O Antigo Testamento contém todos os tipos de heróis ilustres. Mas Deus age por meio de pessoas comuns? Esse pequeno e gracioso livro, fala a providencia de Deus na vida de uma família israelita comum. “O teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus” (Rt 1.16).
Nome e contexto
O livro recebe o nome da personagem principal, a moabita Rute. Por causa da fome, Elimeleque de Belém leva a família para morar em Moabe. Infelizmente, ele e os dois filhos ali morrem, ficando a esposa, Noemi, e as esposas moabitas dos filhos, Rute e Orfa. Quando termina a fome, Noemi ruma para Judá. Convence Orfa a voltar para Moabe, mas Rute, resoluta, recusase a isso.
Nome e contexto
As duas viúvas retornaram a Belém bem no início da colheita. Rute vai respigar grãos e chega pro acaso aos campos de Boaz, parente de Elimeleque. Como parente, Boaz tem a responsabilidade de casar-se com a viúva desse parente. Assim, Noemi envia Rute para que proponha tal casamento. Boaz dispõe-se, mas um parente mais próximo tem a prioridade legal de propor tal casamento antes dele.
Nome e contexto
No ponto alto da história, Boaz obtém esse direito com habilidade, casa-se com Rute, e os dois têm um filho. O livro celebra-o como filho de Noemi (4.1a), pois o pequeno Obede preserva a linhagem familiar dela. E, mais importante do que isso, virá a ser avô de Davi.
DATA E AUTORIA
Assim como a maior parte das narrativas do Antigo Testamento, o livro de Rute não identifica seu autor. O Talmude credita o livro a Samuel, mas tal atribuição não pode estar correta. O livro deve ter surgido depois do governo de Davi (4.17b), e ele reinou alguns anos após a morte de Samuel. Os estudiosos discordam quanto à data, com estimativas que vão do início da monarquia até o período pósexílico. Em nosso entender (Lasor), as evidências favorecem uma data no período da monarquia (entre os séculos X e VI a.C.).
ASPECTOS SOCIAIS
Dois costumes sociais pouco comuns fazem com que os leitores de hoje tenham dificuldades para entender a história. O primeiro é o dever de um parente próximo casar-se com a viúva de um familiar que não tenha tido filhos, a fim de lhe prover descendência. Sem esse filho, a linhagem da família do falecido se perderia. Em épocas anteriores, os estudiosos identificavam esse costume com o “casamento levirato”, segundo ensina Dt 25.2-11 (cf. Gn 38).
ASPECTOS SOCIAIS
Como no levirato, as providências em Rute têm o propósito de proporcionar um herdeiro a um parente morto. Diferentemente do levirato, porém, Boaz não é irmão de Elimeleque, nem Rute é viúva deste. Antes, a responsabilidade recai sobre Boaz porque ele é parente próximo de Elimeleque, i.e., “parente resgatador” (heb. go el; 2.20).
ASPECTOS SOCIAIS
Como numa “ficção de direito”, Rute substitui Noemi como viúva de Elimeleque. Assim, preferimos descrever a prática de Rute como um casamento “semelhante ao levirato” ou até como um “casamento de parentesco”.
ASPECTOS SOCIAIS
Esse costume explica o ponto decisivo do livro: a trama engenhosa de Noemi para induzir Boaz a aceitar sua responsabilidade. Talvez Boaz tivesse entendido que não era parente suficientemente próximo de Elimeleque para assumi-la. Assim, Noemi envia Rute, jovem e atraente, para motivá-lo.
ASPECTOS SOCIAIS
Um episódio ousado, contado de modo delicado – a cena da eira no capítulo 3 – detalha como Rute a cumpriu. Mas uma complicação inesperada frustra o plano de Noemi: Boaz submete-se ao direito prioritário de um parente mais próximo. Na manhã seguinte, ele convoca uma audiência legal à porta da cidade, convida o outro parente e obtém o direito sobre Rute.
ASPECTOS SOCIAIS
O segundo costume, a redenção da terra, marca um desenvolvimento surpreendente na história. Os leitores esperam que, junto à porta, Boaz discuta de imediato a proposta de casamento de Rute. Em lugar disso, ele anuncia: “aquela parte da terra de Elimeleque, nosso irmão, Noemi, que se tornou da terra dos moabitas, a tem para a venda”(4.3). Boaz oferece-se para comprá-la, se outro não o fizer.
ASPECTOS SOCIAIS
Esse é a primeira menção de uma propriedade de Elimeleque. Por trás disso existe um antigo costume israelita: a propriedade da terra de um ancestral sempre devia permanecer no clã. Uma família podia empenhá-la para fugir da pobreza, mas a lei exigia que o parente próximo a comprasse para que a propriedade permanecesse no clá (cf. Lv 25.25ss). Nesse caso, o outro parente concordou em comprar a propriedade de Noemi (4.4).
ASPECTOS SOCIAIS
Causando outra surpresa, porém, Boaz leva o parente a desistir de seus direitos. Boaz informa que, para obter a posse da terra, ele deve também casar-se com Rute e dar um descendente a Elimeleque (v.5). De imediato, o parente recua, alegando que o negócio prejudicaria a sua herança (v.6). Financeiramente, o possível comprador poderia arcar com a obrigação de redenção, caso fosse sua única responsabilidade, pois, trazendo-lhe lucro, a terra de Elimeleque na realidade se pagaria.
ASPECTOS SOCIAIS
Além disso, o casamento por si não ameaçaria seus bens, já que o lucro da propriedade sustentaria qualquer herdeiro até que este tivesse idade para herdá-la. Mas o homem não podia aceitar a dupla responsabilidade. O herdeiro nascido dele e de Rute herdaria a terra de Elimeleque, e ele não teria o dinheiro para pagar Noemi.
ASPECTOS SOCIAIS
Voluntáriamente, ele cede seus direitos nesse assunto a Boaz (v.6). Ao que parece, Boaz era suficientemente rico para arcar com as duas obrigações. Ainda melhor, o trato talvez tenha dado a Boaz o filho que, assim como a Elimeleque, lhe faltava. A genealogia final alista Boaz, não Malom ou Elimeleque, como ancestral de Davi (4.18-22).
ASPECTOS SOCIAIS
Isso pode implicar ou que Boaz era solteiro (improvável) ou que não tivesse filhos (possível). Em todo o caso, a criança nascida de seu casamento com Rute na realidade deu continuidade a duas linhagens familiares, a de Boaz e a de Elimeleque.
NATUREZA LITERÁRIA E TEOLOGIA
Os estudiosos em geral concordam que o gênero de Rute é um conto. Sua extensão fica entre a de um “conto” e a de um “romance”. Ele possui uma trama simples que se desenvolve num período curto (cerca de seis semanas). Além disso, só apresenta três personagens principais. Mais importante, em vez de traçar o desenvolvimento deles, a história tem como alvo ajudar os leitores a compreendê-los. Isso concorda com o propósito de um conto – edificar e instruir seus leitores de maneira agradável.
NATUREZA LITERÁRIA E TEOLOGIA
A história induz sutilmente os leitores a participar da
experiência dos personagens, desfrutando da atividade providencial divina. Implicitamente, convida-os a imitar ou evitar os exemplos deles. O livro de Rute, assim, é comparável a outros contos do Antigo Testamento: o casamento de Isaque (Gn 24), Daniel 1-6 e Jonas.
NATUREZA LITERÁRIA E TEOLOGIA
Ainda que não organizado de maneira rígida, o livro em geral apresenta estrutura de espelho. Ou seja, elementos posteriores da história espelham elementos anteriores e lhes trazem solução. O seguinte esquema simplificado destaca os principais paralelos estruturais e temáticos do livro: 1.1-5: Introdução: a família e Elimeleque 1.6-18: A preocupação de Noemi: o casamento das noras 1.19-22: A dor e a pobreza de Noemi 2.1-2: Diálogo: Noemi e Rute 2.3-17: Diálogo: Rute e Boaz 2.18-23: Diálogo: Rute e Noemi 3.1-5: Diálogo: Noemi e Rute 3.6-15: Diálogo: Rute e Boaz 3.16-18: Diálogo: Rute e Noemi 4.1-2: Processo legal: terra, casamento, herdeiro 4.13-17: A satisfação de Noemi pelo filho recém-nascido 4.18-22: Genealogia: a família de Davi.
NATUREZA LITERÁRIA E TEOLOGIA Conforme se evidencia, o capítulo 1 espelha no geral o capítulo 4, enquanto os capítulos 2 e 3 são correspondentes. Os capítulos 2 e 3 apresentam estrutura como de “sanduiche”. Diálogos entre Rute e Noemi (2.2; 3.1-5) prensam a “carne” da história – diálogos cruciais entre Rute e Boaz (2.3-17; 3.6-15).
NATUREZA LITERÁRIA E TEOLOGIA
Quanto aos capítulos 1 e 4, o clamor de pobreza de Noemi (1.20-21) encontra solução feliz no grito das amigas: “A Noemi nasceu um filho”(4.17a). Por último, a apresentação da família de Elimeleque no início (1.5) tem seu contraponto na genealogia do final (4.18-22).
NATUREZA LITERÁRIA E TEOLOGIA
Sem dúvida, o conto de Rute é uma pérola literária. A história apresenta uma prosa altamente artística, quase poética. Com maestria, a autor emprega diálogos para desenvolver a trama. Os vários diálogos da história, não a narrativa do autor, apresentam os eventos. De novo, habilmente o escritor dispensa informações como um jogador que baixa suas cartas com cautela. Por exemplo, no capítulo 2, um flash-back fornece fatos antes guardados (v.7). De modo semelhante, o narrador retém a menção da terra de Elimeleque até o final da história – para surpresa dos leitores (4.3).
NATUREZA LITERÁRIA E TEOLOGIA
Também, a história emprega a linguagem de maneira vigorosa. Por exemplo, palavras com conotações sexuais (e.g., “conhecer”, “deitar-se”) dominam a narrativa da visita secreta de Rute a Boaz (cap. 3). A linguagem sensual faz a cena parecer ousada e perigosa. Ademais, o narrador astutamente repete palavras-chave em pontos cruciais.
NATUREZA LITERÁRIA E TEOLOGIA
Elas dão unidade à história e assinalam seus desenvolvimentos temáticos principais: Pela repetição da palavra “filho”, o autor indica que Obede substitui o “filho” morto de Noemi (1.5b; 4.16); A história menciona duas vezes a “benevolência” de Rute como chave para um dos temas principais do livro (1.8; 3.10; cf. 2.20); A repetição de “pobre” mostra que, com a ajuda de Boaz, está para findar a pobreza de Noemi (1.21; 3.17).
NATUREZA LITERÁRIA E TEOLOGIA
Teologicamente, o livro destaca a direção bondosa de Deus na vida dessa família. O Senhor intervém diretamente em dois momentos cruciais, moldando de maneira significativa os eventos subsequentes enviando a fome, o evento que reconduz Noemi a Belém (1.6); e fazendo com que Rute engravide, dando com isso, finalmente, um herdeiro a Noemi (4.13). Mas a direção de Deus torna-se especialmente clara em relação às orações dos personagens em seus pedidos de bênçãos divinas (1.8-9; 1.12, 20, 3.10).
NATUREZA LITERÁRIA E TEOLOGIA
No final, Deus atende a todos: Rute tem uma casa e um filho com Boaz. Não surpreende que as amigas de Noemi creditem a Deus o final feliz da história (4.14-15). “Em suma o livro ensina a „plena casualidade‟ de Deus – uma diração contínua e soberana de tudo.”
NATUREZA LITERÁRIA E TEOLOGIA
De modo marcante, porém, em Rute, a direção de Deus assume forma singular. Em boa parte da Bíblia, Deus intervém de maneira direta e sobrenatural nos assuntos dos homens para concretizar os propósitos da redenção. Mas em Rute não há nenhuma orientação por meio de sonhos, visões, mensageiros angelicais ou vozes do céu. Nenhum profeta se levanta para anunciar: “Assim diz o Senhor”. Antes, “Deus está em toda a parte ´totalmente escondido em coincidências e em planos puramente humanos...”
NATUREZA LITERÁRIA E TEOLOGIA
A providência firme e bondosa de Deus oculta-se por trás do “acaso” que faz Rute encontrar-se com Boaz (2.34) e do plano arriscado de Noemi (3.1-5). Resumido, o livro demonstra que Deus age nos bastidores, por meio dos atos de pessoas fiéis como Rute, Noemi e Boaz.
A MENSAGEM
Outra coisa notável no livro é que o autor gosta de identificar Rute como “a moabita”. Esse rótulo insinua uma parte da mensagem. O livro destaca que Deus acolhe não israelitas na aliança. Se demonstrarem a devoção de Rute (1.16-17), eles desfrutarão do mesmo refúgio protetor sob as asas de Deus (2.12). Ao estender as misericórdias de Deus a estrangeiros, Rute reflete a mesma atitude aberta de outros livros do Antigo Testamento como Jonas.
A MENSAGEM
Além disso, o livro promove a prática do ideal da aliança israelita, o estilo de vida de hesed ou “benevolência”. Em essência, fazer hesed é dispor-se a “ir além da obrigação”. A fabulosa declaração de amor e devoção pronunciada por Rute coloca esse estilo de vida em palavras: “...o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus” (1.16). Os atos dos personagens principais do livro também personificam isso.
A MENSAGEM
A história, desse modo, insta os leitores a exercer benevolência sacrificial semelhante. Chama-os a imitar o pesado compromisso de Rute, a perseverança e a inteligência de Noemi e a generosidade e integridade de Boaz. Ao fazê-lo, eles também experimentarão a benção providencial de Deus.
A MENSAGEM
Por fim, o livro apresenta a divina providencia que faz nascer Davi (4.17b). a genealogia final (4.18-22) situa a história dessas pessoas comuns de Belém num contexto mais amplo. Ela mostra a ligação direta entre a vida deles e a obra de Deus em Israel como nação. O filho que nasceu de Noemi é mais que um simples presente de Deus para que sua linhagem familiar tenha continuidade.
A MENSAGEM
Ele também inicia a história da atuação de Deus por meio da dinastia de Davi. Dessa maneira, o livro liga-se ao tema bíblico principal da história da redenção. Assim, conduzida pela direção oculta de Deus, a fidelidade de Rute, Noemi e Boaz realizou mais do que eles tiveram consciência. Da família deles surgiu o grande Davi e, muitas gerações depois, o filho mais eminente do grande Davi.