a minha volta. Ele pega em meu braço, ajudandome a entrar na casa. Então, ele me fala que a Jasmim está trancada em um dos
quartos. Não foi morta, como pensou que seria, mas não terá mais a liberdade de antes. Agora, será uma peça utilizável, sem autonomia.
Menina idiota! Agora vai ter que esperar ainda mais para rever a sua família.
— Karen — ouço a minha mãe me chamar.
CAPITULO 46. POR UM BREVE MOMENTO
“Três semanas depois, quando eu já tomara a decisão de continuar sozinha, não liguei para as palavras que a Amy falou, esperando que eu continuasse a ajudála. Eu estava cansada, esgotada, irritada por ter aberto mão de agir. É claro que ser considerada uma criminosa de nível nacional era um problema, mas ficar escondida naquela casa, entre árvores ináveis, aguardando, estava me deixando louca. E, talvez, a bipolaridade fosse real, mas eu não estava nem aí.”
“Fazia mais de um semestre que eu estava desaparecida. Seis meses naquela merda e mais de um mês submersa em uma tranqueira no meio da mata. E apesar de ficar injuriada, Amy disse que eu poderia ir — se bem que pareceu querer me impedir. Mas ainda faltava algo para eu saber. Então, perguntei a ela a respeito da minha avó. Novamente, desconversou. Porém, quando eu falei que a Jasmim me contara a história do afogamento, ela ficou possuída. Gritou comigo, dizendo que eu não tinha o direito de falar nada a respeito daquilo. Que Elizabeth ser morta fora um infortúnio, e que a Jasmim era uma pirralha mentirosa. Mentiras, mentiras e... mentiras. E eu, por mais incapaz que fosse, ainda tinha certo dom jornalístico. E, cara... Aquela mulher não era mais a que eu conhecera. A que o meu pai conhecera. E eu pude ver, no fundo dos seus olhos, tudo o que a Jasmim me falara.”
“Contudo, Amy também teria que dar um tempo, já que a Lavínia era o seu único elo com ele. Por isso, precisaria retornar e planejar como viria a agir. Mas ela quis me mostrar os prós e contras da minha decisão. E, na verdade, não havia prós. Era suicídio eu tentar voltar ao mundo. O meu rosto estava estampado em todos os lugares, mais do que antes. Em Agonia, a minha pessoa ainda era comentada e não era bem-vinda. E ele ainda dera um jeito de colocar o incêndio em minha conta — bem como a Jasmim falara. Eu estava fodida por todos os lados. Porém, ouvir a Jasmim jogar todas aquelas verdades em minha
cara, igual a um interno psiquiátrico que arremessa as próprias fezes nos enfermeiros, reascendeu o meu futuro, e eu voltaria a buscá-lo por meios próprios. Voltaria a buscá-lo por conta própria. Fora isso, eu não tinha ideia de mais nada. Se as pessoas que eu conhecia ainda eram as mesmas. Os telejornais diziam que Agonia estava mudada. Será que era verdade? Bem, eu esperava que não, pois, se fosse, era um forte indicativo da merda que me esperava. Mas, mesmo assim, eu precisava voltar para...”.
“Para dar um fim em tudo.”
“Então, com as informações obtidas por Amy, um caminho pôde ser traçado, com uma linha tímida e fraca — mas já era alguma coisa. E o Scar até me deu o seu número, caso eu precisasse de alguma ajuda. Eu achei bizarra essa atitude, mas aceitei. Ele não fez nada por sua sobrinha, mas... por mim? Será que ele tinha algum apreço por minha pessoa? Bem, sim... e não. Na verdade, era a Amy quem não queria me perder de vista. Ela ainda queria me enterrar. E o seu nojo por mim só aumentara, após a morte da Lavínia. Sabia que eu não tivera relação com aquilo, mas qualquer coisa que pudesse usar era acrescida na balança de motivos para me odiar ainda mais. Apesar disso, ela me deu uma quantia em dinheiro para ajudar com a minha camuflagem. Era essencial que eu permanecesse oculta. Uma sombra isolada, sem atrever a cruzar o caminho de ninguém. Nem de um experiente policial, nem de um mendigo fedorento. Eu seria um lobo andando pelo misticismo da noite. Eu teria que transitar translucidamente, vagando por corredores estreitos, e cheios de espetos, prontos a me perfurar.”
“Quanto àquele lixo, ele não ficou contente pelo desaparecimento da Lavínia, hehehehehe! Eu soube disso um tempo depois.”
— “Graças” a Jasmim, em algum momento, ele dará as caras novamente. E, dessa vez, ele é quem será queimado.
CAPITULO 47. AGONIA...
Eu mudei o meu visual por completo, já que não posso arriscar em nenhuma extremidade. Por isso, o meu look desinteressado, de uma mulher sem vaidades, precisou ser repaginado. Tive que fazer certas escolhas, com poucas agradáveis. Os meus longos cabelos ruivos se despediram e deram lugar a um corte mais justo, que vai até um pouco abaixo das minhas orelhas; e eu tive que pintá-los. Pretos! E agora ele está escorrido, apenas repartido ao meio.
Também adotei um visual meio gótico. ei com vontade o lápis preto em volta dos meus olhos. Um piercing em meu nariz e mais três na sobrancelha esquerda; e alguns anéis toscos. Batom preto, camisa preta, botinas pretas, gorro preto, unhas pintadas por esmaltes pretos. Até um colar preto, que mais parece uma coleira, decidi usar. Calça militar preta... Enfim, tudo é preto em meu vestuário. Não tenho certeza se é assim que os góticos se vestem, mas é um estilo.
— Estar aqui, após tanto tempo... É estranho ter voltado à Agonia. E mesmo esses poucos dias... Está esquisito me acostumar.
O céu continua cadavérico e o sol permanece acovardado, com ambos sem vontade de cantar. E a cidade também mantém os mesmos carros, as mesmas lojas, as mesmas pessoas. Mas agora há algumas novidades. Temos cartazes retros, com o meu rosto estampado, colados nas paredes de tijolos rachados, nos postes de uma monotonia chata, e nas vidraças limpas das lojas. E, ironicamente, o meu rosto também está na capa do jornal em que eu trabalhava. Primeira página, ao menos.
Também tem a ronda policial mais presente do que nunca, com uma viatura surgindo a cada piscada que dou. “Atenção redobrada, olhos atentos e boca fechada”, era o que o Afonso costumava falar, alertando-me, assim que eu partia em busca de informações e me deparava com os policiais. Porém, o que me é mais nítida, na verdade, é este ar insinuante que paira por Agonia. Não sei explicar. Uma carga mais áspera se instalou na cidade, tornando-a mais ácida. Eu quase posso tocá-la, senti-la.
Este sabor é novo. É diferente.
Bem, eu precisei de certas adaptações, e uma renovação, antes de voltar. Primeiramente, eu pedi ao Scar que me providenciasse todos os recursos necessários para a mudança radical do meu visual.
— Cara, pegue este dinheiro e me arrume todas essas coisas — eu dei a ele uma lista.
— Certo, senhorita — ele ficou um pouco nervoso, com medo que a Amy o repreendesse por estar me ajudando.
Scar não demorou a obter tudo o que eu precisava. E com eles em mãos, fui dar um jeito eu mesma. E por não saber que eu tinha certo jeito com a tesoura, fiquei espantada pela habilidade que descobri ter. Realmente consegui obter um excelente resultado. Depois coloquei os piercings — doeu um pouco. O Scar elogiou a minha aparência. A sua educação era um contraste sólido em relação à Amy, que não fez questão de segurar as suas ofensas, e ficou arremessando-as em mim.
Amy...
Quanto a Amy, ito que já não tenho mais o desejo de tê-la comigo. Ter voltado a conviver com ela, durante aquele período, foi o suficiente para me fazer entender que jamais seremos unidas. Que jamais seremos, novamente, uma família.
Não há mais meios para isso acontecer.
Ter me trancafiada por seis meses foi uma demonstração dessa impossibilidade. Mas não foi apenas por isso. De qualquer forma, eu percebi que as duas mulheres, mãe e filha, em algum momento, lá atrás, já não existem mais.
Nós estamos mudadas e isso é irreversível.
Amy foi uma miragem que sonhei em acreditar que fosse real. E lá no fundo, nas partes menos infectadas, eu ainda desejava voltar a nos relacionarmos. Era uma centelha fraca, diminuta, mas era algo que existia.
E foi apagada sem despedidas.
Essa é uma página encerrada. Não irei voltar a lê-la. Não irei voltar a espiá-la. A Amy que conheci está guardada em algum lugar. Não a culpo, já que a sua queda foi causada por mim. Mas é a hora de deixá-la em paz. É a hora de deixá-la no ado.
Dentro de alguns dias, Scar conseguiu me arranjar novos documentos oficiais. Eu, então, tinha um novo nome, uma nova data de nascimento; cidade também. Deixaria de ser Karen Rose Heart e aria a ser Elisa Wolf — que droga de nome horrível!
A minha cidade natal seria uma desconhecida, e eu teria vinte e cinco anos. Não liguei para esses detalhes — dane-se de onde eu seria ou a minha idade. Scar também trouxe um carro, e me explicou o caminho para fora daquela floresta detestável. E eu pude ver o porquê de eu nunca ter achado uma saída. A floresta era uma serpente entrelaçada com intermináveis nós, impossíveis de serem desatados.
Quando eu me despedi dele, com um abraço que ele puxou, vi a sua tristeza escondida por trás da máscara. Já a Jasmim eu não pude ver, então tivemos que nos despedir com uma porta entre nós.
— Jasmim, já estou indo — disse a ela, que ainda estava trancada no quarto.
— Vai lá, Karen! Espero que você consiga o que quer! — ela respondeu, com uma voz ao mesmo tempo alegre e triste.
— Certo... Até.
— Até mais, garota!
Já a Amy não fez nenhum esforço para me dar tchau. Ficou dentro da velha casa, ajustando os preparativos para a ida deles.
“Foi assim a última vez que a vi.”
Assim que eu saí, fui seguida pelas sombras que não abaixavam a guarda. Observaram tudo o que se ava no interior daquela mata fechada. Acompanharam-me, enquanto eu partia em busca da minha liberdade condenada, em minha catártica Agonia.
E agora, eu estou aqui, onde tudo começou...
— Sei que irá terminar.
CAPITULO 48. SOFIA
Deixando Amy no ado, fiz o impensável, pois a minha intenção inicial era obter o seu perdão, não acabar com qualquer possibilidade que pudesse existir entre nós.
Sim, há mais de um ano, quando eu ainda vagava por Agonia, certa de que estava “pronta para agir”, Amy era a única luz viva que ainda brilhava, longinquamente, dentro em mim. Naquela época, eu estava iludida de que ela poderia ser a mesma pessoa, sem ter recebido nenhum dano pela morte da Sarah. Burra, talvez seja o adjetivo que me definisse melhor. Que mãe não mudaria após ar por uma merda daquelas? Ainda mais ela, que sempre fora uma apaixonada por suas filhas. Seria ilógico, e eu deveria ter enxergado apenas essa opção, ela não ter sofrido tanto quanto eu. Eu sou apenas a irmã, não tive nada a ver com o surgimento da Sarah. Foi a Amy quem a trouxe ao mundo. Foi ela quem perdeu uma filha...
— Como será que a Sofia está? — solto a fumaça da minha boca, sem pressa.
Os meus primeiros os por Agonia, como Elisa Wolf, foram tranquilos. Ninguém me parou ou veio falar merda. Esta aparência nova poderia chamar a atenção, mas este visual não é nada demais por aqui. Quanto a voltar a fumar, imaginei que conseguira parar.
— Eu estava enganada — solto lentamente mais um pouco de fumaça.
Durante seis meses, eu não tive opção. Mas agora voltei a ter, novamente, vários maços e vários isqueiros nos bolsos das calças, que, de novo, até me esqueço. Não fumo mais por razões adas, apenas voltei a ter vontade.
— Está na hora de ir — dou partida no carro.
Dessa vez, eu sou apenas mais uma na multidão. Sei que não posso abusar da sorte, pois qualquer pisada em falso, pronto! Posso ir parar atrás das grades ou condenada a morte. E as pessoas estão mais atentas, de olhos acesos, vigilantes e dispostos a encontrarem a filha maldita de Agonia. Por isso eu me mantive enfiada em um motel safado, nas duas primeiras semanas, somente traçando alguns planos — mas nada demais. E um desses planos, agora, é ir a um lugar esquecido, ou, quem sabe, ignorado. Onde espero que uma singela mulher de vinte e oito anos, de cabelos dourados e pele de leite, ainda viva.
Antes de sair, refiz a mesma rotina que adotei recentemente. Dou um tempo, olho em volta e se estiver tudo bem, aí sim, eu saio.
— Espero que a Sofia ainda seja a mesma — saio com o meu carro.
Enquanto seguro um cigarro na mão, com a outra controlo o volante.
Já faz alguns minutos que estou dirigindo por estas ruas tão familiares, mas que sou obrigada a ignorá-las. Eu as conheço tão bem que posso dizer que sou amiga delas.
— O tanto que corri por essas porcarias cheias de buracos — solto mais um pouco de fumaça. — Foi uma época interessante... — mas que está tão distante agora, que mais parece uma pintura inacabada. Mas ainda vejo um eco perdido vagando por elas. Uma imagem apagada, que não pensava em nada, apenas disposta a agir. Uma figura incisiva que olhava sempre de cima e que nunca pensou que pudesse cair. Esse eco, tão fraco e transparente, talvez, se pudesse olhar para os mesmos olhos, mais experientes, tomasse outras atitudes. Tomasse outros caminhos. Tomasse outras escolhas. E, assim, evitar toda a desgraça que o seu futuro porcamente daria.
— Você já era Karen... — jogo o cigarro fora pela janela — Enfim, estou aqui — desligo o carro. — Bem, vamos lá — espero que ela ainda me veja como uma amiga.
Apesar de ser bem cedo, dou os rápidos, já que não é bom correr riscos. Então, eu sigo até o apartamento da Sofia; vou pelas escadas. Assim que chego, bato levemente duas vezes à porta, pois não quero fazer muito barulho. Bato à porta, outra vez. Já faz alguns poucos minutos que espero.
— Sofia... — ouço a porta ser destrancada.
Ela abre, ainda com olhos preguiçosos. Leva alguns segundos para que me reconheça. Analisa de cima a baixo a mulher consumida pelo preto. Então, diz que não quer nada, e que se eu não for embora, chamará a polícia. Deve pensar que eu sou alguma maluca ou viciada — e isso é engraçado.
Não digo nada.
Ela vê que eu não sou uma estranha. Mantenho uma mão na cintura, e com a outra eu seguro uma enorme mochila. Eu a encaro com um sorriso cretino. Vê-la aqui, de novo, após tanto tempo...
Parece outra vida.
Rever a Sofia nunca foi algo que ou por minha cabeça de maneira concreta — apesar de eu pensar um pouco nisso, às vezes. Eu tinha a deixado lá atrás. Primeiro, em momentos amigáveis. Depois, em um período terrível. Ela foi a estrela guia que permaneceu ao meu lado, por mais que eu estivesse desorientada, para não dizer destruída. Gentilmente, acolheu-me em seus braços, tratando-me como uma filha. Jamais me esquecerei de como ela foi solícita e esforçada, aturando a minha presença podre e pouco simpática. Teve a paciência de um monge e a plenitude idem. Se fosse outra pessoa, tenho certeza, teria se livrado de mim, sem um pingo de compaixão. Não seria errado, pois eu merecia todo tipo de maus-tratos. Mas a Sofia não as jogou em mim. Na verdade, ela fez o contrário.
Já perto do final, quando comecei a agir sozinha, antes de ir embora, eu enojava o seu apartamento, deixando o seu banheiro um chiqueiro piorado. E a cozinha uma poço de baratas. E as roupas todas espalhadas pelo quarto. Humpf! Entendo que eu era a sua melhor amiga, mas vejo que ela, realmente, gostava de mim para ter que aturar tudo aquilo. Mas há uma história...
Uma história nossa para tudo isso.
Sofia me contou que, desde novinha, não era das pessoas mais fáceis. Na escola, as suas notas eram baixas, além de arrumar briga com todo mundo. Recebia
advertências todas as semanas da diretora, e as rasgava na cara da velha carcomida que as fazia. A Sofia não demonstrava o mínimo de respeito por ninguém — às vezes, nem mesmo por seus pais.
E como construímos a nossa amizade? Situações da vida.
Desde o início, eu sempre fui uma ótima aluna. Porém, com o tempo, e mesmo com este aspecto louvável, a minha conduta começou a deixar a desejar. Então, uma garota esnobe, com um ar de superioridade, surgira. Eu, literalmente, mandava todos calarem a boca, sem um pingo de educação, nem respeito. Inclusive os professores, quando não paravam de defecar os seus sermões em nossas cabeças. E isso até poderia ter me causado alguns problemas, mas minhas notas perfeitas aliviavam a minha barra. E a Sofia, que entrara na minha sala a partir do primeiro ano do colegial, por algum motivo escuso, interessou-se por essa figura estúpida. Sempre imaginei as suas razões para ter se aproximado de mim, pois nunca lhe perguntei, e, isso, ela nunca me falou.
Ela parecia uma cheerleader drogada.
Os seus longos cabelos dourados de boneca, o corpo de seios fartos, os olhos de céu e a pele de neve, davam-lhe uma aparência divina, mas que era estragada por seu comportamento explosivo e por suas vestimentas zoadas. Ela gostava de usar longas saias carnavalescas, com um pequeno top sobre os peitos. Era muito esquisito. E os cabelos soltos se recusavam a ficarem contidos por elásticos ou fitas.
Mas, no fundo, Sofia era uma boa menina.
Em sua primeira investida, no colégio, parou-me próxima ao pátio, com uma generosidade que não fazia jus a ela, e se apresentou cheia de cordialidades. Eu me inclinei para trás, pois me senti extremamente ofendida. Jamais eu desperdiçaria o meu tempo com uma merda daquelas, e simplesmente a ignorei.
Um tempo depois, quando eu já nem lembrava mais dela, aconteceu de novo. Fui surpreendida por sua insistência, dessa vez no banheiro. Ela se aproximou de mim, encostando os seus peitos no meu braço. Eu estava prestes a espancá-la, mas me contive, pois isso, certamente, iria me levar a um patamar que eu não pretendia. Então ela veio com um papo ofensivo a respeito das instituições de ensino. Tentei ficar calada, mas ela não parava de falar. E quando a encarei, pronta para acabar com a sua vida, eu fui atacada por algo desconhecido, que me fez recuar. Os seus olhos, que paralisavam as nuvens, clamavam por uma aceitação minha.
Por quê?
Nessa época, eu não saberia explicar como me deixei ficar abalada. Mas, com o tempo, algumas respostas foram obtidas — se bem que ainda não sei dizer se são exatas.
Nós duas éramos garotas conturbadas, sem uma luz de que isso pudesse mudar. Eu tinha a Sarah e a Amy, mas... Eu já não era mais uma criança, e já tinha certa compreensão do que eu... Mas, talvez, quem sabe, eu também quisesse...
Amy e Sarah eram as únicas pessoas por quem eu “demonstrava” algo. Mais ninguém se encaixava neste meu mundo deformado. Os meus colegas de infância jamais me significaram alguma coisa. Mas com Sofia, em um lapso de segundos, naquele banheiro, daquele colégio, pude vislumbrar algo emergir. Um intruso. Um ageiro oculto. Por vê-la como o meu reflexo? Talvez não, mas,
quem sabe...
Talvez sim.
Então, nossa identificação foi aguda e rápida.
Ela, uma esquizofrênica irritada. Eu, um vazio angustiado, onde qualquer som poderia ressoar até a eternidade. Este foi o nosso elo, ligando-nos direitinho. Dali em diante, fomos nos tornando cada vez mais... cada vez mais...
Amigas.
E, de certa forma, ajudando-nos com nossas feridas.
Sofia, finalmente, tinha alguém com quem se abrir. E... puta merda! A garota tinha muitos problemas! Ela também carregava tudo sozinha, e não à toa que parecia mais uma lunática descabelada.
A esquizofrenia a deixava transtornada, pois não aceitava esse malefício fodendo com a sua vida. E o seu comportamento hostil surgiu em meio as suas crises, mais a depressão.
Alguma relação entre tudo isso? Talvez, mas nem ela sabia afirmar.
Ter que ficar de quatro para uma doença tão dura, e sem cura, deixava a Sofia raivosa, como se fosse uma piada mortal. Não achava justo, por um sádico capricho da vida, precisar conviver com tamanho aperto em seu coração. E apesar de ser a versão mais simples da esquizofrenia, ela falava que gostaria de poder retirar isso do seu corpo, agarrando-a com as suas próprias mãos, e jogá-la bem longe. Mas era impossível. Por mais que lutasse, estava fadada a viver como uma marionete dessa perturbação impregnada. Coitada... Vivia isolada em sua casa, em sua mente. Os delírios eram ináveis. As suas emoções uma cachoeira que não parava de variar. A apatia uma praga. E ainda existiam mais sintomas malditos, além desses.
Mas tinha um que era o pior.
Ela precisava lidar com vultos intermináveis, e seres bestiais, que ela jurava ser reais. Dizia-me que era árduo, que era trabalhoso. Que nunca eram pessoas que surgiam em sua percepção. Eram sempre figuras disformes, dantescas, abomináveis, perversas.
Sofia dizia que vivia um pesadelo acordado.
Eles se comunicavam com ela, chamando-a de mãe. Falavam atrocidades que cometeriam com a sua intimidade, e que a transformariam em um animal pervertido, fazendo-a engolir até a última gota. Que arrancariam as suas entranhas, prendendo-as em seus cabelos, banhando-a com o próprio sangue. Sussurravam em seus ouvidos palavras depravadas. Uma orgia detestável, digna de uma história macabra. Sofia implorava para que parassem, mas a tortura não tinha fim. E a sua existência era tão fodida por causa dessa doença, que até se manifestava de uma maneira misteriosa. Começou quando ela tinha apenas onze anos de idade. Pelo que me contou, isso era anormal, pois deveria surgir no fim da adolescência ou na fase adulta, não em tão tenra idade.
No começo, o seu comportamento, apesar de estranho, não chamou a atenção, por isso demorou em contar aos seus pais — que também não suspeitavam de nada. Foi somente quando ela falou, por volta dos doze anos, que eles foram ver do que se tratava.
A pobre garotinha não fazia a menor ideia do que acontecia.
E de toda a merda que enfrentava, a pior foi não ter nem a sorte de ter amigos imaginários fofinhos, ou pessoas normais. Eram sempre criaturas abissais e repulsivas, de dentes pontiagudos, de línguas carniceiras e chifres animalescos. Essa mania de perseguição nunca a deixou em paz. Era uma desgraça constante em sua vida.
Os seus pais, sem muita vontade, fizeram de tudo para ajudá-la, levando-a a vários especialistas. E quando o diagnóstico foi dado, enfim descobriram os males que a atormentavam. De ali em diante, inúmeras sessões de terapia, onde sempre mentia, foram feitas. Ela também precisou fazer acompanhamento especializado, com diversos profissionais, e tomar medicamentos incalculáveis. Sofia sempre odiou tudo isso.
E a depressão também foi um infeliz infortúnio.
As mais leves ela era forte o suficiente para aguentar. Mas quando as pesadas vinham, nem mesmo o seu jeito desbocado tinha capacidade de permanecer em pé. Assim, com apenas quatorze anos de idade, Sofia poderia dizer que já vivera uns cinquenta, tamanha luta que travava.
Sempre que eu ouvia um pouco da sua história, procurava dar conselhos úteis —
mas eu era péssima. Minhas palavras eram tão retardadas, que era mais fácil eu fazê-la se matar. Nunca fui boa conselheira. Porém, ela gostava de ver que eu, realmente, tentava ajudá-la.
Felizmente, com o tempo, a nossa amizade melhorou bem a sua postura.
Parou de arrumar brigas e de ofender a todos. As suas notas subiram um pouco — mas nada demais. Já a sua aparência, que nunca me agradou, eu fiz questão de mudar. Obriguei-a dar fim nas saias espalhafatosas e começar a usar algumas mais contidas. Uma meia-calça fina e pequenas sapatilhas, na área de baixo. Ela era magra e por isso não precisava usar tanto pano assim. Os tops curtíssimos, que tampavam somente os seus seios enormes, foram embora, e uma camisa simples, e sem manga, foi minha imposição. Já os seus cabelos rebeldes continuaram iguais. Ela aceitou essas minhas sugestões com um sorriso doce pintado em seu amigável rosto.
E a Sofia também fez o mesmo comigo.
O seu maior êxito foi em me transformar — durante o colegial, ao menos — em uma garota mais... mais... Enfim... Durante um tempo, eu ei a ter um comportamento mais ameno, pois consegui deixar muita coisa de lado — mas jamais me abandonariam. A nossa amizade, apesar de forte, não foi capaz de tampar essa minha gula interminável.
“Nada era capaz.”
Amy e Sarah funcionavam de uma maneira singular. Mas a minha relação com a Sofia também era especial. Nós duas éramos uma dupla inseparável. Inclusive,
fui eu quem induziu nela — mais ou menos —, aquilo que se tornaria a sua profissão: uma pintora de retratos.
Na verdade, foi meio que sem querer.
Sarah gostava de ler livros de arte — muitos, aliás. E quando a Sofia conheceu a minha irmã — em uma tarde, se eu não me engano, em nossa casa —, ela ficou encantada com as obras contidas nos livros. Foi uma daquelas epifanias raras. Em seguida, ao tentar experimentar, descobriu um dom com o pincel e a tinta, e mergulhou com tudo nesse mundo. Mundo...
Era uma forma para ela á-lo.
amos o colegial juntas como se fossemos namoradas. E poderíamos ter sido, já que ela gostava de garotas — mas por mim era uma paixão de amigas. Sofia... Eu pude ser a âncora dela, permitindo que jamais se afogasse.
E ela também pôde ser para mim.
No meio do segundo ano do colegial, eu comecei a demonstrar alguma coisa pelo jornalismo investigativo. Nesse processo, a Sofia — quando não tinha uma das suas crises ou não trabalhava — ajudava-me a investigar casos de assassinatos em Agonia. Ela apenas me ajudava com os suspeitos, pois o seu estômago fraco não a permitia encarar a face da violência brutal, escancarada nos cadáveres estraçalhados, nas carnes repartidas e nos ossos esmigalhados. Claro, eu não a criticava, pois essa sua fragilidade tinha uma origem pesada. Por isso, eu falava que ela colaborara em grande parte.
Sim, nem tudo eram flores.
Eu pude assistir de camarote o desespero de alguém em busca de refúgio, contra os fantasmas que teimavam em ir embora. Os berros e os palavrões eram a ponta do iceberg. Era bem visível no seu corpo a carga negativa que sua doença causava. Sofia perdia peso facilmente, que até faria alguém com anorexia, fã de bulimia, desejar estar na sua pele. A sua apatia, que se potencializava, era triste de presenciar. A depressão se misturava com tudo isso, criando uma receita azeda. Muitas vezes a socorri em meus braços, tentando acalmá-la. Eu a segurava com força, como se pudesse exorcizar as sombras que a consumiam. Amy e Sarah também tiveram, algumas vezes, a infelicidade de participar desses momentos tristes.
E fomos assim, até que finalmente saímos do colégio.
Entrei na faculdade — eu já era uma promessa em Agonia, pois tinha resolvido casos difíceis. Minha fama era respeitável e digna.
Mas a Sofia também se saiu bem.
Por causa das suas doenças, ela decidiu aceitar o seu isolamento e ficar reclusa no apartamento que conseguira alugar. O seu trabalho como artista era um soco na cara dos que diziam que ela aria fome. Os seus quadros aram a enfeitar várias casas de muitas famílias — ricas, inclusive; e estabelecimentos comerciais. Isso foi consequência da sua aceitação em pintar paisagens — ela não gostava desse tipo de trabalho, mas pagavam as contas.
Até que...
O tempo que ávamos juntas começou a diminuir. Mas achávamos normal, afinal, éramos duas trabalhadoras autônomas que não tinham hora para acordar, dormir e trabalhar. Nós varávamos a madrugada. Ela, em pé, trancada no seu quarto, concentrada nas fotos que os seus clientes, que não podiam ficar parados por cerca de quatro horas, mandavam-lhe. E eu, atravessando as ruas, indo de um lado ao outro, atrás de pistas que pudessem me levar para mais perto dos desfechos das histórias.
Mesmo assim, Sofia ainda tentou manter nossos tempos áureos vivos.
Mas eu tinha retornado para o mesmo buraco que ela me retirara. Voltei a ser a mesma merda de anos atrás. A mesma merda de sempre. O meu estigma sobrepôs qualquer discernimento — que eu jamais tive — e eu fiquei totalmente envolvida com o meu trabalho.
Larguei a faculdade e fui embora de casa por causa disso.
Sofia me ligava, porém eu nunca retornava. Não tinha mais tempo para aquilo. Aquela “bobeira” adolescente ficara para trás. E então...
Tudo aconteceu.
Contando o tempo que eu desapareci, fazia quase três anos que não nos falávamos. E eu, na maior falta de vergonha, de caráter, fui bater à sua porta. E
após me “recuperar”, fiz de novo. Deixei-a para trás, e desapareci da sua vida. Porém...
Aqui estou.
Um flashback. Um déjà-vu. O mesmo filme se repete. Mas estou mudada. Não somente na aparência física... Eu, sem sombra de dúvida, estou mudada. Mas e a Sofia? O que ela ou durante esses seis anos? Será que ainda não aceita sua condição incurável? Será que ainda mantém de pé a mesma resistência (ou birra) que sempre teve, desde criancinha? Bem, a sua fisionomia é um acalanto as minhas memórias. Da última vez em que a vi, sua magreza era uma preocupação, pois a falta de apetite ainda a possuía. Já a depressão havia ido tirar férias, e isso foi bom. Porém, a esquizofrenia nunca lhe deu sossego. Mas agora vejo que está mais encorpada, até com um pouco de carne sobrando. As rugas também já aparecem em sua testa — mas ainda são bem sutis. Os cabelos enormes deram lugar a um rabinho. Os olhos oceânicos estão no mesmo lugar — mas mais saturados; os seios enormes também. A pele branquinha está mais queimada. E vejo que ainda usa a simples camisa que lhe dei na festa da nossa formatura. Que coincidência ela estar vestindo isso bem no dia em que eu volto a importuná-la.
Ela fica em silêncio, assim que percebe que sou eu. Parece assustada. Certamente, culpa dos que espalharam minha “fama”. E ela parece não saber se me abraça, dando vários beijos, ou se grita, implorando por ajuda. Na dúvida...
Sofia faz o primeiro.
Quase me sufoca com a força que usa contra o meu corpo. Ela segura minha cabeça, e os seus olhos começam a lembrar. Ela não consegue dizer uma palavra. Eu não imaginava que me receberia assim, de maneira tão carinhosa e amigável.
Vejo que a mesma Sofia ainda reside neste lugar...
CAPITULO 49
As notícias ainda não são nada animadoras.
A minha história continua firme nas pautas jornalísticas. Todo esse tempo e nenhum pouquinho de afrouxada. A sorte nunca foi minha amiga, afinal. Sorte... Aliás, eu tenho um pouco sim. Tenho a sorte do apartamento da Sofia ainda ter uma capacidade terapêutica, tão importante em minha merda de vida. Bem, talvez seja a Sofia a causa disso.
Sofia...
Vê-la aqui, agora, é um abraçar ao ado, a nostalgia.
Nostalgia...
Essa é uma palavra complexa. A sua essência é uma das melhores e piores possíveis. Ficar vagando por eventos presos no ado tem o seu charme, não vou negar. Mas, normalmente, não é tão bom quanto à ideia sugere. E estar de volta a este apartamento... De volta a Sofia...
É uma atitude arriscada.
Pois existe a possibilidade de potencializar, ainda mais, a minha angústia exacerbada, a minha autocomiseração perpétua, os meus sentimentos desgraçados e as minhas infindáveis emoções assombradas. Mas...
Não é o que eu vejo.
O que eu vejo me rodear são as leves curas que a Sofia me causa. Mas elas já não servem mais, pois não há mais o que curar. A Amy está esquecida em uma época abandonada. Sarah está morta. O meu pai está morto. Não me resta mais nada.
“Nada.”
A existência fúnebre que sou resignada a viver está travada em único ponto, em um único objetivo. Contudo, devo reconhecer essa capacidade curativa dela. Não acredito que haja muitas pessoas com este dom. Sim, a Sofia é uma raridade. Afinal, ter que viver com essas doenças de merda, sem se curvar a elas, mostra o quão forte ela é, tornando-a uma figura imensamente respeitável.
Sofia...
Será que se ela tivesse ado por tudo o que eu ei, também teria se tornado... também seria uma mulher patética? Não... Tenho certeza que não. Não é de a sua índole abaixar a cabeça por qualquer problema. Ela teria enfrentado de frente, pronta para sair na porrada. Mas eu não sou assim, muito menos...
Sou ela.
Eu não sei como é ter que viver, e conviver, com aparições incorpóreas a minha volta — pelo menos, não acordada. Apenas sei como é ter que lidar com a culpa de ter oferecido a própria irmã, em um ritual maldito, ao nefasto abisso. Eu também sei o peso de ter que se levantar todos os dias, com um desejo imensurável de extrair a própria vida. Eu também sei da vontade de dar as boasvindas ao fim do infinito.
CAPITULO 50
Estamos na sala, uma de frente para outra, sentadas nos sofás. Sofia está me encarando há um bom tempo. Será que quer situar-se melhor a respeito do que a minha presença pode significar?
— Karen... Eu... Desculpa...
— Sofia? — o que ela quer dizer com isso?
— Eu... Eu... Eu deveria ter te ajudado mais! Ter ficado mais ao seu lado! Eu... Eu... Eu não sei o que tinha na cabeça! Todos esses anos! Todo esse tempo! Nós nunca mais nos vimos! E eu sabia como você estava! Como você se sentia! E mesmo assim...
— Sofia...
— Mesmo assim eu te abandonei!
— Sofia...
— Fingi que você não existia mais!
— Sofia...
— Que merda de amiga eu sou!
— SOFIA!!! — eu não queria gritar, mas consegui fazê-la parar com toda essa maluquice. — Ei, do que você está falando?! Você não me abandonou. Fui eu quem pediu para você me deixar para trás, para me esquecer, lembra-se? Você não é uma merda de amiga. É o contrário disso. E eu também não estaria aqui se não fosse por você. Eu atrapalhava a sua vida e, mesmo assim, você nunca me tratou mal. Mas você precisava seguir em frente e... eu também. Então, por favor, não sofra... não sofra por minha causa... Não você... Não mais... — ela apenas me olha. Chora um pouco, já limpando as lágrimas. — Está bem? — forço um sorriso.
Ela diz que sim.
— Karen... Meu Deus!!! — ela se levanta, senta-se ao meu lado e me abraça ainda mais forte. Me solta e segura em minhas mãos. — Como você está?!
— Não sei responder essa pergunta — ela parece ficar triste pela voz fria que sai da minha boca.
— Quero que saiba que eu não acredito que foi você quem fez todas essas merdas. Eu te conheço e sei que jamais seria capaz de matar alguém.
— De fato, eu não tenho nenhuma relação com esses assassinatos — digo de maneira calma.
— Mas... O que você está fazendo aqui?! Quero dizer, por que você não foge para outra cidade? Outro país?
— Não é tão simples assim... Enfim, quero saber se posso ficar aqui por um tempo. Tenho algumas coisas para resolver.
Sofia parece ficar incomodada com essa proposta, já que isso pode lhe trazer sérios problemas. Refugiar uma “criminosa” daria bons anos de cadeia. Acho que ela irá recusar.
— Não sei, Karen. A polícia já esteve aqui, algumas vezes, perguntando se eu sabia onde você estava. Por isso não é seguro você se esconder aqui — eu me levanto certa de que não poderei ficar. — Mas tenho outro lugar para te oferecer.
— Hein? — fico parada pelas palavras animadas que ela fala.
— Pois é, garota! Eu também tenho as minhas paradas! Então, trate de tirar esses olhos escrotos de cima de mim! — ela sorri.
Com certeza... Com certeza, Sofia ainda é a mesma. Não quis nem perguntar a respeito do meu visual. Deve ter sacado qual é o propósito.
• • •
Será que ele sabe a seu respeito? Será que não é perigoso eu ficar?
— Não se preocupe com isso, Karen. Nada de estranho, em todos esses anos, com exceção da polícia, apareceu em minha vida. Esse homem não deve se importar comigo — sorrindo, ela diz isso como se fosse piada.
— Espero que sim.
Então, ela rapidamente troca de roupa, pega uma bolsa, mais algumas quinquilharias e diz que iremos sair.
— Vamos! Vou te levar a um lugar mais seguro — ela me conduz, segurando em minha mão, como antigamente, como amigas.
— Você continua a mesma.
— Depois, Karen. Agora precisamos ir. Você não é bem-vinda em Agonia.
— Tô sabendo.
Vamos descendo juntas, em um momento que jamais previ.
— Ainda tem medo de elevador? — ela pergunta.
—...
— Ok. Vamos pela escada, então.
Sofia, em nenhum momento, solta a minha mão. Isso me faz ficar olhando para a sua mão bondosa, imaginando por que eu nunca fiz isso com a minha...
— Obrigada, Sofia — descemos mais alguns degraus.
— Sou eu quem te agradeço, Karen.
Chegamos ao estacionamento do prédio. Entramos em seu modesto carro. Ela dá a partida e sai desembestada.
Na rua, conversamos com mais tranquilidade.
— Elisa Wolf? — ela faz uma cara de estranhamento com comicidade.
— Sim, agora este é o meu nome.
— Por que, minha filha?!
— Depois eu explico. Mas, então, você falou com o Afonso?
— Falei sim. Nós meio que fomos um atrás do outro ao mesmo tempo.
— E como ele está?
— Nada bem. Isso tudo que está acontecendo com você, fodeu muito com ele. Pobre velho... Ah! E... Karen... Sinto muito por sua amiga... a Laura.
—...
— É... Bem... Mas... E aí? Bem inteligente esse seu visual emo, hein? — sorrindo, ela me provoca. Parece querer melhorar o meu humor, e não deixar um clima ruim instalar-se.
— Você sabe que é gótico, já que era algo que você falava que curtia.
— Ainda curto, não se esqueça disso — ela se insinua, com os seus olhos atrevidos.
— Certo... E como você está, Sofia? Digo, com a sua...
— A mesma bosta! — ela me interrompe. — Bem, além de continuar com todo o tratamento, agora estou tomando alguns medicamentos mais fortes, que são mais eficazes. Por isso engordei alguns quilinhos, como você deve ter percebido.
— Percebi sim.
— Ai, ai... — ela dá uma suspirada. — E você? Saiu daquela merda suicída?
— Bem... — dou uma coçada nos cabelos. — Eu me sinto diferente, entende? E a depressão? Você ainda tem crises?
— Sim, mas é uma piada comparada com a esquizofrenia. Não está mais forte, apenas sinto, de vez em quando, uns picos de solidão e tristeza. E você matou mesmo uma pessoa e depois queimou a casa, lá em Melancolia?
— Não, né? Você não disse que acreditava em minha inocência?
— Eu estou brincando, minha filha! Está começando a perder o humor, Karen. Se bem que você nunca teve.
— Sei... Bem, voltando ao assunto, isso foi causado por outras pessoas. O foda é
que ele, eu tenho certeza, sabe disso. Mas, mesmo assim, enfiou tudo no meu rabo. Certamente, ele sabe que foi a pessoa com quem estava negociando.
— “Negociando?”. O que isso significa?
— Outra hora eu te explico — faço com a mão para seguirmos na conversa anterior. — Porém, ele não tem como incriminá-los. Por isso, para variar, sobrou para mim.
— Que dureza, hein?
— É, pois é — ficamos em silêncio por um tempo. — E os seus pais? Como eles estão?
— Sei lá. Faz tempo que eu não os vejo, ou converso com eles. E a sua mãe? Viu ela? Soube de algo?
— Não. Não faço a mínima ideia de onde ela possa estar. Para que lugar você está me levando? É algum esconderijo?
— Mais ou menos — que jeito de falar mais enigmático.
— Sei... É onde você pode cheirar o seu pó? — pergunto normalmente, mas ela recebe um baque violento. Também perde um pouco o controle do carro. — Errr... — acho que dei os a mais. — Desculpe falar assim, tão naturalmente
— eu faço um afago em seus cabelos. — Foi mal, Sofia. Não quis te ofender.
— Bem... — ela dá uma pigarrada. — Primeiro: não sei como você soube disso. Segundo: eu não sou uma cheiradora de pó. Já me livrei disso, há bastante tempo. Na verdade, foi apenas uma fase. Eu estava...
— Tudo bem, Sofia. Isso não me importa, e não estou aqui para julgá-la — interrompo-a. — Só quero saber para qual lugar você está me levando.
— Você está impaciente, Karen! — ela faz um bico engraçado. — Mas, antes, obrigada pelo cafune — agora, dá um sorriso bondoso. — Bem, é simples: vou levá-la até a minha outra casa.
— “Outra casa?”. Não sabia que você tinha condições de comprar propriedades. O seu trabalho nunca foi dos mais rentáveis.
— Hahahahahaha! Isso é verdade! — ela dá um divertido sorriso. — Mas ouve essa. Acontece que uma velha, prestes a morrer, deu essa casa para mim, após um trabalho que eu fiz.
— Uma casa? É sério mesmo?
— EXATAMENTE! Foi o seguinte: essa velha queria que eu pintasse um retrato do seu marido já morto, mas ela não tinha nenhuma foto para que eu pudesse usar como referência (não me pergunte como). Então, por meio da descrição que ela fez, eu consegui fazer o retrato dele. E ela ficou tão emocionada com a
pintura que decidiu me pagar com uma... CASA?! Sim, achei suspeita, afinal ela poderia me pagar com dinheiro. E quando perguntei o porquê, ela veio com uma história de que não tinha mais ninguém, e que queria deixar o lugar em que havia conhecido o seu amado para a pessoa certa, foda-se e não sei mais o que! — Sofia continua gostando de falar. — Não sei por que ela pensou que eu seria a pessoa certa. Mas, enfim... Após eu consultar um advogado, e ver que não havia nada demais, aceitei de braços abertos. Afinal, né? Era uma casa, porra!
— Que história... Mas a polícia nunca olhou por lá, após terem ido conversar com você?
— Foram sim. Mas o lance é que eu a vendi para uma antiga namorada. Hoje, ela mora fora do país, mas me deixa usar a vontade. Ou seja: não está mais em meu nome, mas no de outra pessoa com quem eu, teoricamente, não me relaciono mais. A polícia jamais irá pensar em te procurar por lá! — ela dá uma piscada para mim. Garota boba. Mas é uma boa lógica.
— Parabéns por ter pensando em tudo isso tão rápido — ela me olha e sorri. — Mas... tem certeza disso? Como sabe que a polícia não te vigia?
— Não tenho como te garantir isso, Karen. Mas, até agora, não vi nada de estranho nas filmagens de segurança do meu apartamento e da casa da minha ex.
— Bem, eu também não encontrei nada suspeito nos arredores do seu apartamento.
— Viu? É como eu falei. Não se preocupe. O lugar é calmo, sem vizinhos chatos em volta. Você vai poder ficar tranquila, planejando as suas maluquices.
— Você não leva a sério, não é mesmo?
— Foi mal, Karen. Mas parece bravata.
— Espero que você não esteja por perto quando... — ela fica calada ao perceber em minha voz uma verdade sombria. Mudo de assunto. — E quanto ao meu carro?
— Não se preocupe. Depois trago para você. Agora, vamos: Por que Elisa Wolf?
— Depois eu te explico.
— De novo esse papo?!
O restante da viagem é de assuntos descompromissados. Parecemos às mesmas adolescentes de antigamente. E a Sofia continua cheia de palavrões em seu repertório. Mas ela está mais leve, mais sossegada, mais animada. E ela envelheceu bem. Escolheu caminhos certos. Fez escolhas corretas. Eu, por outro lado, só fiz escolhas erradas.
Chegamos. Saímos do carro e entramos na casa.
Casa, aliás, que é bem confortável. Sofia deve se empenhar em deixar tudo bem
arrumado, mesmo sem ter mais uma relação amorosa com a Kanami — com esse nome deve ser oriental. Parece-me que a Sofia ainda tem sentimentos por ela, apesar de ter negado quando eu perguntei.
Já ouvi dizer que muitos relacionamentos quando terminam cada um vai para um lado, evitando manter contato. Mas com elas, Sofia disse que não é assim. Por mais que não tenham conseguido ficarem juntas, fizeram questão de manter a amizade. Acho que isso é um o a se considerar, já que, penso eu, tudo pode ir para o esgoto, se não houver cuidado. E a Sofia fala dessa tal de Kanami com tanto respeito e consideração. Nunca a vi com essa gritante paixão. Mas o engraçado é que, quando jovens, éramos contrárias a ter uma vida a dois.
Eu nunca tive isso... Eu nunca tive ninguém.
Agora, vejo que ela quer, de verdade, construir uma vida saudável ao lado de outra pessoa. Kanami ainda é a sua maior esperança — mas acho que há poucas chances de isso acontecer. O término partiu dela, que estava mais interessada em trabalhar e morar fora do país. E a Sofia, mesmo triste e chateada, aceitou o rompimento.
E isso também foi uma surpresa para mim.
Eu gosto dessa nova mulher que sabe bem o que quer da vida. Gosto, pois ela ainda é a mesma, e pôde se tornar melhor do que era. Ela pôde se tornar uma versão melhor de si. Ela pôde se tornar algo que eu jamais irei ser.
PARTE FINAL
CAPITULO 51. PROMESSAS
Já faz seis meses desde que voltei à Agonia. Seis meses correndo atrás de uma sombra. Correndo atrás de uma lembrança vazia.
Mas certas coisas aconteceram nesse tempo — para o bem e para o mal. Inclusive, uma boa é que a Sofia é realmente uma amiga excepcional, sempre disposta a ajudar. E foi o que ela fez, durante esse tempo que ou. Pois, nesses meses de investigações, onde eu obtive um pífio resultado, ela foi mais bem-sucedida do que eu.
Sofia, em certo dia, “por acaso”, enquanto voltava do mercado, deparou-se com Josef, um investigador de uma agência nacional. Isso poderia soar como um problema, pois um cara desse porte rondando por aqui, logo me acharia. Mas, para minha sorte (finalmente), ele não tinha certeza do meu envolvimento nos assassinatos.
Mas estou me adiantando.
Josef, então, aproximou-se dela, de maneira despretensiosa. Sofia, mesmo em alerta, falou que era uma antiga amiga minha — ele já sabia, mas fingiu não ter conhecimento. Disso, os dois criaram uma “amizade”. Ela expôs a sua visão a meu respeito, sem deixar margem para dúvidas. E Josef, um homem já com os seus quase cinquenta anos de idade, e uma vida imersa nos casos mais trágicos que este país já presenciou, pôde ver que as palavras dela eram verdadeiras.
Eu, por outro lado, não o vi com bons olhos.
E quando a Sofia veio até mim para perguntar se podia trazê-lo para me conhecer, eu quis espancá-la.
— Que merda você tem nessa sua cabeça?! — disse a ela, gritando. Eu presumi que ela estava sendo enganada e usada para que ele pudesse me achar e, obviamente, prender. Eu também disse que ela tinha uma ingenuidade ridícula, de criança, e que merecia ter sido abandonada pela Kanami.
Isso foi o estopim para uma discussão pesada.
Fui chamada de pirralha de merda, retardada homicida, assassina de crianças e de uma bosta infeliz e patética. Nunca ninguém usou tantas ofensas contra mim. Quase saímos na mão, mas fomos interrompidas por Josef.
Ele a seguiu.
A minha reação foi de querer avançar nele. Ele já é quase um idoso, e eu poderia tê-lo derrubado. Mas não fiz.
Foi estranho...
Durante esses poucos meses que ei andando por Agonia, relembrando o que eu jamais tive, pude conversar com várias pessoas que detestavam ouvir o meu nome. A ojeriza que tinham — e ainda têm —, por mim, pelo que a minha origem representava à cidade, multiplicou-se muito mais — eu sabia que eles se esqueceriam de que eu “melhorara”. Fui chamada de porca fedorenta, psicopata vagabunda, vadia imprestável. O melhor foi quando um senhorzinho se referiu à “Karen”, dizendo que ela era amante do maníaco. De qualquer jeito, todos queriam o meu fim.
Mas Josef não.
Ele apenas ficou me encarando como se esperasse por uma reação minha. E eu olhei em seus olhos, aguardando que ele fizesse o primeiro movimento. Já a Sofia se intrometeu entre nós. Não sabia se tentava me manter no lugar ou se repreendia Josef por tê-la seguido.
Quando ele fez de avançar em mim, retirei uma arma da minha cintura e apontei para ele. De mãos levantadas, ele começou a discursar, dizendo que não pretendia me levar, e que acreditava em minha inocência.
— Mas eu não posso arriscar! — eu falei. Sofia me pediu para abaixar a arma, mas a ignorei. — Sou capaz de tudo para não ser presa! Até mesmo enfiar uma bala na sua cabeça! — disse a ele. Sofia se afastou quando percebeu que eu falava sério.
Apesar do meu aviso, Josef começou a avançar. Então, eu disparei um tiro.
— O próximo será em você! — falei para ele.
Não sei se isso já acontecera com ele, mas pude ver que ele tinha certeza da minha ameaça, por isso refutou em continuar.
Eu estava em uma situação inesperada.
Olhei para Sofia com raiva, pois ela seria a responsável por me forçar a fazer algo que eu não queria. E ela pôde ver, e entender, o que os meus olhos diziam, e implorou para que eu não fizesse. Contudo, quando voltei à atenção para o Josef, ele já estava em cima de mim, derrubando-me no chão. Não consegui me soltar, pois a sua força e peso eram demais. E eu pensei que poderia derrubá-lo.
Ignorei os seus pedidos de calma, que diziam que não iriam me levar. Eu fiquei histérica. Um animal enjaulado. Tentei me soltar de todas as maneiras possíveis, mas não consegui nem arranhá-lo. E cansada do meu esforço inútil, pude escutar as suas palavras. Josef voltou a repetir que acreditava em minha inocência e que eu fora incriminada, e que estaria disposto a me ajudar. Eu o encarei ainda em dúvida com relação a sua oferta. Sofia pediu para ele me soltar, e o Josef fez de imediato. Mas eu precisava de algo a mais para confiar nele.
— Palavras são vazias — eu lhe disse.
— Eu também penso assim — ele respondeu.
“E outras pessoas ressurgiram em minha vida.”
Após algum tempo, outros dois seres voltaram a me ver.
Afonso foi o primeiro. O desgraçado me reconheceu, apesar de eu estar com a aparência diferente. Quando ele me contou, parecia não acreditar que era eu mesma com quem ele conversava.
Foi em um dia chuvoso, à tarde, próxima ao jornal em que eu trabalhava. Eu andava por lá, esperando a Sofia, que sairia da casa de uma cliente.
Na rua, eu o vi saindo do seu clássico carro, mas me mantive tranquila, certa de que não me reconheceria. Sofia chegou, entramos no veículo e fomos embora. Porém, Afonso não ficou parado.
Ele falou que me reconhecera no momento em que me viu. E falou que só não conseguiu correr até mim por que ficou paralisado. Mas com medo de me perder de vista, ele deu um jeito e fez o seu velho corpo se mexer. Entrou no carro e nos seguiu.
E nesse mesmo dia chuvoso, enquanto eu jantava, e fumava, alguém tocou a campainha. Fiquei alarmada, pois não era normal alguém aparecer por aqueles lados. Mesmo assim, eu ignorei, na esperança de que, quem quer que fosse, pararia e iria embora.
Mas isso não aconteceu.
O cara deve ter ficado uns vinte minutos tocando a campainha. Claro que achei
muito suspeito, pois mais ninguém sabia a meu respeito — só se fosse um vendedor muito obstinado. Por isso imaginei se não era...
Ele.
Fui até os monitores para dar uma olhada no persistente visitante. Mas não consegui vê-lo, pois ele usava um guarda-chuva grande, que o escondia.
Então, fiz o óbvio.
Peguei a minha arma e caminhei, sem fazer barulho, até o portão da casa. Com a certeza de que era aquele lixo, eu estava pronta para matá-lo. Porém, resolvi perguntar quem era. E foi aí que tudo se revelou.
— Karen...?! Karen!? É você, Karen?! — eu fiquei imóvel. — Meu Deus, Karen! É você mesma?! Por favor! Deixe-me entrar! — então, percebi que não poderia mais ignorá-lo.
O Afonso, mais uma vez, retornara para minha vida.
Sabe, desde que eu era uma garotinha, esse cara parece me rondar. Quase não o via. Quase não nos falávamos. Talvez, apenas em situações, digamos... específicas. Normalmente, quando ele ia visitar o meu pai. Ou, depois, quando comecei a trabalhar para ele. Independente de que forma, ou em que situação, ele sempre surgia para me ajudar, e para honrar a sua amizade que tinha com a minha família.
“O segundo a surgir foi uma surpresa inesperada.”
O próximo a me ver foi o Mark, que veio, “coincidentemente”, após eu ter mencionado à Sofia a respeito dele. Essa mulher tornou-se uma baita de uma fofoqueira. De qualquer forma, Mark pôde, enfim, descobrir quem eu era...
Quem eu sou.
Ele ficou surpreso com a minha história. Mas não falou nada a respeito. Não deveria querer me acusar. Não deveria querer me magoar. Não deveria querer me fazer lembrar com o que eu vagava.
Bem, mas foram poucas as ocasiões em que ele apareceu, pois sempre dizia que tinha muito trabalho no hospício. Porém, em uma das vezes que veio, perguntei a respeito da mãe da Alícia, e ele respondeu dizendo que ela demonstrara uma melhora considerável.
Parara de gritar e chamar pela filha.
Também pude notar a sua aparência mais desgastada. Ele dizia ser consequência das noites perdidas que sempre dedicava ao trabalho. Mas ele continuava satisfeito por poder ajudar, de alguma maneira, as mentes atormentadas que estavam presas naquele lugar.
Já as nossas conversas, normalmente, não giravam em torno dos meus
problemas. Eram mais casuais. O que tínhamos almoçado. Quais músicas estávamos ouvindo. O que estávamos lendo. Até perguntei se Max, o segurança gordo, ainda trabalhava por lá. Mark ficou surpreso por eu ainda recordar o nome. Eu disse que jamais esqueceria, pois era uma porcaria.
Agora, o que mais chamou a sua atenção, segundo o que ele mesmo me disse, foi que eu estava muito melhor, e que em nada lembrava a mulher deprimente que aparecera no hospício. Que os meus olhos tocavam com vontade as cores que existem no paraíso. E que o meu sorriso conseguia apreciar os sabores que fazem as estrelas dançarem em um divertido ritmo.
— Do que você está falando? — eu, com uma cara toda estranha, perguntei a ele. — Olha só a minha aparência! Pareço uma palhaça toda pintada de preto! Não posso nem ser eu mesma!
— É o que eu acho, querida — foi o que ele se limitou a dizer.
Ficamos nos olhando.
Eu, com uma cara toda torta, esquisita, confusa. E ele, ivo, sereno, sem nenhuma culpa. Mas eu não dei sequência nessa conversa. Era tão absurda, tão incoerente, tão irreal, que eu não quis continuá-la.
De onde ele tirou essa ideia?
Porém, quando eu já estava me habituando com as suas escassas visitas, e o fato
de ele continuar a me chamar de querida, a vida achou melhor dar um basta. Um infarto fulminante foi a causa da sua morte — na sua casa, veio assim, do nada. Mark tinha setenta e quatro anos quando partiu desse grande labirinto e desapareceu do mundo.
O funeral foi pequeno. Alguns funcionários do hospício, e nenhum familiar, foram ao velório. Mark nunca se casou; também não teve filhos. Ele não queria causar em ninguém, e nem sentir novamente a mesma dor que sentiu ao perder sua mãe. Era um sinal de covardia? Provavelmente sim. Mas, sei lá... Não deixa de ser um motivo.
E aqui estamos...
No seu enterro, Sofia, Afonso e Josef estão afastados, apenas observando a minha despedida — os demais que vieram já foram embora.
Mark...
Eu não sei dizer o que foi a nossa relação. Amizade? Não. Coleguismo? Com certeza não. Então, o que nós fomos? O que nós somos? Talvez, um desses casos inexplicáveis da vida, onde uma ligação surge independente de tudo. Seja do breve tempo de convívio ou por uma falta de sincronia.
— Mark, o dia continua escuro, e o céu cheio de nuvens. Acho que vai chover. E o vento agitado não para de soprar com força. Mas você não pode ver mais nada disso.
Com exceção dos três, e algumas poucas pessoas espalhadas por este cemitério, permaneço aqui, sozinha, diante deste túmulo. Diante deste símbolo do fim.
É a primeira vez que eu faço isso em muito tempo.
Não me lembro da última vez em que fui visitar o meu pai. Eu devia estar na escola ainda. É... Acho que sim... Apenas sei que nunca mais retornei, após a Sarah ser... Eu não conseguiria evitar olhar para o lado e ver que ela também estaria ali, parada, quieta, imóvel...
E tudo por minha causa.
Por isso, também sobrou para o meu pai. A minha covardia me fez esquecer que aquele lugar existia. Que aquele lugar existe. Mas eu deveria ter tentado. Eu deveria ter tentado mais. Mas...
Sarah...
Eu sentia tanto medo de olhá-la sob o infindável da sua cama eterna. De lembrar que ela ainda tinha muita vida para viver. Muita luz para brilhar...
Muito amor para receber.
Irmã...
— E agora estou aqui, Mark. Neste cemitério desconhecido, por sua causa — sendo abraçada por uma tristeza que baila no ar, e que saboreia a infelicidade e a dor que estas ocasiões criam. — Estou aqui, diante de um... de uma pessoa que ei... ei a... — digo, sem saber o que pensar, olhando para o túmulo. Túmulo que enfrento há várias horas. Sofia, Afonso e Josef devem estar cansados. Não sei por que não vão embora. — Acho melhor avisá-los para irem logo. Não há por que...
“Memórias... Lembranças... É incrível como elas reagem ao menor sinal que as instigue. São rápidas, egoístas. Não perguntam nada e já se põem a frente de tudo, invadindo qualquer espaço que possa existir. Confundindo o nosso ser, a nossa insignificância. Intercalando o nosso antes com o nosso agora, infectando o que queremos ser depois. Sei lá por que elas fazem isso, mas... sim... Foram elas, naquele dia, naquele cemitério, que me disseram que ele retornara... Retornara para mim.”
Sensações antigas voltam a me comer. Eu tremo. Sinto uma tensão percorrer, e contorcer, o meu corpo. Os meus ossos suplicam para que pare. É estranho, desconfortável. Minhas entranhas borbulham, cobertas pelo nojo, pela repulsa. Minhas tripas deslizam uma sobre a outra. O ódio enraizado, primal, feroz, que me preenche há anos, levanta-se com um ímpeto assassino. A minha respiração fica falha. As sombras voltam a me consumir. Enfim, os sinos do tempo são tocados pelo nada. São tocados pelo vazio. São tocados pelo abismo...
São tocados para mim.
“E quando eu o vi, entre duas árvores, próximo aos túmulos mais sofisticados, compreendi que estávamos diante do fim.”
Eu babo igual a um animal selvagem. Encurvo-me em posição de ataque.
“E, então... Ele sorriu.”
Estou fora de controle.
Enquanto eu corro em sua direção, a vida se aquieta, fica tensa, insegura. Tem medo do que está por vim. Os sons da natureza deixam de existir. Ajo inconscientemente, igual a uma máquina programada para o combate. A morte do Mark? Já não importa mais. Jamais importou.
Nunca imaginei que eu pudesse correr tanto. Mas quando um carro corta o meu caminho, ele já não está mais lá. Desapareceu. Uma miragem? Ilusão? Não! Senti a sua presença! Vi os seus olhos! Não estou perdendo o juízo!
Os três vêm em minha direção.
— Karen! O que houve?! — Sofia pergunta. Não a respondo, ainda estou arisca, ofegante. — Ei! Karen!?
— Karen! O que houve? — Afonso também pergunta.
—... — continuo procurando-o.
— Karen? — Josef, mais calmo.
—... — preciso achá-lo.
— Karen, cacete! Que merda aconteceu?! — Sofia fica zangada.
— Nada... — já sei o que fazer.
“Jasmim estava certa.”
Essa aparição... Ele sempre foi cauteloso, meticuloso. Então... Lavínia.
— Preciso ir — digo, e volto correndo para o meu carro.
Os três reagem.
— Karen...? Ei! Ei! Karen! Espera! — mas Sofia, gritando, é a única que vem atrás de mim. Não a impeço. Entramos no veículo. Dirijo com o pé fixo no acelerador. — Caralho, Karen! Vai devagar! — ela, assustada, olha para o meu rosto aflito. — Karen! Mas que merda está acontecendo?!
—... — tremo tanto, com o coração saindo pela boca, apenas pensando em como irei matá-lo, que não consigo respondê-la.
O celular da Sofia toca.
— É o Josef — mas ela não atende. — Meu Deus, Karen! Vai mais devagar! — continuo em silêncio.
• • •
Chegamos. Desligo o carro, mas não desço ainda.
— Karen! Você não falou nada! Vai explicar que merda está acontecendo com você ou não?! — a Sofia está extremamente irritada.
— Sofia... Sofia... — começo a retornar aos poucos. — Sofia, preciso que você fuja! Agora! — saio do carro e ela vem atrás.
— Karen!? Ei! Karen!? Do que você está falando?! Como assim fugir?! — ela está mais agitada do que eu.
Destranco a porta. Entramos na casa.
— Apenas me ouça! Pegue as suas coisas e vá o mais longe possível! — atordoada, eu tropeço nos móveis, e caio algumas vezes.
— Karen! Vá com calma! Você parece que enlouqueceu!
— Eu não estou louca, Sofia! Apenas me ouça e suma daqui! — ela me olha totalmente perdida. — Ele voltou Sofia! É isso! Eu o vi, lá no cemitério! Ele estava no meio de algumas árvores, olhando... olhando... olhando para mim! — fico arrepiada. — Desgraçado! — vou até o meu quarto. Sofia vem atrás.
— Espere! Ei! Karen! Como assim?! Como assim “ele voltou”?!
— Estou falando que ele voltou!
Entramos no quarto.
— Não estou entendendo, Karen!
— Sofia, vê se me escuta! Você não está prestando atenção, porra?!
“Sofia não estava.”
— Ele quem, Karen?!
— Ele, Sofia! Ele!
— Karen, era uma área grande, e bem aberta. Então, acho que nós o teríamos visto, não acha?
— Não mesmo, Sofia! Eu o reconheceria em qualquer lugar, de qualquer maneira! E já faz tanto tempo... Finalmente... Ele... Ele está aqui...
— Karen... — sua voz é de preocupação. — Tem certeza do que você está falando? Talvez seja sua tristeza pela morte do Mark.
— Esqueça isso! — por que ela não acredita? — Era ele, Sofia! Eu sei que era ele! — enfatizo, mas, cada vez mais, ela parece desacreditar em minhas palavras.
— Calma, calma. Veja, eu vou ligar para o Josef, ele irá saber o que fazer — ela liga, mas Josef não atende. — Ué...? Bem, vamos ver o Afonso, então — também não atende. Começo a pegar minhas coisas. — Caramba! Não estão atendendo! — sem opções, Sofia diz que irá pessoalmente falar com eles.
— Não mesmo, Sofia! Você perdeu o juízo?!
— Eu perdi o juízo?! Tá de sacanagem, Karen?! Olha só você!
— Não vá!
— É claro que vou! Preciso ver se eles estão bem! É estranho não atenderem.
— Você está de brincadeira?!
—... — quieta, ela me olha com... medo?
— Esquece! Já era, Sofia! Ele os pegou! — sei que os pegou! — Agora, por favor, me ouça! Fuja daqui! — ela me olha com um semblante que jamais vi em seu rosto. — Por favor, Sofia! Vê se me ouve! Eu te imploro para que vá embora, agora!
Sabe, em todos esses anos de amizade, ela nunca viu este meu lado abstrato, deformado. Esta mistura de covardia com insanidade. A minha fisionomia parece estar deixando-a transtornada. E a minha voz, ora aguda, ora gutural, conseguindo espantá-la.
Eu agarro com força os seus braços.
— NÃO!!! — ela grita. — Anda, Karen! Me larga! — eu solto ela, que cai. — Porra! O que há com você?! — honestamente, ela tem motivos para pensar que eu possa estar tendo alguma crise.
Ela se levanta e eu tento segurá-la novamente, mas não consigo. Ela fica me encarando. A sua boca está aberta, e os seus olhos desorientados.
— Tá... Tá bom... Tá bom... Karen.
— Sofia...?
— Mas... acho que é melhor irmos vê-los. Pode ser que alguma coisa tenha acontecido com eles.
— Esqueça-os, Sofia! Preocupe-se contigo, merda! — ela se assusta, dando os para trás. E com uma das mãos sobre o seu coração, ela me olha abismada.
— Como você pode falar isso, Karen?! Eles são os seus amigos!
— “Amigos?”. Humpf! Não seja ridícula!
— Karen...?
— Eu preciso pensar...! Sair daqui...! Eu preciso...! — estou desnorteada.
— Karen...
— Eu preciso...! Sair...! Preciso sair daqui...! — não paro de tremer.
— Karen... NÃO!!! Eu vou ver se eles estão bem! — ela sai correndo.
— Não! Sofia! Não! SOFIA!!! — não vou atrás dela, pois não há tempo para isso. — Sofia... Não... — eu a ouço dar partida no carro e sair. — Sofia... preciso... ir... — não consegui impedi-la.
CAPITULO 52. MORTE
Sofia, assim que saiu da casa do Josef, e não o encontrou, decidiu ir até a residência do Afonso. Chegando lá, ela já foi entrando na casa, que estava toda escancarada. Sem estranhar nada, chamou por Afonso — e por Josef, na esperança de que ele também estivesse —, mas ninguém respondeu.
— O Afonso disse que sua família está viajando. Acho que vou ligar para eles, então — Sofia sai procurando por algum contato deles. — Aqui não tem nada. Vou lá em cima para ver. Se eu não encontrar, acho que posso perguntar para algum vizinho e... — de repente, tudo fica preto e sua consciência é apagada.
Assim que acorda, Sofia se vê nua, e amarrada em cima de uma mesa de metal gelado, com as pernas e os braços esticados; e com uma mordaça na boca.
A luz vermelha, demoníaca, é insuficiente para iluminar o lugar. E sem conseguir compreender nada, mais a lâmpada que balança sobre o seu corpo, Sofia tem dificuldade para reconhecer qualquer coisa.
Do lado de fora, o silêncio aterroriza qualquer sinal de esperança, qualquer possibilidade de vida. Já dentro da casa, Sofia, olhando em volta, consegue notar duas pessoas. Ela vê dois homens sentados em cadeiras frias — também de metal. São Josef e Afonso. Também amarrados, nos pés e nas mãos, e com mordaças em suas bocas, apenas podem se comunicar com os olhos.
— Olá! — o psicopata a cumprimenta.
Sofia até tenta entender o que está acontecendo — mas não tem tempo. Pois a faca que perfura a carne da sua perna esquerda a faz esquecer tudo. E a pobre artista até tenta gritar, mas a mordaça a impede. Então, acontece de novo. E mais uma vez. E outra. E mais outra. Outra, novamente. Ele a dilacera sem a menor piedade. Sente prazer. Fica excitado. Ri. Já Sofia apenas pode aceitar a dor e tentar á-la.
Quando ele retira a mordaça da boca, Sofia implora por sua vida, gaguejando, afogando-se em suas lágrimas.
“Nossa! As pernas dela estão com buracos muito profundos! Bem, mas ela pode sobreviver se for levada a um hospital”, é o que ele diz aos dois, enquanto se excita com as súplicas dela.
Ele está gostando de torturá-la, mas, por compaixão, por ela ter sido uma ótima amiga, tendo ajudado a “doce Karen”, diz que irá matá-la para acabar com o seu delicioso sofrimento.
E quando a lâmina percorre o macio pescoço, fazendo jorrar sangue em sua face, ele se deixa aproveitar o momento sublime, saboreando cada milésimo da morte bem-vinda, e bebendo cada gota do elixir da vida, que vaza pela jugular rasgada.
Sofia, por sua vez, não pode fazer nada, restando, apenas, morrer.
No desespero enlouquecedor, Josef e Afonso tentam se soltar, de todas as maneiras possíveis. Quanto a ele, ainda não finalizou com a Sofia. Ele sai do cômodo e volta segurando um machado robusto e um grande cutelo afiado; e também vestindo um avental de açougueiro. E assim que começa, o monstro faz Afonso e Josef assistirem a sua ópera do inferno.
Terminado, os pedaços frescos são estocados em um freezer que tem por lá. Após guardá-los, ele para em frente aos dois, leva a mão ao queixo e tenta descobrir quem será o próximo. Aponta o dedo, brincando, indeciso sobre quem será o “felizardo”. E nessa loucura, os dois ficam transtornados. Suas cabeças giram, gritam, choram, imploram, pois não querem morrer. Por fim, com uma piada sem graça, Afonso é o escolhido — e não terá a mesma “sorte” da Sofia.
Já Josef, disposto a sobreviver, percebe que suas algemas (feitas de corda?), cada vez mais, ficam frouxas, conforme as força, e se empenha em rompê-las. Josef conseguirá, mas não sem repetir a refeição oferecida por ele.
Enquanto isso, Afonso é espancado igual a um animal de rua por um bêbado miserável. Sem a mordaça na boca, os seus dentes são cuspidos aos montes. O seu olho esquerdo salta e os dedos das suas mãos são quebrados. Mas o seu azar foi não ter perdido a consciência, porque depois de meia hora sendo socado, chutado, furado, Afonso é amarrado igual à Sofia. Ele também ará pelas mesmas experiências.
Sim, ele está mais bruto com o Afonso, sem a delicadeza que teve anteriormente. Mas antes de finalizá-lo, ele se lembrou de algo. Arrastou Josef até próximo à mesa de operações para ter certeza que o seu brinquedo não perderia nada. Como garantia, usou um ório para manter os olhos do investigador abertos. Ele havia se esquecido de utilizá-los na vez da Sofia. Sorrindo, chamou-se de idiota por isso.
Bem, dessa vez, a sua ferramenta de trabalho é uma motosserra. E por algum tipo de milagre desgraçado, Afonso aguenta perder uma perna. Mas, após isso, vai-se embora. Contente, ele irou a resistência do homem velho, dando-lhe os parabéns.
Terminado, ele repete o mesmo procedimento e estoca tudo no freezer. “Todos os pedaços serão largados pela gloriosa Agonia!”, é o que ele fala, declamando. Sem nenhum respeito, nem dignidade, ele os esquartejou como se não fossem nada.
Agora, a sorte do Josef é que o psicopata está distraído, finalizando a sua arte. Mais um pouco e está quase liberto. Mas sem querer ser pego no ato, após romper as cordas das mãos, finge ainda estar amarrado.
O maníaco não vai demorar muito mais. Josef, então, começa a soltar as das pernas. Só mais um pouco e... Mas prestes a livrar-se, tem o azar de ter um dos seus braços quebrado, por causa do chute que ele desfere, apenas por achar engraçado. Mas essa dor latejante não é capaz de impedi-lo de romper as cordas.
Ele, que voltou a mexer nas suas ferramentas de trabalho, assim que vê o seu brinquedo livre, crava-lhe uma faca no ombro, na parte de trás. Mas Josef consegue se virar e acertá-lo com uma joelhada. Ele apenas ri, de joelhos, sem levar a sério a fuga da sua presa, que sai desesperada.
Sofrendo, Josef é perseguido em silêncio, caçado como um animal aterrorizado. Lutando por sua vida, ando a dor do seu braço quebrado, e da sua carne perfurada, precisa usar toda a sua expertise para fugir da fome da fera que o caça.
Josef está no meio de uma floresta escura, de árvores negras com troncos grossos, e com muitas folhas esparramadas pelo solo, e com um psicopata em seu encalço. É no interior da Floresta Negra. Josef não a conhece, mas a adrenalina lhe dá condições para seguir correndo, até encontrar uma saída.
Após correr muito, Josef consegue se safar. Encontra uma estrada e vê um carro ando. E Josef, que por alguma razão ainda está com a sua identificação federal, consegue obrigá-lo a parar. Ele entra no carro, sem coragem de olhar para trás.
CAPITULO 53
Eu saio da casa e volto dirigindo possessivamente para a cabana do meu pai — que ainda está em posse dos Elric Gillian.
— Merda, Sofia! — respiro de maneira acelerada.
O meu celular toca.
— Quem será? — atendo.
Ele sobreviveu.
— Então... você está vivo — Josef começa a falar, alucinado, implorando por ajuda. Digo onde me encontrar. Ele desliga.
Eu chego à cabana. Minutos depois, Josef surge todo disforme, assustado, exausto e suplicante. Eu nunca imaginei, e acredito que o próprio Josef também não, que ele poderia ficar assim.
Graças ao pouco de conhecimento medicinal que me foi ensinado, e uns itens
que há por aqui, consigo estancar o sangramento, dar uns pontos no corte, e imobilizar o braço quebrado.
— Não ficou tão bom, mas por enquanto é isso — então, ele me conta o que enfrentou...
E como sobreviveu.
— Karen... ele os repartiu... Karen... — Josef treme todo. — Com um... sorriso? Enquanto os ossos... e a carne... eram... eram... fatiados...
Sofia... Afonso...
— Merda, Sofia! Mas que merda, Sofia! — não acredito que ela se foi.
Esse terror que o Josef sente eu já conheço. Josef, aliás, parece que foi consumido. Nunca deve ter vivido tamanha brutalidade em seus vinte e cinco anos de serviço nesse ramo. Ter visto a Sofia e o Afonso serem...
— Karen... não vá... atrás... dele. Por favor... fuja. Vá... o mais... longe... o mais... longe... possível — inutilmente tenta me alertar.
— Não! Isso não vai acontecer! — ele me olha com medo, surpreso pela voz destemida, mas nervosa, que sai da minha boca. — Agora, diga-me: aonde você acha que ele levou vocês?
CAPITULO 54. SOMBRAS QUE HÁ EM NÓS
“Já fazia um pouco mais de seis meses que eu deixara Amy, Jasmim e Scar. Scar, por sinal, ligou-me algumas vezes (como ele arrumou o meu número?), mas eu nunca atendi. Eu não queria falar com ele ou com a Amy — caso ela estivesse interessada. Ah! Também não com a Jasmim, é claro! Porém, eu voltaria a ouvir falar deles.”
Josef sumiu, sem falar para aonde ia. Após isso, tive que me manter escondida.
Já faz alguns dias que ele reapareceu, e resolveu trazer alguns “presentes”.
O corpo do Scar foi encontrado, sem a cabeça, na antiga casa que eu morava.
— Só mais um pouco...
Ele está disposto a pôr um fim em tudo. Chega de suspeitas. Chega de investigações. Chega de planos. Chega de tudo.
Jasmim foi a seguinte.
Em uma praça, os seus braços e pernas foram colocados em cima de um banco.
Era lá que eu costumava ir com a Sarah.
A cabeça foi encontrada próxima à lanchonete...
Que eu o conheci.
Os corpos dos demais também foram apresentados.
Ele estraçalhou a todos.
Afonso, Sofia, Jasmim e Scar, espalhados por Agonia. Mas Amy...
Não.
— Será que ela conseguiu fugir?
E eu fui “deixada de lado”, quando ficou claro que todas as dezenas de mortes terríveis foram — e são —, responsabilidades dele.
Porém, eu assumi outro papel nessa história maldita.
Por meio dos jornais, eu pude saber das mensagens que surgiram, há alguns dias, em partes aleatórias de Agonia, exigindo que eu aparecesse. Ele deixou claro que eu estava escondida na cidade, e que ele não pararia de matar até eu me entregar. A população ficou desesperada. O medo de ser a próxima vítima os deixou aflitos, fazendo-os me procurarem por todos os lugares. Também havia os moradores que mal saíam das suas casas.
Novamente ele causou isso, esse pavor em Agonia.
Só que dessa vez, ele trouxe uma ambiguidade difícil de ser entendida, criando um paradoxo. A sua presença causa um caos, fazendo-os se esconderem. E coragem, fazendo-os me procurarem.
As aulas também foram suspensas e o comércio fechado. A cidade ficou sitiada por uma única pessoa, por um único homem. Um único homem disposto a derrubar o céu em cima da cabeça de todos, só para me achar.
“Ainda costumo pensar se ele amava ou odiava cada centímetro da minha existência. Se bem que o que ocorreria depois, deu-me uma impressão exata.”
Josef e eu talvez sejamos os únicos que cruzaram o seu caminho e conseguiram sair com vida (talvez a minha mãe também). Josef, aliás, antes de sumir, já não era mais o mesmo. A sobriedade que ele exalava, e a segurança em sua voz, desapareceram. Parecia uma criança medrosa que, se pudesse, viveria para sempre escondida debaixo da saia da mãe.
Com isso, compreendi que eu não tinha mais ninguém... Mais ninguém em minha vida. Sarah, Sam, Amy, Sofia, Esmeralda, Laura, Afonso, Scar, Jasmim, Mark...
Todos partiram. Todos se foram.
Por isso estou aqui, amoitada nesta cabana, no calar da noite, esperando alguma brecha para ir até ele. Procurando meios para conseguir me mexer.
— Sequer me deixa tentar algo.
Sarah... Irmã... Não deixarei a sua morte ser... Não deixarei a sua vida ter sido levada por nada. Não deixarei você ser apagada...
Não deixarei a minha vida acabar antes da dele.
— Sarah... — começo a ouvir um barulho afastado, próximo daqui. Eu me levanto e vou ver o que pode ser.
E não é algo agradável.
Enfim, ele descobriu a minha localização e mandou a sua mensagem: uma enfurecida tropa de moradores, carregando armas, toras de madeira, facões e...
tochas? Marchando até mim.
— Merda! — eu os vejo pela janela e não tenho tempo para fazer muita coisa. Pego o meu revólver, uma faca e as chaves do carro. É hora de fugir.
Saio e consigo entrar no veículo.
— Liga logo, porra! — o carro não responde. — Porra! — estão atirando! — Esses merdas vão me matar! — o carro liga e eu dirijo até o interior da floresta. Eles continuam atirando, mas não me seguem, pois não têm coragem para me perseguir por este lugar. Assim, vou cada vez mais fundo, sem ter a mínima ideia por onde seguir.
Dirijo por onde dá, sem olhar para trás.
Eu nunca entrei nesta floresta e nunca acreditei nas histórias contadas. Contudo, sua fama pode ser falsa, mas a sua aparência, de fato, faz jus ao que falam.
Aos poucos, o carro vai ficando mais devagar, até que morre de vez.
— Mas o que é agora?! — saio e vou ver o que pode ter acontecido. Para o meu azar, o tanque de gasolina foi atingido. — Merda! — tento ver o quanto foi espalhado. — Não dá. Tá muito escuro — olho em volta do carro e vejo uma poça ao redor; grande, aliás. — Ótimo! — pego o revólver e a faca. — Eu deveria ter deixado suprimentos dentro dele — abandono o veículo e começo a andar.
Já não é mais possível ver a cabana, nem os moradores exaltados, apenas árvores. Em qualquer direção que eu olho há somente árvores. Mas em cima, há um baita de um lençol negro sobre a minha cabeça. E por entre o meu corpo, há uma luz difusa, enfraquecida, que tenta inutilmente iluminar tudo.
Continuo em frente para ver se encontro alguma coisa.
Após vagar durante um longo tempo, mesmo sem nenhuma noção de direção, eu não consegui encontrar nada.
— Arf, arf, arf, arf, arf, arf... O que eu faço agora? — estou ofegante e com uma sede desgraçada. — Arf, arf, arf, arf, arf, arf... O Josef falou que fugiu por uma floresta sombria... Certamente é esta — puxo o ar devagar, soltando com força. — Aquele bosta deve ter um refúgio escondido no meio disso... Onde?! — eu não sei em qual direção seguir, tudo parece igual. Mas escolho uma, sem saber aonde levará.
Caminho por mais um tempo perdido, até que sou presenteada por uma casa suspeita. Toda velha e carcomida, desmoronando, e com buracos em sua estrutura. Mas é possível ser o lugar de onde o Josef fugiu.
— Será... Será que é aqui? — respiro com dificuldades. Seguro bem firme o meu revólver e entro. Está tudo escuro, mal dá para ver alguma coisa. Não há nada, mas sigo por um pequeno corredor, onde um odor cadavérico se alastra. — Porra! Que cheiro podre! — eu chego a um quarto e entro. Está todo coberto por sangue e pedaços de carne; há uma mesa também. Foi aqui que... — Sofia... Afonso... — preciso sair ou vou vomitar. Corro de volta até a sala. — Psicopata desgraçado! — limpo minha boca com a manga do moletom. Este lugar cheira a
morte. Olho em outro cômodo que há e encontro um freezer. Abro. Além do vermelho, não há mais nada. Então, volto à sala.
— Melhor eu sair daqui — o meu coração bate alucinado em meu peito.
— Não faça isso, princesa — assim que ouço, sinto a minha pele arrepiar. Os meus olhos ardem. O meu coração acelera ainda mais. Aponto a arma para qualquer direção. — Calma, minha amada Karen. Não fique assustada. Sou eu!
— Você?!
— Hahahahahaha! Sim, Karen! Sou eu! Há quanto tempo! Então, como você está?
—... — eu tremo toda.
— Não?
—... — paro de respirar.
— Tsc... Tá bom... Bem, apenas saiba que tenho muito que fazer com você, boneca. Senti saudades, e quero conversar, poxa!
— Seu... Seu... Apareça, seu verme desgraçado! — ele não responde. — O que foi?! Está com medo?! Parece que eu caí na sua armadilha, não é mesmo? Agora, vamos! Você conseguiu me trazer até aqui! Acho que está na hora de nos vermos!
— Sim, sim. Iremos nos ver daqui a pouco. Mas, antes, sabia que quando eu te vi, lá no Pokiel, o meu coração se encheu de amor? Sabe, foi difícil me segurar para não correr até você e te dar um forte abraço. E preciso dizer: você está linda assim! Adorei o seu novo visual!
— Vai à merda, seu porco miserável! — cuspo no chão.
— Hahahahahaha! Claro, claro... Agora, Karen, antes de qualquer coisa, primeiramente eu devo te dar os parabéns! Foi difícil te encontrar, menina! Aprendeu bem em como ficar escondida — sua voz é de... orgulho? — E dê os parabéns ao Josef também. Aquele homem é bastante determinado.
— Você matou a Sofia, a Laura e o Afonso!
— Hahahahahahaha!
— Filho de uma puta! Maldito!
—... — desligou? — Bem, tenho um presente para você, Karen. Vá lá fora, pois alguém muito querida quer revê-la.
— O que você quer dizer com isso?!
—...
— Responda! Seu desgraçado! — ele não fala nada. — Merda! — faço o que ele diz. Saio da casa, devagar, olhando atentamente a minha volta. Já do lado de fora, ainda procuro...
E percebo algo.
Parece que há uma pessoa atrás de uma árvore — mas é difícil afirmar. É tudo tão escuro, e há muita folhagem. Não tenho alternativa: preciso ir até lá.
— Ei! Você! — eu tento chamá-lo. — Eu estou armada! Então, saia daí com as mãos levantadas! — a figura misteriosa permanece calada e imóvel. — Não? — continuo exigindo que obedeça as minhas ordens, mas ele não faz nada. — Foda-se! — saio correndo em sua direção, chutando folhas para todos os lados.
Mas sou atingida pelo que vejo.
Próxima da pessoa, eu caio de joelhos. Preciso apoiar as minhas mãos para não dar com a cara na terra. E eu vejo a minha... Vejo a... Minha pequena... Minha pequena... Minha...
— Sarah...
Sarah foi arrancada do seu túmulo e trazida até mim. O seu pequeno corpo, que tanto carreguei, foi profanado por ele. E ela está asquerosa, nojenta, toda deformada, com um fedor putrefato, com uma aparência repulsiva, e próxima de se tornar somente ossos. Não lembra mais quem ela era. Mas ainda é a minha... é a minha... a minha...
— Então, Karen? O que achou de rever a nossa querida Sarah?
—...
— Sim, sim! Tenho certeza de que ela sentiu muito a sua falta.
—...
— Ela não está mais tão bonita, mas parece feliz por te ver.
— Irmã...
— Também pensei em convidar o pai de vocês, mas ele não faz parte da nossa história. Certo, princesa?
—...
— Não vai falar nada, querida? Quero ouvir a sua voz, Karen.
Não... Já chega! Eu já ei por tanta... tanta merda. Estou cansada... cansada dele. Cansada de ter que continuar... continuar assim. Cansada de ter que viver... viver com isso. Viver sozinha. Viver... com o que eu fiz.
— Sarah... — engulo a minha dor e escolho enfrentá-lo. — Saquei qual é a sua — eu me levanto. — Gosta de zombar de mim, não é mesmo? Bem, pelo menos a minha irmã ainda tem um corpo. Diferente daquela depravada de merda da sua filha! Como era mesmo o nome dela...? Livínia?
—...
— Bem que a Jasmim falou que você sairia do buraco se aquela bosta fosse morta. E por que você a matou? Ah! Aliás, por falar na Jasmim, você sabia que foi ela quem matou aquela porca imunda?
—...
— Não? Pois é! Foi ela quem destroçou aquela vadia. Você devia ter visto. Ela ficou contente por ter matado a própria irmã!
—...
— Hahahahahaha! Cara, eu vou te falar: a sua família é um bando de animais retardados! Macacos doentes!
— Jasmim teve o que merecia! — ele se pronuncia, dotado de um caos desconhecido por mim. — Hahahahahaha! Karen, Karen... De fato, eu não sabia. E a propósito, obrigado por me dizer que foi ela a responsável. A Jasmim não abriu a boca, enquanto eu a cortava, apenas para cuspir em minha cara. Mas eu a fiz receber o que era justo.
—...
— E o tio dela... Scar. O meu irmãozinho tentou defendê-la, sabia? Sujeito patético. Não durou muito. Tentei forçá-lo a entregar a tua mãe, mas o cara era muito fiel a ela. Enfim, né? É a vida...
— Vá para o inferno!
— Hahahahahaha! Claro, claro... — um silêncio perdura. — Karen, por favor, ouça com atenção: eu irei fazer o mesmo com você e com a sua mãe — sua voz é indecifrável.
— Quer dizer que você não a tem? — começo a ficar mais centrada e saio procurando-o. — Você é mesmo uma piada ridícula!
— Não tenha tanta certeza disso, menina. Os teus amigos diriam o contrário.
—...
— Bem, agora, chega dessa conversa hostil. Eu quero te ver, Karen. Por isso, venha logo até mim — após ele dizer isso, ouço um ruído. Ele devia estar falando por intermédio de um rádio ou algo parecido.
— Miserável!
Retorno até a minha irmã e a cubro com o meu moletom.
— Sarah... — beijo sua cabeça.
Sinto que será a última vez que nos veremos. Eu já tinha deixado o seu corpo morto no ado, naquele dia, naquela casa. Agora, sou obrigada a olhar, novamente, para ela em silêncio. Mas não experimento o mesmo terror daquele dia. Eu experimento outra coisa. E a Sarah não existe mais nesse corpo. Era apenas por onde ela pôde caminhar por este mundo... Este mundo que eu tanto odeio... Este mundo que tanto me enlouquece... Este mundo que eu quero que acabe. O que ela era... O que ela foi... O que ela é...
É maior do que isso.
A sua existência foi curta e a sua morte, se eu não parar, será eterna.
— Irmã... Até o dia que nós nos reencontrarmos novamente — despeço-me dela.
Eu caminho sem nenhuma orientação, por isso dou várias voltas em círculos. Vou pela direita da casa e retorno pela esquerda da mesma. Faço isso várias vezes.
De alguma maneira, retorno ao meu carro. Não penso em desistir, pois em algum momento irei acertar.
Continuo procurando-o.
E neste tempo perpétuo, tentando achá-lo, elaboro centenas de armadilhas capazes de pegá-lo. Todas são muito promissoras, mas eu sei que não irei conseguir executá-las. Entre a teoria e a prática existe um universo que as separa. A única verídica que me soa é: eu descarregar o meu revólver em sua cabeça ou esfaqueá-lo.
— Posso fazer isso. Basta eu não ser pega de surpresa e... — mal digo estas palavras em voz alta e sinto um forte impacto nas costas, fazendo-me ser arremessada para frente, indo de cara a uma árvore. O sangue que escorre para a minha boca é do meu nariz quebrado.
Procuro o meu revólver, que deixei cair.
— Cadê?! — seguro o meu nariz.
Sem encontrá-lo, puxo a minha faca, olhando a minha volta. Porém, sou
derrubada por três tiros que atravessam a minha perna direita. Eu nunca fora baleada. Posso dizer que a dor é horrível.
Eu me levanto, colocando todo o meu peso na outra perna, e ando um pouco. De repente, levo outros dois tiros, por trás, na perna esquerda, derrubando-me. Vou de cara à lateral do veículo. O meu nariz vira migalhas. Encharco minhas roupas no combustível. Um galo grosso surge em minha testa. Com as duas pernas baleadas, sou incapaz de ficar em pé. Arrasto-me até uma árvore, ao lado, e me encosto. Fico com a faca em frente ao meu corpo, segurando-a com as duas mãos.
— Arf, arf, arf, arf, arf, arf... — está ainda mais difícil respirar.
O céu perpétuo, escuro, gira sobre a minha cabeça. Sons agudos, de um sussurro profundo, transitam entre essas árvores negras. Vultos de silhuetas finas aparecem escondidos atrás dos densos troncos. As folhas secas, que caem de galhos tortos, riem da morte que já paira pelo meu corpo. Ainda assim... eu não tremo mais. Ainda assim...
Eu não o temo mais.
— Sempre achei que... para perder a consciência... fosse preciso... ser baleada... em regiões... mais sensíveis... Arf, arf, arf, arf, arf, arf... Eu... estava... enganada...
O sangramento em minhas pernas foi capaz de me deixar tonta. Eu preciso de um esforço inacreditável para continuar acordada. Sei que será o meu fim, mas irei levá-lo comigo.
Preciso levá-lo comigo.
Só que o seu chute, que eu não vejo de onde vem, além de arrebentar as minhas mãos, ainda manda para longe a minha única arma. A mão esquerda está quebrada, junto com todos os dedos. Uma dor concentrada logo se instala. A mão direita tem mais sorte, apenas dois dedos são esmigalhados. Já os quatro socos em meu rosto, faz vários dentes irem de imediato. E outros três na boca do meu estômago me fazem vomitar a refeição de horas atrás.
— Qual é... seu covarde! Apareça... de uma vez! — eu tento falar, enquanto os meus dentes se penduram em minha boca, e o sangue se acumula. Eu babo, sangro e sinto uma dor fodida por todo o meu corpo. — Porra... de cheiro... de gasolina!
Um puxão em meus cabelos e o seu rosto surge diante do meu.
— Olá, Karen!
— Não...!!! — ele beija a minha boca.
— Sabia que este é o nosso primeiro beijo? — ele sorri...
E me olha com os mesmos olhos de onze anos atrás. E os mesmos olhos, da jovem de dezoito anos, que o viu pela primeira vez, reveem tudo. Reveem os olhos repletos de caos. Olhos repletos de trevas. Olhos repletos de morte. Olhos
que não pertencem a um ser humano. Olhos que não pertencem a nada. Olhos que pertencem ao nada.
— Cof, cof, cof, cof, cof... — tusso, enojada pelo contato das nossas bocas. A minha visão começa a se apagar, pois a vertigem já está desfocando tudo.
— E aí, minha doce menina? Divertindo-se? — ele pergunta todo animado, enquanto acaricia os meus cabelos.
— Achei que... você quisesse... um desafio. Mas... mal me deixou... fazer algo — digo, enquanto me livro da poça de sangue em minha boca.
— Lamento, Karen — ele beija a minha testa. — Mudança de plano, infelizmente. Mas não desista ainda! Tenho mais algumas surpresinhas para você! — ele joga a minha cabeça, violentamente, contra a árvore...
E com a minha faca perfura a minha barriga. — Ahhhhhhhhhh! — sinto a faca me perfurando por dentro, banhando-se em minhas vísceras. — Ahhhhhhhhhhhh! — a dor se multiplica, assim que ele a retira.
Ele desaparece. Não vejo uma saída.
— Cof, cof, cof, cof, cof... — o sangue se esparrama por minha boca. — Arf, arf, arf, arf, arf, arf... Parece... que vou... ter... que... desistir... — volto a tremer e sinto um frio me tomar. Ponho uma mão sobre o buraco em minha barriga, mas o sangue não para de sair, assim como das pernas. Minha consciência começa a se
desligar. Sinto o vento dançar em volta do meu corpo destruído...
E até que é agradável.
“Está tudo bem, querida. Já é hora de ir.”
— Pai...?
“Venha, irmã!”
— Sarah...?
Estou cansada...
— Pai... Sarah...
Acho que estou pronta para ir. Não queria que fosse assim, mas...
Estou pronta para ir.
E os meus olhos, apreciando o resquício de vida que ainda me habita, fecham-se,
amorosamente. Os sons deixam de cantar. As sombras que sempre estiveram comigo, onde eu sempre existi, espalham-se por meu corpo finito. O meu coração se cala. Enfim, deixarei de existir. Enfim, não estarei mais...
— Ahhhhhhhhhhhhhhhhh! — mas próxima ao apagar, sinto algo, que perfura o meu peito, ser injetado. Dou um berro animalesco, e me engasgo com o sangue.
— Isso é adrenalina, Karen! Faz milagres! Você vai ver! — ele some de novo.
O meu corpo vibra, arde, sofre. O meu coração acelera tanto que chega a doer. Isso me faz expulsar o silêncio que estava instalando-se, e o meu cérebro volta a trabalhar. A única resposta que eu busco é uma forma para poder matá-lo...
Para poder acabar com tudo.
Começo a percorrer caminhos invisíveis à procura de alguma solução, por mais pífia que seja. Olho para cada canto, cada pedaço e cada estilhaço que possam me ajudar. Percorro caminhos obscuros, ocultos, louca para encontrar algo. Uma ideia, uma resposta, uma fagulha, uma simples centelha...
E é isso o que eu consigo.
— Pai... Sarah... Arf, arf, arf, arf, arf, arf... Não... ainda... não!
E relembro de algo, lá no começo, mencionado. Os isqueiros e os maços de
cigarros perdidos em meus bolsos. Bem, neste caso, apenas um maço, fumei o resto que deveria estar aqui. Coloco a mão toda arrebentada, com poucos dedos úteis, e percebo que ainda tem alguns. Fuço mais um pouco e também encontro um isqueiro.
—...
Não há mais o que se pensar.
— Ha... Haha... Hahaha... Hahahaha... Hahahahahaha... — que risada sofrida. — Aquele bosta... não devia... ter injetado... esta merda... em mim!
Engraçado...
O mesmo comportamento arrogante que eu tive com ele, ele acabou de ter comigo.
— Ahhhhhhhhhhhh! — grito, pois a dor que sinto é inimaginável — Arf, arf, arf, arf, arf, arf... — mas eu seguro o grito, seguro a dor, seguro a morte, e consigo tirar a camisa, que está encharcada de suor, sangue e gasolina, ficando só de sutiã. E apesar do esforço absurdo, consigo jogá-la em cima da poça.
Vejo a perfuração em minha barriga. É profunda e não para de cuspir o sangue para fora.
Olho em volta e me arrasto até uma moita, que me esconde bem, um pouco afastada do carro e da poça criada. Agora, só resta ele retornar.
— Eu vou... te foder... seu desgraçado! — digo, tentando não desmaiar.
A minha consciência já sonha, pois ela quer dormir logo. Mas, por favor, aguente só mais um pouco! Ainda não é a hora!
am-se segundos intermináveis, mas, enfim, ele ressurge. E ressurge carregando umas correntes e um machado.
— Karen! Ei! KAREN!!! — ele grita tão alto que é bem capaz de outra mulher chamada Karen aparecer. — Anda, Karen! Eu estou aqui! É o nosso casamento!
Só mais um pouco...
— APAREÇA!!! — eu nunca escutei esse tom em sua voz. É assustador. Faz o meu coração querer fugir.
Começo a respirar com tanta força e velocidade que faz todo o resto doer, inavelmente, ainda mais.
Só mais um pouco...
Ele se aproxima do carro.
— Hehehehe... Hehehehe... Hehehehe... — posso dizer que será a minha última risada. — Você... vai virar... pó... seu otário! — digo, mantendo a voz baixa.
Ele está procurando em volta, certo de que irá me encontrar.
“Mas ele estava errado!”
Ele vê a minha camisa e a pega. E quando para onde eu quero, pisando com vontade na gasolina, jogo o cigarro aceso em sua direção.
— Até mais... imbecil! — sorrio, apesar de estar desdentada.
CAPITULO FINAL. OLÁ, KAREN! SEJA BEM-VINDA!
“O céu de Agonia pôde finalmente brilhar.”
“A tristeza que tomava as nuvens precisou ir embora — por um curioso período —, e as chamas subiram com tudo. E essas nuvens enfadonhas, até elas queriam que ele morresse. O pior é que o desgraçado, enquanto era queimado vivo, ainda tinha disposição para resistir. E com a minha arma, ele começou a atirar para todos os lados, e me acertou no ombro esquerdo. Mas, aos poucos, ele foi parando, até que se deitou...”.
“Para nunca mais se levantar.”
Eu consigo sair de trás da moita, arrastando-me, pois quero vê-lo pegando fogo. E eu o vejo. Ele está morto...! Eu consegui...! Finalmente...! Finalmente... eu consegui!
O carro explode, levando o seu corpo nojento embora.
— Merda! Está ficando... tudo... embaçado... quente... escuro...
As chamas se alastram com facilidade sobre a piscina de folhas secas. Eu espero ir logo, porque a dor está demais.
— Não... há... mais... nada... — e deitada de bruços, com a minha cabeça de lado, e os braços esticados para baixo, enquanto aguardo as chamas me consumirem, ou o sangramento me apagar, eu começo a chorar. E eu poderia dizer que choro por ter acabado com ele. Por sentir falta da minha família. Por não querer morrer. Por não querer viver. Mas, sinceramente, não existe uma causa específica...
Mas, sim, várias.
Então, distante, longe de mim, longe das minhas mãos, com a minha visão comprometida, ele surge e eu o vejo...
Uma vez mais.
Os seus cabelos estão penteados para trás, deixando o seu lindo rosto aparecer. E as roupas são as mesmas de sempre.
— Hahaha... Hahaha... Hahaha... — dou uma risada dolorida. Não era a última, afinal. — Você... nunca... mudou...
Ele caminha em minha direção, sem ligar para o fogo que se esparrama pela mata. Ele caminha em minha direção, ignorando o monstro que matou as suas filhas.
Os seus os são delicados, suaves. Parece não querer perturbar a minha vida,
ou o que ela irá se tornar. Ele continua vindo, sem demonstrar pressa. Que coisa... Parece esquecer que estou presa em um oceano de chamas, e sendo drenada pela morte.
Então, ele se aproxima do meu corpo quebrado. Ele se aproxima da sua...
Filha.
Ele se agacha e, sorrindo, olha, profundamente, em meus olhos dourados, que já devem ter parado de brilhar. E eu o olho em reciprocidade, mesmo sem ver direito, mesmo derrotada. Mas, pela primeira vez em minha vida, eu me sinto satisfeita... Eu me sinto plena... Eu me sinto...
Premiada.
Os meus olhos não param de derramar gotas densas.
Eu nunca chorara assim.
E ele percebe, por isso se prontifica em segurá-las com os seus dedos gentis. Então, começa a afagar os meus cabelos, provavelmente já desbotados, devido à fornalha que me envolve. Mas gosto de sentir os seus dedos me fazendo carinho.
É nostálgico.
Quero enxergar melhor o seu rosto, mas já está tudo desfocado.
Por que você teve que ar por tudo aquilo? Ser abandonado e tratado como um vagabundo ingrato? Você sempre foi a melhor pessoa do mundo, não só em minha vida, mas nas de todos que você pôde estar. E a Sarah, a sua filha, herdou essa bondade ilimitada.
— Perdoe-me...
Por que você teve que ar por tudo aquilo? Não fez nada de errado e os seus pais te trataram tão mal. Isso não foi justo! Isso não é justo! Mas, acima de tudo, por que você teve que morrer...
— Pai...?
Ele para de me agradar, mas ainda consigo vê-lo derramar lágrimas semelhantes às minhas. “Por que chora?”, eu tento perguntar. E imagino qual seria a sua resposta:
— Por ter que me despedir da minha doce filhinha.
E isso me faz desejar.
Desejar não ter sido isso... Desejar não ter sido vazia... Desejar não ter sido sozinha... Desejar ter apreciado a minha família... Desejar ter sido...
Feliz.
— Eu... quero... você... de... volta... — expresso o meu horrível desespero. Tornei-me uma garotinha chorona. Ele dá um beijo molhado em minha testa ressecada, e cheia de fuligem, e eu sinto o seu respirar em meu rosto.
Ele se levanta.
O fogo engole tudo e o sangue foge do meu corpo. Ainda assim, consigo me virar para cima e olhar para o céu, por entre pequenas fendas. E esse céu parece querer me animar um pouco. Menosprezando a cortina de folhas, minha visão apagada, as nuvens tristonhas, e a forte fumaça, ele atravessa essa masmorra, trazendo uma solitária estrela em seu corpo enegrecido.
— Que... bonita...
Volto a olhá-lo. Ele começa a andar, afastando-se de mim. E ele desaparece, uma vez mais.
— Adeus... pai...
Neste instante, todas aquelas histórias que me foram contadas, ou que acabei
descobrindo, ou que vivi, decidem me visitar. Poder pensar nelas, poder falar delas...
— Foram... bons... momentos...
A forte Amy... O bondoso Mark... A pequena Alícia... A triste Adriene... A jovial Laura... O velho Afonso... O misterioso Scar... A desonesta Jasmim... O homenzinho das lâmpadas... A humilde Katarina... O cortês Bobby... A aflita Bianca... A elegante Matilda... A exuberante Angelique... A minha avó Esmeralda... O meu avô Thomas... A minha avó Elizabeth... O meu avô Brian... A minha querida Sofia... O meu único Sam... A minha amada Sarah... E, é claro...
A minha.
Todas elas eram luzes a serem vistas. A serem ouvidas. A serem entendidas.
— Sarah...
Agora, dou um sutil sorriso ao me despedir delas.
— Não...
Pois...
— Estarei...
É a hora...
— Mais...
De partir.
— Sozinha...
Então, repouso a minha cabeça, que dói demais, nas poucas folhas ainda intactas que há ao meu redor. Fecho os meus olhos e me lembro de tudo o que eu perdi, de tudo o que eu destruí, e de toda a vida que eu não vivi. Fecho os meus olhos e aceito o meu fim. Agora, posso descansar o meu corpo acabado, e que já não tem mais a mínima condição de fazer nada. Na verdade, sem deixar de chorar, pois isso é, agora, a única coisa que eu posso fazer neste momento... neste mundo... que já está prestes...
— Perdoe-me... irmã... por... não... ter... sabido... te...
Só me resta ir dormir nas minhas memórias. Tão insignificante... Só me resta ir dormir nas profundezas que há em mim. Nas profundezas que eu tanto escondi, com medo de perdê-las. Perdê-las... Não posso esquecer o ado... Sim, fui uma idiota. Pensei que poderia viver por mim, sem mais ninguém, sem mais nada. Mas eu desejaria poder voltar no tempo... Desejaria fazer o tempo voltar...
Quem sabe, eu seria uma mulher melhor... Quem sabe, eu seria uma filha melhor... Quem sabe, eu seria uma irmã melhor... Faria escolhas melhores... Mas agora é tarde... Estou indo em direção ao nada... Afinal, tudo retorna ao nada... Bem, enfim, a doce morte... É hora de ir embora para sempre... Mas eu realmente desejaria poder voltar no tempo... Desejaria ser perdoada... Desejaria refazer tudo... Recomeçar de novo... Mas não posso esquecer o ado... Sim... Agora posso descansar... Apenas... Talvez... eu devesse ter tentado voar sobre as nuvens... Talvez, eu devesse ter tentado voar sobre o céu... Talvez, eu devesse ter tentado voar sobre as estrelas... Talvez, eu devesse ter tentado...
— Amar...
FIM
EPILOGO I
O fogo alcançou o céu de Agonia, tocando-o com as suas mãos quentes. E se o sol era incapaz de iluminar aquela cidade, o fogo se dispôs a exercer tal atividade. Muito esforço foi necessário para poder controlá-lo. Por volta de três semanas, os bombeiros tiveram que trabalhar naquela floresta até o incêndio ser apagado.
Ninguém fazia ideia do que havia acontecido. Os federais, encabeçados por um Josef acovardado, foram os primeiros a começarem a investigar. A única informação que tinham era de que a Karen havia entrado lá, após um grupo de moradores terem ido até a cabana para poderem entregá-la a ele. E como o incêndio acabou com (quase) tudo, era impossível afirmar, categoricamente, os eventos que precederam todo aquele inferno. O carro virou um triste esqueleto metálico. Porém, por alguma razão inexplicável, o corpo da Sarah pôde ser identificado.
E quando a notícia saiu, de que a Sarah era um dos cadáveres, Agonia fez jus ao nome. A menina não era deixada em paz, mesmo sem ter mais vida. Mesmo morta. E esse evento encrostou-se em Agonia até o fim da raça humana. A cidade jamais conseguiu se desvencilhar da nova fama que caiu sobre ela: a boca do inferno. Bastante justo esse apelido, apesar de soar enfadonho.
Bem, e algumas outras coisas também foram resolvidas.
Josef, que retirou forças de algum lugar, trouxe paz ao nome da família do Sam.
Inclusive, pôde confirmar as suspeitas da Jasmim e da Karen. Elizabeth, realmente, foi morta. Mas Josef não foi capaz de descobrir como ele conseguia se infiltrar nos órgãos da lei e nos meios de comunicação. Esse mistério jamais foi esclarecido.
Já a amada Sarah foi tratada como um símbolo de esperança. A pequenina de cabelos avermelhados, e olhos de jade, ganhou uma estátua na antiga residência da família Rose Heart. Ela podia não estar mais presente fisicamente, mas esse monumento serviria para trazer conforto aos mais angustiados.
Josef, então, aposentou-se, pois o trauma que surgiu em si foi grande demais. Teve coragem suficiente para sair da toca em que estava e ajudar nos afazeres. E só. Ninguém mais soube a seu respeito e do que ele fez com o resto da sua vida.
A Floresta Negra perdeu esse nome e tornou-se uma floresta normal, com novos tipos de árvores plantadas, e com um parque primoroso no meio. Já as histórias que a tornavam sinistra, foram deixadas de lado, pois uma única ou a ser contada.
Quanto a ele, foi tratado como o próprio diabo e o seu nome era evitado de ser pronunciado.
A família da Jasmim foi até Agonia para poder levar o que havia sobrado. Estavam destruídos, mas foram capazes de continuarem com as suas vidas. Scar também teve a sorte de ser tratado como um deles, graças a Karen, que contou ao Josef o bom homem que o Scar era — apesar de dar mais valor a Amy do que a própria sobrinha.
Afonso virou nome de rua — para alguém, isso deve parecer uma homenagem. Ao menos, ele também foi colocado no rol dos maiores jornalistas do mundo. Pois é, a morte tem os seus benefícios. A sua irmã, Isabel, ficou desolada com o que houve.
Sofia foi mencionada por Josef — mas não precisava. Ela gostava de ar despercebida, e ter os seus quadros falando por si.
Já no meio artístico o seu nome começou a ser tratado com respeito e iração. As suas obras atingiram valores exorbitantes. Kanami foi a responsável por cuidar do nome da sua ex-namorada. Ela deixou o seu trabalho tedioso, no exterior, e voltou à Agonia para abrir uma instituição com o nome de: Sofia — quem diria que aquela esquizofrênica iria alcançar tal patamar.
Os pais da Sofia ficaram lisonjeados, mas não tinham uma boa relação com ela, por isso pouco se importaram em abdicar dos lucros que a Kanami havia conseguido com a venda das pinturas, ou da fama que o nome dela havia ganhado.
Quanto a Amy e a Karen...
EPILOGO II
As minhas memórias se entrelaçam de maneira confusa e desordenada, como se quisessem ser vistas e notadas, após tanto tempo. Mas isso está ficando cada vez mais difícil e penoso, exigindo uma força que eu já não tenho mais. E aqui, agora, escondida do mundo pulsante que existe fora desta cansada casa umbrosa, bem no meio de árvores esguias, escuras e tenebrosas, e que não aceitam o céu não poder tocar, estou esquecida para tudo e para todos.
Mesmo isolada dos componentes que preenchem o todo, eu continuo presa, fazendo parte desse ciclo vicioso, que logo irá me levar. E apesar da névoa densa e sólida que já envolve as minhas antigas memórias, uma luz fosca ainda resiste em querer iluminá-las. E agora, prestes a ir embora, procuro desesperadamente, enquanto vago pela penumbra desta velha moradia, os nomes das duas meninas que ainda me visitam, e que, eu sinto: com elas eu deveria estar.
Eu recebo os seus sorrisos amigáveis, que me abraçam calorosamente, fazendo a minha inflexível pele, que mais parece um tecido seco, rasgar. E desejos e vontades querem voltar para a minha carne, pois são teimosos e persistentes, e não querem me abandonar.
Essas duas garotas que intrigam a minha alma, fazem-me recordar instantes que já ficaram para trás, onde as minhas mãos já não alcançam mais. Eu gostaria de poder tocar os seus rostos outra vez, e voltar àqueles momentos tão nostálgicos e reconfortantes. Voltar para perto dos seus sorrisos, doces e gentis, misteriosos e introspectivos, como quando éramos uma família. Voltar para perto dos seus cabelos avermelhados, que mais pareciam chamas ardentes que bailavam pelo vento choroso, durante um baile endiabrado.
Eu gostaria de voltar para ficar sentada com a menorzinha, naquela praça, naquele banco já desgastado pelo imponente tempo, olhando para os inúmeros pedestres, enquanto me contava sobre as suas aventuras tão mundanas, tão ínfimas, tão terrestres. Voltar para sentir a sua aura alegre e dançante, que emanava tanta paixão, por fim, contagiante. Voltar para ver os seus pequenos dentes que mordiam, ferozmente, o seu açucarado e colorido sorvete, e que comiam os meus criativos doces cheios de enfeites. Voltar para perto das suas finas pernas, que balançavam incessantemente, mas que não alcançavam o chão quente. Sentia-me plena e justa, estando ao lado de uma menina tão pequenina e vibrante. Tão pura.
No momento em que nasceu e abriu os seus preciosos olhos verdes, que mais pareciam duas esmeraldas, até a tragédia que a levou, eu sempre a amei com tamanha força e ardor. Eu sempre a amei, incondicionalmente.
Eu gostaria de voltar para perto da mais velha, que comia a todo o instante, e que se interessava em falar sobre filmes. Voltar para perto do seu jeito misterioso, da sua face soturna, e da sua postura persistente. Infelizmente, ela não sabia quando recuar e parar, e, por causa disso, recebeu... Nós recebemos um horripilante presente. Não a tenho mais, pois ela também se foi.
Agora estou sozinha, isolada, sem ninguém ao meu lado, sem minhas filhas amadas. Apenas existindo nesta vastidão silenciosa, neste horror infindável, contemplando sua dor odiosa, enquanto sou apagada pela vida em direção ao nada.
O tempo não voltará, pois é contínuo e intransigente. Não perdoa as nossas escolhas, apenas continua empurrando-nos para frente. E a minha filha fez a sua escolha, assim como eu, sem contar que poderia cair e falhar. A sua arrogância e ego tornavam-na cega e convicta. Ela estava errada, e pagou com a vida da sua
irmã que nós tanto amávamos.
Por alguma razão, que eu nunca soube, hoje estou nesta casa fria e úmida, perdida em minhas memórias antigas e obscuras, e que, há bastante tempo, começaram a se apagar. E sinto, cada vez mais, que eu poderia ter feito outras escolhas. Em vez de me afastar e isolá-la, desejando a sua morte, acreditando que era a decisão correta, ao seu lado, com o meu apoio, eu deveria ter ficado. Mas não. Eu a fiz sentir tudo aquilo que me impôs. Eu imaginei que a dor do silêncio a faria pagar por sua imprudência, deixando-a quebrada. No fim, eu estava enganada.
Agora, sozinha e idosa, na escuridão gélida que permeia e consome a minha alma, sem a presença de um olhar amigo, que possa me acalentar, estou nos momentos finais, definhando, depois de ter me tornado triste e oca. Sentindo-me cada vez mais vazia, como se houvesse um buraco em meu peito que, a cada dia, engole tudo aquilo que me fazia sentir viva, não há mais o que buscar. E andando de um lado ao outro, enquanto sinto os meus pés rugosos tocarem a madeira escura e molhada desta casa sombria e abandonada, penso na solidão que pela vida fui tragada.
O meu sonho era em ter uma família, igual a todas as outras. E eu consegui realizá-lo, e pude conhecer a felicidade com o homem que eu tanto amava.
Da nossa relação, tivemos duas filhas, como presentes divinos. E durante um tempo, um maravilhoso tempo, eu presenciei a pureza da vida, e aproveitei ao máximo, até onde fui capaz. Mas o meu amado foi levado de mim, e algo aconteceu depois. A minha caçula foi tirada dos meus braços de maneira inesperada. Eu não estava preparada para algo assim. Não, eu nunca viria a estar. Eu jamais poderia imaginar que a sua irmã seria a sua ceifadora.
O meu coração foi quebrado em milhares de pedaços, como se fosse um cálice ao atingir o solo sagrado. Estava todo esparramado e largado, distribuído por várias partes. A dor era, e ainda é inável. Não há remédio, nem cura. Sua presença será constante para toda a eternidade, mesmo que, aos poucos, eu esteja perdendo a minha identidade. Deixei-me corromper por esta angústia faminta, por esta fúria maligna.
Como a mais velha conseguia ar tudo isso?
Agora, nada mais importa. Fico aguardando, sem ninguém, nesta paisagem moribunda, com o silêncio assolando o meu espírito, e com a paciência que me foi oferecida pelo tempo, o fim chegar, e, finalmente, poder descansar. Mas eu não gostaria de ter estes pensamentos negativos e solitários. Ninguém deveria ter um fim de vida assim, esquecida, em uma casa entorpecida no meio de uma floresta escura e infeliz, sem ninguém para chorar.
E agora, isolada de olhares piedosos e cheios de compaixão, eu preciso me satisfazer com o cinismo e com o ódio que começaram, anos atrás, a me transformarem em uma espécie de aberração. E nesta casa apodrecida, onde nada mais a habita, uma velha carcaça se arrasta por seus corredores estreitos e tortos, com uma névoa cinzenta que, há muito tempo, já se instalou em meu coração.
Estou morrendo, devagar, aos poucos. Em breve, não lembrarei quem eu era. Não lembrarei quem eu sou. Serei uma vítima da minha carne enfraquecida, incapaz de dar sequência na própria vida.
Minhas memórias já estão escondidas e embaçadas, impedindo-me de alcançar aqueles que eu tanto amei, e que, agora, sinto que já não me significam mais nada.
Subo as escadas cambaleando, apoiando as minhas trêmulas mãos no corrimão. O meu corpo, velho e frágil, já não é mais como antigamente. Caminho até um dos quartos, onde uma luz morna o ilumina, para me deitar e esperar o fim vindouro que logo irá chegar.
Em um colchão vagabundo, e todo sujo, repouso o meu corpo exaurido, desejando poder voltar para as minhas lembranças áureas, de um mundo antigo. Mas não adianta. É em vão. A solidão já me consome completamente, tão intragável, tão nauseante, parecendo querer que minha boca a vomite, somente para o seu amargor eu provar.
Não há nada a minha volta, apenas a escuridão que repousa nesta floresta morta, e que engole esta pequena casa. Sinto-me insignificante e patética, igual a minha existência, sem nenhum valor. Ouço as folhas das compridas árvores se tocarem, por insistência do vento peralta que sopra por estes ares. E os rangidos ardidos das madeiras desta casa, fazem toda a construção querer desabar, e, ao solo, ir repousar.
Sinto uma lágrima escorrer por meu murcho e áspero rosto. Procuro saber qual a razão para este nobre visitante aparecer próximo ao fim. E a resposta é óbvia, mas eu não a encontro. Está tudo confuso e disperso em minha mente, e nada mais faz sentido. Há, somente, borrões e manchas que já não dizem mais nada, e que já envolvem todo o resto. Porém, de alguma maneira, os rostos das duas garotas eu ainda consigo ver com clareza. Mas não sei dizer quem são essas duas princesas.
A pequena, de curtos cabelos ruivos, com sardas granuladas em sua face rosada, sorri. A outra, mais alta e de longos cabelos ruivos, apenas oferece uma suave frieza em seu rosto. Ambas, de mãos dadas, olham para mim, esperando que eu vá até elas. Posso vê-las com tanta nitidez e perfeição, mas...
— Quem são elas?
Sinto tanto desejo de reconhecê-las que poderia dar minha finita vida por isso. Mas não adianta. São apenas estranhas que, por alguma razão, recusam-se a sumir da minha cabeça, como se estivessem impregnadas em minhas entranhas.
Estou adormecendo. Os meus olhos começam a se apagar. A minha respiração está mais fraca e lenta. O meu coração se esforça para continuar com o seu trabalho que me acompanhou por tanto tempo, lado a lado.
Lá fora, o céu negro, que mais parece o fundo de um poço, começa a chorar, como se estivesse despedindo-se de alguém...
— Mas de quem será?
Uma formiga caminha por minha mão direita, fazendo-me cócegas. Um velho gato se aproxima da minha perna e esfrega a sua cabeça quente e fofinha nela, fazendo-me um afago. Agora, devagar, vou me retirando de cena, indo para o outro lado, que, para muitos, é tão aguardado.
A luz começa a se desligar e o nada a se aproximar. Porém, eu sinto que algo ainda precisa ser feito neste planeta. E como uma benção divina que vem me acolher, como se eu fosse uma devota agraciada, dois nomes surgem em minha boca para serem expelidos e reverberados.
Concentro-me nos últimos instantes que ainda possuo, e, em um impulso desesperado, eu as liberto, proferindo-as no ar. Porém...
— Quem são elas?
Eu já não consigo mais me lembrar...
EPILOGO FINAL
Eu não poderia dizer se seria uma lembrança ou se eu estaria vivendo o presente, mas aquela cena do quarto do hospital voltaria a se repetir. E, sinceramente, eu não saberia dizer se seria a minha mãe, mas a figura que me observaria teria a sua aparência.
Eu teria ado um mês deitada em uma cama de uma casa desconhecida, sem poder me mexer, já que foram feias as feridas que aquele bosta me causou. Por isso, eu precisaria de atenção redobrada. E eu teria terríveis pesadelos, gritos estridentes e noites mal dormidas. Mas ado esse período conturbado, eu poderia caminhar de novo — apenas por essa casa, é claro!
Eu não estaria mais em Agonia, nem em Melancolia, pois haveria muito sol. Sol que eu sentiria espalhar-se por todo o meu corpo. Seria a primeira vez que eu experimentaria isso. Ocorreria nessa casa, em um campo. Lá, um homem misterioso seria o nobre médico que me ajudaria durante esse período.
De pele bronzeada e cabelos esvoaçantes até o pescoço, ele teria a disposição de uma freira, e estaria sempre por perto para o que fosse necessário.
Eu não perguntaria o seu nome; como eu teria chegado até ali, ou quem o teria contratado. Essas respostas não seriam relevantes. Claro, suposições eu teria, mas estaria satisfeita em ficar com elas de lado.
Quando eu estivesse forte o suficiente para voltar à vida, eu lembraria de que não teria nada. Lembraria que eu não era nada. Mas ele, timidamente, ofereceria a sua casa para eu ficar, por um tempo indeterminado. O seu rosto ficaria corado com essa sugestão, pois ele não deveria ter habilidade no cortejar...
Bem, eu também não.
As maçãs do meu rosto arderiam, pois eu nunca sentira isso em minha miserável vida. Então, eu recriaria o mesmo evento da minha mãe e do meu pai, e me apaixonaria no instante em que o visse. Tudo bem que faria mais de um mês que ele estaria cuidando de mim, mas como eu estaria toda fodida, por isso, não contaria.
Faríamos uma verdadeira amizade, o que depois se tornaria em algo a mais.
Ele teria a mesma idade que eu, quase trinta, o que facilitaria a nossa união. E apesar de que eu estaria desdentada, ele perguntaria se poderia me beijar...
E eu descobriria que isso seria algo tão bom.
A sua família me receberia de braços abertos. Não ligariam para o meu ado.
— O que importa é o agora para que possamos construir o amanhã — é o que a sua mãe faria questão de me dizer. Isso me lembraria da minha avó Esmeralda.
Mas nesses dois momentos, espaçados pelo tempo, mas próximos pela vida, após enfrentar a morte, seria esquisito eu perceber que o meu “eu” teria mudado.
Na primeira vez, após ver a minha mãe partir, eu voltei presa em minhas escolhas burras e detestáveis. E presa à minha culpa, eu me mantive por anos nessa bolha escura, certa de que era onde eu deveria estar.
Já na segunda oportunidade, quando eu ressurgisse das cinzas, dessa vez, sim, algo em mim teria sido abandonado, e novos recheios postos em seu lugar. E toda aquela experiência horrível, que poderia ser um filme do meu avô, serviria para me fazer ver que nada é permanente, assim como a vida não é, pois um dia ela também irá se esvair. Sim...
O meu jeito também era possível de ser mudado.
Eu não precisava ter ficado presa em ideias dogmáticas, igual a uma religiosa bitolada. É claro que é mais fácil falar do que fazer, eu sei bem disso, mas ainda é possível de ser realizado — no meu caso seria involuntário, mas o exemplo ainda poderia ser dado.
Então, eu entenderia que a vida nos faz girar, sempre em movimento, sempre para frente. E isso é bom, pois assim podemos continuar evoluindo, sempre tentando ser uma pessoa melhor. Sempre tentando encontrar algum sentido.
Mas eu não enxergava dessa maneira.
Pois eu tinha a convicção de que eu era imutável. De que a vida era uma grande merda que jamais me deixaria sorrir de felicidade, e que nada valia à pena. Porém, hoje, eu olharia com espanto para a mulher sombria que eu era e para a mulher iluminada que eu teria me tornado. Dois contrastes espaçados na correnteza do tempo, na imensidão do espaço, espalhados pelo universo.
Sei que eu não tinha essa percepção naquela época, mas não deixo de pensar nas vidas que eu teria mantido ao meu lado se eu não tivesse sido uma desgraça. Apesar de ter conseguido evitar tantas outras, enquanto era jornalista, também causei algumas dezenas pelo meio do caminho — involuntárias ou não.
Bem, o meu amado seria muito bondoso por me aceitar, e eu não teria nenhuma resistência para me jogar em cima dele. Mas eu ainda quereria ter certeza se ele estaria bem por eu ser quem eu era. Mas, felizmente, ele não teria medo que eu pudesse ter uma recaída e voltasse a ser a aberração de uma era vivida.
E ele diria que teria se apaixonado no instante em que botara os seus olhos de amêndoas em cima de mim. Eu sempre zombaria da sua cara por isso. Afinal, que homem acharia uma mulher cheia de buracos na arcada dentária, bem na frente, mais o nariz, as mãos e vários dedos quebrados, mais uma quantidade considerável de buracos nas pernas, causados por tiros, e mais um buraco na barriga, devido a uma facada, atraente?
— Bem... Eu acharia — ele diria e sempre riria quando eu fizesse essa piada. E eu perceberia a sua paixão por mim, que eu devolveria mil vezes mais forte.
Ele ajudaria a me instalar em minha nova cidade, e se ofereceria em pagar por meu salão de beleza. O meu novo trabalho seria voltado para os cabelos, pois eu seria muito boa com cortes e penteados. Quando eu descobri que era hábil com uma tesoura na mão, nunca mais esqueci a facilidade que tinha. E eu faria
Angelique Moonlight, se eu não estiver enganada, a que fizera as tranças da minha irmã, ficar surpresa com as minhas habilidades.
Sim, eu desistiria do jornalismo.
E eu seria um ser humano simples, sem minhas merdas adas. E toda aquela vida eu largaria para trás, sem o menor arrependimento, nem o mínimo de saudade.
E veria o tempo ar...
Próxima dos quarenta, observando o pôr do sol, sentada em uma cadeira de balanço, em frente a minha casa, com a minha pequena Sarah em meu colo, enrolada em meus braços, e com o seu irmão, Sam, sentado na beirada da área, lendo um livro, eu apreciaria o silêncio do anoitecer chegar. E eu sentiria que poderia ter enfrentado tudo de outras formas. Menos vazia e menos angustiada. Menos frustrada e menos culpada. Menos sozinha e menos solitária. Talvez, apenas com a mesma determinação da Jasmim.
Bem, de vez em quando, os meus gêmeos surgiriam em meu local de trabalho. O meu marido os traria para que aprendessem o ofício da mãe. Eu não acharia que um dia eles exerceriam, porém o meu esposo faria questão de apresentar-lhes todas as oportunidades.
Sarah herdaria o dom da sua avó Esmeralda.
Isso seria ado de geração em geração. E com apenas sete anos de idade, ela já poderia ser uma chefe de restaurante.
Ela também gostaria que eu contasse a respeito das minhas “aventuras” pelas ruas de Agonia. E dos dias em que eu corria para todos os lados, atrás de informações capazes de me ajudarem. E, por alguma razão, minha filha teria uma impressão não tão ruim da minha antiga “eu”. Sim, ela saberia a verdade a meu respeito, pois eu jamais esconderia.
E os seus cabelos puxariam aos do seu pai: castanho-claros. Já os olhos seriam os mesmos que os meus: amarelo-dourado.
Sam seria mais reservado, sempre tranquilo. Ele iria gostar muito de ler, assim como o meu pai. De escrever também, e até vislumbraria uma carreira literária em seu futuro — talvez igual ao pai da Alícia. Eu esperaria que ele não quisesse seguir os meus os no jornalismo, pois as suas habilidades seriam mais bem utilizadas na literatura.
As sardas que ele teria em seu rosto lembrariam os da minha irmã e da minha mãe. E os seus cabelos também seriam iguais aos nossos: lisos e bem vermelhos. Já os seus olhos de amêndoas seriam iguais aos do seu pai; e a bondade idem. Atencioso com a irmã, ele agiria como se fosse o mais velho, e pareceria esquecer de que ambos teriam a mesma idade. Mas diferente da sua irmã, o meu filho não gostaria que eu falasse a respeito do meu ado, pois isso o causaria pesadelos.
Pobrezinho...
Ele pensaria que se ouvisse as minhas histórias seria amaldiçoado por elas. Na verdade, ele gostaria que eu dedicasse mais atenção a sua tia e ao seu avô. Eu não teria fotografias para mostrar, mas a sua imaginação criativa seria capaz de concebê-las tão bem quanto qualquer imagem seria possível.
Já o meu marido trabalharia em um consultório particular. Quem diria que eu também me casaria com um médico? Pois é, mistérios da vida.
Ele sempre perguntaria se eu quereria saber como eu teria escapado do incêndio. Minha resposta sempre seria que não. A verdade é que eu deixaria presa na mais profunda caverna, no mais infinito abismo, aquele dia, já que as agressões que aquele animal me infligiu ainda ressoariam em mim.
Eu também pensaria no que poderia ter acontecido com a Amy.
Quando eu a vi pela última vez, ela me desprezava tanto, com ódio, com nojo, que até poderia sair um monstro do seu corpo para me devorar. Tanto que, posso dizer, não sentiria mais a sua falta. A minha mãe morreu no momento em que soube da morte da Sarah. O que veio depois, eu não sei mais o que era.
Sim, pareceria injusto eu ter conquistado algo que nunca supus querer. Além da mudança que haveria em meu ser, eu ainda seria presenteada por uma nova chance. Por uma nova oportunidade. Por uma nova família.
Por novas escolhas.
E se hoje eu estivesse aqui, seria por que algo foi feito para que isso acontecesse. Eu não teria pedido por nada disso, mas seria agraciada mesmo assim.
Bem, eu sei que já disse isso várias vezes, mas a minha existência sempre foi um tormento. Porém, agora, eu sentiria que poderia ter sido mais determinada a apreciá-la com sobriedade, com luz e com amor.
Amor...
Essa palavra, que nunca teve relação comigo, seria uma descoberta e tanto. Seria bizarro como eu conseguiria vivenciá-la. A sua magnitude seria tão intensa que dizimaria, sem o menor sacrifício, as manchas negras que ainda residiriam em meu coração. E por mais que ainda houvessem caminhos complicados a serem explorados, eu não os veria como obstáculos impenetráveis, capazes de me fazerem afundar. Afinal, ter uma família tão maravilhosa e querida, iria me deixar em paz, sem temer a longa jornada que ainda iria enfrentar.
Sem temer em estar sozinha.
A vida já não seria mais como um sino estridente, que faz a honra de relembrar que tudo a, e que um dia terminará. A morte continuaria à minha espreita, mas eu não a desejaria mais. Na verdade, eu poderia manter um sorriso em meu rosto, sem medo de que um dia a minha vida ela iria levar.
Quanto à Agonia, Sarah e Sam estariam ansiosos para conhecê-la; o meu esposo também. Mas eu sentiria que não estaria preparada — ao menos, não tão cedo. Pois lá, residiriam muitas lembranças desagradáveis de uma vida amarga. De uma vida triste. De uma vida infeliz. Sim, lá também viveria...
A minha irmã
Ela nunca deixaria de me acompanhar. Minha irmãzinha continuaria presa no meu corpo, no meu coração. Ela seria a lembrança de que, por pior que tudo tenha sido, algo de bom acontecera, lá atrás, em algum momento, em alguma lacuna ignorada pelo tempo.
E o meu pai...
O meu pai também jamais iria embora. A pessoa mais maravilhosa que eu pude conhecer, e que eu pude ver, e que eu pude ter, dormiria eternamente em meus olhos.
E as sombras onde eu sempre existi, por fim, seriam dissipadas, expulsas, sobrepostas por algo bom, por algo alegre, por algo feliz. E elas me deixariam em paz. Em paz com tudo o que eu fiz. Em paz comigo. Em paz com a vida.
Vida...
A vida, que sempre me fora uma angústia, seria diferente então, pois eu não estaria mais sozinha. Com o meu marido e meus filhos ao meu lado, e minha irmã e meu pai no meu coração, eu saberia que poderia enfrentá-la com mais dignidade e respeito, enquanto a veria ar. Apenas vendo-a me levar até o fim inevitável... Ao fim iminente... que um dia...
Iria me alcançar...
POSFACIO
Para você que leu este livro...
OBRIGADO.