Universidade Federal de São Carlos - Centro de Ciências Exatas e de Tecnologia - Departamento de Química
Do galenismo à iatroquímica Claudio Cezar de Souza Junior e João Guilherme de Moraes Pontes. Palavras chave: iatroquímica, Galeno, Van Helmont.
Galenismo Hipócrates, considerado o ''Pai da Medicina'', nasceu na Grécia (460aC - 377aC) e rejeitava a superstição e as práticas mágicas da ''saúde'' primitiva, direcionando os conhecimentos em saúde no caminho científico. Entre as suas obras mais importantes está o "Tratado dos ares, das águas e dos lugares" que, em vez de atribuir uma origem divina às doenças, discute suas causas ambientais. Esta obra sugere que os fatores abióticos, tais como o vento, a temperatura e a umidade, a água ou sua situação em um determinado lugar, podem ajudar ao médico a avaliar à saúde geral de seus habitantes. Hipócrates fundamentou sua prática e sua forma de entender o organismo humano na teoria dos quatro humores corporais, que influenciou principalmente Cláudio Galeno, um famoso médico grego da sua época (131dC - 200dC). Galeno demonstrou pela primeira vez que as artérias conduzem sangue e não ar. Em anatomia distinguiu os ossos com e sem cavidade medular, descreveu a caixa craniana e o sistema muscular. Também demonstrou pela primeira vez que o rim é um órgão excretor de urina, porém a maioria das obras e dos estudos de Galeno se perderam. Sabese, contudo, que ele investigou anatomia, fisiologia, patologia, sintomatologia e terapêutica. Foi o mais destacado médico de seu tempo e o primeiro que conduziu pesquisas fisiológicas. Durante 14 séculos a medicina antiga foi aceita como verdade inquestionável, baseada em seus pensamentos. Segundo sua doutrina, denominada humorística, o corpo humano saudável era formado pelo perfeito equilíbrio de quatro humores e suas respectivas características (dadas de acordo com os quatro elementos definidos por Aristóteles – ar, água, fogo e terra): sanguíneo (quente e úmido), fleumático (frio e úmido), bilioso amarelo (quente e seco) e bilioso negro (frio e seco). Conforme representado na Figura 1 logo abaixo:
Figura 1. Representação do sistema humorístico de Galeno. Licenciatura em Química - História da Química
Seguindo esse raciocínio, podemos definir a febre como conseqüência de um desequilíbrio humoral e para conseguir a cura era necessário eliminar o excesso de um humor, dosando com um outro que possuísse a característica oposta. Esses métodos usados na medicina foram aceitos até o início do século XVI, quando novas idéias começaram a surgir. Phillipus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, cujo pseudônimo era Paracelsus (que significa superior a Celso, um médico romano), foi um famoso alquimista, físico, astrólogo e médico suíço. Defendia que as doenças eram causadas por agentes externos, ao contrário de Galeno, que justificava uma doença como sendo um desequilíbrio interno (humoral), porém causado por agentes externos, os alimentos. Paracelsus propunha "a cura pelos semelhantes", pois, se os processos que ocorrem no corpo humano são processos químicos, então os melhores remédios para expulsar a enfermidade são aqueles preparados "quimicamente". Foi um dos pioneiros na utilização de produtos químicos e de minerais na medicina. Usou da experimentação para aprender sobre a anatomia humana e achava que a astrologia fosse uma parte importante da medicina, por isso criou e produziu talismãs astrológicos para a cura de várias enfermidades. Teve sua contribuição para a farmacopéia da renascença, com a popularização do ópio e de um grande número de drogas vegetais e minerais. Nomeava as doenças de acordo com as drogas que usava para combatê-las.
Iatroquímica Resultando de uma mistura de alquimia e princípios de Paracelsus, surgiu a iatroquímica (química médica), que pode ser definida como um conjunto de idéias que tentavam explicar o funcionamento do corpo humano (e de todos os seres vivos), a ação dos organismos e das doenças segundo os processos químicos. A alquimia buscava transformar qualquer metal em ouro e para procurar o processo que permitiria tal proeza, fez com que muitos alquimistas realizassem experiências sem critérios bem estabelecidos. Com tantos experimentos, muitas novas substâncias químicas foram descobertas, e a iatroquímica pregava o uso dessas substâncias no tratamento de doenças. Paracelsus contribuiu de forma significativa para o movimento da ''química médica'', pois achava que a medicina e a farmácia deveriam se basear em leis físicas e químicas, os
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iatroquímicos formulavam muitas de suas idéias baseando nos pensamentos de Paracelsus, porém, rejeitando a filosofia química. A maioria dos iatroquímicos era formada por médicos que foram severamente criticados por suas idéias, pois eram considerados especuladores e cientistas que não se preocupavam com a vida de seus pacientes. Apesar de toda a crítica, a iatroquímica conseguiu ampliar e modificar muitos tratamentos de doenças e fornecer condições para o desenvolvimento da farmacologia. Podemos destacar o trabalho de três iatroquímicos daquela época: Franz de le Boe (Sylvius), Thomas Willis e Joan Baptista Van Helmont. Franz de le Boe foi médico, fisiologista e químico experimentador alemão. Foi professor da Universidade de Leiden e destacou-se como estudioso dos processos da digestão. Seus estudos ajudaram a trocar a ênfase médica de especulação mística que reinava até então, por conceitos racionais, interpretando as doenças como desequilíbrios químicos e físicos. Elaborou uma fisiologia baseada em processos de fermentação e de reações de ácidos e bases. A enfermidade era conseqüência do excesso de acidez ou de alcalinidade. Thomas Willis foi anatomista, fisiologista e médico inglês. Foi o co-fundador da Royal Society em 1662 e foi titular da cátedra de Filosofia Natural em Oxford. Teve sua obra altamente influenciada pelos trabalhos de Harvey sobre a circulação do sangue, pelos pensamentos de Bacon sobre o método científico e pelas idéias de Van Helmont e Paracelsus. Willis tentou aproximar a anatomia, fisiologia e química aos achados clínicos de patologia nervosa da época. Em sua obra Cerebri Anatome, cui accessit Nervorum descriptio et usus ("Anatomia do Cérebro, com uma descrição dos nervos e de suas funções"), o mais completo até então, ele descobre a finalidade das artérias na base do crânio, que é a de proporcionar o máximo suprimento sanguíneo ao cérebro. Foi um dos pioneiros das pesquisas neuroanatómicas. Em Pharmaceutice rationalis, ele procura explicar a ação dos medicamentos no corpo humano. Descreveu também pela primeira vez a acalasia em 1674, que é a mais clássica das disfunções motoras do esôfago e causa a dificuldade da agem de alimento do esôfago para o estômago. Van Helmont nasceu em Bruxelas em 1580 e foi um dos principais seguidores de Paracelsus que rompeu com a teoria dos humores. Para ele cada enfermidade tem seu próprio agente específico (archaei), e os processos químicos ocorridos nos seres vivos são controlados por um espírito que ele denominou “blas”, equivalente ao “archeus” de Paracelsus. A química de Van Helmont está influenciada por conceitos vitalistas, considerando a febre como uma reação própria do corpo e não como uma putrefação humoral, ou seja, um desequilíbrio interno dos humores, segundo Galeno.
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Para ele a enfermidade é uma espécie de semente proveniente do meio externo que se introduz no corpo humano, e atua como um “corpo estranho”. A terapia requer em primeiro lugar um diagnóstico, e para isso é necessário reconhecer o componente psicossomático, em relação com as emoções reprimidas que originou a enfermidade. Outra colaboração de Van Helmont foi a criação da palavra gás para nomear um conceito de fundamental importância para a química. Esse conceito era bastante amplo, não limitava-se apenas a explicar fenômenos meteorológicos e de transformação da matéria, mas também uma variedade de fenômenos fisiológicos e patológicos. Alguns médicos helmontianos, como foi o caso de Thomson, adotaram o conceito de gás, originalmente proposto por Van Helmont. Com o grande entusiasmo dos iatroquímicos, devido ao relativo sucesso que a medicina helmontiana estava obtendo na Inglaterra no século XVII, fez com que os médicos helmontianos daquela época tentassem fundar uma "Sociedade de Médicos Químicos", em oposição ao tradicional Royal College of Physicians. Os conceitos teóricos de Van Helmont, embora carregados de manifestações místicas, influíram nas idéias que mais tarde levaram ao estabelecimento da Bioquímica. Os iatroquímicos, contudo, influenciaram mais fortemente a terapêutica, introduzindo numerosas substâncias no tratamento das doenças, sobretudo compostos de mercúrio (Hg), arsênio (As), antimônio (Sb), bismuto (Bi) e ferro (Fe). Alguns destes compostos tiveram sua utilidade comprovada no decorrer do tempo, enquanto outros foram abandonados por sua ineficácia ou toxicidade. Destes últimos pode-se citar como exemplo o cloreto mercuroso ou calomelano, usado como purgativo e anti-séptico intestinal, e que produziu mais vítimas do que a cura das doenças. Na virada do século XVIII, a medicina buscou organizar a grande quantidade de fatos descobertos nos séculos renascentistas, dando ênfase na descrição minuciosa dos sintomas e da evolução da doença, desprezando-se a contribuição possível das "ciências auxiliares", como a química e a física. A iatroquímica foi cada vez mais cedendo lugar para outros sistemas terapêuticos e caindo em desuso. A sistematização do conhecimento homeopático, elaborado pelo médico alemão Samuel Hahnemann em 1796, foi um dos sistemas de saúde que veio para substituir a Química Médica. Apesar do pouco conhecimento científico dos iatroquímicos e da grande influência que a alquimia tinha sobre eles naquela ápoca. Não se pode negar que a iatroquímica contribuiu diretamente para o desenvolvimento da ciência e da medicina. ____________________ 1
Enciclopédia Larousse Cultural http://www.ff.ul.pt/paginas/jpsdias/Farmacia-e-Historia/node73.html http://www.lapemm.ufba.br/historia.htm 4 http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/SylviusF.html 5 https://www.sbq.org.br/ranteriores/23/resumos/0015/index.html 6 http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Willis 7 http://pt.wikipedia.org/wiki/Acalasia 8 http://proquimica.iqm.unicamp.br/iatroquimica.htm 2 3
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