Marcio Sgreccia
TRINDADE
SUMÁRIO
A VOZ QUE ME FALA
CIDADE BRILHANTE
SOBRE OS TELHADOS DE HAMBURGO
Para Fernando Bohrer
Hoje, amanhã, depois, és um pedaço de mim. No futuro, serás minhas mãos. No ado, meus pés. A qualquer hora do dia, meu coração. Tu armazenas meus olhos, meus pulmões. Serás a outra sombra. Uma árvore morta. Um desenho perdido por aí. Um pouco do lixo jogado na rua. Coisas inúteis, desprezadas. Serás a torre da igreja com seu relógio quebrado. És uma tatuagem do tempo, no tempo. As nuvens estão chorando hoje. Por tua \ minha causa. Somos um retrato desconhecido, abandonado numa gaveta qualquer. Quem mais vai se lembrar de ti?
De mim? Com certeza, ninguém.”
“Aqui as manhãs são frias. Vejo apenas paredes. Encosto-me nelas, me esfrego nelas para sentir a sensação de que me abraçam, me tocam. Mas quem ama as paredes? Elas me amam em silêncio. As noites também são frias. O céu não tem estrelas. Nunca mais vi o luar de setembro. Meus olhos marejam. Dizem que a cor azul é também fria.
Meus pés tocam o império dos mortos.”
“É isso. Já é tarde. A escuridão da noite afasta de mim todas as estrelas.”
Aquelas vozes voltaram. Voltavam sempre. Sem menos esperar, elas chegavam, assim como quem não quer nada. Acabavam por tomar conta dele. Vozes e vozes se misturando pelo corpo inteiro. O corpo também falava, respondia. Por várias vezes tentara impedi-las. Nunca dava certo. Vinham dominadoras, festejando um coral de sons diferentes. Um dia, quando estava em uma lucidez temporária, ele começou a interferir. Resolveu recebê-las como visitas, ora oportunas, ora inoportunas.Era uma tentativa. Havia imaginado esse jogo. Dentro dele, todos os
movimentos estavam perfeitos. Fora dele, uma imobilidade absoluta. Mas o jogo deu certo. As vozes voltavam quando ele as chamava. Era um encontro compartilhado.
Sair, ir, voltar, retornar, desistir. Chorar copiosamente, mergulhado em catatonia.
O abandono o abraçava com lençóis encardidos. Sua vestimenta enquadrando-o num pequeno cubículo com uma fresta, por onde, vez ou outra, entrava a luz do sol. A cela é quente e úmida durante o dia. À noite, esfria. Contra todas as possibilidades, poucos sobrevivem. Não há mais lei, nenhum deus.
“Estou semimorto faz tempo. A gente se acostuma com a realidade. Não é uma má ideia. Um detalhe: aqui se agoniza, mas não se morre.” Foi o início de uma carta não terminada. Sem destinatário. Sem endereço. A loucura estava do lado de fora. Mais do que se imagina. Nunca dentro dele. Conseguia perceber uma presença invisível. Ele via aquelas mãos, ora os pés, depois os olhos. Um olhar que dominava o mundo. Ele sentia uma estranha sensação de júbilo.
“Caminho horas e horas sobre as pedras do jardim porque gosto de ouvi-las. Componho meu oratório com os fragmentos dessas canções. Hoje, as pedras cantaram um trecho sobre a dor. Meu réquiem em pedaços.”
Troca-se ali a loucura pela vida. Uma troca embaraçosa no começo. Depois, nada mais tem importância. E que importância tem o futuro? Ele serve para quê? O futuro é um espelho embaçado.Até que haja uma transformação para sempre.
O prisioneiro e a cela se tornam uma coisa só. Pedra, cimento, umidade, calor abrasivo, frio intenso, desespero, angústia e um final feliz: a loucura. Não se
despede de nada nem de ninguém ali. Longas despedidas costumam ser fatais.
aram os anos, muitos anos.
A loucura dele chegou na hora certa e era a única saída. Mesmo não sendo uma solução. Tinha certeza de que vivia em outro mundo. Desigual. Era como se várias orquestras tocassem músicas de vários compositores ao mesmo tempo. Vez ou outra percebia algo estranho. Percebia claramente que os espíritos dos humanos estavam enfermos, e também quando a cólera do Espírito se manifestava na natureza. Totalmente absorto, cantarolou uma música triste que sua mãe cantava. Não lembrava mais a letra, apenas a melodia. Aquele som permanecia na sua mente horas e horas. Ele repetia, repetia, repetia. Não conseguia parar de repetir. Fazia parte da sua vida, do seu instante, do seu momento, da sua trajetória. Depois, ficava hirto, em estado de choque.
Assim descobria segredos da vida, objetos dos seus pensamentos. Os momentos transcendiam a neurose de não poder escolher mais. Em cada pegada deixada na poeira do caminho – foram tantos caminhos, muitas estradas –, a vida florescia em frases desarticuladas sobre o amor. O amor permanecia nas paredes desfiguradas com as pichações. O amor afrontava ali, desperdiçado em letras que se desfiguravam com o ar do tempo.
O amor tão sonhado por todo mundo e que, na realidade, não existe. Lembrou-se das palavras de Walden que alguém um dia lera para seu silêncio:
E quando ele falava, às vezes suas asas se desdobravam Como se fosse voar, e depois de novo se fechavam.
Ele era assim. Aprendeu a viver dentro do abismo. Da escuridão. Na caverna, conhecendo seus limites, na busca pela luz ausente. Tão longe, tão distante. Tão necessária dentro dele. Seu autorretrato era descobrir revelações que escapam a qualquer olhar humano.
Ouviu os sinos da igreja anunciando as vozes. Sons de plangências e de tristezas. Sua alma nômade, mergulhada sempre nas noites de insônia, solidão e melancolia, na luta contra a neurastenia, o abraçava com carinho. Um mundo desconhecido camuflando a vida. Suas raízes mortas. Que servem para sua alma prever. “Pensar, pensar, pensar até chegar a uma explosão onde sua mente pode vaguear.” Pensar com os olhos do mundo.
Então, elas chegaram. Com toda força. Desta vez vieram revestidas de luzes. Vozes que se desprendiam de coisas iluminadas. Era um verdadeiro festival de sons e cores. Como uma trupe de alegres saltimbancos. Saltitam, luzem e se recolhem em suas cores. Ele percebeu que aquela festa era um sinal. Veio anunciar sua partida, o enigma da sua existência. Ele precisava retornar ao local de onde viera. Se é que lá realmente ele existira um dia. Já não era sem tempo. Antes disso, ainda precisava cumprir uma tarefa. A obrigação do destino. Andar no fio da navalha.
Sua miséria era outra miséria.
E seus olhos encheram-se de noite.
O velho casarão estava abandonado. Uma janela quebrada pendia para o lado de fora. O jardim perdera suas flores. O mato crescia e tomava conta de toda aquela área. Resedás, dominados pelos cupins e formigas, deixaram de florescer. Alguns pés de azáleas ainda desabrochavam flores anêmicas, sentindo a falta de adubo e da rega diária de água. Tudo secava aos poucos, como quem se despede
de todas as coisas. Uma melancolia cultivava a ilusão de uma antiga casa ter sido outrora um palácio. Um único interno, caminhando a esmo, de cá para lá, seguindo a mesma trilha inventada, dizia aos quatro ventos: “Eis aqui o jardim do meu reino.” Atribuía a seu corpo a podridão de um sonho. Ele contemplava seu palácio inventado. Não sabia distinguir mais aquele que ama daquele que chora o amor que perdeu. Mas o palácio, com parte do teto destelhado, conseguia viver, milagrosamente, por trás das janelas mortas. Trazia dentro de si o mesmo silêncio das paredes de salas inventadas.
Ele era o último interno do antigo instituto psiquiátrico, desativado há bastante tempo. Esquecido e abandonado pelo ar dos anos, ele vagava vez ou outra possuído por visões. Em um grão de areia ele via paralisado o universo todo a revelar seu esplendor e magnitude. ear pelo jardim imaginário, de costas, voltado para a arquitetura, obrigava-o a manter sua dinastia. Trata-se da celebração de um amor que se perdera exatamente ali, naquelas alamedas.
Isolado naquela cela, embriagado de ilusões inventadas, diligenciava um reino, cujo trono não ava de um sonho efêmero. Enredara-se na escuridão das coisas vãs, dos ledos enganos.
Quando tinha uma crise muita aguda, e vez ou outra o sedavam profundamente, gritava um nome que mais ninguém saberia reconhecer quem era. “Um louco, diziam, um louco.”
Era a única palavra sobre si mesmo que ele não conseguiu esquecer: “Me chamo Orfeu. Orfeu. Orfeu.”
Respirando profundamente, com lágrimas nos olhos, cantarolava essa frase como uma litania aos quatros ventos:
“Nesta alameda caminham só os homens livres.”
“Aqui as manhãs são frias. Dizem que a cor azul também é.”
Está vendo aquele antigo cartaz ali no fim da rua? Quando me trouxeram algemado para o manicômio, o cartaz já estava lá. A figura anônima de um jovem fazendo propaganda de uma calça Lee fica olhando para você. Para onde você vai ele o acompanha com seu olhar. Seus olhos não querem dizer nada. São cegos. Opacos.
Desfigurados com o ar dos dias. O tempo é como um bailarino feito de vento. Ele vem trazido pela força das nuvens. Sua dança predileta é a dos mortos. É a minha predileta. Diante do cartaz, ele paralisa seus movimentos. Dia desses, pediu meus olhos emprestados para a figura gigante que está lá no alto. Então, o cartaz vê de verdade. Ele sabe para onde vai, quando volta, se não retorna, onde se esconde. Como os ratos. As pessoas são fragmentos de mim.
“Hoje, na tarde da minha alma, o esquecimento é profundo.”
Em um cartão de aniversário encontrado dentro de um livro com suas folhas já apodrecidas:
Seja um jardim
Seja uma paisagem.
Seja um jasmim.
Seja um olhar
Dentro e fora de mim.
Escrito com uma letra miúda: repetir cem vezes.
Fugazes lampejos iluminam o lado de fora da casa tentando despertar a noite sem estrelas.
Transitam entre sonhos e desejos, transfigurando um em outro.
Luzes se infiltrando no interior da terra.
Partirei só. Como das outras vezes.
Ouço vozes estranhas.
Escutei isso: “Soprana esteus torus.”
Um deus tentando transmutar um espinho em outra qualidade de dor.
Dizem por aí, nos muros pichados, que sou uma fotografia de Beckett. Sou aquele que espera. Está aí um dos meus lemas. Faltou terminar a frase. Que é esta: Venha me visitar. Qualquer dia, qualquer hora. Não se preocupe com o tempo. Ele não existe. Pelo menos para mim.
Pegue sua bike e pedale pelas ruas, sempre à noite. É uma cidade diferente, uma cidade sem dono. Uma cidade abandonada, uma Chernobyl que contamina quem se atrever a investigá-la. Venha assim mesmo, sem a máscara. Use a sua máscara comum, a trivial, aquela que você conhece bem quando se olha no espelho. Ou tenta se ver. Habito ali e aqui. Numa ruela sem saída. Numa travessa que corta o coração de quem seduz o existir, o ser. A cidade tem uma qualidade. Está sempre iluminada. As luzes dos postes iluminam suas ruas durante a noite. Também durante os dias. Elas iluminam o vazio que está dentro de você. Uma placa, a única que se vê, pintada de azul, diz que é uma cidade que quer ser contemplada.
Ir e vir todos os dias pelos mesmos lugares acaba se apagando da sua memória. Você se esquece, esquece dos seus gestos, dos seus olhares, do tom da sua voz, da cor do seu cabelo, que vai platinando aos poucos. Precisa levar um choque, ter diante de si um abismo, a carta do tarô, a carta 22, carta do louco. Diante do abismo, na expectativa de um o adiante. Um cão morde-lhe a outra perna. A dor o despertará, sem dúvida. Por um milagre, uma fração de segundo, uma respiração, a imagem de um bailarino enlouquecido. Os sonhos e devaneios que uma borboleta oferece com seu encanto.
De repente, sua imagem é silhuetada pelas luzes das estrelas e é levada pelos ventos do infinito. Um mistério envolvente que lhe dá vontade de cantar, de sobreviver ainda, se houver tempo. Nem que for por instantes reservados pelo tic-tac de um relógio invisível, seu coração. O tempo envolto por nevoeiros,
nuvens furiosas e, num clarão, o sol volta a brilhar. E vai ser sempre assim, até que venham os crepúsculos. O vácuo trêmulo do mundo inteiro.
Onde as ruas se cruzam encontra-se a estátua de uma virgem. Dizem que ela lhe traz visões. Estou indo para lá. Já vejo a estátua. Toda de mármore carcomido pelo tempo. O sol inclemente, as chuvas, o frio foram tirando dela sua vestimenta, sua pele, seus olhos, os dedos das mãos. O que restou é um pedaço de pedra que simula o que fora no ado. Uma estátua.
Cheguei perto. Olho-a. Sei que ela também me olha. Não com seus olhos. Mas com um olhar, eu diria invisível, um olhar de pedra. Não é a estátua que deseja dialogar. Mas a pedra que deu origem à estátua. Contemplei aquele esboço de imagem por um longo tempo. Até que ouvi uma voz. Acho que ouvi. Ela dizia: “Chega mais perto.”
Me aproximei lentamente e toquei no que teria sido uma de suas mãos. Ela tornou a falar: “Me dê um abraço.” Ousei retrucar:
“Você está falando comigo?”
“Sou a imagem de uma antiga pitonisa.”
“Pitonisa? Uma vidente dos oráculos gregos?”
“Isso.”
“Preciso sentir como você é.”
Apertei sua mão.
Ela sussurrou: “Conhece o poema de Kaváfis, Ítaca?”
“Não. Nunca o li.”
“Ouça: Se partires um dia rumo a Ítaca, faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras, repleto de saber. Nem Lestrigões nem os Cíclopes nem o colérico Posídon te intimidem; eles no teu caminho jamais encontrarás se altivo for teu pensamento, se sutil emoção teu corpo e teu espírito tocar.”
Depois de um longo silêncio, ela finalizou, como se sua voz sumisse no tempo:
“Agora vai.”
As luzes se apagaram todas de uma vez. Ouvia agora uma voz estranha que falava dentro de mim, em mim e para mim.
“Estarei à tua espera, deixarei que o acaso encontre a noite.”
Eu não sabia como responder, nem sabia para onde ir, se deveria ficar ali,
parado, estático, dissimulando a dor permanente do silêncio. Seria o silêncio a dor de uma estátua?
Alguma coisa parecia sussurrar no meu ouvido. Seria uma mosca? Uma abelha? Uma borboleta? Era uma sensação misteriosa. Era a sensação de uma voz que corta o tempo, como se fosse uma melodia. Mas trazia sofrimento. Ela dizia que era uma lei da vida. Uma luta constante. Também a nostalgia plangente como o som das cordas de uma guitarra cigana. Seca, incisiva supliciando o encantamento. Viver num mundo e não se sabe mais por que se está ali. Ou acolá. Pouco importa o lugar, a referência, uma história a ser contada. Há um esgar no meu rosto. Na sua face. Nos seus olhos. Nos meus cansaços. Da mesma maneira que chegou, a sensação de tristeza, embrulhada em violência, ela foi embora. Assim, do nada.
Seu sorriso é um esgar. A vida é um contínuo atrito. Não conheço a arte de agradar. Sem nenhuma concessão. Não sei como substituir a tragédia humana. E isso é apenas o começo. Ao redor, onde a vista alcança, grandes planícies com uma vegetação verde, calmante. Era estranho encontrar, bem mais ao longe, rochas alaranjadas. Minha casa tem apenas uma cadeira. Quase sempre fico em pé, lendo ou ouvindo música. Ou sem fazer nada. Olho para a cadeira vazia, uma escultura sem razão de existir. Uma luz que vem da janela incide sobre ela. A verdade é representada pela luz com seus três raios. A sombra é um esconderijo perigoso e doentio. Onde habita o assassino que mata pelas paixões humanas, dizendo usar a lei.
São os homens que levam o mundo à guerra. O mundo das representações se afasta do natural, do que é. Quem está isento de tal fúria?
De novo ouvi aquele sussurro que me amedrontava: “Enlouqueça com uma nova lucidez! Enlouqueça!”
No dizer de Thoreau: Só quando perdemos o mundo é que começamos a nos encontrar.
Estava a andar pelas ruas, meu destino de um solitário sonhador, quando encontrei uma folha de papel, escrita com letra de forma. O título um pouco estranho: Ciudad del Leste. É uma cidade do Paraguai, fronteira com o Brasil. Chega-se lá atravessando a Ponte da Amizade. Vou lê-lo para você, mesmo sendo uma espécie de panfleto qualquer sendo distribuído a esmo pelas quebradas. Não sei de quem era. Estava no chão, talvez levado pelo vento ou pelo desdém de alguma pessoa.
Diz assim, me escuta: “Meu nome é Eurídice. Nome de guerra.
Como não tenho profissão, nem estudei, fui ser sacolera no Paraguai. Não é fácil essa vida. Entrei em contato com o maior traficante da parada, aí ele me pagava para ir até Ciudad Del Este, na fronteira, logo depois da Ponte da Amizade. Os buzão têm um nome especial. São chamados de carneirinhos. Eu comprava cigarros Mistura Fina, balas para todo tido de arma e, sempre, uma arma, pra compensar. Nunca ia pros Shoppings. Comprava dos meseteros, os camelôs paraguaios.
Empacotava a mercadoria em plástico e dava para os muambeiros, que as marcavam e jogavam no rio. À noite, eu recebia meu material na outra margem. Uma Kombi aguardava o resto do pessoal. Mas, um dia, agentes da polícia federal chegaram primeiro. Focaram. Todos nós, laranjas, presos, sem fiança, sem nenhum direito. Meu pacote veio errado, só tinha armas e munições nele. Não deu outra. Pulseiras nas mãos. Aqui elas me chamam de auxiliar de fronteira, só pra encher meu saco, me fazer recordar o que eu não quero mais. Na verdade, estou no limiar do sonho e da realidade.
Ninguém veio me ajudar. Faz muito tempo que não tenho família, nem amigos. Nem inimigos. O que é bom. Família! Família é problema, porque vão te monitorar, fazer exigências, te explorar. Você tem que trabalhar para a família, para o marido, para a avó, para o pai encher a cara no boteco, para o irmão que é vagabundo, para a tia da sua mãe, para a igreja, para a escola, para o hospital, para o Governo Federal, para o Estadual, para o Municipal.
O que sobra? Pedaços. Sonhos despedaçados. Pro resto da vida que eu ar aqui. As celas estão cheias deles, de pedaços, sonhos triturados. Nas unhas, nos pés, nos cabelos, nas roupas sujas, nos espelhos. CIUDAD DEL ESTE!
Foi lá que eu morri.”
Fico a imaginar quem seria seu Orfeu?
Ele fora impedido de dar continuidade a seu amor. Não lhe resta senão renunciar a ele. Orfeu tinha uma condição para arrancar sua Eurídice do inferno: não olhar para trás. É preciso que ele não a olhe. Orfeu também é um homem, enfraquece, a paixão o domina. Na falta cometida começa a expiação. A dor da separação e a morte eterna desse amor. O amor que não foi conquistado, nem consumado. O amor que permanecerá enjaulado até o fim dos dias, além túmulo. No seu coração, foi aberta uma ferida que só o fim dos tempos poderá curar, sua morte. Orfeu, embriagado pela paixão excessiva, enlouqueceu. Congestionou sua luz astral. Eurídice, pobre Eurídice, feiticeira, abandonada pelo destino, canta o que é belo, o esplendor do verdadeiro. Sua fatalidade.Ao vagar pela imensidão do manto da noite, umbral sombrio onde correm o suor, as alucinações e o sangue. Aquele sujo folheto perdido no tempo e no espaço seria um pedido de clemência? Um grito? Uma lágrima?
Eurídice canta:
“Adeus, amor, eu vou partir,
Ouço ao longe o clarim.”
Ah! Miseram Eurydicen!…
O horror temporário separou Orfeu da sua amada. Assim diz a lenda. Agora era sua vez de se enlouquecer de uma nova lucidez. Onde encontrá-la? Por onde andaria Eurídice? Seria esquecida da sua mente e do seu coração?
“Como as noites são frias, encosto-me numa parede descascada e velha como o tempo. As paredes me amam. Tenho certeza.”
Volta a peregrinar à espera da voz que o orientaria, sua bússola de ouro. Era um processo para uma longa jornada, sobreviver.
Pela frente um labirinto denso e sombrio. Na sua alma, aridez manifestando tédio, náusea, um horror temporário ao belo. Procurou envelhecer de maneira silenciosa.
Pensando assim, ele ouviu novamente a voz. Parecia um chamado, um som melodioso, diferente de todas as cruzes da guerra que o obrigavam guardar sua diferença.
“Continua caminhando até encontrar um pé de uma árvore frondosa. Deita à sua sombra e descansa. Em seguida, formula teu desejo mais profundo e, imediatamente, faça dele a tua obra.”
Eram assim seus pensamentos. Renunciara ao objeto da sua paixão. Poderia merecer ainda o verdadeiro amor? Relembrou: enfraquecido pela tentação voltou seu olhar para trás. A falta fora cometida. Faltava agora expiá-la. Houve a queda. Vinha agora a reparação através do conhecimento. Os rituais, a iniciação de uma nova vida. No seu coração permaneceu uma ferida. Nada poderá curá-la, nada. Talvez a morte, quando ela chegar a qualquer momento. Sim, pensou rapidamente, evitando a letargia que invadia sua mente, o esplendor do verdadeiro. Não seria isso o que ele procurava? Não saber mais quem era. Nunca soube mesmo e agora não tinha mais importância. Qualquer outro valor era pegajoso, inútil, desmoronava.
Ao peregrinar por uma estrada que não tinha começo nem fim, ouviu novamente aquela voz que o diferenciava do mundo dos vivos:
“Livra-me, Senhor, da morte eterna daquele dia terrível. Livra-me.”
Tudo ficou imerso num único clarão que iluminava seu caminho, roubando-lhe a respiração. A dor desaparecia lentamente. Em golfadas.
Foi caminhando bem devagar. Era difícil caminhar, manter o equilíbrio, e ele se deixou levar pela queda.
A luz cegava-lhe os olhos. Seus gestos foram sumindo como se fossem pesados demais. Refugiara-se em um lugar repleto de cruzes. Essa luz brotava do fundo
estranho do seu ser. Pela primeira vez viu a beleza das formas reveladas.
E ele retornou docilmente à casa da noite estrelada.
Estou bem estes dias, a não ser certo fundo de vaga tristeza difícil de definir – mas enfim – recuperei mais forças fisicamente do que perdi e, estou trabalhando.
Tenho justamente no cavalete um pomar de pessegueiros à beira de um caminho com os Alpines ao fundo.
…….
Felizmente o tempo está bonito e o sol glorioso e as pessoas daqui rapidamente esquecem por um instante todas as suas preocupações e irradiam alegria e ilusões.
…….
Sempre – mas sem nenhuma palavra – um não sei o que parece significar: não sabemos o que nos acontecerá amanhã, mas seja como for, pense em mim.
(Van Gogh)
Que rosto é este que não existe mais no meu olhar?
Lá fora, as montanhas que imagino ainda existem?
Dizem que as lágrimas de todas as mulheres viúvas secaram.
Só o deserto continua sendo a incessante busca do infortúnio.
Lá, elas imploram, gritam, descabelam, agridem, oram, cantam e choram ao mesmo tempo.
São espectros que se consideram vivos e aguardam o momento de serem chamados pelas feiticeiras lamurientas, bacantes que envelheceram com a fumaça misturada do enxofre e da verbena.
Uma delas, cega de um olho, ao me notar, clama com voz rouca:
“Venha logo, infeliz. Venha. Meu tempo está se esgotando.”
Seu olho cego revirou dentro da órbita como se olhasse para todos os lados, acima e abaixo, para além do quarto fétido, imundo, cheio de tralhas. Era com esse olho que ela me via.
“Manto da noite – ela invocou com um grito de terror – invade minha cabeça, beba meu sangue, quero penetrar teu abismo como uma flor murcha que despenca do galho.”
Ela tinha os membros magros, lassos. Uma das mãos estava ferida.
“Essência das coisas venha conspurcar o orgulho ferido desse infeliz. Blasfêmia, blasfêmia, inútil.”
ou a murmurar tristes e lúgubres sons.
“Ó fumo azul, leva meu espírito até os limites supremos e abissais. A fumaça do aloés alisa meus cabelos. Embriaga meu ventre.”
De um momento ao outro, começou a se contorcer e a se coçar, desesperadamente. Rasgava seus trapos, arranhava os braços, sangrava o rosto. Em seguida, com a voz diferente, melodiosa, cantarolou uma antiga canção de ninar. Havia um ar de tristeza naquela face, no seu jeito de ser. Abrindo os braços e erguendo seu frágil corpo na ponta dos pés, com um tom de voz meiga, quase doce, parecia balbuciar uma cantiga. Algo longínquo, que desabrochava dentro dela, como alguém que acaba de renascer.
“Meu nome é Eurídice.
Quando me deu à luz, escondida dentro de um montão de caixas, minha mãe me jogou numa lata de lixo, perto da Praça da Sé. Disseram que era prostituta. A
mulher que me adotou morreu cedo. Fui criada por uma falsa avó meio doidona, vivia bêbada e drogada. Sua casa estava sempre cheia de homens. Ela dizia que adorava o cheiro deles. Eu era o brinquedinho dela. Subia numa mesa, dançava a dança da garrafa, depois tirava a calcinha. Eles deliravam. Até que fugi daquele lugar, fui morar nas ruas. Nas ruas eu conheci a liberdade absoluta. Perdi o medo, enfrentei a barra pesada, me misturei com bandidos. Pra matar a fome, me obrigaram a vender droga. Só que aconteceu uma coisa estranha. Meu sonho era ter um vestido de noiva. Até hoje não sei bem o porquê. Se eu tivesse um vestido daqueles, eu poderia encontrar minha mãe. Aí a gente ia morar junto, ter uma casa só nossa, comida: pão, manteiga, café, saladas, arroz, feijão, carne, doces. Adoro doces. Quem não gosta?! Eu ia estudar, ela me obrigaria, tenho certeza. Também ia me contar histórias à noite, e a gente cantaria todas as músicas do Roberto Carlos. Até que, um dia, eu achei um vestido de noiva. Coisas do destino. Na certa, uma noiva abandonada no altar deve tê-lo jogado no lixo. Estava todo rasgado, sujo. Fiquei louca de alegria: um vestido de noiva em minhas mãos! À noite, eu me vestia assim e saía pra vender pirulito e também droga. Do meu trabalho clandestino saía nosso orçamento, nossa comida, a bebida dela, os desatinos, desavenças, incertezas. Me botaram até um apelido carinhoso: “Barbie di branco.” Foi desse jeito que me pegaram. Um filho da puta me dedurou, tenho certeza. Para livrar sua cara, o filho da mãe. Mas não tem importância. Aconteceu assim de uma maneira que não podia acontecer. Foi uma coisa linda. Eu me vi refletida numa daquelas vitrines luminosas do centro da cidade, com uma coroa de fogo cobrindo meus cabelos. Chamas saiam do meu vestido e se espalhavam pelas vitrines, pelas paredes dos prédios. Comecei a dançar desesperadamente. Eu tava muito louca, com a cabeça feita, o meu sangue explodindo dentro do corpo. Gritei pela minha mãe quando eles me pegaram. Gritei o mais alto que podia. Mas ela não apareceu de nenhum lugar. Faz meses que estou aqui, cumprindo minha pena, pagando pelos meus erros, dizem eles. Que importância tem a opinião deles? É pura bobagem, é só uma experiência de vida. Tudo um lugar qualquer. Mas eu guardo um pedaço do meu sonho. Ver minha mãe um dia, entrando por aquela porta, segurando minhas mãos nessas grades, apertando elas até sangrar. Porque ela mora escondida dentro do meu silêncio.”
Ela foi se arrastando ao redor da bacia, de onde ainda exalava um pouco de verbena.
Não havia mais fumaça. O ambiente cheirava mal. Parecendo acordar do seu transe, veio em minha direção e vociferou:
“Saia daqui. Siga teu caminho, teu caminho, teu caminho. Ai!Ai!-Ser abominável das trevas desapareça para sempre. Desapareça! Ai!Ai! Saia daqui.”
Aos urros, como que possuída por um espírito maligno, manifestava a dor que a deixava ausente e a irritava naquele momento crucial. Jogando os braços para os lados, para cima e para baixo como se não tivessem articulações, expulsou-me do pequeno quarto, sua pocilga, onde vivia, certamente.
“É uma louca”, assim me diziam. “Uma louca. Saia daí, depressa, ela tem uma faca escondida no travesseiro. Saia daí, forasteiro.”
Ah! Miseram Eurydicen!…
Ontem sonhei com minha mãe. Estávamos numa rua congestionada, e ela se separou, dizendo que tinha hora marcada no dentista. Ela se virou e deu aquele sorriso de felicidade e sumiu entre as pessoas. À minha frente, uma banca onde eram vendidas pedras preciosas e semipreciosas. A vendedora me mostrou uma pedra de um azul diáfano. É sua, disse-me ela, me entregando a pedra. Presente de sua mãe.
Olhei para aquela pedra na minha mão e percebi que deveria ser um sinal. Leveia para um amigo, para lapidá-la. Dias depois, ele me chama e me entrega um falso diamante azul, de invencível transparência, com movimentos irisados por
uma luz que o transa, prisma multiplicando-se, um sedutor. Agora talismã.
Minha mãe faleceu há muitos anos.
Voltou a caminhar pela estrada poeirenta, sem destino. Ir sempre, até o desaparecimento, além do horizonte. No corpo dolorido pelas cruezas das guerras – batalhas perdidas onde se refugiara – revelava um ser incompreendido.
Sozinho diante do esmagamento do universo tornou sua alma um jazigo ambulante.
Um ser varejado de fragmentos, e a dor de existir. Não poderia mais subestimar o medo de imitar a si mesmo.
Sua maneira de viver rangente, levando adiante um fio de mistério.
Ao redor, uma paisagem triste, quase desolada, sem nenhuma atmosfera infiltrada de magia. A natureza e suas mil faces. Máscaras sutis do dia enfeitiçando a noite. Menos no entardecer de um fauno.
Uma voz sussurrava nos ouvidos com insistência: “Canta comigo o novo hino nacional.” Começa assim:
“Ouviram do Rio Doce
As margens poluídas e suas águas mortas…”
Não conseguiu continuar. Sua voz embargada o desrespeitava. Soluçou como se o grito de uma águia fugisse da garganta.
Foi possuído por uma tristeza profunda. Invocou para que as garras do destino não o apertassem tão terrivelmente.
Nem por estes, nem por aqueles, nem por outros do ado que não começou.
Duas crianças com flores nos cabelos corriam pela estrada. Chegaram perto e dançaram ao redor dele. Riam felizes. Uma delas entregou-lhe um envelope. Olharam fixamente para ver qual seria sua reação. Da mesma maneira que chegaram, saíram correndo. Confundiram-se com a estrada.
Ele parou, sentou-se para um furtivo descanso, abriu o envelope. A data era incompleta e a página envelhecida pelas marcas do tempo, tinha miosótis colados na parte superior, do lado direito. Leu:
“O coração é um músculo. Todo mundo sabe disso. Distribui o sangue pelo corpo através de dois movimentos: sístole e diástole.
Para mim, Eros e Anteros.
O coração é o órgão que fala. Se você está triste, ele o derruba. Se estiver alegre, você pula, canta, dança, grita, faz um escarcéu.
Se tiver ódio, ele assassina.
Se tiver paz, ele te eleva.
Portanto, ele é a vertente da vida, o tambor dos sobreviventes.
Sei de uma grande verdade: o amor acontece. Não tem hora nem data marcada.
Pode ser inesperado, pode ser que sim, pode ser que não. Pode ser arredio, tímido, por ser enganoso, pode ser forte, ambicioso, empolgante. Ou pode ser um grande desastre. Tenebroso como uma tormenta. Quantas escolhas, quantas opções, quantas…
Dia desses, recebi um ramalhete de flores silvestres, com um lindo cartão e esses dizeres:
‘Venho te observando há meses. És a razão da minha vida.Te amo de paixão.’
Coloquei essas flores num vaso sem água em uma janela, do lado de fora. Deixei que no tempo as murchassem e suas pétalas, levadas pelo vento. Simples rotina da vida sem resposta.
O amor é um estado de espírito. Uma fornalha ardente! Está na Bíblia.
‘Como é fraco o sabor do amor se esperas que um rosto te preencha.’
Não vai te preencher nunca! Sei disso muito bem. ei no teste da experiência.
Vou ser sempre aquele que resistirá ao amor porque sei que é assim que vou amar. De verdade.
Para a grande maioria o coração é um cofre de tesouros, vazio. Porque o meu amor sabe ouviras canções da tarde. Eurídice.”
Leu e releu a pequena carta. Sentiu-se abandonado apesar de toda singela doçura que acabara de ler. Eram palavras que cintilavam nos céus das noites. Murmurou:
Ah! Miseram Eurydice!…
“Aqui os dias são frios. Encosto-me numa parede. Me esfrego nela como quem abraça. Dizem que a cor azul é fria.”
Não sabia dizer quanto tempo caminhou. O sol estava forte, ele suava bastante e tinha sede. Mais à direita viu um posto de gasolina abandonado. Tinha a
impressão de que a terra estava assim, tudo devastado. Não saberia dizer se o pano de fundo de toda aquela tristeza fosse alguma guerra. Não seria impossível. Caminhou até o posto. A bomba de gasolina indicava alguns números, os últimos litros de gasolina consumidos. No que restou de um banheiro, ele encontrou água. Estava turva. Deixou a torneira aberta escorrendo até clarear mais. Lavou o rosto, os braços, molhou os fartos cabelos esbranquiçados.
Depois, bebeu daquela água abençoada.
Ao sair, olhando para a desolação, lembrou de Exupéry:
A humildade do coração não exige que te humilhes, mas que te abras. É essa a chave das trocas. Só então podes dar e receber. Essas duas palavras marcam um mesmo caminho. Não as sei distinguir uma da outra. A humildade não é submissão aos homens, mas a Deus. Assim a pedra é submetida, não às pedras, mas ao templo.
Quando tu serves, é à criação que serves.
A mãe é humilde em relação ao filho, e o jardineiro relativamente à rosa.
Era estranho aquela lembrança vir agora, enquanto descansava um pouco. Era jovem e partira para o Rio de Janeiro numa terceira-feira de Carnaval. Fora transferido para o Seminário São José, que ficava no bairro do Rio Comprido. Tudo era novidade, diferente, consumindo seu retraimento e seus medos. Iria estudar aramaico e hebraico. Ficou um bom tempo na sala de espera com a pequena mala com seus apetrechos. Um padre pediu para que aguardasse ali. Vez ou outra, ligava para alguém, aguardava instruções. O calor era forte. Não tinha
ventilação na sala sem janelas. Depois de um tempo, o telefone tocou. A seguir, pediu que eu preenchesse uma ficha. Depois, um seminarista me levou ao meu quarto no terceiro andar. Disse que o almoço seria às 11h30, e minhas aulas, um dia sim outro não, pela manhã. Ele também frequentava esse curso. Agora era o momento da sua Última Ceia. Chamada do sino para o refeitório. As mesas eram grandes, tinham 14 lugares. Deram-me o lugar à direita de quem ficava na ponta da mesa. Acho que ele era uma espécie de líder. Feitas as orações de agradecimento, começaram a servir. Alguém lia um texto cujo autor eu desconhecia. Sua voz esganiçada provocava risos disfarçados. Os pratos vinham um a um para o seminarista que estava à cabeceira da mesa. Ele era mais antigo e tinha o privilégio de se servir primeiro. À medida que chegavam as bandejas, ele se servia e ava adiante, para o seminarista que ficava à sua esquerda. Ele se servia, e a bandeja ia se esvaziando aos poucos. Quando chegava a minha vez, ela já estava completamente vazia. A única coisa que deixavam eram sobras de abóbora. Sem tempero, apenas cozidas na água. Na minha cidade, era comida para porcos. Tempos das bolotas de carvalho.
Apagou aquela imagem dolorida da sua mente. Não tinha mais importância. Eram tempos idos, tempos mortos.
Outras experiências o abraçaram como quem se despede algum dia e segue seu caminho.
Partiu em busca do seu universo, uma atitude de renúncia. O início do fim das primeiras horas começava. A loucura de Orfeu manifestava seus sinais. Primeiro sentiu que a vida de qualquer ser humano era muito pequena. O instante de um olhar. Um cáustico piscar. Não era suficiente para decifrar aquilo que pretensamente move as pessoas. A capacidade de amar. Um tempo rápido, relativo, curto. Proferiu a sagrada oração para os mortos. Não se pode fugir ao destino. Tudo era muito triste porque nada parecia ser seu lugar. Nenhum lugar era seu lugar. Deveria prosseguir sua caminhada revivendo cada etapa do ser amado que partira. Não se domina o amor. O amor escapa pelas mãos. Escorre de dentro para fora. Alucina. Ilumina o corpo. Atinge um estado de plenitude.
Fugazes lampejos. Depois, fez um grande silêncio dentro e fora de si. Relâmpagos arriscados. Reinventados. A paixão cega. Faz perder as certezas. Ilude. Trai. Conspurca. É incompreensível. Assassina. Traz. Deforma.
Na cidade desconhecida eu não amo ninguém. Eu sigo sempre por ruas que vão longe demais (Charles Dumont).
Em todos os lugares, o amor acaba. É um fim sem fim. O doloroso sinal. É cortante. Rasga e dilacera. Tem garras afiadas.
Num raro instante de memória, lembrou-se de sua mãe já no final da vida. Ela telefonava todas as manhãs para suas amigas. Depois de uns tempos, todas mudaram o número de telefone. Desatenta, ela murmurava: “O telefone está ocupado.” Mas, na realidade, dava o sinal de inexistente. Ela o chamava e sentavam juntos no banco pintado de branco do alpendre que dava para a avenida. Ela gostava de ver as pessoas andando pelas ruas. Algumas a cumprimentavam. Depois, não mais. Ela dizia, desafiando o grande silêncio que os envolviam: “Conversa comigo, meu filho. Conversa. Fala alguma coisa.” Então, ele pedia para ela cantar.
Grossas lágrimas brotaram dos seus olhos agora cansados de silêncio. Andava entre a multidão apressada e ele tinha a sensação de que todos fugiam dele. E tudo se apagava. Vinha o esquecimento como uma bênção.
Encontrou um pedaço de espelho jogado no que teria sido um monte de lixo. Recolheu-o como algo precioso. Guardava ali sua imagem refletida, todos os reflexos deixados pelo mundo, todo o avesso da vida. Olhou-se demoradamente. Viu seu olhar perdido na loucura, esse olhar que descreve a angústia de momentos terríveis. Certa vez, um policial o prendeu porque não portava documentos. E o que importavam os documentos? Por que eles eram o elo entre
o mundo abandonado das ruas e as ruas iluminadas para que seus transeuntes pudessem perambular com tranquilidade? Viu no espelho um pedaço de um quadro de Goya. Conheceu suas pinturas andando solitário por ruas mais solitárias ainda, pedindo um pedaço de pão que não recebia nunca, o frio o atormentando noite e dia. À noite, perambulando com jornais velhos e pedaços de papelão para dormir escondido em algum lugar mais abandonado do que ele, faminto, olhava para o alto e perguntava às estrelas: “Vocês gostam de jantar?” Até que o mal se acoplou à sua mente, à sua alma, aos seus desejos mais intensos. Relembrava os melhores momentos de seus fracassos. Aquele olhar refletia os momentos terríveis que um ser humano pode enfrentar quando já perdeu toda a esperança do amanhã, mas tem ainda a cumplicidade de ser testemunha da vida quando ela está perto de ir embora para sempre. Jogou o pedaço de espelho no chão e o triturou em mil pedaços com os pés até se ferir.
Tudo parecia um sonho distante, um sonho jamais sonhado antes. Estava numa arena. As vozes voltaram inusitadas:
“O artista é como um toureiro apaixonado. E que perdeu seu amor de outro toureiro morto pelo touro (Minotauro). Ultrajado em sua dor, o olhar febril, lágrimas douradas cegando-o, vestido de trajes de luces, num ritual sagrado diante da Virgen de sua devoção, cercado por doze padriños e que agora vai enfrentar com geometria, coragem e beleza a massa negra de toneladas de fúrias primitivas de puro sangue, diante de atônitos humanos que vão gritar olé (corruptela do brado Alla-Deus). A Morte e a Vida rondam o espetáculo ‘a las cinco de la tarde, a las cinco em punto de la tarde.’ Como um Teseu camuflado quer redimir sua pátria e trazer de volta o sonho de sua amada, se junta ao grupo de vítimas que a sorte havia designado e partiu para aquela estranha mansão com seus corredores escuros.”
Minotauro escondido nas trevas. É ali que ele mostra sua cara. Desvairados gritos. Quem nunca os ouviu? Quem nunca derramou lágrimas e sufocou seus gemidos? Quem? Se eles estão nas ruas, em qualquer esquina, nos muros pichados.
Amargos olhares espatifando-se nos cacos que sobraram. Que se espelhavam. Do que não se consegue. Do que não mais se quer. Não há mais ninguém para se ver. O toureiro é atingido pelo touro enfurecido. Ferido mortalmente, é levado primeiro à capela do estádio. Rezam por ele, acendem círios, a Virgem o contempla sorridente. O sorriso eterno.
Pensou: quando temos menos coisas para carregar, menos fardos pesados, nos aproximamos de nós mesmos. Não se apegar a nada e a ninguém e se deliciar com o nada. O cheiro da cera derretida dos círios era sufocante. As chamas das velas trepidavam, fustigadas por leques que, ao serem abanados, provocam um ruído estridente. Não se clamava pela vida. Era uma troca. Uma oferenda. Um ultraje. Uma violação. Gestos inoportunos. Um choro convulsivo, melodramático, esperando a derradeira hora, o derradeiro suspiro, o último olhar. Preferia estar só. Queria estar só. Era seu último desejo. Seria atendido?
A dor era muito forte, mas já não incomodava mais. A dor não é mais dele, apenas de um corpo solitário em busca de misericórdia.
Naquele instante começou a ouvir uma música estranha, diferente, uma agradável melodia. Pensou que fosse o vento vindo da arena. O vento levantou um pouco de poeira e ele fechou os olhos se protegendo. Não era o vento. A música vinha feito uma névoa. Uma névoa carregada de sons. Imersa em suavidade, e aquela música que o tocava profundamente. Foi seduzido por ela por um longo tempo. Paralisado, sem mover um músculo do corpo que lhe exigia o silêncio, e aquela música penetrando sua mente, seu corpo, seus músculos, seus ossos, sua coragem, suas fraquezas, seus delírios, sonhos, incertezas, obstáculos, fronteiras, ilusões e lágrimas. Respirava aquela inebriante música. Ela aliviava seu sofrimento, o sangue derramado. Até que um grande silêncio se transformou, com intensidade, naquela sublime melodia.
Abriu os olhos. Mexeu os dedos das mãos. Ousou dar um o. Parecia flutuar.
Olhou ao redor. Era difícil sair de um lugar mais abandonado e mais adverso do mundo. Ali não há deuses. Apenas o capim com suas sementes desafiam o vento. O piar de um pássaro soleniza ao longe o silêncio. A terra devastada, conforme escreveu T.S.Elliot, o poeta:
As palavras se movem, a música se move apenas no tempo. Mas só o que vive pode morrer.
Abril é o mais cruel dos meses, germina lilases da terra morta.
Terra revestida de uma tristeza ignota e profunda, de imaterial translucidez. Mesmo assim, resolveu enfrentar a dura realidade.
Na arena, a multidão enlouquecida gritava olé, olé e jogava flores no touro mortalmente ferido pelo outro jovem toureiro, o mais belo, o mais forte, o mais provocante, o mais audacioso, o iluminado. Os paradoxos existem, precisam ser vivenciados. Se agora fosse noite, pensou, olharia as estrelas de mundos distantes e deixaria de sofrer dores extremas. A vastidão do universo o acalentava.
Cerrou os olhos novamente por instantes. Não sabia para onde ir, se devia continuar naquela estrada, se ela era, na verdade, o rumo certo. Na sua imaginação, viu imagens coloridas que desapareciam e voltavam com cores diferentes, como se fossem uma misteriosa revelação. Pareciam espelhos quebrados refletindo raios coloridos de todos os planos do abismo. Atordoante. Sentiu na boca um sabor amargo. Mortal. Ele estivera no subterrâneo de Elêusis
e agora podia olhar além de todos os domínios quando queimou mirra e zimbro proferindo palavras que forçam as vontades. No chão poeirento encontrou uma pequena foto. As imagens coloridas tinham desaparecido. Estavam desbotadas.
De onde esse pequeno cartão teria vindo? Quem o deixara ali? E por quê? Do outro lado, esses dizeres:
“Bênção da Casa.
Nesta casa não haverá tristeza,
Nesta moradia não haverá sofrimento,
Nesta porta não virá temor,
Neste lar não virá discórdia,
Neste lugar haverá somente Paz.”
Paz. Quem teria escrito aquelas palavras? Lembrou dos seus pés. Tinha asas nos pés. Neles guardava suas lembranças. Nos pés ocultava os segredos. Seus pés nada revelaram.
Palavras de outro poeta surgiram no seu encantamento:
Ó estrada que viajo, a mim dizes: Não me deixes?
Dizes: Não te aventures, se me abandonas estás perdido.
………
A terra não se cansa nunca.
A terra é rude, quieta, a princípio incompreensível.
………
Não percais a coragem, continuai, existem coisas divinas bem es-condidas.
Eu vos juro que existem coisas divinas mais belas do que possam as palavras dizer. (Walt Whitman)
Era um chamado. Sua eleutéria.
Caminhar sempre era seu destino. Estava traçado desde seu nascimento nas linhas das mãos. Ao respirar o traçado das estrelas. Antes no coração de algum lugar. Mas para onde? Na sua mente vieram imagens novas, diferentes das habituais. Eram estilhaços. Uma torre alta e uma construção circular, de pedra. No centro da nave, uma mesa de mármore branco onde eram realizados sacrifícios todos os dias. O sangue do Cordeiro era oferecido como libação a todos os deuses da Terra.
Chora Istambul, chora.
Miserere nobis.
Chora Aleppo, chora.
Miserere nobis.
Com uma sensação de angústia envolvendo seus sentimentos, pediu de maneira comovente um pouco de clemência à sua sombra.
“Sempre acabo por me submeter à roseira que cultivo para decifrar suas perplexidades”, pensou em voz alta. Tenho necessidade de um caminho. Talvez de um muro onde possa me escorar. Diante do muro poderei me lamentar, descobrir outras memórias sufocadas, decifrar enigmas. Longe das abominações enraizadas e dos milhares de pegadas de caminhantes que se perderam nas margens do grande rio que secou. E dos códigos de leis que foram abandonadas. Porque envelheceram suas raízes.
A sombra sussurrou: “Não se salva as pessoas que desejam partir”. Sorrateira, ela partiu como se nunca tivesse vindo.
Fez um esforço prolongado e sincero. Ninguém mais poderá me conhecer porque me libertei de mim mesmo. Apenas os olhos me prendem à terra. Descobrirão no meu vislumbre: vales, montanhas, rios, pedras, flores, cidades, ruas, portas, janelas, cores, raios, nuvens, árvores. Talvez, sonhos. Um sonho, talvez. Amores abandonados à beira dos caminhos. E distâncias que as estrelas oferecem. Mas havia nele uma tristeza profunda, muito bem guardada, talvez escondida, não revelada. A morte do amor, a longa e definitiva ausência. Uma certeza já destruída. Ele tinha o seu mistério. Tudo o que poderia levar de amargura ainda lhe restava a epifania da dor.
Em um dos raros momentos em que se via como que diante de um espelho embaçado, escreveu na parede da cela, com fezes e urina, sua sinfonia do desafio: “Pelo amor de Deus, me deem o chá da meia-noite. Eu não sou ator. Só um ator sabe morrer.”
Permaneceu enclausurado na obscura desolação, não soube mais o que viria depois. Cede por instantes, tem lá um momento de fraqueza. Sutil, rápida como um relâmpago, fugaz. Bem mais ameaçadora.
Os olhos marejam lágrimas.
“Quem é Eurídice?” ouviu aquela voz distante, uma voz sem brilho, uma voz estilhaçada. Uma voz que se ausentava. Uma voz vinda de longe, indo embora para regiões mais distantes. Talvez ainda ouvisse seus pensamentos. Não se lembrava mais. Respondeu assim mesmo.
“Não sei.”
“Pensa um instante.”
“Deve ser alguém que já não existe mais.”
“Pode ser.”
“Não sei quem é nem de quem está falando.”
“As lembranças deixam um grande vazio.”
“As lembranças doem.”
A memória está vazia. O coração está fechado.
“Ah! Miseram Eurydice… Miseram!” ouviu aquela voz pela última vez.
Palavras amargas, feridas que não cicatrizam. Foi como o soprar de um vento. Naquele momento, foi-lhe ordenado que abandonasse tudo o que lhe pesava nos ombros. Descalçou as sandálias, despiu-se de toda roupa usada na arena, suja de sangue e terra, e que tinha a forma do seu corpo. Foi-lhe dada uma túnica nova de linho branco. “Veste-a e respira profundamente.” Sentiu-se fortalecido.
Conseguiu sorrir, um leve esgar. Ria de si mesmo. Olhou para a imagem da Virgem que o olhava com ternura. Caminhou o a o pela estrada coberta de pó, um tapete macio. Encontrara no deserto da sua alma a paisagem desconhecida. Apoderava-se dela, lentamente, como uma visão, esse poder sacralizado do olhar. Ser livre e espantar todos os inimigos visíveis e invisíveis. Libertar-se de si mesmo envolto numa luz âmbar. A pé, envereda pela estrada aberta. A voz sussurrou-lhe: “Ser tocado nos pés por aquele que conhece.” Sentiu-se leve tendo o mundo como uma visão jamais imaginada, o grande e longo atalho pardo à sua frente para levá-lo aonde ele queria. Era uma tentativa alucinante. Tinha uma emoção semelhante à do amanhecer.
“A terra é o quanto basta, pensou.
Por algumas razões vale a pena morrer.”
No seu coração, sonhava com vitrais góticos.
Não se preocupe. Dentro daquele traje em farrapos ele não está mais vivo. É um peregrino, um fantasma que caminha. Não por muito tempo. Dentro dele a esperança se calou. Aos tropeços, procura o fim, bem perto do abismo. Vai por uma estrada poeirenta, trajetória desconhecida que não tem começo nem fim. É apenas um caminho tortuoso como é a vida ou como a vida se tornou. Tal como ele, estamos sós. Vamos atrás de suas pegadas antes que o vento as apague. Vamos segui-lo como uma sombra. Uma sombra que esquece.
Suas últimas palavras ainda ressoam como eco:
“De alguma maneira, o ódio tem que acabar. Como acabam as folhas das árvores, os riachos, as flores, os campos cultivados, as ervas daninhas, o coração da terra. De alguma maneira, todos morrem. De alguma maneira. Haverá clemência para o homem?”.
Estranhas e perturbadoras palavras. Ele não riu, nem chorou, nem gritou o nome de alguém conhecido. Simplesmente sua memória foi apagada. Ou deletada de longe, por alguém que o persegue.
Partir, simplesmente partir. Quando se despede sem olhar para trás. Não deixar que lágrimas escorram pela face de abandono. Uma face esquecida, não coberta de afagos, beijos sorrateiros, esgares, sorrisos disfarçados, enganosos olhares. Só mais uma vez um pouco de indulgência. Só um pouco. O que é justo é justo.
Mostrar que um bando de pintassilgos voltou com a permanência do silêncio. Tão sepulcral, tumular.
Formigas avançam em fileira e cortam as flores e folhagem dos pés de hibiscos. Devastam tudo.
Não se muda o destino, assim, de uma hora para outra.
Thoreau escreveu: “Só quando nos perdemos, em outras palavras, só quando perdemos o mundo, é que começamos a nos encontrar”.
As instituições sórdidas dos humanos não reconhecem isso. Elas nos escravizam, nos dominam, nos cerceiam, nos algemam, nos aprisionam dentro dos dias e das noites. am meses e anos, e pouca coisa muda. Ou quase nada. Nem o olhar que olha a natureza se transformando.
Um olhar alucinado. Um olhar que coloca, sobre nossas torres, a lua como sentinela. Porque o mundo está suspenso na ponta de um cetro. Um olhar alucinado que faz os anjos voarem como nuvens desajeitadas.
Do outro lado, adiante, onde todas as visões se perdem, o sol faz pairar sua glória.
Sonho que estou caminhando numa montanha. Do alto, vejo os mortais sem freio descendo em multidão. Ouço gritos de dor que se misturam com os latidos dos cães contaminados.
É o sinal da vida nos mordendo.
A vida em nós é como a água de um rio.
Sei que não podemos acordar os mortos. Mesmo aqueles que cruzam nosso caminho e trazem esculpidos nos lábios um esgar. O olhar é sempre triste, opaco e sem brilho. Carregam nos ombros um fardo pesado. Dizem que lá estão suas almas. Revestidas de chumbo.
Como um ladrão, roubo coisas e objetos da natureza. Uma folha de canela, cujo cheiro exala a distâncias quando macerada, um botão de rosa, miosótis, uma penca de amor-perfeito, violetas que se escondem no meio da densa folhagem, margaridas coloridas e outras, outras. Depois, peço perdão. Elas entendem.
Não gosto da miséria do mundo. Ela me assusta. Tenho repugnâncias com o que apodrece no espírito.
Meus pensamentos se modificam a cada minuto.
Tento sacrificá-los por horas. Tenho a impressão de que tudo ficará perdido, abandonado, esquecido, deixado para trás. É uma questão de tempo, de minutos, segundos, talvez. Um caos. O sofrimento revestindo a terra com seu manto de dor.
Trevas. Escuridão. Desejos. Anseio incontrolável de ver uma estrela.
Gosto de ver o céu noturno porque não há lugar nenhum do mundo com tamanha vastidão.
Celebro o fato de ainda estar vivo. Não sei por quanto tempo. O tempo de uma respiração.
O que incomoda são as cores sombrias que rodeiam a morte. Meu Requiem.
O cântico da manhã se faz solene pelos sentinelas da luz.
Longe dessa rota, o cometa ensanguentado acorre das profundezas do céu.
Por que ele perturba a harmonia das esferas?
A fuga das horas me confunde.
Tenho aversão a essas taças da verdade onde são degustadas leis com o sabor de uma derrota.
Leis que não sobrevivem, leis de estações.
Os bens da terra se esgotam e secam com obstinação.
Esses frutos amadurecidos à força dentro de jardins fechados.
O azul do céu entrou em mim antes que abrisse os olhos. O perfume exalado por uma maçã partida ao meio me despertou.
Romãs maduras enfeitam a mesa, com sua toalha branca de barrado de rendas. Mãos artesãs desconhecidas tecem manhãs sonoras, sonhos da desolação. Teias de aranha desmantelando o coração.
O vento da noite atormentou, de várias maneiras, a chama de uma vela, até ela se apagar. Uma bailarina que se despede dos palcos. Agora, tece rendas, porque a velhice a recobriu com trajes negros. Mãos que dançam e mergulham a solidão em cânticos antigos, a mesma melodia quase sonolenta.
As estrelas das constelações da primavera brilham como espelhos que ofuscam com suas roupagens esplêndidas. São radiantes! Mas dizem que algumas delas morrem sem esperança eterna.
Nuvens sendo levadas na direção oeste se avermelham ao crepúsculo.
Estranho abandono me abraça e me extravia do caminho doloroso. Aquele que não deixa sonhar por dias e noites seguidas.
O ar permanece inebriado do amargo ardor dos nossos lábios.
Estradas arenosas nos levam aos mercados que buscamos.
Procuramos pelo sumo ácido de frutas silvestres. Mas disseram que o tempo delas já havia ado.
Mesmo assim, imploro: “Meu Deus, meu Deus, quando me glorificas?”
Conheci pedaços do mundo. Não sou um viajante. Aprendi que a verdade é uma lei cega.
Deve-se confiar nas aparências?
Como elas o enganam com verdades inventadas!
A liberdade – esse Ícaro sem asas – deve seguir em frente, aos trancos e barrancos. Como quem abandona algo que deve ser esquecido. Espremer a memória, desertificá-la. Alguém colocou essa frase como seu epitáfio:
“O túmulo é a agem para a terra nova”.
Você tem que aprender a perdoar aqueles que o colocaram no caminho das estrelas.
Qual é o lado oculto do seu nome?
O dogma fala sobre os querubins. Sobre eles faz pairar toda a glória.
Como serão os querubins?
Habitam eles a grandiosa terra mergulhada em solidão?
Violentar as horas dos dias seria um ato de sedição.
As horas am, demoram, as horas não am. Me desoriento nelas para dar meus os por caminhos naufragados.
Minha avó me dizia: “O bom anjo é aquele que tempera”.
Diante dele, a morte recua como a noite diante das estrelas da aurora.
Quem irá roçar, como mato seco, as espigas maduras do século vindouro?
Quando os sábios desanimados adormecem na noite da dúvida e inspiram o pó dos velhos tempos, acenderão o candelabro de ouro e descobrirão onde é o centro de todas as luzes. Mesmo contaminados, seus olhos serão abertos.
Os inimigos se arrastam servilmente como sectários cegos. Trazem no peito um símbolo nefasto, impregnado de um temor supersticioso.
Faça diferentes escolhas. Prorrogue o destino. Permaneça estranhamente absorto em cada gesto para perpetuar o enigma do espírito.
“Quando clarear, sei que é a aurora. Então, me levantarei e sacudirei meu malestar. E abordaremos a terra desconhecida”. Onde não se pode apegar a nenhum pensamento! Onde o silêncio é uma profunda polifonia. Onde a mente discorda de Deus. Onde os muros têm por missão exilar a música.
Crisântemos azuis, adornai-me.
Minha coroa de espinhos. Gotas de láudano molham minha face.
Luzes neon cintilantes, estrelas das ruas da cidade que preferiu morrer.
Houve um tempo que minha alegria era tão grande sempre ao cair da tarde.
Quando as pessoas se escondem dentro de suas casas, permanecem sentadas ao lado de alguma lâmpada acesa, enchendo meu coração de desprezo e tristeza.
O orvalho era uma gota de lágrima, embriagando-se com o renascer da aurora, ofuscando-se com o esplendor da planície. Alimento-me de flores silvestres que deixam na minha boca um gosto de deliciosa amargura.
No meio da papelada, guardada dentro de uma caixa de papelão, encontrou esse postal. É a foto de um pequeno teatro. A cortina é de pequenos farrapos. A foto mostra uma troupe de atores, com um sorriso nos lábios. Um sorriso que evoca um estranhamento. É momento crucial quando os atores cindiram-se entre a vida real e o universo das personagens que encarnavam. A derradeira decisão de suprimir a si mesmo ao abrir uma porta em direção ao nada, última esperança de conservar para sempre uma ilusão vivida, incapazes que foram de voltar à vida comum.
Sabe-se que todo o grupo cometeu suicídio durante sua última apresentação nesse pequeno palco.
Tenho também o sonho da partida. Buscar a dimensão do alhures. Sem êxito, no entanto.
Invento histórias. Para desmascarar. Nada é só luz. Parece que arruinamos os truques que inventamos para as apresentações noturnas. Brinca-se com fogo. Essa melodia do olhar. Adversidades não duram para sempre.
São temporárias. Como as chuvas de verão. Eventualmente, podem ter durado tanto tempo que a alma se acostumou a pensar que teriam vindo para ficar. Mas as janelas da vida continuam fechadas.
Procura-se o toque divino da criatividade. Estamos no centro do labirinto. Aqui, encurralados, não há espaço para a alegria. Raspam-se com as mãos as paredes cruas, de um modo vulgar, para evitar aquele sentimento que se está prestes a agonizar. Paredes sujas, paredes agônicas. Mortalhas coloridas de cinza e sangue, impregnadas de camadas de mistérios.
A finitude não lamentada. Algo pantanoso diante do olhar, figuras divididas envoltas na luz crepuscular. Talvez olhando para o que havia sido o ado e fazendo perguntas sem respostas.
O vento surge do nada, raivoso; uma lufada tremulando os galhos mais fracos das árvores, envergando arbustos, rodopiando como folhas quando ele nasce nas montanhas. É um som primitivo, que rasga.
Ah! Este sol peregrino que me acompanha e espanta de mim as virtudes vãs e mofadas!
Alma ilusória, por que me abandonaste?
A porta está aberta; e tão escura, estas paredes da sala. Além da poeira acumulada, da tristeza enfeitando as janelas carcomidas, o grande silêncio musicava todo o espaço como se fosse um gemido vindo de várias partes do mundo.
Fixado na parede, um relógio marca incessantemente as horas que correm, deixando, no ar abafado, um rastro de reações emocionais por onde a. As horas declaram o fim da beleza que traz em si a memória da paixão. Esta é a casa da dor e de algum sofrimento velado. A dor é um instrumento de tortura. Ela é o olhar que apalpa as coisas e deixa os braços esquartejados. Dela restou uma foto antiga de uma construção imponente. Hoje, abandonada, restam algumas paredes. Mais nada. Tudo acaba, tudo termina, tudo se desmorona. Restou aquele som que ecoa como uma maldição, um canto fúnebre. Imagens da infância desenham, em tons fugidios, lembranças que foram se apagando. Imagens ageiras clandestinas. Já quase invisíveis. Mas que despertam
sensações adormecidas.
Acredito na compaixão.
Aprendi a pensar com o olhar. É onde brilha nova luz do entendimento.
Meu olhar apalpa tudo o que vê.
Seria esse ver o olhar do espírito?
Porque é através dos olhos que fazem as coisas serem vistas. Repousa nelas.
Existe um doce brilho no olhar.
Na maneira de quem vê. Os olhos são portadores da luz. É o eio da alma.
O olhar, essa lâmpada de alabastro que irradia para sempre a luz oculta do espírito. Uma luz que se manifesta a si mesma e se revela às trevas.
A escuridão tem medo da luz.
Com esse novo olhar sutilizado, me lanço na vida desarmado. Capto atmosferas quando meu olhar vê o que contorna. O pensamento é uma fisionomia. É uma forma de vida, uma semente.
Oh! Senhor de todas as coisas! Eis o Ele diz:
“Logo ao amanhecer, em sua aflição, recorrerão a Mim, porque vos castigou.
Seu despertar será como a aurora e virá a nós como chuva oportuna que cai de tarde sobre a terra.
Que te posso fazer, Efraim?”
Tudo está tão silencioso.
Com uma vela acesa na mão percorro os cômodos vazios sem reabrir as janelas fechadas durante tanto tempo. Anos, sim. As cortinas ainda trazem o cheiro de cânfora.
O ar pesa com a poeira acumulada. Está saturado de odores, antigas lembranças mofadas.
Estou feliz porque esqueci as horas.
Os oráculos podem nos informar como proceder. É tempo de invocá-los. Novamente.
De revelar a eles minhas iras e andanças.
Buscamos uma vida que é anterior ao nosso sono. Por que desperdiçá-la?
Seus olhos estavam fechados. Um sono profundo o mergulhou no insondável onde a sombra tem um corpo. Ouviu uma voz que lhe dizia:
“Eu queimo a mirra proferindo palavras que forçam as vontades. Alma da lua, tu te inclinas até mim e revelas a penetração dos segredos”.
Luzes de neon cintilantes, estrelas da cidade que preferiam morrer.
O coração, desocupado, resguarda a chave de todos os símbolos. Todas as escolhas são dilacerantes.
Apesar de todos os domínios pertencerem ao encantamento, a terra precisa viver envolta com o manto de fumo do zimbro.
Cinge-me a fronte uma coroa de hidrargírio.
As lembranças que poderão restar são farelos da vida. Serão levados pelos ventos inconstantes, vindos de todos os planos do abismo.
Meus sapatos levam fantasmas para onde vou.
Uma história repleta de armadilhas que me perseguem. Transformam-me em um ser sem luz. Uma velha lavadeira que trabalhava na minha casa, ao me ver sempre repetia: “Mais parece uma estrela cadente”.
Sei que nada pode me fixar.
Sempre odiei viajar de avião, navios, trens, ônibus. São purgatórios que nos maltratam.
Não sei mentir, meus olhos ficariam cegos.
Sobrevivo a longos momentos, a longos anos, a longos dias – tempos de uma busca incansável.
O encanto pelo mundo não sumiu. Mas desaparece de vez em quando num abrir e fechar de olhos.
A mentira habita o coração humano. Seu lugar preferido. Todos lhe dão acolhida.
Quero me desblindar dela, porque a verdade está oculta. Seu esconderijo se assemelha à caverna de Platão.
Sei que essa pode ser a maneira de desacelerar a morte.
Há algo que foge.
Nem sabemos o que é. Um relance, um fugaz pensamento, uma sombra inaudita, um soluço, uma lágrima escorraçada pelo vento.
Há uma vertigem no olhar de cada transeunte que a despercebido. Infiltrado na multidão. Engolido pela paisagem inventada.
Haverá esperança nessa grande cidade?
Sei que cada amanhecer é o meu limite, meu último sacramento.
Mentir é como viajar.
Qual seria o preço da eternidade?
Um cristal não se deteriora. Sobrevive eras e eras, milhões de anos, esquecido.
Não encontramos nele memórias nem sonhos.
Apenas profundamente integrado em sua essência. É sua maneira de se expressar em sua transparência.
Uma pedra que mastiga a luz.
O que é escuro em nós, brilha.
As estrelas não são assim?
A ideia da viagem cujo destino é o retorno, o desejo de vivenciar todo o amor em si. Nada é real quando se chega ao fim das coisas ambicionadas. Voltar sobre os próprios os. Reconhecer erros, ingratidão, pulverizar rejeições.
Abandonar o que está morto e perdido.
Abandonar-se. Porque a vida não lhe deu o que dela se esperava. A falsidade é uma roupagem necessária para percorrer o caminho da volta.
Há ilusões e vaidades forjadas em si, seus fardos, sua bagagem pesada. Importa descobrir sua origem. Importa não vagar pelas trevas do mundo dos sentidos, amargas amarras.
Ir deixando pedaços e trapos de emoções pelo mundo, o trajeto das desilusões.
Por ser distinto de outras formas de vida, peregrinar o inverso é encontrar uma vertente nesse mundo de sofrimento, dor e perigo. Basta um olhar. Permanecer encostado em uma parede qualquer e observar. Observar em silêncio. Todos aqueles que am, correm, transitam levam uma história que se assemelha.
Descobrir outro amor. Um amor que difere. Um sonho.
Um ponto de vista que ascende ao nível de sua origem. A nova Jerusalém libertada.
Porque, quando chegamos diante da muralha de pedra, conseguimos perceber que tudo está mesclado e confuso. Uma visão cega, que não segue um rumo claro.
Pensamentos cromados.
No dizer de Whitman: “Não deixe que o dia termine sem ter crescido um pouco”.
Continuarei cantando pela estrada aberta, até onde a vista alcança. Não me lamento mais.
Ainda carrego minhas mágoas, mas elas se espalharão pelo longo atalho pardo.
Ficarei leve como uma porta aberta, mostrando o caminho sem curvas. Bem diante do primeiro o.
Quero as constelações que não se cansam nunca de me acompanhar. Elas me encorajam.
Tudo o que é divino se esconde à beira do caminho.
As zombarias ficaram para trás. Ao retornarem, receberão um abraço terno de despedida para sempre.
Se me quiserem de volta, deixarei as pegadas dos meus sapatos.
Estarei perdido, mas bem perto, ou estarei esperando, talvez muito longe.
São os últimos os do dia os sinais que demoram a desaparecer nas sombras que se desfiguram. Não são elas o seu tormento?
Quando a palavra é translúcida, as árvores choram.
Quando pronunciada profundamente, ela toca o espírito de uma maneira perigosa.
Esqueça os pensamentos. Eles são irrelevantes.
Cheio de ilusões e esquecido em si mesmo como poderá seguir pelas encruzilhadas?
Acordar, despertar, morrer, renascer e uma nova luz desponta no horizonte.
Se suas pálpebras estão fechadas na maior parte do tempo, com olhar inquieto, não cinzelar os ornamentos, conseguirá traçar o próprio caminho?
Quem são esses que vejo subindo e descendo as escadarias do metrô?
Os séculos são calmos. Eles perpetuam.
Órion, divino amante, seja você meu espírito guia.
Sempre. Continuando a jornada deixando cair sua mão sobre meu ombro. Quem quer que seja.
Perto de você nada é fatigante.
Empresta sua voz ao ar. Está na hora de fugir daquele vento seco.
Ama, como eu, a aurora da manhã.
Diga-me que afundaremos nossos pés nas trevas representadas pela noite. Causa da nossa cegueira se escondendo à luz trêmula de uma vela.
Resta ainda uma penumbra.
A forma acidulante de ver a vida. São as horas perdidas. É retirar a mente do pedestal de ouro e se descobrir. Algo distante, sussurrado, e que redime. A festa interior de um jovem que escolheu a dança, movimentos que jorram júbilo.
Um conhecido resolveu um dia escrever seu livro. Conseguiu uma editora e fez a primeira tiragem. Vendia de porta em porta. Depois, trazia uma banqueta e sentava ao lado da porta de entrada de um famoso hotel. Assim ia vendendo seus livros, aos poucos, mais por intimidação do que pela vontade de alguém querer comprar um livro de autor totalmente desconhecido. A direção do hotel exigiu que retirasse seu ponto de venda dali e que fosse procurar outro lugar. Humilhado, obedeceu
Aos poucos, foi vendendo seus livros. À tarde, antes de voltar para a garagem que alugava para morar, ava pelas lixeiras do parque. Alguns dos seus livros vendidos estavam lá. Recolhia-os porque, depois de limpos, poderiam ser revendidos no dia seguinte.
Em seguida, antes de deitar recordava do conselho de sua avó:
“Um copo d’água ajuda a matar a fome”.
Até que restou apenas um exemplar. Caminhando pela praça, uma senhora bastante idosa. Foi até ela que, a princípio, levou susto. Ele disse que era escritor e que vendia seus livros ali. Ela pegou o livro, manuseou-o e resolveu ficar com ele. Disse que precisava sentar um pouco porque havia caminhado bastante para chegar à biblioteca.
Ia lá todos os dias. Gostava de ler. Os livros são caros. Ela era professora aposentada. O salário de um professor é muito pequeno. Disse seu nome e que viera de uma cidadezinha chamada Esmeralda. Nem existe no mapa de tão pequena que é. Mais parece um vilarejo.
Estava lendo um lindo livro, muito instigante, muito complexo. Tentou lembrar o nome do autor. Não conseguiu. Abriu a bolsa e tirou uma pequena caderneta.
- Ah! Está aqui. Thomas Mann. Conhece?
Ele respondeu que não sabia quem era.
- O livro é o “Dr. Fausto”. Uma simbólica homenagem ao “Dr. Fausto”, de Goethe.
Estou na página que fala de uma estranha música: “Fosforescência do mar”, de um jovem compositor. Sempre ouço uma estação de rádio muito antiga, que só
toca música clássica. Gostaria muito de ouvir essa música. Mas ela nunca entra na pauta da programação. Uma pena! Vou contar uma coisa para senhor, mas me prometa não espalhar para ninguém. Promete?
“Prometo” – respondeu com um sorriso sarcástico no canto dos lábios, sua marca registrada.
Ela continuou meio encabulada:
“Estava nas primeiras páginas do livro ‘Dr. Fausto” e, de repente, me deu um cansaço. Debrucei-me sobre o livro e adormeci. Não sei por quanto tempo. A Judite, que é bibliotecária do lugar, não se incomodou. Até que acordei. Devolvi o livro e saí às pressas, imaginando o que não iriam falar de mim. Dormir sobre um livro de Thomas Mann! Pode?
Mas a Judite não deu importância. Quando retornei depois de uns dois dias, o livro estava lá na mesa onde eu costumava ficar. Adorei ver aquela mesa com o livro me aguardando. Me deu uma felicidade incrível. Cheguei até a mesa, peguei o exemplar do livro e o abracei com força. Depois beijei a capa. Eu tenho o máximo de zelo e carinho pelos livros. Não tenho mais ninguém no mundo. Só eu e os meus livros. São amigos incríveis.
Até mais! Preciso ir agora. Vou ler seu livro. Depois a gente conversa”.
Lembrou-se do velho escritor, mas não o viam por ali já há algum tempo. Perguntou por ele várias vezes. Ninguém sabia onde ele morava. Disseram que estava muito doente, só isso.
O violinista se preparou para o seu recital de sempre. Ao lado da entrada do metrô. Vestiu-se à caráter embora sua vestimenta estivesse meio suja e amarrotada. Mesmo assim, iria usá-la. Foi ao espelho do pequeno banheiro e pintou o rosto; apenas o lado direito, como se fosse um palhaço, uma pessoa com duas identidades.
No quarto, preparou duas seringas. Uma com ópio, a outra com heroína. Era uma mistura altamente perigosa. Precisava dela naquele dia. Era seu momento de glória, sua única oportunidade. Depois, o desgaste, o abandono, a fuga de si mesmo, os lugares estranhos, as pessoas atormentadas, tal como ele estava. Aplicou uma seringa numa veia da perna direita. A heroína no braço esquerdo, no mesmo local, já transformado em uma ferida dolorosa. Fechou os olhos, sentiu dor e aguentou firme. Depois de um tempo silencioso, pegou a caixa de violino e a partitura. Um professor de música, conhecido seu, fizera a transcrição de “Fosforescência do mar”, de piano para violino. Consegui decorá-la rapidamente. Era uma música não convencional, uma música estranha. Diferente de todos os outros compositores que já tocara. Alguém a considerou diabólica. Essa seria a música escolhida para aquela ocasião.
Havia travado relações efêmeras com algumas pessoas do lugar. Conversava raramente com seus vizinhos, que o acham estranho, um ser de outro mundo. Não havia pontos de afinidades. Foi caminhando a pé pelas ruas, para ele, rotas abandonadas. Um casario pobre, sem vida, sem árvores, sem sons. Ele era apenas um hóspede insignificante do lugar. Não poderia esperar nada mais além da sua música. Tão maltrapilha quanto ele. Chegou ao metrô. As pessoas avam, ensimesmadas, não prestando atenção a nada, a não ser nos horários que precisavam ser cumpridos à risca.
Algumas pessoas se entreolhavam quando o viram chegar, com aquela estranha pintura de palhaço no lado direito do rosto. Para algumas ele acenou com um sorriso disfarçado. Um sorriso triste. Para ele, agora um meio palhaço, um ser dividido, um ser sem o tempo, com a sensibilidade aflorada. As drogas estavam
surtindo efeito. A pulsação acelerava, e ele tinha pouco tempo. De dentro da caixa de violino tirou alguns pedaços de papel com esses dizeres:
“Os anjos existem?”
“A felicidade é uma criança”.
“A maçã ainda é a fruta do pecado?”
“Os bancos das praças foram quebrados”.
“Não vejo magnólias nos jardins”.
“Aceita um abraço de despedida?”
“As árvores desta cidade se retorciam com as fortes lufadas de vento e as folhas cobriam o chão como um tapete desperdiçado”.
“O fim dos tempos”.
“O que é uma obra de arte?”
“O cair da tarde é o momento triste e crucial quando as pessoas retornam para suas casas, cansadas, pensando no dia seguinte, na mesma rotina de sempre, no desamor, no destino inglório”.
“Quem selará seus corações?”
“Adormecei, olhos cansados”.
Foi pregando estas migalhas de frases pela parede cinzenta ao lado da entrada do metrô.
Aleatoriamente.
Depois, pegou o violino. Tinha urgência. Colocou-o na posição correta. Fez soar alguns acordes, o que chamou a atenção de alguns. Em seguida, começou a tocar, de uma maneira enlouquecida, inusitada, tirando, num som plangente, a música desconhecida: “Fosforescência do mar”.
Sentiu-se impregnado com a música que tocava, com acentuações claras, imaginando o tema ora rígido, ora indicando agens mais melódicas, ora acentuações mais claras. Ora um interlúdio que terminava num vazio. Era uma experiência que surgia das profundezas, um abalo interno. Haveria algo diferente no mundo? Não que ele conhecesse. Era o momento da exacerbação da plenitude de todo seu corpo. O arco do violino tremia na mão machucada com as picadas das fortes drogas e, ao mesmo tempo, como uma manobra infeliz, somava àquela música com uma forte crise nervosa a ser, como uma forma ingente e intensa de vida. Nunca havia tocado daquela maneira. Despertava nele o desejo de fuga, aventura, ousadia, transcendência. Tocava enfurecido, como um louco. As
pessoas paravam assustadas com aquele som paranoico, que hipnotizava. Ouviam uma música estranha, sons de sinos fúnebres como se fossem um coro enlouquecido de vozes.
Depois, um movimento lento, apaziguante, como se fosse um crepúsculo; e a cortina vai se fechando. Uma melodia de extrema delicadeza, suavidade, uma tentativa de ficar em paz.
Por fim, um som machucado, ríspido, desarticulado, demoníaco, rouco, gritante, com intensidade sobre-humana, a busca da beleza, o tecido da esperança. As notas finais, um arpejo dilacerante, a entrega final. O corpo suado, a maquiagem escorrendo pelo rosto, respingando cores no velho paletó. Ele respira fundo, deixa cair o arco; depois, solta o violino diante dos aplausos da multidão que o cerca.
Como um andarilho desesperado, encontra novamente sua rota de fuga e desaparece por uma daquelas ruas silenciosas. Uma rua sem nome e sem saída. Estava bloqueado.
Seu corpo tremia de dor. Queimava por dentro como se tivesse em chamas.
No fim da rua, alguém erguera uma porta. Nela estava escrito “PENUMBRA”. Por que aquela porta estava ali?
Abriu-a com um gesto mecânico e agressivo. Atravessou-a de outro lado. Alguém tocava ao piano “Fosforescência do mar”. Estranho ouvir aquela música ali. Não conseguiu descobrir de onde vinha aquele som, aguçando sua imaginação e que remexia suas entranhas.
Atordoado por aquela música ional, deixou-se cair. Sentiu um profundo cansaço e seu coração palpitava, sufocando-o. Tentou se arrastar e, aos poucos, foi perdendo força. Estava sedento. Pediu:
“Água, água, água”. Uma palavra vazia.
Ninguém ouviu.
Novamente diante da vida, o mundo dos homens e das ilusões.
Ter que arrostar a náusea por deixar o que é sublime. A lucidez pode carregar um humor azedo onde o território da estética é outro.
O sublime.
Há uma batalha entre o verdadeiro e o belo.
Estou à espera de uma carta. A espera é sempre excitante. O carteiro realiza meus desejos.
A terra, o espírito da terra, as leis sagradas.
O que nos possibilita absorver em essência uma obra de arte, qualquer que seja. Qualquer coisa construída. Qualquer endereço onde encontrar apenas uma enorme pedra.
Haverá sempre uma visão do que trazemos dentro de nós. Sob espelhos, luzes, neons, delírios, corredores sem fim, túneis, calotas polares, florestas, campos inundados, tempestades, fantasias, castelos, torres, igrejas, conventos, estádios, palavras, canções, dor, sofrimento, escadas, vida e morte. O aquém e o agora. E o depois. Na sequência.
Viver sobre a fatuidade de um sopro virtual.
ar da alegria simples à lágrima que apenas escorre.
Cada dia traz suas descobertas e seu silêncio.
Dividir o tempo de solidão com giras e concertos sem hora marcada.
Não vejo ninguém há tempos. O exato momento para não explodir.
Há um tecido de plangências e tristezas oriundas da vida enraizada entre estas cortinas soltas, envenenadas pelos ventos.
Há um apelo à melancolia.
Ela existe em todo fim de tarde.
Há uma dor direta, e sem disfarces de uma melodia que corta o ar como se fosse uma máscara sem dono. Ela sabe constatar o delírio.
Por isso viver é uma arrebentação. Um mar proceloso querendo invadir terrenos proibidos.
Praias desertas.
Trazer a marca da secura.
Quando a luz brota do fundo do estranho scherzo enamorando a tradição.
A fronteira entre os sonhos e a arte é curta.
Agora vou desfrutar as montanhas e as nuvens que am.
É um território onde não entram autoiludidos, arrogantes, exaltações torpes da humana condição.
O grande desejo é despertar a zona encantada de si mesmo e encontrar o mistério.
O território lunar da sensibilidade trazendo de novo o homem para o mundo das ilusões.
Um frêmito, um protesto, como quem a e nada vê.
Cada som traz em sua forma isolada a aparência que definha.
Este é o momento da vida que se processa fora do tempo.
Não ficarei de sentinela na imensa caverna escura e insondável deste mundo.
Acabo de receber um postal. Mostra os telhados de Hamburgo. Um tanto estranho. Como lembrete, rabiscou no verso:
“Brahms nasceu nesta cidade que ainda me constrange um pouco. Logo mais vou assistir a um concerto com amigos. Me convidaram.
L. me abraçou e disse sorrindo muito: “Não temo a morte, mas quando penso que depois não ouvirei mais a música imponente de Brahms, aí bate um desespero”.
Nós o aplaudimos.
O programa de hoje é a “Hungarian Dance nº 1”. Conhece?
Saudades.
A”.
Quero o eterno.
Colabore com a produção cultural. A reprodução não autorizada dessa publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98)
Editor: Paulo Pechmann
Revisão: Edna Alessio
Capa e diagramação: Daniela Freitas
Produção: Editora Comunnicar
Imagem p. 04 (miolo): alozar / Depositphotos.com
ISBN 978-85-8136-116-1 E-book EPUB
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Edição digital: julho 2018
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