VOLUME 37, NÚMERO ESPECIAL OUTUBRO/NOVEMBRO, 2017
PSICOLOGIA ciência e profissão Psychology: science and profession Psicología: ciencia y profesión
VERSÃO IMPRESSA ISSN 1414-9893 | VERSÃO ONLINE ISSN 1982-3703
BRASÍLIA/DF - BRASIL
PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO VOL.37, N.SPE, OUT/NOV, 2017 VERSÃO IMPRESSA ISSN 1414-9893 | VERSÃO ONLINE ISSN 1982-3703 Editora Responsável Neuza Maria de Fátima Guareschi (Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil)
Editor Associado Pedro Paulo Gastalho Bicalho (Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil). Editores Especiais Fernando Lacerda Júnior e Domenico Uhng Hur (Universidade Federal de Goiás, GO, Brasil). Comissão Editorial Adolfo Pizzinato (Universidade Católica do Rio
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(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ - Brasil) Cláudia Amorim Garcia (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ - Brasil) Cláudio Garcia Capitão (Universidade São Francisco, Itatiba, SP - Brasil) Cláudio Simon Hutz (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS - Brasil) Conceição Nogueira (Universidade do Minho, Braga, Portugal) Denise de Souza Fleith (Universidade de Brasília, Brasília, DF Brasil) Dionisio Félix Zaldívar Pérez (Universidade de Havana, Havana - Cuba) Elvia Taracena (Universidade Nacional Autónoma do México, Cidade do México - México) Godeleva Rosa Ortiz Viveros (Universidade Veracruzana, Xalapa, Veracruz - México) Herminia Vincentelli Martinez (Universidade Experimental Pedagógica Libertador, Maracay - Venezuela) Ignacio Dobles Oropeza (Universidade de Costa Rica, San Jose - Costa Rica) Jeferson Machado Pinto (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG - Brasil) Jorge Castellá Sarriera (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS - Brasil) José Livia Segovia (Universidade Nacional Federico Villarreal, Lima - Peru) Lídio de Souza (Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES - Brasil) Luís Flávio Silva Couto (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG - Brasil) Lupicinio Íñiguez-Rueda (Universitat Autònoma de Barcelona) Magda Diniz Bezerra Dimenstein (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN Brasil) Manoel Calvinõ (Universidade de Havana, Havana - Cuba) Márcia Maria Peruzzi Elia da Mota (Universidade Federal de Juiz de Fora,Juiz de Fora,MG - Brasil) Marco Eduardo Murueta Reyes (Universidade Nacional Autónoma do México, Cidade do México - México) Maria Cristina Ferreira (Universidade Salgado de Oliveira, Niterói, RJ - Brasil) Maria de Fátima Souza Santos (Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE - Brasil) Maria Helena Pereira Franco (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP - Brasil) Maria Júlia Kovács (Universidade de São Paulo, São Paulo, SP - Brasil) Maria Juracy Filgueiras Toneli (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC - Brasil) Maria
Lucia Boarini (Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR - Brasil) Maria Luisa Schmidt (Universidade de São Paulo, São Paulo, SP - Brasil) Marianela Denegri Coria (Universidade de La Frontera, Temuco - Chile) Marilda Novaes Lipp (Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP - Brasil) Marisa Lopes da Rocha (Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ - Brasil) Regina Herzog de Oliveira (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ - Brasil) Ricardo Franklin Ferreira (Universidade Federal do Maranhão, São Luis, MA - Brasil) Sebastián Urquijo (Universidade Nacional de Mar Del Plata, Mar Del Plata, Buenos Aires - Argentina) Sérgio Ozella (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP - Brasil) Sérgio Vasconcelos de Luna (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP - Brasil) Sônia Grubits (Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS - Brasil) Vera Decnop Coelho (Universidade de Brasília, Brasília, DF - Brasil) Virgínia Kastrup (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ - Brasil) William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS Brasil) Wilson López (Pontifícia Universidad JAVERIANA, Bogotá, Colombia) Coordenadora da Assessoria de Comunicação
Nita Queiroz
Jornalista responsável André Almeida Produção Editorial Caboverde Tecnologia e Serviços Ltda. Impressão Quality Gráfica e Editora Tiragem 2.500 exemplares Impressão Setembro 2017
Versão eletrônica da revista no site da BVS-PSI http://www.bvs-psi.org.br Indexadores
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Conselho Federal de Psicologia - CFP, SAF/SUL Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo, sala 105 – Brasília – DF- Brasil. CEP 70.070-600 Tel.: 61 2109-0100 Fax: 61 2109-0150 Home page CFP: www.cfp.org.br Home page Revista P: http://submission.scielo.br/index.php/p/ Secretaria da Revista: Tel: 61 2109-0119; E-mail:
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Psicologia: Ciência e Profissão / Conselho Federal de Psicologia. - Brasília, DF, Brasil : CFP, 1981- vol. 37, n.spe. 2017 Trimestral ISSN 1414-9893 - impresso ISSN 1982-3703 - online 1. Psicologia I. Conselho Federal de Psicologia.
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CDD 150
e a versão digital da revista em: http://dx.doi.org/10.1590/ 1982 – 3703003442014
sumário
Artigos Editorial 3
Psicologia e Democracia: da Ditadura Civil-Militar às Lutas pela Democratização do Presente Psychology and Democracy: from the Civil-Military Dictatorship to the Struggles for the Democratization of the Present Psicología y Democracia: de la Dictadura Civil-Militar a las Luchas por la Democratización del Presente Domenico Uhng Hur (Universidade Federal de Goiás), Fernando Lacerda Júnior (Universidade Federal de Goiás)
Artigos 11
Psicología y Destrucción del Psiquismo: La Utilización Profesional del Conocimiento Psicológico para la Tortura de Presos Políticos Psicologia e Destruição do Psiquismo: a Utilização Profissional do Conhecimento Psicológico para a Tortura de Presos Políticos Psychology and Destruction of the Psyche: the Professional use of Psychological Knowledge for Torture of Political Prisoners David Pavón-Cuéllar (Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo)
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Ditadura e Insurgência na América Latina: Psicologia da Libertação e Resistência Armada Dictatorship and Insurgence in Latin America: Liberation Psychology and Armed Resistance Dictadura e Insurgencia en Latinoamérica: Psicología de la Liberación y Resistencia Armada Domenico Uhng Hur (Universidade Federal de Goiás), Fernando Lacerda Júnior (Universidade Federal de Goiás)
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Luta Armada na Psicologia: Prática de Classe contra o Terrorismo de Estado Armed Struggle in Psychology: Class Practice against State Terrorism Lucha Armada en la Psicología: Práctica de Clase contra el Terrorismo de Estado Juberto Antonio Massud de Souza (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), Ana Maria Jacó-Vilela (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
57
A Psicologia Brasileira nos Ciclos Democrático-Nacional e Democrático-Popular Brazilian Psychology during the Democratic and National Cycle and the Democratic and Popular Cycle La Psicología Brasileña en el Ciclo Democrático-Nacional y en el Ciclo Democrático-Popular Filipe Milagres Boechat (Universidade Federal de Goiás)
71
O Fazer Psicológico na Ditadura Civil Militar The Psychological practice during the Military Civilian Dictatorship El Quehacer Psicológico de la Dictadura Civil Militar Ana Maria Batista Correia (Universidade Federal do Piauí), Carla Náyad Castelo Branco Dantas (Universidade Paulista)
82
Psicologia no Contexto da Ditadura Civil-militar e Ressonâncias na Contemporaneidade Psychology in the Context of the Military Civil Dictatorship and Resonances in the Contemporaneity Psicología en el Contexto de la Dictadura Civil Militar y Resonancias en la Contemporaneidad Fabíola Figueirêdo da Silva (Universidade Federal de São Paulo)
91
Psicologia e a Política de Direitos: Percursos de uma Relação Psychology and the Rights Policy: Paths of a Relationship Psicología y Política de Derechos: Caminos de una Relación Vinicius Furlan (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
103
Psicologia Social e Pesquisa com Memória: Método e Reparação de Danos da Ditadura Civil-Militar Social Psychology and Memory Research: Method and Repair for Damages of the Civil-Military Dictatorship Psicología Social e Investigación con Memoria: Método y Reparación de los Daños de la Dictadura Cívico-Militar Luis Eduardo Franção Jardim (Universidade de São Paulo)
116
Análise Reparável e Irreparável: o Conceito Psicanalítico de Reparação na Agenda da Transição Brasileira Reparable and Irreparable Analysis: The Psychoanalytic Concept of Reparation in the Agenda of the Brazilian Transition Análisis Reparable e Irreparable: el Concepto Psicoanalítico de Reparación en la Agenda de la Transición Brasileña Rafael Alves Lima (Universidade de São Paulo)
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Reminiscências da Violência Estatal: A Reparação Psíquica Através de uma Clínica Política Reminiscences of State Violence: The Psychological Repair Through a Political Clinic Reminiscencias de la Violencia Estatal: La Reparación Psíquica a Través de una Clínica Política Natália Centeno Rodrigues (Universidade Federal do Rio Grande), Francisco Quintanilha Véras Neto (Universidade Federal do Paraná), Rodrigo Fernandes Teixeira (Universidade Federal do Rio Grande)
149
Reparação Psíquica e Testemunho Psychic Reparation and Testimony Reparación Psíquica y Testimonio Alexei Conte Indursky (Universidade Paris VII), Bárbara de Souza Conte (Universidade Autônoma de Madrid)
161
O Ensino Testemunhal entre os Restos da Ditadura: uma Metodologia Ético-política Testimonial Teaching among the Remains of the Dictatorship: An Ethical-political Methodology La Enseñanza Testimonial entre los Restos de la Dictadura: una Metodología Ético-política Helena Pillar Kessler (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Daniel Boianovsky Kveller (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Marina da Rocha Rodrigues (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Karine Shamash Szuchman (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
172
A Psicologia e o Discurso Racial sobre o Negro: do “Objeto da Ciência” ao Sujeito Político Psychology and Racial Discourse on Black People: from “Object of Science” to Political Subject Psicología y Discurso Racial acerca del Negro: de “Objeto de la Ciencia” a Sujeto Político Lia Vainer Schucman (Universidade de São Paulo), Hildeberto Vieira Martins (Universidade Federal Fluminense)
186
Parecer Psicossocial da Violência contra os Povos Indígenas Brasileiros: o Caso Reformatório Krenak The Psychosocial Report of Violence against the Indigenous Brazilian People: The Case of the Krenak Correctional Facility Informe Psicosocial de la Violencia contra los Pueblos Indígenas Brasileños: el Caso Reformatorio Krenak Bruno Simões Gonçalves (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)
197
Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra na Transição Democrática Brasileira Discursive Practices in the Struggle for Land in the Transition to Democracy in Brazil Prácticas Discursivas sobre la Lucha por la Tierra en la Transición Democrática Brasileña Jáder Ferreira Leite (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Magda Dimenstein (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Candida Maria Bezerra Dantas (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
208
Psicologia, Democracia e Laicidade em Tempos de Fundamentalismo Religioso no Brasil Psychology, Democracy and Laicity in Times of Religious Fundamentalism in Brazil Psicología, Democracia y Laicidad en Tiempos de Fundamentalismo Religioso en Brasil Tatiana Lionço (Universidade de Brasília)
224
Psicologia e Democracia em um Cenário de Cidade como Campo em Disputa Psychology and Democracy in a Scenario of the City as a Disputed Field Psicología y Democracia en un Escenario de Ciudad como Campo en Disputa Elisa Martins (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Fhillipe Pereira (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Gabriela Salem (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Lucas Gabriel de Matos Santos (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Roberta Brasilino Barbosa (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
239
A Ditadura que se Perpetua: Direitos Humanos e a Militarização da Questão Social The Dictatorship that Remains: Human Rights and the Militarization of the Social Issue La Dictadura que se Perpetúa: Derechos Humanos y la Militarización de la Cuestión Social Ana Vládia Holanda Cruz (Faculdade DeVry Fanor), Tatiana Minchoni (Universidade Federal de Santa Catarina), Adriana Eiko Matsumoto (Universidade Federal Fluminense), Soraya Souza de Andrade (Universidade Federal do Pará)
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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 3-10. https://doi.org/10.1590/1982-3703190002017
Psicologia e Democracia: da Ditadura Civil-Militar às Lutas pela Democratização do Presente Psychology and Democracy: from the Civil-Military Dictatorship to the Struggles for the Democratization of the Present Psicología y Democracia: de la Dictadura Civil-Militar a las Luchas por la Democratización del Presente Domenico Uhng Hur Universidade Federal de Goiás, GO, Brasil.
Fernando Lacerda Júnior Universidade Federal de Goiás, GO, Brasil.
Psicologia e política
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) é uma autarquia de Estado que orienta e fiscaliza a profissão do(a) psicólogo(a). Mas não atua apenas pela melhoria do exercício profissional. Desde o início da década de 1980, o CFP e o Sistema-Conselhos de Psicologia perceberam que suas práticas não devem ficar restritas à normatização do exercício profissional e das técnicas psicológicas. Também devem atingir as questões sociais e políticas do país, tendo em vista a luta pela democratização dos processos sociais e políticos. Nos anos 1980, o CFP lutou pelos direitos humanos e pela democracia, equidade e igualdade, participando das mobilizações das “Diretas Já” e da “Constituição cidadã” (Hur, 2012). Na década de 1990, fomentou o lema da “Psicologia e o compromisso social”. Desde os anos 2000, adotou como bandeira a atuação da Psicologia nas políticas públicas. Esses posicionamentos e práticas resultaram na constituição de uma Psicologia plural e múltipla, que se exerce em inúmeros campos de trabalho, que tem um lugar de destaque nas políticas sociais e que assume um compromisso pela mudança e transformação psicossocial. Por exemplo, se compararmos o Brasil com outros países da América Latina, teremos uma porcentagem muito maior de psicólogas(os) contratadas(os) pelas diversas políticas públicas e que exercem atividades que vão além da clínica tradicional. Deste modo, constata-se que o CFP assume posicionamento e práticas que visam a produção de uma sociedade mais igualitária, justa e democrática e, por conseguinte, com menor sofrimento psicossocial. Portanto, pode-se afirmar que suas ações são eminentemente políticas. Por política não aludimos apenas ao que aparece no Poder Executivo, no Congresso Nacional, às práticas de corrupção ou outros dissabores que são transmitidos pelos meios de comunicação. Política refere-se às práticas de gestão da vida no espaço da polis, da cidade. Refere-se às relações incessantes de poder e de forças que são exercidas a todo momento nos espaços sociais e que têm como finalidade a gestão da vida (Hur, 2013). Compreende-se que o CFP, em suas práticas, sempre está exercendo relações de forças para a gestão da vida, isto é sempre está atuando politicamente, seja no âmbito da normatização da profissão, ou das lutas sociais. No que tange à relação entre Psicologia e política, não só o CFP assume posicionamentos políticos, como também a própria Instituição Psicologia, seus saberes, dispositivos técnicos de intervenção e seus atores sociais (psicólogas[os]). Pois suas práticas sempre estão posicionadas social-historicamente e exercem relações de forças que culminam na gestão da vida, tanto individual, como social. É inegável que a atuação do psicólogo no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) exerce relações de forças que podem transformar a vida da comunidade. É inegável que a atividade do psicólogo no seu consultório privado, ou mesmo um psicodiagnóstico, altera as relações de forças de um indivíduo consigo próprio e com seu entorno, no qual ele Disponível em www.scielo.br/p
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 3-10.
pode reconfigurar e assumir não só um novo posicionamento existencial, mas também político, porque se atualizam ali novas relações de forças e desejantes. Assim, as práticas da Psicologia sempre exercem forças que atuam na gestão da vida e da subjetividade. Assumem um posicionamento político que pode incitar processos de autonomia e desejantes, ou mesmo processos cerceadores e de bloqueio da vida. Podem estar implicadas com a emancipação e transformação, mas também com o seu reverso, seja a captura pelas estigmatizações e disciplinarizações, a opressão da violência de Estado, a exclusão promovida pelo neoliberalismo etc. Então, mesmo que parte das(os) psicólogas(os) tenha dificuldades em vislumbrar o caráter político de suas práticas profissionais, suas relações de forças e efeitos, sempre há produção de regimes de poder em suas intervenções profissionais. Não há neutralidade nas práticas psicológicas e, tampouco, nas científicas: há uma microfísica das relações de poder em todos os espaços e práticas sociais. Aqui vale citar uma máxima bastante emitida pelo Prof. Pedrinho Guareschi em suas conferências: “Se ignoramos a política, nos tornamos vítima dela”.
Psicologia e ditadura civil-militar
No Brasil e na América Latina, a produção acadêmica da Psicologia investigou os efeitos da violência de Estado e do regime de opressão das ditaduras que se deflagraram nas décadas de 1960 e 1970. Estes estudos não tiveram apenas finalidades psicoterápicas, de elaborar o trauma sofrido diretamente pelas vítimas do regime de exceção, mas também finalidades políticas, de produzir novas narrativas sobre o que ocorreu, diferente da versão da “história oficial”. Os discursos sobre a memória são uma forma de elaboração dos horrores que se viveu, seja no Holocausto, ou nas ditaduras latino-americanas (Huyssen, 2002), e que visam a produção de uma “contra-história” (Foucault, 1999), na qual não se heroiciza os agressores e não se culpabiliza as vítimas, tal como ocorreu no discurso oficial no Brasil. A elaboração da memória e de histórias alternativas não é algo que fica estanque no ado, senão é uma produção incessante do presente (Vázquez, 2001), que conforma realidades e formas de ser que pavimentam um caminho para um futuro a se construir. A atividade mnemônica é uma cartografia, em que seu método, como diria Deleuze (1997), não é o de escavar para encontrar a tumba do faraó, mas de acompanhar os movimentos de deriva dos conti4
nentes. Portanto, apreender a memória e o ado é a produção de um futuro e de devires, e não de algo que já ou e que está concluído. A construção da memória está em disputa, em conflito (Ansara, 2008; Dobles, 2009), principalmente no que se refere aos episódios de violência do Estado. Dentre muitas obras da Psicologia sobre o tema que tiveram maior profusão na década de 1990, citamos apenas algumas publicadas no cone sul. Na Argentina, Janine Puget (Puget, 2000; Puget, & Kaës, 1991) dedicou-se aos estudos e intervenções sobre os efeitos psíquicos e na memória da violência de Estado; no Chile, a equipe de Elizabeth Lira (Lira, Weinstein & Kovalskys, 1987; Lira, & Piper, 1997) produziu extensa obra a partir dos milhares de atendimento que realizaram; no Uruguai, o trabalho do casal Marcelo e Maren Viñar é referência para o estudo psicanalítico sobre a tortura, a violência e seus efeitos subjetivos (Viñar, 1992; Viñar, 1997). Já no Brasil, trabalhos seminais sobre o tema, e imprescindíveis para a área, são os livros de Naffah Neto (1985), sobre as situações de tortura, de Arantes (1994), sobre psicanálise e clandestinidade política e de Coimbra (1995), que faz uma análise pormenorizada sobre as práticas da Psicologia no período da ditadura civil-militar. A professora Cecília Coimbra se tornou a maior referência no país nas discussões sobre a Psicologia, ditadura e violência de Estado, tanto por sua produção acadêmica, como por sua intensa participação política. A fundadora do “Movimento Tortura Nunca Mais” não apenas investigou a violência do ado, como também as opressões que se atualizam hoje em dia, por exemplo, os abusos da violência policial-estatal. Seguramente podemos afirmar que todas(os) as(os) autoras(os) presentes nesse número temático foram inspiradas(os) por sua obra e palestras magistrais. Em 2013, com a finalidade de ampliar a produção de pesquisas e textos que analisam a ditadura civil-militar no Brasil, o CFP, em parceria com a Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), organizou o “Prêmio de Psicologia e Direitos Humanos: ditadura civil-militar e repercussão sobre a Psicologia como Ciência e Profissão”. Buscou-se estimular análises problematizando o regime autocrático e as possíveis implicações sobre a Psicologia. Foram recebidos 52 artigos de profissionais e estudantes de todo o Brasil. Com isso, ficou claro que há muitas psicólogas(os) interessadas(os) em discutir criticamente a história do regime autocrático e suas reminiscências no Brasil. Vale ressaltar que na data de
Hur, Domenico; Lacerda, Fernando Jr. (2017). Psicologia e Democracia.
premiação dos artigos vencedores, o CFP (2013) publicou o livro “A verdade é revolucionária: testemunhos e memórias de psicólogas e psicólogos sobre a ditadura civil-militar brasileira (1964–1985)”, que contém as narrativas de dezenas de psicólogas(os) de todo o país que vivenciaram o período de exceção. Infelizmente, as violências retratadas no período da ditadura civil-militar não ficaram restritas ao ado. As opressões, os ataques à democracia e aos direitos sociais ocorrem a todo momento, atingindo outro ápice na atualidade. A efetivação de mais um golpe político em 2016 (neste caso, parlamentar), a implementação acelerada de um programa de austeridade que penaliza trabalhadoras(es) e as classes mais pobres, os aprisionamentos políticos arbitrários, o desrespeito do Judiciário a uma de nossas mais caras resoluções (Resolução CFP no 01/1999 – Conselho Federal de Psicologia, 1999), e a censura a exposições artísticas etc. denotam o recrudescimento de posições conservadoras, coercitivas da vida e que prejudicam as maiorias sociais e as liberdades de se expressar e de ser. A conjuntura atual sinaliza como a defesa da democracia é parte constituinte das lutas para a manutenção de direitos sociais e a criação de melhores condições sociais e políticas para a classe trabalhadora, que é a maior parte da população brasileira. No ano de 2017, durante as manifestações que ocorreram no Distrito Federal contra as reformas da previdência e trabalhista, o Exército foi utilizado para reprimir violentamente manifestações pacíficas de dezenas de milhares de pessoas. O fato do governo de Michel Temer mobilizar o Exército para reprimir pessoas que, legitimamente, lutavam contra a corrupção, em favor de eleições diretas e por direitos sociais, mostra a importância de entendermos as razões pelas quais a democracia ainda é tão frágil no Brasil. Isso significa olhar para nossa história e o presente criticamente e buscar perceber o que restou da ditadura civil-militar. Percebe-se que há uma estreita relação entre o que permanece da ditadura no processo de redemocratização e as recentes manifestações de parte da sociedade brasileira. Deste modo, a discussão sobre a função política da Psicologia torna-se ainda mais relevante em face do atual quadro macropolítico enfrentado. Conside-
ramos que a luta pelos direitos humanos e contra a exploração e opressões não é algo que ficou no ado, mas sim que se atualiza com os desafios colocados pelo presente. Atualizar a memória histórica das duras experiências da ditadura civil-militar se torna uma tarefa importante, na qual urge visibilizar e transmitir as produções de psicólogas(os) sobre as implicações ético-políticas da Psicologia relacionadas a este difícil momento histórico-social e suas lutas pela democratização do país. Dessa forma, a “Revista Psicologia: Ciência e Profissão” apresenta o número especial “Psicologia e democracia” para aglutinar e visibilizar essa produção. Consideramos que este volume é um marco histórico na Psicologia brasileira, pois é a primeira vez que um periódico acadêmico da Psicologia no país dedica integralmente um número temático para a discussão de sua relação com a ditadura civil-militar1. Busca-se apresentar análises sobre como a ditadura civil-militar teve repercussões sobre a Psicologia como Ciência e Profissão, bem como a Psicologia contribuiu ou pode contribuir nas lutas emancipatórias pela democracia no Brasil e na América Latina. O tema deste número temático é ousado, pois apreende a Psicologia não apenas como conjunto de saberes ou dispositivos técnicos de intervenção, mas no seu compromisso enquanto Instituição social para a constituição de uma sociedade mais justa e democrática. Discute não apenas sua atuação profissional, mas sua implicação nas distintas relações de poder sociais, ou seja, a função política da Psicologia na história brasileira. De certa forma também se coloca a Psicologia no “banco dos réus”, para analisar suas implicações com os processos políticos do país, se realmente esteve a serviço da democracia, ou se pode ter tido alguma relação com a opressão do período ditatorial. Infelizmente os estudos sobre a Instituição Psicologia no Brasil nos mostram que houve casos, não isolados, de contribuição para as práticas políticas opressivas no período da ditadura, e que podem estar sendo reatualizados até os dias de hoje. Neste número temático, recebemos 34 propostas. A triagem seguiu os mesmos padrões usuais para a seleção e avaliação de artigos para dossiês temáticos em revistas científicas. Após análise da adequa-
1 Vale citar que a Revista Psicologia Política organizou em 2015 um dossiê com temática próxima, sobre “O impacto psicossocial das Comissões da verdade e outros processos de justiça de transição em países de América Latina”. No entanto, diferentemente de nosso número temático, não contou com nenhum trabalho sobre o ocorrido no Brasil e seus cinco artigos focalizaram as experiências das Comissões da Verdade da Argentina, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai (Páez, Espinosa, & Beristain, 2015).
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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 3-10.
ção dos manuscritos ao tema deste número especial, enviamos os trabalhos para avaliação por pareceristas ad hoc, doutores especialistas na área e com reconhecida trajetória científica no tema do artigo. O sistema utilizado foi o da “avaliação cega”, na qual os pareceristas desconhecem a identidade do(a) autor(a) e vice-versa. Foram aprovados dezessete artigos de autores de todas as regiões do país e um do México. Dentre eles também constam cinco artigos vencedores do prêmio “Psicologia e Direitos Humanos: ditadura civil-militar e repercussão sobre a Psicologia como ciência e profissão2” de 2013. Dentre a variedade de temáticas dos diversos artigos, agrupamos em quatro tópicos: a) Práticas e políticas da Psicologia na ditadura civil-militar; b) Psicanálise e testemunhos: clínica e política; c) Psicologia e os movimentos de raça, etnia e sociais e d) Desafios para a democratização do presente.
Práticas e políticas da Psicologia na ditadura civil-militar
Neste primeiro tópico agrupamos os artigos que se referem diretamente à reconstrução da memória e das narrativas no período da ditadura civil-militar. Os trabalhos versam sobre a relação entre as práticas e políticas da Psicologia no período de exceção. Em “Psicología y destrucción del psiquismo: la utilización profesional del conocimiento psicológico para la tortura de presos políticos”, David Pavón-Cuellar, da Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo (UMSNH – México), analisa a utilização da Psicologia para a tortura de presos políticos no mundo e especialmente na América Latina. Centra-se em casos ocorridos no México, Uruguai, Chile e Brasil, além de tecer considerações acerca do recente debate sobre os psicólogos torturadores da American Psychological Association, dos Estados Unidos. Domenico Uhng Hur e Fernando Lacerda Júnior, da Universidade Federal de Goiás (UFG), em “Ditadura e insurgência na América Latina: Psicologia da Libertação e resistência armada” discutem como a luta insurgente de ex-guerrilheiros brasileiros e um das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) contra o terrorismo de Estado no Brasil e na América Latina resultou na produção de novas ideias na Psico-
logia, a Psicologia da Libertação, e como transformou as formas de participação política dos sujeitos que aderiram a práticas radicais de luta política. Em “Luta armada na Psicologia: prática de classe contra o terrorismo de estado”, Juberto Antonio Massud de Souza e Ana Maria Jacó-Vilela, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), resgatam as trajetórias de estudantes e profissionais da Psicologia que participaram diretamente de organizações políticas que adotaram a luta armada como tática de combate à ditadura civil-militar. Ao demonstrarem que existiam estudantes, psicólogas e psicólogos que colocaram suas vidas em risco ou até mesmo morreram defendendo uma sociedade igualitária e democrática, os autores argumentam que a Psicologia não foi apenas um poço de práticas conservadoras e defendem a ideia de que as ações e os sacrifícios dos exemplos de luta citados no artigo podem ter contribuído para impulsionar debates e problematizações sobre as políticas da Psicologia no Brasil. Filipe Boechat, da Universidade Federal de Goiás (UFG), em “A Psicologia brasileira nos ciclos democrático-nacional e democrático-popular”, assume a tese de que a história da Psicologia como ciência e profissão no Brasil não pode ser compreendida de forma separada da história da formação social brasileira. Dessa forma, problematiza as diferentes propostas de Psicologia que emergiram em dois períodos específicos da sociedade brasileira. Mostra como a concepção “tradicional” de Psicologia que predominou nas primeiras décadas após a regulamentação da profissão esteve estreitamente relacionada com as necessidades dos aparelhos ideológicos do ciclo democrático-nacional da sociedade brasileira. O autor também elabora importante crítica sobre os limites do tipo de “Psicologia Crítica”, que se tornou hegemônica após o processo de democratização da sociedade brasileira e destaca sua estreita articulação com os aparelhos ideológicos típicos do ciclo democrático-popular. Em “O fazer psicológico no período da ditadura civil-militar”, Ana Maria Batista Correia, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), e Carla Náyad Castelo Branco Dantas, do Instituto Dom Barreto, discutem as práticas da Psicologia no período da ditadura civil-militar questionando se esta estava a serviço do
2 Os artigos premiados já estavam pré-aprovados, mas também foram avaliados pelos mesmos critérios, ando por reformulações para se adequar ao formato da Revista. Na categoria profissional foram os de Hur & Lacerda Jr. (2017), Jardim (2017) e Correia & Dantas (2017). Os da categoria estudante foram os de Silva (2017) e Furlan (2017). A outra autora premiada na categoria estudante não submeteu seu artigo para este número temático.
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Hur, Domenico; Lacerda, Fernando Jr. (2017). Psicologia e Democracia.
regime de opressão ou da sociedade. Para realizar tal reflexão, utilizam a perspectiva do psicólogo da libertação Ignácio Martín-Baró. Fabiola Figueirêdo da Silva, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em “Psicologia no contexto da ditadura civil-militar e ressonâncias na contemporaneidade”, busca refletir sobre a relação entre as práticas da Psicologia e suas entidades da classe profissional com a ditadura civil-militar. Ressalta a importância de uma Psicologia ética e comprometida socialmente com a realidade vivida. Em “Psicologia e a política de direitos: percursos de uma relação”, Vinicius Furlan, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), discute a relação da Psicologia com as políticas de direito nos períodos da ditadura civil-militar e da atualidade. Perscruta diferentes práticas que mostram como a Psicologia assume práticas mais progressistas, ao mesmo tempo em que há uma série de desafios diante da profissão. Fazendo a transição com o presente, Luis Eduardo Franção Jardim, da Universidade de São Paulo (USP), em “Psicologia Social e pesquisa com memória: método e reparação de danos da ditadura civil-militar”, discute as marcas que a ditadura civil-militar deixou na memória coletiva e individual. Apresenta o Clínicas do Testemunho e a Comissão da Verdade como práticas de justiça transicional e nos brinda com uma proposta metodológica de pesquisa com a memória a partir da Psicologia Social, que também pode contribuir neste processo.
Psicanálise e testemunhos: clínica e política
A psicanálise foi um dos principais dispositivos teórico-clínicos utilizados para elaborar os traumas e marcas da violência de Estado na América Latina. Os psicanalistas não se limitaram ao exercício técnico, mas também assumiram posicionamentos políticos em relação às ditaduras em nosso continente. Citamos como um exemplo inspirador as práticas do Grupo Plataforma, dissidência da Associação Psicanalítica Argentina. Devido ao seu aguerrido e crítico posicionamento, foi perseguido politicamente e muitos dos seus integrantes tiveram que se exilar em outros países (Rodrigues, Fernandes & Duarte, 2001). Os artigos aqui apresentados referem-se às investigações psicanalíticas sobre os processos de escuta e construção das narrativas, em grande parte amparados no projeto de reparação e justiça transicional denominado de “Clínicas do testemunho”.
Rafael Alves Lima, da Universidade de São Paulo (USP), em “Análise reparável e irreparável: o conceito psicanalítico de reparação na agenda da Transição brasileira”, nos brinda com um importante arcabouço teórico ao discutir o conceito de reparação em distintas tradições teóricas da psicanálise. Fornece-nos importante material para a escuta de testemunhos de elaboração do ado, que insistem e persistem no presente. Em “Reminiscências da violência estatal: a reparação psíquica através de uma Clínica Política”, Natália Centeno Rodrigues, Francisco Quintanilha Véras Neto e Rodrigo Fernandes Teixeira, da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), discorrem sobre o processo de transição da ditadura civil-militar para a democracia. Focalizam as práticas reparatórias adotadas e a constituição do projeto responsável por fornecer a reparação psíquica, o supracitado Clínicas do Testemunho. Já Alexei Conte Indursky e Bárbara de Souza Conte, da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Instituto Appoa), em “Reparação psíquica e testemunho”, debatem a implementação do Projeto Clínicas do Testemunho, focalizando a experiência do dispositivo “Grupo de testemunho”, enquanto uma via clínico-política nas políticas de reparação. Além dos processos psicoterápicos, focalizam também as políticas da reparação psíquica. Em “O ensino testemunhal entre os restos da ditadura: uma metodologia ético-política”, Helena Pillar Kessler, Daniel Boianovsky Kveller, Marina da Rocha Rodrigues e Karine Shamash Szuchman, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), narram a experiência de uma disciplina de graduação que focalizou o que permanece da ditadura entre nós. Trauma, testemunho e crise foram conceitos cruciais utilizados para refletir sobre o ocorrido.
Psicologia e os movimentos de raça, etnia e sociais
Neste tópico apresentam-se os trabalhos relacionados a movimentos sociais, raciais e étnicos relacionados aos impactos da ditadura civil-militar. São abordadas as discussões sobre o negro, os indígenas e o maior movimento social latino-americano, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Lia Vainer Schucman, da Universidade de São Paulo (USP), e Hildeberto Martins, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em “A Psicologia e o discurso racial sobre o negro: do ‘objeto da ciência’ ao sujeito político”, discutem como se modificaram as apreensões da Psicologia sobre os estudos raciais, 7
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desde o início do século XX até o período pós-redemocratização do país. Há um deslocamento de sentidos, no qual outrora a Psicologia abordava o negro como objeto, mas, seguindo a atualização de forças progressistas da abertura política, tomou-se as questões raciais a partir de um enfoque crítico e politizado, no qual este emerge como protagonista e importante ator social. Em “Parecer psicossocial da violência contra os povos indígenas brasileiros: o caso Reformatório Krenak”, Bruno Simões Gonçalves, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), analisa algo pouco presente nos estudos tradicionais sobre a ditadura-civil militar: a violência estatal policial contra indígenas. Através de análise documental, viagem de campo e 23 entrevistas, o autor investigou o centro de detenção de indígenas que ficou conhecido como “Reformatório Krenak”, que funcionou entre 1969 e 1973. Em “Práticas discursivas sobre a luta pela terra na transição democrática brasileira”, Jáder Ferreira Leite, Magda Dimenstein e Candida Maria Bezerra Dantas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), narram o acontecimento do I Congresso Nacional do Movimento de Trabalhadores Sem Terra (MST). Ressaltam a relação do MST e da Comissão da Pastoral da Terra (T) com a reabertura política no país.
Desafios para a democratização do presente
A luta pela democracia é algo que se constrói e se faz no presente. Neste último tópico, contamos com artigos que refletem sobre o papel da Psicologia nas lutas contemporâneas, como pela laicidade, pela democratização da cidade e na luta contra a militarização do contemporâneo. O artigo de Tatiana Lionço, da Universidade de Brasília (UnB), traz discussão extremamente relevante e atual pela qual a Psicologia a e que foi recentemente visibilizada pela mídia do mundo inteiro. Em “Psicologia, democracia e laicidade em tempos de fundamentalismo religioso no Brasil”, a autora defende a importância da laicidade para práticas democráticas e sociais na Psicologia. Neste contexto, analisa a ofensiva dos fundamentalismos religiosos e a denominada “Psicologia Cristã” contra normativas da profissão, tal como a Resolução CFP no 01/1999. Destaca, assim, as práticas e lutas do CFP em defesa da laicidade e de um exercício ético na Psicologia. Em “Psicologia e democracia em um cenário de cidade como campo em disputa”, Elisa Martins, 8
Fhillipe Pereira, Gabriela Salem, Lucas Gabriel de Matos Santos e Roberta Brasilino Barbosa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nos mostram a necessidade de práticas que visam democratizar o espaço urbano da cidade, bem como a subjetividade. Por meio de variados dispositivos coletivos de intervenção no Rio de Janeiro discutem o papel da Psicologia para os processos de democratização de uma cidade que constantemente nos vem sendo subtraída. Ana Vládia Holanda Cruz, da Faculdade DeVry Fanor (Fortaleza/CE), Tatiana Minchoni, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Adriana Eiko Matsumoto, da Universidade Federal Fluminense (UFF – Volta Redonda) e Soraya Souza de Andrade, da Universidade Federal do Pará (UFPA), em “A ditadura que se perpetua: direitos humanos e a militarização da questão social”, discutem como a violência da ditadura se perpetua no presente nas práticas de militarização do contemporâneo. A partir da Criminologia Crítica refletem sobre a construção da figura do delinquente como inimigo interno, assim como da função dos processos de criminalização.
Um convite
A abertura de um espaço para discutir a democracia na Revista Psicologia: Ciência e Profissão significa que as(os) psicólogas(os) não podem ficar alheias(os) aos principais acontecimentos sociais e políticos que fraturam a sociedade brasileira. Pensamos que, além da discussão das implicações da Psicologia na transição da ditadura à democracia, a leitura desse número temático consiga incitar as(os) psicólogas(os) a fazer uma autoanálise de suas práticas profissionais, para refletirem sobre que regimes de poder estão sendo fomentados e reproduzidos. As questões que se colocam são: Suas práticas incitam processos de potencialização da vida e desejantes, ou opressores, normatizadores e despotencializadores? Favorecem as minorias privilegiadas ou as maiorias desfavorecidas socialmente? Beneficiam o chefe, o empresário, ou os trabalhadores? Fomentam relações democráticas ou autoritárias? Então, primeiramente, o(a) psicólogo(a) deve se apropriar dos efeitos políticos de suas práticas profissionais. Tendo essa clareza, cremos que poderá contribuir de forma mais explícita para a produção de relações mais humanitárias, solidárias e de democratização nos distintos espaços institucionais. Os desafios enfrentados são tamanhos que não devemos nos perder em conflitos personalistas e de manutenção das
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hierarquias e lugares de poder instituídos. A democracia é uma prática coletiva que está em permanente construção. Defendê-la significa colocar a Psicologia ao lado da maior parte da população, ao lado daquelas(es) que estão lutando por uma vida justa e digna. Então, acreditamos que este número temático irá contribuir para consolidar uma reflexão permanente e relevante sobre a função, o papel e as implicações da Psicologia na construção da história de um país, e de outros mundos possíveis, diferentes das opressões e microfascismos que vemos emergir. Para finalizar, gostaríamos de agradecer os plenários do CFP e do Sistema-Conselhos de Psicologia, que, desde a década de 1980, vêm construindo uma
Psicologia brasileira mais crítica e comprometida com a vida e as minorias sociais (que são as maiorias do ponto de vista numérico). Dentre tantas(os) psicólogas(os), agradecemos o conselheiro Pedro Paulo Bicalho, que, além de ser militante de direitos humanos, construiu conosco a ideia deste número temático e a Editora da Revista Psicologia: Ciência e Profissão, Professora Neuza Guareschi, que acolheu entusiasticamente esta proposta. Também não podemos esquecer o trabalho e empenho dos pareceristas, professores(as) e pesquisadores(as) de importantes Universidades do país, que mesmo estando com a agenda lotada, contribuíram com as avaliações dos artigos em tempo recorde.
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Fernando Lacerda Júnior Graduado e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas – SP. Brasil. Professor adjunto de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Goiânia – GO. Brasil. Ex-presidente da Associação Brasileira de Psicologia Política (2014–2016). E-mail:
[email protected] Ambos são organizadores e coautores de sete livros e dezenas de artigos científicos nas áreas de Psicologia Social e Psicologia Política. Como citar: Hur, D.U., & Lacerda Júnior, F. (2017). Psicologia e democracia: da ditadura civil-militar às lutas pela democratização do presente. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 3-10. https://doi.org/10.1590/1982-3703190002017 How to cite: Hur, D.U., & Lacerda Júnior, F. (2017). Psychology and Democracy: from the Civil-Military Dictatorship to the Struggles for the Democratization of the Present. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 1-8. https://doi.org/10.1590/1982-3703190002017 Cómo citar: Hur, D.U., & Lacerda Júnior, F. (2017). Psicología y Democracia: de la Dictadura Civil-Militar a las Luchas por la Democratización del Presente. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 1-8. https://doi.org/10.1590/1982-3703190002017 10
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Psicología y Destrucción del Psiquismo: La Utilización Profesional del Conocimiento Psicológico para la Tortura de Presos Políticos
David Pavón-Cuéllar Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, México.
Resumen: El artículo aborda el tema de la utilización de la Psicología para la tortura de presos políticos en el mundo y especialmente en América Latina. Primero se incursiona en el reciente debate sobre los psicólogos torturadores de los Estados Unidos. Luego se recuerdan los precedentes del empleo de la Psicología para torturar en la Alemania nazi, la España franquista, la represión colonial sa en Argelia y la estrategia militar estadounidense durante la Guerra Fría. La consideración de tales precedentes y del reciente debate en los Estados Unidos permite llegar a una representación general de la forma en que la Psicología opera en la tortura como forma de supresión y desintegración del psiquismo. Esta representación general guía un análisis de los casos de cuatro profesionales de la salud mental que pusieron sus profesiones al servicio de regímenes autoritarios latinoamericanos para torturar a presos políticos entre los años 60 y 70 del siglo XX: el psiquiatra mexicano Salvador Roquet, el psicoanalista brasileño Amílcar Lobo Moreira, el psicólogo uruguayo Dolcey Brito y el psicólogo chileno Hernán Tuane. Palabras clave: Dictadura, Tortura, Psicología, Psicoanálisis, Psiquiatría.
Psicologia e Destruição do Psiquismo: a Utilização Profissional do Conhecimento Psicológico para a Tortura de Presos Políticos Resumo: O artigo aborda o tema da utilização da Psicologia para a tortura de presos políticos no mundo e especialmente na América Latina. Primeiro discorre-se acerca do recente debate sobre os psicólogos torturadores dos Estados Unidos. Logo recorda-se os precedentes do emprego da Psicologia para torturar na Alemanha nazista, na Espanha franquista, na repressão colonial sa na Argélia e na estratégia militar estadunidense durante a Guerra Fria. A consideração de tais precedentes e do recente debate nos Estados Unidos permite chegar a uma representação geral da forma com que a Psicologia opera na tortura como forma de supressão e desintegração do psiquismo. Esta representação geral guia uma análise dos casos de quatro profissionais de saúde mental que colocaram suas profissões ao serviço de regimes autoritários latino-americanos para torturar presos políticos entre os anos 60 e 70 do século XX: o psiquiatra mexicano Salvador Roquet, o psicanalista brasileiro Amílcar Lobo Moreira, o psicólogo uruguaio Dolcey Brito e o psicólogo chileno Hernán Tuane. Palavras-chave: Ditadura, Tortura, Psicologia, Psicanálise, Psiquiatria.
Disponível em www.scielo.br/p
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Psychology and Destruction of the Psyche: the Professional use of Psychological Knowledge for Torture of Political Prisoners Abstract: This article addresses the issue of the use of Psychology for the torture of political prisoners in the world and especially in Latin America. First, it examines the recent debate on psychologists involved in torture in the United States. Then it reminds the precedents of the use of Psychology to torture in Nazi , Francoist Spain, French colonial repression in Algeria and US military strategy during the Cold War. The consideration of such precedents and the recent debate in the United States allows arriving at a general representation of the way in which Psychology operates in torture understood as a form of suppression and disintegration of the psyche. This general representation guides an analysis of the cases of four mental health professionals who put their professions at the service of Latin American authoritarian regimes to torture political prisoners between the 1960s and 1970s: the Mexican psychiatrist Salvador Roquet, the Brazilian psychoanalyst Amílcar Lobo Moreira, the Uruguayan psychologist Dolcey Brito and the Chilean psychologist Hernán Tuane. Keywords: Dictatorship, Torture, Psychology, Psychoanalysis, Psychiatry.
Introducción
Al ocuparse de la relación entre la Psicología y la tortura, Suedfeld (1990) la concibió a través de tres posibles roles del psicólogo: el de torturado, el de torturador y el de agente externo que intenta comprender la tortura y tratar sus efectos en sus víctimas. Este último rol, el más natural según Suedfeld, es efectivamente el que suelen desempeñar los psicólogos en la variada literatura científica y académica sobre el tema. En sus reflexiones e investigaciones sobre la tortura, los profesionales de la Psicología no aparecen generalmente ni como víctimas ni como verdugos, sino como especialistas o como sanadores, como quienes comprenden o como quienes tratan. En lo que se refiere a la comprensión psicológica de la tortura, se han considerado factores tan disímiles como el poder de la situación (Haney, Banks, & Zimbardo, 1973), la obediencia a la autoridad por parte del torturador (Milgram, 1974), los mecanismos defensivos internos del propio torturador y el papel externo de la dominación y de las contradicciones sociales (Bendfeldt-Zachrisson, 1988), una hipotética destructividad humana extrema (Staub, 1990), diversos aspectos contextuales e ideológicos (Dobles, 1990), la influencia de los contextos sociales y de las presiones y prejuicios también sociales (Fiske, Harris, & Cuddy, 2004), la falsa creencia popular en la eficacia de la tortura (Janoff-Bulman, 2007), la deshumanización de la 12
víctima (Viki, Osgood, & Phillips, 2013) y la personalidad autoritaria y socialmente dominante (Lindén, Björklund, & Bäckström, 2016). En lo concerniente al tratamiento psicológico, psicoterapéutico y psicosocial de los efectos de la tortura, tenemos valiosas propuestas generales (v.g. Gorman, 2001; Pope, & Garcia-Peltoniemi, 1991; Wilson y Drozdek, 2004) y evaluaciones de las propuestas (v.g. Campbell, 2007; Patel, Willias, & Kellezi, 2016), así como testimonios de intervenciones que se han realizado, por ejemplo, entre exiliados sudamericanos en Bélgica (González-Bermejo, 1979), entre víctimas de la represión política en Chile (Lira, & Weinstein, 1984) y Guatemala (Hanscom, 2001), entre palestinos en Gaza (Qouta, & El-Sarraj, 2002), entre los refugiados tibetanos en la India (Ketzer, & Crescenzi, 2002) y entre víctimas de opositores maoístas y de fuerzas represivas gubernamentales en Nepal (Van Ommeren, Sharma, Prasain, & Poudyal, 2002). Además de hacer lo que suelen hacer, comprender y tratar los efectos de la tortura, puede ocurrir que los profesionales de la Psicología, siguiendo la distinción de Suedfeld, sean ellos mismos torturados o torturadores. El primer caso, ya estudiado en contextos como el brasileño (Carvalho, 2013) y el argentino (Carpintero, & Vainer, 2005), pone a los psicólogos en la situación de cualquier víctima de tortura y quizás tan solo resulte significativo para la Psicología por lo que nos enseña sobre su historia, sobre su lugar en la
Pavón-Cuéllar, David (2017). Psicología y Destrucción del Psiquismo.
sociedad y sobre los riesgos de algunas formas de ejercicio profesional. En cuanto al segundo caso, el de los psicólogos como quienes torturan o contribuyen de algún modo a torturar, tiene obviamente una gran significación para la Psicología, pero significativamente ha sido muy poco abordado en décadas anteriores, con la excepción de unos pocos estudios generales, como el clásico de Suedfeld (1990), y otros circunscritos a contextos particulares como el latinoamericano (v.g. Riquelme, 2004). El desinterés por el tema es desconcertante cuando uno considera su gravedad y todo lo que puede revelarnos sobre la Psicología en sí misma, sobre la manera en que existe y opera, sobre su función en el sistema socioeconómico y su relación con el orden político establecido. Es precisamente por esto que aquí deseamos abordar el tema de los psicólogos torturadores. Y quizás haya sido por lo mismo, paradójicamente, que el tema fuera tan desatendido en el pasado, hasta que llegó el momento, hace poco, en que sencillamente ya no podía ignorarse más. Fue el momento en que estalló el escándalo por la participación de psicólogos estadounidenses en la tortura de sospechosos de terrorismo. Vimos entonces, de pronto, una avalancha de artículos acerca de algo muy viejo que salía súbitamente a la luz y parecía nuevo, inédito y sin precedentes (v.g. Arrigo, & Long, 2008; Costanzo, Gerrity, & Lykes, 2007; Lira, 2008; Saldarriaga, 2009; Soldz, 2008, 2011; Suedfeld, 2007; Welch, 2010). Aunque tomando nuestras distancias con respecto al actual debate en torno a los psicólogos torturadores de los Estados Unidos, lo retomaremos aquí, de manera lateral, para problematizar algunos de sus términos y para cuestionar una posición en la que simultáneamente se ha disimulado y justificado el empleo de la Psicología para torturar. Luego, aportando una contextualización que suele faltar en el actual debate, recordaremos brevemente los precedentes de tal empleo en la Alemania nazi, la España franquista, la represión colonial sa en Argelia y la estrategia militar estadounidense durante la Guerra Fría. La consideración de tales precedentes y del reciente escándalo en los Estados Unidos nos permitirá llegar a una representación general de la forma en que la Psicología opera en la tortura como forma de supresión y desintegración del psiquismo. Esta representación general guiará nuestro análisis de los casos de cuatro profesionales de la salud mental que pusieron sus profesiones al servicio de regímenes autorita-
rios latinoamericanos para torturar a presos políticos entre los años 60 y 70 del siglo XX: primero el psiquiatra mexicano Salvador Roquet, al que le dedicaremos una sección completa por ser el primero en el tiempo y el menos conocido, y luego el psicoanalista brasileño Amílcar Lobo Moreira, el psicólogo uruguayo Dolcey Brito y el psicólogo chileno Hernán Tuane, de los que nos ocuparemos brevemente. Los casos mencionados no podrán analizarse aquí de modo amplio y exhaustivo. Tendremos que ser muy selectivos y centrarnos tan solo en aquellos detalles con los que mejor pueda confirmarse, ilustrarse y problematizarse nuestra conjetura sobre la utilización de la Psicología para la destrucción de su propio objeto. Sin embargo, ante estos detalles, intentaremos dar voz a los involucrados, ofreciendo citas literales y favoreciendo las fuentes primarias. Nuestro análisis tendrá cierta densidad teórica y será de carácter crítico reflexivo y no solo histórico narrativo. En otras palabras, no solo buscará echar luz y atraer la atención sobre uno de los capítulos más sombríos de la historia de la Psicología en América Latina, sino que también intentará elucidar el encargo que la Psicología cumple al utilizarse para suprimir y desintegrar la esfera psíquica mediante la tortura. Esta elucidación, a su vez, debería servir para profundizar en todo lo que está en juego en el actual debate sobre los psicólogos torturadores en los Estados Unidos.
Mitchell, Jessen and Associates: una compañía de Psicología especializada en la tortura
En diciembre de 2014, en el Senado de los Estados Unidos, el Comité Selecto sobre Inteligencia hizo público un informe sobre la tortura de sospechosos de terrorismo por parte de la Agencia Central de Inteligencia (CIA) durante la presidencia de George W. Bush (Senate Select Committee on Intelligence, 2014). El informe divulgaba la participación de psicólogos en el diseño y la implementación de “técnicas de interrogación mejorada” que se utilizaban en centros clandestinos de detención de la CIA alrededor del mundo, entre ellos Bagram, Guantánamo y Abu Ghraib, y que incluían diversas formas de tortura, entre ellas las posiciones corporales incómodas prolongadas, la exposición a un frío intenso o a ruidos ensordecedores, el ahogamiento simulado, la privación sensorial, la privación de sueño hasta el punto de provocar alucinaciones, la privación de alimentos 13
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y bebidas, la rehidratación anal y el confinamiento en estrechas cajas similares a ataúdes. El parágrafo 13 del mismo informe detallaba cómo la CIA contrató especialmente a dos psicólogos, fundadores de una compañía privada especializada en “interrogaciones mejoradas”, a quienes pagó 80 millones de dólares para “desarrollar, operar y evaluar las operaciones de interrogación”, lo que habían hecho “basándose en la indefensión aprendida” (Senate Select Committee on Intelligence, 2014, p. 11). Al mencionar la “indefensión aprendida” (learned helplessness), el informe del Comité Secreto del Senado se estaba refiriendo a un concepto que le aseguró la celebridad al psicólogo estadounidense Martin Seligman, promotor de la Psicología positiva y antiguo presidente de la Asociación Americana de Psicología (APA). El concepto de Seligman (1975) describe la condición de quien aprende a sentirse impotente y a comportarse pasivamente por causa de circunstancias como los castigos continuos. Las torturas, operando como castigos continuos, harían “aprender la indefensión” a los sospechosos de terrorismo, los cuales, convertidos en seres indefensos, impotentes y pasivos, habrían de mostrarse lógicamente más dóciles y sumisos en el curso de sus interrogatorios. Al menos esto era lo que se esperaba, pero no fue lo que ocurrió, como lo muestra el informe del Comité Secreto del Senado, en el que se denuncia la ineficacia de la estrategia dirigida por los dos psicólogos seguidores de Seligman. El Comité Secreto había cubierto bajo el anonimato a los dos psicólogos que dirigían las torturas de la CIA, pero los medios no tardaron en identificarlos y en difundir sus nombres: James Elmer Mitchell y John Bruce Jessen (Windrem, 2014). La identificación, por cierto, no podía ser más fácil. Ambos psicólogos ya habían sido públicamente denunciados mucho tiempo antes. Eran tan conocidos entre los profesionales de la Psicología, que “la sola reacción ante sus nombres se había convertido en la prueba de fuego de la actitud ante la coerción y los derechos humanos” (Eban, 2007, párr. 18). Mitchell y Jessen estaban en el centro de una enardecida controversia que se había desatado por una resolución de la APA, en julio 2005, en la que se autorizaba que los psicólogos rindieran sus servicios en los interrogatorios militares. En el contexto de esta polémica, el informe del Comité Secreto de 2014 vino a justificar, validar y reforzar la posición de quienes, como Costanzo et al. (2007), habían exigido a la APA 14
una “condena clara”, una “investigación independiente” y una “prohibición expresa” de la participación de psicólogos en “torturas o en otras formas de tratamiento cruel, inhumano o degradante como técnica de interrogación” (p. 10). El mismo informe sirvió para que aprendiéramos a desconfiar de quienes, como Suedfeld (2007), ponían en duda que los profesionales de la Psicología estuvieran verdaderamente implicados en “inventar o aplicar técnicas de tortura” (p. 59), pero al mismo tiempo recomendaban a la APA, con una buena dosis de cinismo, que alentase a los psicólogos a que ayudaran a “autoridades legítimas a evitar falsas confesiones y a obtener información veraz con el nivel mínimo posible de incomodidad, privación o dolor (mental o físico) de las personas interrogadas” (p. 61). Lo que Suedfeld plantea es bastante claro: aun cuando las policías de los gobiernos instituidos emplearan el dolor para extraer información, aun cuando recurrieran a la tortura en sus interrogatorios, deberían ser apoyadas por los profesionales de la Psicología. O peor aún: había que estimular a los psicólogos a poner su profesión al servicio de los torturadores en los interrogatorios, pero siempre y cuando la tortura fuera lo menos dolorosa posible. Sobra decir que “lo menos dolorosa posible” puede ser sinónimo de “inmensamente dolorosa” cuando se trata de personas particularmente refractarias al interrogatorio. ¿Pero acaso estas personas no son precisamente aquellas que necesitan ser torturadas? Pedir que “se les torture lo menos posible para conseguir lo que se necesita” es igual a pedir que “se les torture solamente lo que se necesita”. El razonamiento de Suedfeld es el de cualquier torturador simplón y suficientemente sensato: si ya hemos obtenido todas las informaciones que necesitábamos, ¿para qué molestar al torturado y para qué molestarse uno mismo al intensificar la tortura? Como hemos visto, Suedfeld se empeña en disimular y justificar la tortura con los argumentos del más vulgar de los golpeadores. Esto es todo lo que hace con lo que él mismo describe, con un orgullo enternecedor, como su “pensamiento complejo” (Suedfeld, 2007, pp. 55-56). Tal pensamiento es el mismo con el cual, 17 años antes, abordó la relación de la Psicología con la tortura, llegando al reconfortante descubrimiento de que tan solo existía un caso demostrado en el que un psicólogo profesional hubiera practicado la tortura (Suedfeld, 1990). Podía entonces concluirse alegremente que la Psicología no
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es de ningún modo, por así decir, una “profesión útil para torturar”. Sin embargo, para demostrar lo contrario, ahí están los psicólogos James Elmer Mitchell y John Bruce Jessen con sus colaboradores, entre ellos el mismísimo expresidente de la APA Joseph Matarazzo, y con su firma Mitchell, Jessen and Associates: no solo una macabra “empresa de tortura”, sino una “compañía especializada en la Psicología para la tortura”. De modo que ya no es verdad que haya solo un caso de psicólogo torturador en el mundo. Pero de cualquier manera, como lo veremos en las siguientes páginas, tampoco era verdad en 1990, cuando Suedfeld lo afirmaba. Y, para empezar, ¿por qué reducir la cuestión del uso profesional de la Psicología para la tortura a la simple constatación de casos plenamente demostrados en los que haya un profesionista psicólogo torturador? Tal reducción resulta inisible por muchas razones, entre ellas tres bastante obvias: 1) la tortura, especialmente la psicológica, no suele ser algo plenamente demostrable; 2) los psicólogos pueden contribuir a la tortura de modo indirecto, inspirándola o concibiéndola, sin participar directamente en ella; y 3) no son únicamente los psicólogos, sino también los psiquiatras, los psicoanalistas y otros profesionales de la salud mental, quienes están en condiciones de hacer un uso profesional, relativamente riguroso y metódico, de la Psicología como ciencia para torturar. Lo cierto es que hay varias situaciones concretas conocidas, algunas de ellas bien evidenciadas y otras bastante verosímiles, en las que el conocimiento científico psicológico ha sido utilizado profesionalmente por psicólogos y otros especialistas de la salud mental para inspirar, asesorar, concebir, diseñar, perfeccionar o aplicar técnicas de tortura. Semejante utilización de la Psicología será ejemplificada y examinada más adelante a través de los ya mencionados cuatro casos latinoamericanos de la segunda mitad del siglo XX. Sin embargo, antes de pasar al examen puntual de estos casos, conviene que nos detengamos un momento en los precedentes del empleo de la Psicología para la tortura y en algunas consideraciones generales en torno a tal empleo.
Breve revisión histórica de la Psicología en la tortura: nazismo alemán, franquismo español, colonialismo francés e imperialismo estadounidense
A finales de los treinta y principios de los 1940, entre los franquistas españoles y los nazis alemanes, encontramos ya claros indicios de vinculación entre la
tortura y la Psicología. Sabemos que la Gestapo recurrió a diversos métodos rigurosos de “interrogatorio intensificado” (verschärfte Vernehmung) que eran idénticos o muy similares a las “técnicas de interrogación mejorada” propuestas por Mitchell y Jessen. La exposición al frío y la privación sensorial, de sueño, de alimento y bebida, formaban parte del arsenal de estrategias empleadas por los nazis en los interrogatorios durante la Segunda Guerra Mundial. Un caso bien documentado es el de Richard Wilhelm Hermann Bruns, Rudolf Theodor Adolf Schubert y Emil Clemens, quienes fueron juzgados en Noruega por haber efectuado “interrogatorios intensificados” entre 1942 y 1945, durante la ocupación alemana de aquel país (Sullivan, 2009; Suprema Corte de Noruega, 1946). Mientras la Gestapo se valía de un método psicológico de tortura para interrogar a posibles opositores al nazismo, centenares de niños, adolescentes y algunos adultos eran torturados por profesionales de la salud mental en diversas clínicas psiquiátricas y “guarderías para niños especiales” en Alemania y en las zonas ocupadas por los nazis. Es bien conocido el caso del hospital Am Steinhof y específicamente de la clínica Am Spiegelgrund de Viena, en donde el psiquiatra Heinrich Gross no solo decidió la muerte de muchos internos, sino que también los hizo pasar por los más dolorosos tormentos con fines de reeducación y experimentación (Czech, 2014; Jahn, 2012; Martens, 2004). Poco tiempo antes, Robert Ritter, doctor en Psicología educativa, se había dedicado a realizar extensas investigaciones para demostrar, según él, que los gitanos eran congénitamente “criminales y asociales”, con lo que proporcionó la justificación psicológica perfecta que se necesitaba para internarlos en campos de concentración y ahí someterlos a un trato inhumano que hoy correspondería exactamente a lo que entendemos por tortura (Friedlander, 1995, p. 252). El trato recibido por los gitanos en la Alemania nazi es comparable al que recibieron por la misma época muchos presos políticos en la España franquista. Aquí también se contó con una justificación psicológica perfecta, la ofrecida por el psiquiatra Antonio Vallejo Nájera, jefe de un Gabinete de Investigaciones Psicológicas dedicado a investigar las raíces psíquicas del marxismo. Vallejo Nájera pretendió probar científicamente que los marxistas eran “psicópatas antisociales” que debían segregarse para “liberar a la sociedad de plaga tan temible” (Vallejo Nájera, 1939, p. 52). Esta forma de “terapia segregacionista” buscaba una 15
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“liquidación moral” de los enemigos comunistas, los cuales, en los propios términos de Vallejo Nájera, “perderán la libertad, gemirán durante años en prisiones, purgando sus delitos” (Vinyes Ribas, 2001, pp. 237239). El psiquiatra franquista parece confesar aquí, de manera un tanto velada, un objetivo de infligir dolor que es propio de la tortura y que puede servir por sí mismo para justificar su necesidad como una forma de expiación, incluso en ausencia de cualquier otro propósito. De cualquier modo, aun cuando Vallejo Nájera no hubiera justificado abiertamente la tortura de los comunistas como algo necesario, sus conclusiones sí podían servir y seguramente sirvieron para excusarla como algo moralmente aceptable, ya que presentaban a la víctima como un “infra-hombre malvado sobre el cual todo era lícito” (p. 240). Después de haber sido una tarea obsesiva de nazis y franquistas como Vallejo Nájera, la guerra contra los comunistas pasó a ser una de las ocupaciones principales del gobierno de los Estados Unidos. Fue muy pronto, ya en los años 50 del siglo XX, poco después del fin de la Segunda Guerra Mundial, cuando la CIA empezó a servirse de psicólogos y psiquiatras en su desarrollo de técnicas de tortura dirigidas especialmente contra sospechosos de comunismo o de espionaje de los países comunistas. Hoy en día, gracias a las investigaciones exhaustivas de McCoy (2006), sabemos que la agencia de inteligencia estadounidense, a través de su programa de interrogatorios alternativos denominado “MKUltra”, utilizó intensivamente, a menudo financió y a veces dirigió el trabajo de algunas de las más importantes figuras de la Psicología y la psiquiatría entre los años 50 y 60 del siglo XX. Las investigaciones experimentales del psicólogo Donald O. Hebb (1904–1985) sobre la “privación sensorial” en la Universidad de McGill, financiadas por la CIA y efectuadas a partir de 1951 con animales y con humanos voluntarios a los que se remuneraba, demostraron que la eliminación de estímulos visuales, auditivos y táctiles podía posibilitar el “lavado de cerebro” y el “control de la mente” al provocar una “ruptura de la actividad organizada en los procesos centrales complejos” del cerebro (McCoy, 2006, pp. 41-42). En la misma Universidad de McGill, entre 1957 y 1963, los experimentos particularmente violentos del psiquiatra Donald Ewen Cameron, dirigidos y no solo financiados por la CIA, ya no se limitaban a las condiciones de posibilidad del lavado de cerebro y el control de la mente, sino que realizaban en acto y de manera forzada este lavado y este control a través 16
de lo que el propio Cameron denominaba “conducción psíquica” (psychic driving): una estrategia que se valía de electrochoques, drogas y “repetición de señales verbales” para desintegrar y reprogramar el psiquismo de pacientes en un hospital psiquiátrico (pp. 43-44). Desde el año de 1956, los psiquiatras y neurólogos Lawrence Hinkle y Harold Wolff, del Centro Médico de Cornell y también con financiamiento y dirección de la CIA, cuestionaron el uso de técnicas de lavado de cerebro y de control de la mente en los interrogatorios, y pusieron en evidencia la mayor eficacia de “prácticas policiales” tradicionales como el “aislamiento”, la “incomodidad” y otros motivos de “dolor auto-infligido” en los que el malestar procedería del mismo sujeto, de su cuerpo y de su mente, de su posición incómoda y de sus ideas, en lugar de provenir de un agente externo, haciendo que el torturado se percibiera como responsable de la tortura, escindiéndolo de sí mismo y evitándose así que se acentuara su resistencia contra los torturadores (pp. 45-46). Por último, en 1961, en la Universidad de Yale y con posible financiamiento de la CIA, los experimentos de Stanley Milgram, demostrando que la gente común era capaz de torturar y hasta matar por obedecer a la autoridad, sirvieron para convencer a los servicios de inteligencia estadounidenses que podían valerse de cualquier “soldado o policía ordinario” para ser obedecidos y llevar a cabo las torturas diseñadas gracias a las investigaciones de Hebb, Cameron, Hinkle y Wolff (pp. 47-49). En los años 1950, mientras los recién mencionados investigadores trabajaban de manera voluntaria o involuntaria para la CIA en clínicas y laboratorios de los Estados Unidos, algunos psiquiatras ses istraban sustancias psicoactivas para obtener informaciones de los militantes políticos torturados en el contexto de la Guerra de Argelia. Fanon (1965) relata cómo estos “sueros de la verdad”, que provocaban “pérdida de control” y “embotamiento de la conciencia”, dejaban graves secuelas como la “incapacidad para distinguir lo verdadero de lo falso” y un “temor casi obsesivo a decir lo que debe mantenerse oculto” (pp. 137-138). Aún peores eran las secuelas dejadas por los electrochoques, también usados por los psiquiatras que trabajaban para los centros ses de tortura en Argelia, como lo sabemos por el mismo Fanon. Al mismo tiempo que Donald Ewen Cameron buscaba desintegrar el psiquismo con descargas eléctricas, los psiquiatras ses usaban la misma técnica en los interrogatorios para causar la “confusión, la relajación de la resistencia y la desa-
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parición de las defensas” del torturado, haciendo que al final solo quedara una “personalidad en pedazos” cuya recomposición y rehabilitación era “extremadamente difícil” (p. 138). De los expertos ses en tortura durante la Guerra de Argelia, el más polémico fue Paul Aussaresses, quien enseñó técnicas de contrainsurgencia en Fort Bragg y Fort Benning, en los Estados Unidos, entre 1961 y 1962 (Robin, 2003). Posteriormente, en los años 1970, mientras asesoraba la dictadura brasileña, Aussaresses ofreció el mismo entrenamiento a oficiales brasileños, chilenos, argentinos y venezolanos en el Centro de Instrucción de Guerra en la Selva (Centro de Instrução de Guerra na Selva). Mientras que Aussaresses entrenaba directamente a futuros torturadores, otros dos expertos ses, David Galula y Roger Trinquier, escribían textos que se convertirían en manuales obligados en los centros de formación en contrainsurgencia en los Estados Unidos y en América Latina. Tenemos aquí algunos principios generales para encuadrar la tortura: si Galula considera que sería “peligroso y contraproducente dejar los interrogatorios a aficionados”, Trinquier piensa que “los especialistas deberán, por todos los medios, arrancar los secretos” del torturado, quien “deberá entonces, como el soldado, enfrentar el sufrimiento y quizás la muerte” (Le Cudennec, 2009, párr. 3). El trabajo más influyente de Trinquier, “La guerra moderna”, obtenido por la CIA a través de la mediación del propio Aussaresses, terminó convirtiéndose en una referencia obligada para la inteligencia estadounidense y orientó la estrategia en una Guerra de Vietnam en donde los comandos terminaron “actuando exactamente como los escuadrones de la muerte de Paul Aussaresses” en Argelia (Robin, 2003, p. 254). Tras diez años de observaciones o reflexiones de expertos ses y de experimentos de investigadores estadounidenses, la CIA pudo elaborar por fin, en 1963, el famoso “Manual de Interrogación de Contrainteligencia KUBARK”, en el que la agencia estadounidense de inteligencia ofrecía un amplio abanico de avanzadas técnicas de tortura, no sin antes dar crédito a la “importancia y relevancia” del trabajo de los “psicólogos americanos” cuyas “investigaciones psicológicas” y “hallazgos psicológicos” habían generado el “conocimiento pertinente, moderno”, en el que se basaban las técnicas propuestas (CIA, 1963, p. 2). La insistencia en la Psicología es aquí notable, así como también lo es la centralidad de la privación sensorial de Hebb, la opción por el dolor auto-infligido de Hinkle y Wolff, y la forma
en que las diversas “técnicas de coerción” están invariablemente “diseñadas para inducir una regresión” en la que el torturado, perdiendo la estructura psíquica y las “defensas del hombre civilizado”, termina viendo al interrogador como una “figura paterna” a la que debe someterse (pp. 83, 90). El manual KUBARK, destilado sintético del paradigma psicológico de tortura de la CIA, fue utilizado entre los años 1970 y 1980 en los diferentes campos de batalla de la Guerra Fría, entre ellos el de Vietnam, en el que los métodos para torturar en los interrogatorios, como nos lo recuerda McCoy (2009), terminaron traduciéndose en “la cruda brutalidad física del programa Phoenix que produjo 46.000 ejecuciones extrajudiciales y poca inteligencia accionable” (párr, 16). En 1983, exactamente 20 años después del lanzamiento del KUBARK y sobre la base del mismo conocimiento psicológico, empezó a circular un segundo manual de tortura e interrogatorio, el Human Resource Exploitation Training Manual, que estaba especialmente diseñado para el contexto latinoamericano y que se utilizó en campos estadounidenses de entrenamiento en Honduras. El nuevo manual exhortaba a “manipular el ambiente del sujeto para crear situaciones desagradables o intolerables” para él, así como hacerle creer que sus familiares estarían “sufriendo o en peligro” (Cohn, Thompson, & Matthews, 1997, párr. 11, 15). Al igual que en el KUBARK, se buscaba desencadenar procesos regresivos, recomendando “tener a un psicólogo disponible cuando se induce la regresión” (párr. 37). Tras el final de la Guerra Fría, en 1994, los Estados Unidos ratificaron la Convención contra la Tortura de la ONU. Sin embargo, al definirse las formas de tortura en el documento oficial de ratificación enviado por el presidente Bill Clinton al Congreso, no se consideraba ni la privación sensorial de Hebb ni el dolor auto-infligido de Hinkle y Wolff, es decir, el eje rector de la tortura psicológica, psicológicamente fundamentada e implementada, que la CIA desarrolló en los años 1950 (McCoy, 2009). Es así como se ha mantenido un vacío legal por el que se ha posibilitado que esta forma de empleo de la Psicología para la tortura se perpetúe desde los años 70 del siglo XX hasta el escándalo de Mitchell y Jessen entre 2007 y 2014.
La Psicología como dispositivo destructivo
La revisión histórica recién ofrecida nos ha permitido apreciar dos grandes usos de la Psicología para los torturadores: la justificación de la tortura, para Vallejo 17
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Nájera, Ritter y quizás Gross, y la concepción y realización de la tortura, para todos los demás. El segundo uso presupone de algún modo el primero, pues la tortura no se realiza y se concibe psicológicamente sino con un objetivo también psicológico por el que se justifica su eficacia en la misma esfera de la Psicología. Es verdad que el objetivo último no es exactamente psicológico, pues consiste en la obtención de la verdad en los interrogatorios, pero este objetivo mediato se alcanza invariablemente a través de un propósito psicológico inmediato: la coerción y la resultante regresión del torturado, su anulación o sometimiento, la inhabilitación de su voluntad, la supresión de su personalidad, la neutralización de sus resistencias o de sus defensas, la desintegración o desorganización y la sucesiva reorganización o reprogramación de su psiquismo. Todos estos fines psicológicos justifican psicológicamente la tortura como un medio eficaz para alcanzarlos y también para alcanzar, a través de ellos, la obtención de la verdad en el interrogatorio. A veces incluso la obtención de la verdad termina perdiéndose de vista, como en el caso de Cameron, para quien la reprogramación del psiquismo aparece como un fin en sí mismo. Ya sea que el fin último sea reorganizar el psiquismo u obtener la verdad o incluso castigar o reeducar al sujeto, el objetivo inmediato de la tortura será generalmente negativo y consistirá las más de las veces en desorganizar, desintegrar, neutralizar, anular, someter, inhabilitar, suprimir, destruir. Este objetivo destructivo podrá estar subordinado a uno reconstructivo, desde luego, pero la reconstrucción requiere de otros medios que la tortura, la cual, por sí misma, tal como se concibe y se realiza en la Psicología, suele tener un objetivo inmediato eminentemente destructivo. La destrucción habrá de revestir las más diversas formas: la ruptura de la actividad cerebral organizada a través de la privación sensorial de Hebb, la desintegración del psiquismo en la conducción psíquica de Cameron, la escisión del sujeto en el dolor auto-infligido de Hinkle y Wolff, la pérdida del control y el embotamiento de la conciencia por los sueros de la verdad de los psiquiatras ses en Argelia, el despedazamiento de la personalidad por los electrochoques istrados por los mismos psiquiatras ses, la regresión y la desaparición de las defensas del hombre civilizado en el manual KUBARK. En los casos recién mencionados, la tortura opera como una estrategia psicológica, psicológicamente 18
concebida y realizada, para conseguir la destrucción psíquica, personal y subjetiva, de quien es torturado. Vislumbramos aquí un propósito destructivo de la Psicología que debe sumarse a sus otros fines positivos mejor conocidos, particularmente el ideológico, enfatizado por los marxistas (v.g. Braunstein, Pasternac, Benedito, & Saal, 2006; Parker, 2010), y el disciplinario, en el que insisten los foucaultianos (v.g. Rose, 1989, 1998). De pronto nos percatamos de que la Psicología no debe dedicarse únicamente a ideologizar y disciplinar, a reproducir de este modo su propio objeto y el sistema en el que se inserta, es decir, a formar y conformar una subjetividad recluida en su interioridad individual y relacionada exteriormente con los otros de cierto modo y en cierta estructura transindividual. Además de sus funciones reproductivas, la Psicología nos muestra de pronto una función destructiva, en la cual, paradójicamente, la ciencia del psiquismo destruye su propio objeto psíquico. Esta destrucción parece derivar directamente, ya no de los aparatos ideológicos y disciplinarios del Estado, sino de sus aparatos represivos: de la violencia directa y no de la indirecta, de la dominación y no de la persuasión, de la tiranía y no de la hegemonía.
Salvador Roquet: la tortura psicosintética en la dictadura perfecta mexicana
El siglo XX convirtió a México en un lugar de acogida para perseguidos políticos: en los años 1930, españoles que huían del franquismo; en los 1970, argentinos, chilenos y otros que escapaban de las dictaduras del cono sur; en los 1980, guatemaltecos y salvadoreños que habían sufrido la violencia de las tiranías sostenidas por el imperialismo estadounidense. Para estos exiliados y para muchos otros, México representaba un espacio de tolerancia y libertad. Era un refugio para los demócratas del mundo entero, así como para los ideales democráticos. El gobierno mexicano llegó incluso a ser percibido como la democracia perfecta de América Latina. Sin embargo, especialmente en la segunda mitad del siglo XX, la realidad era otra, completamente diferente. En 1990, durante un encuentro de intelectuales transmitido por la televisión mexicana, el escritor peruano Vargas Llosa (1990, 1 de septiembre) no dudó en afirmar que México, lejos de ser la democracia perfecta, era la “dictadura perfecta”, una “dictadura sui generis que muchos en América Latina habían tratado de emular”, una “dictadura camuflada” que
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tendría “todas las características de una dictadura”, entre ellas “la permanencia, no de un hombre, pero sí de un partido inamovible” (párr. 3-5). Además de la permanencia del Partido Revolucionario Institucional (PRI) que gobernó ininterrumpidamente México desde 1928 hasta el año 2000, una característica típicamente dictatorial por la que se distinguió el régimen gubernamental mexicano fue la represión brutal, sistemática y permanente contra sus opositores. Esta estrategia represiva incluyó el encarcelamiento, la tortura, la desaparición y el asesinato de miles de personas, así como importantes matanzas colectivas, en grupo y hasta en masa, como la de henriquistas en La Alameda en 1952 (unos 200 muertos), las de la Asociación Cívica Guerrerense en Chilpancingo en 1960 y en Iguala en 1962 (más de 50 víctimas en total), las de copreros en Acapulco (entre 30 y 80 muertos y desaparecidos) y maestros y padres de familia en Atoyac en 1967 (5 muertos), Tlatelolco en 1968 (entre 100 y 300 muertos), el Halconazo en 1971 (entre 30 y 50 muertos), La Trinidad en 1982 (9 muertos), Aguas Blancas en 1995 (17 muertos), Acteal en 1997 (45 muertos) y El Charco en 1998 (11 muertos), por mencionar únicamente las más conocidas. Entre finales de los sesenta y principios de los 1970, en uno de los períodos más sangrientos de la dictadura del PRI en México, la estrategia represiva gubernamental se convirtió en una guerra de exterminio en la que destacó la figura siniestra de Miguel Nazar Haro (1924–2012), máxima autoridad en la Dirección Federal de Seguridad (DFS) y feroz anticomunista formado por militares estadounidenses en la Escuela de las Américas de Panamá (López de la Torre, 2013; Rodríguez Castañeda, 2013; Torres, 2008). El equipo de Nazar Haro estaba formado por decenas de esbirros, matones y torturadores sin formación alguna, pero también por algunos profesionales acreditados, como el psiquiatra Salvador Roquet Pérez (1920-1995). Este controvertido psiquiatra, de hecho, se había ganado cierta celebridad en México y en el mundo, hasta el punto de ser comparado con Freud por algunos de sus iradores, gracias a su invención y desarrollo de la “psicosíntesis”: un tratamiento psicoterapéutico apoyado en alucinógenos como peyote, hongos, datura y LSD (Ramírez, 1985) Fue precisamente una variante del método psicosintético lo que Roquet parece haber transformado, a finales de los sesenta, en la elaborada técnica de tortura psicológica implementada en militantes políticos deteni-
dos por la DFS, entre ellos un dirigente estudiantil del movimiento de 1968, el maoísta Federico Emery Ulloa (Marín, 1985, 28 de marzo). Es por Emery, por su testimonio detallado vertido a través de varias entrevistas y de una denuncia penal, por quien ahora podemos reconstruir con cierta exactitud la forma o al menos una de las formas en que Roquet operaba. Su intervención no se realizaba en la famosa prisión de Lecumberri en la que se concentraban los presos políticos, sino en una casa de seguridad a la que se desplazaba únicamente a quien pasaría por la tortura psicosintética. El preso, forzado a ingerir diversos alucinógenos químicos y naturales, se encontraba encerrado en un cuarto amplio, de aproximadamente seis por ocho metros, en el que había dos sillas y una mesa con una grabadora y con dos proyectores, uno de cine de 16 milímetros y otro de diapositivas, frente a dos pantallas. Durante el proceso, que se prolongada por 10 a 20 horas, el preso debía escuchar “música de Wagner a todo volumen”, hasta el punto de “lastimar los oídos”, mientras veía “películas pornográficas” de “lesbianas y orgías” que se entremezclaban con diapositivas de “pinturas realizadas por locos”, por “locos de manicomio”, según se lo explicó el propio Roquet a Emery (Marín, 1985, 29 de marzo, párr. 5; Monge, 2002, párr. 16). Las drogas consumidas por el sujeto lo hacían “pasar de la histeria al terror” (Sánchez, 2003, párr. 1), u oscilar entre “el miedo, el miedo, el miedo”, y “el coraje hasta tratar de destruir”, y “luego la euforia, la alegría hasta la risa y la carcajada” (Marín, 1985, 29 de marzo, párr. 4). Finalmente, el sujeto “se hundía” y sentía un “temor pavoroso” que lo hacía correr hasta un rincón y tirarse en el suelo, y es entonces cuando Roquet, mostrándose amenazante y diciéndole “tú eres ratón, yo soy gato”, podía empezar un largo interrogatorio de unas diez horas con centenares de preguntas centradas en las actividades políticas del torturado (Monge, 2002, párr. 17). Emery no solo debió sufrir la psicosíntesis recién relatada, sino también torturas psicológicas más convencionales, entre ellas tres simulacros de ejecución en los que era conducido a lugares apartados, le ponían el cañón de un arma en la cabeza y jalaban el gatillo sin disparar. Las torturas psicológicas se complementaban, además, en este caso como en otros, con las más diversas torturas físicas, sin contar el aislamiento, las pésimas condiciones de encarcelamiento y el temor por la propia vida y por los seres queridos. 19
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Interpretando retrospectivamente lo ocurrido, Emery concluye que Nazar Haro, el director de la DFS, “quería llevarlo al borde de la locura, quería desacomodar sus sensaciones, sus percepciones, para acomodarlas a su modo” (Monge, 2002, párr. 27). No hay manera de saber cómo es que Emery llegó a esta conclusión, pero su interpretación resulta interesante por la manera en que relaciona la desorganización y la reorganización de los elementos psíquicos, es decir, en definitiva, las funciones destructiva y reconstructiva del psiquismo que distinguimos anteriormente. La experiencia de Emery, tal como él mismo la percibe, corresponde exactamente al proceso de reprogramación del psiquismo desarrollado por Cameron en el marco del ya mencionado programa MKUltra de la CIA. ¿Cómo no suponer que hay un vínculo entre este programa, en el que también se emplearon alucinógenos con el mismo propósito de obtener información, y la técnica de tortura psicosintética implementada por Roquet en el tiempo en el que trabajó para Nazar Haro? Tal suposición bien puede convertirse en convicción, especialmente cuando consideramos, por un lado, que el trabajo mexicano, realizado a finales de los sesenta, coincide temporalmente con el tiempo de operación de MKUltra entre 1953 y 1973, y, por otro lado, que Nazar Haro era un agente activo de la CIA al que la propia agencia protegió legalmente en los Estados Unidos (Torres, 2008), liberándolo de prisión, dándole inmunidad y presentándolo como un “o esencial de la CIA en México” (Scott, 2014, p. 46). En lo que se refiere a Roquet, Emery terminó convenciéndose de que trabajaba para la CIA después de que fuera encarcelado, según el informe oficial, por su utilización psicoterapéutica de alucinógenos, pero justo en el momento en que el gobierno mexicano investigaba la presencia de la CIA en México (Marín, 1985, 29 de marzo). Esta versión es exactamente la inversa de otra, quizás menos verosímil, según la cual Roquet habría sido encarcelado precisamente por negarse a trabajar con la CIA, que le proponía instalarse en los Estados Unidos y “tratar” a “pacientes especiales” para el gobierno estadounidense (Wolfson, 2014, p. 171). En cualquier caso, independientemente de sus posibles relaciones con la CIA y de su indiscutible trabajo de torturador en la DFS, Roquet parece haber sido alguien bastante conservador que mostraba incomprensión y quizás incluso aversión hacia los jóvenes militantes de izquierda, psicopatologizándolos al atribuirles un “comportamiento pato20
lógico autodestructivo” e incluyéndolos en la misma categoría que los hippies drogodependientes con sus “neurosis subyacentes” (Dawson, 2015, p. 126). Esta psicopatologización de la militancia revolucionaria de izquierda – que nos recuerda evidentemente a Vallejo Nájera –, junto con la misión curativa que el propio Roquet parece haberse fijado, han hecho que se llegue a considerar que él mismo no entendía su trabajo en la DFS como una simple “tortura” de perseguidos políticos, sino como un “tratamiento” de enfermos autodestructivos (p. 127). El propósito de Roquet habría sido clínico, psicoterapéutico y no solo político. Se trataba de curar a los militantes y no solo de violentarlos, atormentarlos, vulnerabilizarlos y extraer información. Tal vez podamos conjeturar que el propósito final de la tortura, tal como Roquet la concebía, no era destruir al sujeto y así descubrir los secretos de su militancia revolucionaria, sino reconstruirlo y así curarlo de su enfermedad militante. Aunque esto quizás contradiga tanto la falta de cualquier indicio de reconstrucción como el peso del interrogatorio en la sesión de tortura psicosintética relatada por Emery, al mismo tiempo coincide con la interpretación retrospectiva del propio Emery, quien veía en su experiencia, como recordaremos, una desorganización para la reorganización del psiquismo. La reconstrucción y la curación habrían sido, pues, desde este punto de vista, el sentido último de la destrucción. En los términos mismos de Roquet (1971), el objetivo de la “desintegración” habría sido la “psicosíntesis”, la “síntesis”, la “reestructuración”, la “integración con los elementos esenciales” (párr. 11-14). Volvemos así al método propuesto por Cameron.
Amílcar Lobo, Dolcey Brito y Hernán Tuane
De los dos momentos sucesivos de la conducción psíquica de Cameron, el más característico es el segundo, el reconstructivo, pues ya hemos visto que el primero, el destructivo, suele aparecer como propósito inmediato de casi cualquier estrategia psicológica de tortura. Este propósito destructivo será el más visible en las estrategias de los tres profesionales torturadores de los que ahora nos ocuparemos: el médico y psicoanalista brasileño Amílcar Lobo, el psicólogo uruguayo Dolcey Brito y el psicólogo chileno Hernán Tuane Escaff, quienes aportaron sus conocimientos psicológicos para torturar a presos políticos en dictaduras del Cono Sur. Los tres empezaron a operar como torturadores justo después de Roquet, en los años 70 del siglo XX: Lobo en 1970, Dolcey en 1972 y
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Tuane en 1974. De los tres casos, quizás el más original y también el peor documentado sea el de Tuane, quien urdió una guerra psicológica en la que detectamos elementos propios de la intervención de la Psicología en la tortura, entre ellos el más fundamental, el destructivo, y quizás también el reconstructivo que ya hemos visto operar en Cameron y en Roquet. El caso mejor conocido es el de Amílcar Lobo Moreira (1939–1997), el cual, entre 1970 y 1974, siendo médico, psicoanalista y miembro en formación de la Sociedad de Psicoanálisis de Río de Janeiro, participó activamente en sesiones de tortura en las que debía supervisar el estado físico de cada torturado (Lobo 1998). Su función precisa era informar si la víctima podía seguir siendo torturada, si “estaba fingiendo” y si “aún aguantaba”, no solo en sesiones ordinarias de tortura con fines de interrogatorio, sino también en “clases de tortura” con fines didácticos (CNV, 2014, pp. 351, 355). Sin embargo, además de cumplir esta función, Lobo fue denunciado por intervenir en las torturas, por istrar sustancias psicoactivas y quizás también electrochoques. Una prisionera lo acusó de “aplicar algunas inyecciones” del más clásico suero de la verdad, el pentotal, para uno de los interrogatorios (Romeu, 2011, párr. 38). Otro torturado también cuenta cómo Lobo “aplicó pentotal muy lentamente” para sumirlo en “turbación mental y somnolencia” en los interrogatorios (Brasil, 2014, p. 370). En el mismo sentido, pero en una acusación más grave, el testimonio de una exguerrillera relata cómo Lobo habría sido “el jefe de su tortura”, cómo la “llenaba de remedios psiquiátricos” que le hacían perder “la noción de tiempo, de calor, de frío”, además de que se le hacía pasar por “simulaciones de ejecución” y por “descargas eléctricas” que “contraían la musculatura”, todo en una estrategia “muy bien articulada para enloquecer” (Magalhães, 2009, párr. 215). El objetivo de enloquecer a los torturados fue también denunciado al describir las estrategias de tortura diseñadas e implementadas en un centro de reclusión de Uruguay, a partir de 1972, por Dolcey Marcelino Brito Puig (1930-2016). Este psicólogo con “mediocre formación académica”, graduado en una institución privada de “bien pobre reputación” (González Bermejo, 1985, pp. 108-109), habría convertido el Penal de Libertad en un “gran centro de enloquecimiento de presos políticos” (Uruguai, 1989, p. 221). Todo en el Penal parecía estar destinado a la “destrucción psicológica planificada” (González Bermejo, 1985, p. 109).
Varias fuentes militares han itido que el Penal buscaba “destruir la salud mental de los presos”, mientras que el psiquiatra Martín Gutiérrez, colaborador de Brito en el Penal, reconoció que “día tras día, reglamento tras reglamento, el objetivo perseguido era el de hacerlos sufrir psicológicamente” (Bloche, 1987, pp. 6-8). En el cumplimiento de este objetivo, Dolcey Brito, a diferencia de Amílcar Lobo, actuaba libremente y desempeñaba un rol más directivo que subordinado en la estructura jerárquica en la que se insertaba. Se le ha descrito como “uno de los arquitectos del monstruoso programa de experimentación psicológica del Penal”, como “el cerebro detrás de un esquema científico pensado para arrasar sistemáticamente las personalidades”, como conductor y ejecutor de un “desmantelamiento personal, individuo por individuo” (Uruguai, 1989, p. 222). Ajustándose a la singularidad de cada caso, Dolcey Brito no seguía siempre la misma estrategia, sino que usaba todos los medios a su alcance para lograr su objetivo, entre ellos la desinformación y la distorsión de informaciones, el ocultamiento de cartas de familiares, el aislamiento e incomunicación de los presos, desplazamientos y combinaciones selectivas de los ocupantes de las celdas, y istración de sustancias psicoactivas como flufenazina y meprobamato. Así como el psicólogo uruguayo Dolcey Brito pensó el Penal de Libertad como una gran sala de tortura para los presos políticos, el psicólogo chileno Hernán Tuane Escaff (nacido en 1927) parece haberse obstinado en concebir su país, tras el golpe de 1973, como un gigantesco espacio dedicado, en cierto modo, a torturar al conjunto de la población (Mella, 2013). Quizás tal aserción deje de juzgarse exagerada cuando se considere la estrategia de guerra psicológica planeada por Tuane mientras estaba al frente de la Dirección de Relaciones Humanas de la Secretaria General de Gobierno del dictador Augusto Pinochet. Además de intentarse legitimar la dictadura, desacreditar a los opositores y “destruir la imagen del marxismo”, había un propósito explícito de amedrentar, fragilizar, vulnerar, desestructurar, enfermar e incluso lastimar a la población al suscitar y “manejar los sentimientos traumáticos de angustia, neurosis, tragedia, inseguridad, peligro y miedo”, y, de manera más precisa, “actualizando factores neurotizantes” y haciendo emerger “contenidos psicológicos latentes de índole angustiosa” y emociones como el “temor instintivo” de los delincuentes ante la perspectiva de “castigos angustiosos severos” (Dirección de Relaciones Humanas, 1974, en Baltazar 21
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Mozqueda, 2017, pp. 127-130). La intervención del conocimiento psicológico en esta estrategia colectiva es prácticamente la misma que encontramos en algunas torturas individuales. Quizás la estrategia de Tuane reproduzca de alguna manera su experiencia más convencional cuando auxiliaba torturas y istraba el suero de la verdad, el pentotal, a torturados por el Servicio de Investigaciones (Oliva García, 2013). El caso es que tenemos a un psicólogo torturador que además diseñó una estrategia de guerra psicológica en la que vemos reaparecer elementos que nos hacen recordar la utilización de la Psicología en la tortura.
Consideraciones finales
Una táctica reveladora de Tuane y de su equipo, en la que alcanzamos a entrever la función destructiva de la Psicología en la tortura, es aquella por la que se buscaba “desconcientizar” y así preparar el terreno para después “concientizar” en una dirección diferente (Dirección de Relaciones Humanas, 1974, en Baltazar Mozqueda, 2017, p. 129). Lo que se intentaba, en otras palabras, era desintegrar y destruir la conciencia compatible con el socialismo, aquella por la que Salvador Allende llegó al poder, para después reconstruir aquella forma de in-conciencia que se requería en el capitalismo neoliberal pinochetista. Nos acercamos así, una vez más, como en el caso de Roquet, a la técnica de Cameron consistente en la reorganización y reconstrucción del psiquismo sobre la base de su previa desorganización y destrucción. La guerra psicológica de Tuane, como la tortura psicológica de Roquet y de Cameron, servía para destruir de algún modo el psiquismo: para desintegrar el soporte psíquico del socialismo como un requisito indispensable para poder posteriormente constituir el soporte psíquico neoliberal. ¿Cómo no ver aquí el vínculo que Naomi Klein establece entre la estrategia destructiva-reconstructiva de la conducción psíquica de Cameron y la misma estrategia destructiva-reconstructiva utilizada para la implantación del neoliberalismo en Chile a través del golpe de estado en el que Tuane tuvo un rol decisivo? Quizás Tuane sea una suerte de eslabón perdido entre los dos “doctores Shock” a los que se refiere Klein (2014): entre Milton Friedman y Ewen Cameron, entre la Escuela de Chicago y la de McGill, entre la técnica golpista y la de electrochoques, entre la dictadura y el empleo de la Psicología en la tortura (pp. 49-108). Es como si en Tuane viéramos cerrarse las dos mordazas, la psicológica y la política, de aquella 22
pinza del imperialismo estadounidense que no deja de oprimir y lastimar a los pueblos latinoamericanos. Considerando lo dudosa que resulta la reconstrucción en una ecuación destructiva-reconstructiva en la que solo hemos visto evidenciarse históricamente la destrucción, quizás pueda considerarse que lo único distintivo de Cameron, de Tuane y quizás también de Roquet, en contraste con Brito, Lobo y los demás, es el apéndice ideológico de un fin positivo, reconstructivo, con el que pretende justificarse el medio, así como también, tal vez, disimular el verdadero fin. ¿Y cuál es el verdadero fin? Quizás precisamente aquello que se hace pasar por medio. ¿Acaso no es lógico y comprensible que el poder busque en última instancia destruir aquello que se le contrapone? Y esto contrapuesto al poder puede ser paradójicamente el psiquismo: el mismo psiquismo creado y recreado por el poder. Si lo más común es que el mundo interno sea un lugar para ejercer el poder, aquí aparece como un reducto de resistencia contra el interrogatorio y contra cualquier otra forma de ejercicio del poder. La tortura buscaría entonces la supresión de tal reducto, la eliminación de una bolsa de resistencia, es decir, en definitiva, la sujeción del torturado, su obediencia ante el torturador, su dominación por quienes emplean al torturador, su capitulación ante el poder, su resignación a la condición de subyugado, sometido, avasallado, oprimido. La tortura funcionaría como el golpe de estado: como un choque traumático para poner al dominado en su lugar de una vez por todas. La Psicología es aquí decisiva. Y, como hemos visto, no se necesita un psicólogo para aplicarla. De hecho, como lo demuestran los hechos, ni siquiera se requiere de un profesional de la salud mental. ¿Acaso hay que estudiar mucho para comprender las virtudes inherentes al shock del que habla Naomi Klein? Existe un testimonio en el que un torturador brasileño, un simple oficial de policía, explicaba que los torturados eran “como perros de Pavlov”: el choque al principio debía “ser de alto voltaje” y luego podían aplicarse “choques más pequeños”, pues la “memoria sería del choque de alto voltaje” (Murat, 2013, párr. 28). No hay que ser un psicólogo para entender esto. O mejor dicho: esto puede ser comprendido por casi todos en nuestra sociedad, pues casi todos somos un poco psicólogos, entre ellos los torturadores, los represores, los dictadores, los políticos y los economistas. Los sujetos van convirtiéndose en psicólogos mientras que aquello que les rodea obedece cada
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vez más a funciones y determinaciones psicológicas. El mundo social ha ido psicologizándose así en el transcurso del siglo XX, y su psicologización, por cierto, implica una despolitización de lo que se vuelve psicológico, es decir, aparentemente privado, personal e íntimo (De Vos, 2012). Desde luego que esta despolitización es política en sí misma y persigue un objetivo político preciso. Como bien lo ha señalado Rancière (1998), el “más viejo trabajo del arte político” es precisamente la “despolitización” (p. 47). Despolitizar continúa siendo una de las más importantes estrategias políticas para dominar. De ahí que podamos pensar incluso, como Bourdieu (2001), en una “política de la despolitización” (99-102). Lo importante aquí es la manera en que semejante política se ha servido cada
vez más de la Psicología, no solo puntualmente para torturar a quienes resisten a la despolitización, sino también, de manera constante y general, para conseguir la despolitización de los demás a través de la psicologización masiva de la sociedad. Esta orientación psicologizadora y despolitizadora parece haber cumplido un papel central y fundamental en diversos contextos en los que se ha torturado, como lo ha mostrado Coimbra (1995) en el caso brasileño. Es como si las tiranías del último siglo fueran también despotismos de la Psicología. Entendemos que esta misma Psicología no pudiera faltar en el instrumental de los torturadores nazis y franquistas en Europa, ses en Argelia, estadounidenses en todo el mundo y latinoamericanos en regímenes dictatoriales.
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David Pavón-Cuéllar Doutor em Psicologia – Universidad de Santiago de Compostela e Doutor em Filosofia – Université de Rouen. E-mail:
[email protected] 26
Pavón-Cuéllar, David (2017). Psicología y Destrucción del Psiquismo.
Endereço para envio de correspondência: David Pavón-Cuéllar, Facultad de Psicología de la UMSNH, Francisco Villa 450, Dr. Miguel Silva González, 58110 Morelia, Michoacán, México Recebido 30/06/2017 Reformulação 14/09/2017 Aprovado 20/09/2017 Received 06/30/2017 Reformulated 09/14/2017 Approved 09/20/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 14/09/2017 Aceptado 20/09/2017
Cómo citar: Pavón-Cuéllar, David. (2017). Psicología y destrucción del psiquismo: la utilización profesional del conocimiento psicológico para la tortura de presos políticos. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 11-27. https://doi.org/10.1590/1982-3703010002017 Como citar: Pavón-Cuéllar, David. (2017). Psicologia e destruição do psiquismo: a utilização profissional do conhecimento psicológico para a tortura de presos políticos. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 11-27. https://doi.org/10.1590/1982-3703010002017 How to cite: Pavón-Cuéllar, David. (2017). Psychology and destruction of the psyche: the professional use of psychological knowledge for torture of political prisoners. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 11-27. https://doi.org/10.1590/1982-3703010002017 27
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Ditadura e Insurgência na América Latina: Psicologia da Libertação e Resistência Armada1
Domenico Uhng Hur Universidade Federal de Goiás, GO, Brasil.
Fernando Lacerda Júnior Universidade Federal de Goiás, GO, Brasil.
Resumo: Este artigo discute como a luta insurgente contra o terrorismo de Estado no Brasil e na América Latina resultou na produção de novas ideias na Psicologia e como transformou as formas de participação política dos sujeitos que aderiram a práticas radicais de luta política. Os procedimentos de investigação foram revisão bibliográfica e entrevistas semidiretivas com quatro ex-guerrilheiros brasileiros e um colombiano. Na revisão, foram consultadas obras sobre Psicologia da Libertação, ditadura militar e guerrilha armada. Na análise das entrevistas, foram selecionados conteúdos que se referem ao processo de conscientização dos entrevistados. Constata-se que a atividade insurgente possibilitou a emergência de ideias e práticas na Psicologia que buscam a construção de relações sociais justas. A insurgência também foi a condição de possibilidade para a criação de novas experiências e reflexões sobre a atividade política dos participantes da luta armada contra a ditadura. Tomar a perspectiva da insurgência nos faz compreender os momentos de crise pelo seu potencial de transformação e emancipação. Seja no âmbito da Psicologia como ciência e profissão, que se desloca de uma posição adaptativa e normalizadora, para uma crítica e transformadora, ou nas experiências de militantes expressas como “subjetividades insurgentes” que buscam transformação e revolução. Palavras-chave: Ditadura, Psicologia Social, Política, Psicologia Política, América Latina.
Dictatorship and Insurgence in Latin America: Liberation Psychology and Armed Resistance Abstract: This paper discusses how insurgent struggles against Brazilian and Latin American State terrorism produced new ideas in Psychology and changed the means of political participation of subjects who upheld radical practices of political conflicts. The method was developed through bibliographical review and semi-structured interviews with four ex-guerilla from Brazil and one from Colombia. Books and articles about: Liberation Psychology, Military Dictatorship and Armed Guerilla were selected for the bibliographical review . Content analysis aimed to identify narratives related to the process of conscientization. It was perceived that insurgent activity turned possible the emergence of psychological ideas and practices aimed at the creation of just social relations. Insurgency was also the condition of possibility to the creation of new experiences and discussions about political activity in the experiences of those who participated in the armed struggle against military dictatorship. Insurgency can turn periods of social crisis into something that drives change and emancipation. This is possible in Psychology, which can move from a normative position to a critical one and also in the experiences of political militants that constituted themselves as insurgent subjectivities striving for social change and revolution. Financial : CNPq and CAPES. Keywords: Dictatorship, Social Psychology, Politics, Political Psychology, Latin America. 1
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Apoio: CNPq e Capes.
Hur, D. U.; Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina.
Dictadura e Insurgencia en Latinoamérica: Psicología de la Liberación y Resistencia Armada Resumen: Este artículo discute cómo la lucha insurgente contra el terrorismo del Estado en Brasil y América Latina resultó en la producción de nuevas ideas en la psicología y cómo transformó las formas de participación política de los sujetos que ejercieron prácticas radicales de lucha política. Los procedimientos de investigación fueron revisión bibliográfica y entrevistas con cuatro exguerrilleros brasileños y un colombiano. En la revisión fueron consultadas obras sobre Psicología de la Liberación, dictadura militar y guerrilla armada. En el análisis de las entrevistas fueron seleccionados contenidos que se refieren al proceso de concientización de los entrevistados. Se constata que la actividad insurgente posibilitó la emergencia de ideas y prácticas en la psicología que buscan la construcción de relaciones sociales justas. La insurgencia también fue la condición de posibilidad para la creación de nuevas experiencias y reflexiones sobre la actividad política de los participantes de la lucha armada contra la dictadura. Tomar la perspectiva de la insurgencia nos hace comprender los momentos de crisis por su potencial de transformación y emancipación, sea en el ámbito de la Psicología como ciencia y profesión, que se desplaza de una posición adaptativa y normalizadora, para una crítica y transformadora, o en el de las experiencias de los militantes expresadas como subjetividades insurgentes que buscan la transformación y la revolución. Palabras claves: Dictadura, Psicología Social, Política, Psicología Política, América Latina.
Introdução
A História oficial afirma que a América Latina foi “descoberta” no fim do século XV, quando espanhóis e portugueses chegaram à costa e iniciaram a colonização da população indígena e do seu território. Dussel (1994) afirma que não houve “des-cobrimento” da América Latina, mas sim “en-cobrimento” do Outro, da alteridade indígena. Abordagem parecida é a da Teoria da Dependência, que afirma que a América Latina só a a existir enquanto tal, quando é incorporada de maneira subordinada a um sistema capitalista em formação e expansão (Marini, 2000). A história do continente latino-americano foi marcada por diversos processos correlatos: a proximidade temporal dos movimentos de independência no século XIX, a industrialização tardia, os regimes populistas no século XX e os golpes que instauraram ditaduras em muitas nações (Castañeda, 1995). Quanto ao Brasil, sua invenção ocorre com a invasão portuguesa sobre o território e sua população autóctone. Incontáveis combates se travaram entre portugueses e índios. A captura destes não foi feita apenas por mercenários (bandeirantes), mas também pela catequização jesuíta, a qual instrumentalizou conhecimentos psicológicos em um processo de dominação
e “educação” (Pessotti, 1998). Neste cenário, houve uma série de conflitos diretos e guerras entre raças e povos, lutas insurgentes contra o Estado, dentre estes: os movimentos de resistência escrava no período colonial, como a Guerra dos Palmares, movimentos independentistas no período imperial, como a Inconfidência Mineira de Tiradentes, movimentos insurrecionais religiosos no período imperial e republicano, movimentos pela terra e dos trabalhadores no período republicano, entre muitos outros. Lutas que acirraram a tensão entre Estado e movimentos sociais, expressando, assim, a violência sempre presente na constituição do Estado brasileiro. As ditaduras civis-militares na América Latina e no Brasil surgiram para garantir a subordinação dos países latino-americanos ao sistema imperialista e para reprimir toda mobilização popular que almejasse reversão dos padrões de superexploração (Marini, 2000). Portanto, os golpes militares repetiram a violência histórica latino-americana. Ocorreram quando segmentos das elites civis aliados aos militares pretenderam manter as relações instituídas de dominação pelo uso da força direta para a tomada do poder do Estado, infringindo o regime democrático e constituindo um Estado de exceção. Perseguições, 29
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prisões arbitrárias, tortura e assassinatos tornaram-se algo comum. Centenas de mortos e desaparecidos no Brasil, milhares no Chile, na Argentina, dezenas de milhares em El Salvador. A sociedade não se manteve iva com a violência de Estado, emergiram movimentos insurgentes contra a repressão, ditaduras ou governos aliados de uma burguesia articulada às políticas norte-americanas e que mantinham a população em condições miseráveis. Desde as lutas por independência até rebeliões de massas sufocadas por ditaduras indicam que a insurgência das massas latino-americanas é um produto das realidades de injustiça estrutural e expressão de sua potência de vida. Na luta contra a ditadura, o ideário da transformação ocupava o imaginário social, de um devir-revolucionário atualizando-se em distintos movimentos sociais. A transformação era possível, pois ocorreram acontecimentos importantes no âmbito da esquerda mundial: em 1949, a Revolução Chinesa; em 1959, a Revolução chegou à América Latina, na pequena ilha de Cuba; em 1962, a Argélia conseguiu sua independência, após intensa luta armada contra o exército francês. Este trabalho analisa duas implicações dos processos de insurgência no período de ditadura militar no Brasil e América Latina. Investiga como a luta insurgente contra o terrorismo de Estado na América Latina mudou a Psicologia e as formas de participação política. Assim, em primeiro lugar, destaca-se como a aliança com a luta insurgente criou uma Psicologia da Libertação (PL). Em seguida, analisa-se, a partir de relatos de sujeitos envolvidos em lutas armadas guerrilheiras, a conscientização e a mudança dos atores sociais engajados com atividades insurgentes. O trabalho utiliza dois procedimentos de investigação: a revisão bibliográfica e entrevistas com quatro ex-guerrilheiros brasileiros e um ex-guerrilheiro colombiano. Na revisão, foram consultados livros e artigos sobre a constituição e principais características da PL e sobre a ditadura militar e a guerrilha armada. Privilegiou-se textos clássicos de ambas as temáticas. Realizou-se análise de conteúdo das entrevistas (Bardin, 1977; Vázquez, 1997), em que foram selecionados conteúdos que se referem ao processo de conscientização política do ator social, de quando resolve ter participação política e pegar em armas para a luta e resistência contra a ditadura. O texto começa discutindo o contexto de ditaduras civis-militares na América Latina com uma ênfase 30
especial sobre a ditadura brasileira. Em seguida, é analisada a constituição da PL de Ignácio Martín-Baró como uma Psicologia crítica decorrente da aliança com lutas insurgentes na América Latina. Finalmente é discutido o processo de participação política de ex-guerrilheiros com o fim de se refletir sobre subjetividades insurgentes no contexto de repressão.
América Latina: da repressão à insurgência
Nos países latino-americanos impera enorme pobreza, concentração de renda e intensas contradições sociais. Seu aprofundamento entre os anos 1950 e 1980 se expressou na elevação da intensidade das lutas em curso no continente. Ditaduras militares com o apoio do imperialismo norte-americano assolaram o continente desde 1931, com o golpe militar em El Salvador. Em resposta ao golpe, o Partido Comunista do país, liderou uma insurreição camponesa em 1932 que terminou com o violento massacre de dezenas de milhares de camponeses, indígenas e trabalhadores (Dalton, 1963/2010; Montgomery, 1995). A derrota deste levante popular representou uma mudança na relação dos partidos comunistas (PCs) com as massas latino-americanas. Nas décadas seguintes, os PCs, além de serem violentamente reprimidos, estagnaram com a hegemonia de práticas stalinistas, demonstrada pela incapacidade de analisar as realidades da América Latina em sua especificidade e por posturas políticas defensivas. Nos anos 1960, há uma mudança provocada pela vitória da Revolução Cubana: a construção das revoluções sociais a partir de lutas inspiradas pelas táticas guerrilheiras se torna uma política influente entre amplos setores de esquerda (Portantiero, 1989). A Revolução Cubana foi um marco político para o continente. Na luta contra a ditadura de Batista e o imperialismo norte-americano, o Movimento 26 de Julho adotou a luta armada como forma radical de ação. Da exitosa guerra de guerrilhas de Sierra Maestra, que tomou o poder em 1959, ou-se à instauração de um regime socialista. Devido ao êxito da estratégia de guerra de guerrilhas em Cuba e no Vietnã, contra a invasão norte-americana, ela foi amplamente utilizada pela esquerda política na América Latina nas décadas de 1960 a 1980, como forma de luta contra regimes ditatoriais e a favor de um projeto socialista. As emergentes organizações da esquerda tornavam-se partidárias das estratégias armadas castro-guevaris-
Hur, D. U.; Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina.
tas, que consistiam em fomentar a luta revolucionária a partir de focos guerrilheiros de mobilização armada (Debray, 1967). Para Che Guevara (1960), o sucesso da Revolução Cubana nos traz três aportes: (1) de que as forças populares organizadas podem vencer uma guerra contra o exército; (2) que nem sempre se precisa esperar que se dêem todas as condições para a revolução, pois o foco insurrecional pode criá-las; (3) na América Latina caracterizada pelo subdesenvolvimento, o terreno da luta armada deve ser fundamentalmente o campo. Neste período, praticamente ao mesmo tempo, sucederam-se ditaduras em vários países da América Latina, multiplicando-se também organizações de guerrilhas para combatê-las: A Frente Sandinista na Nicarágua, criada em 1961 por Carlos Fonseca Amador, proclamou sua lealdade à guerra de guerrilhas de Augusto César Sandino contra os marines norte-americanos nos anos 1920; o MR-13 na Guatemala, fundado em 1962 por jovens oficiais do exército, foi leal à memória do regime de Arbenz, derrubado em 1954. Criaram-se focos na Argentina, na Colômbia (seguindo o exemplo de Camilo Torres, o sacerdote guerrilheiro aristocrata), no Peru (a APRA rebelde de Luis de la Puente e o MIR, a rebelião campesina de Hugo Blanco) e na região boliviana de Ñancahuazú, onde o Che Guevara viveria seus últimos dias em 1967 (Castañeda, 1995, p. 91, tradução nossa). No fim da década também surgiram grupos como o Movimento de Libertação Nacional –Tupamaros no Uruguai, que elaborou teoricamente a possibilidade da realização da guerrilha urbana (Huidobro, 1988; Pereyra, 1997), o Movimento da Esquerda Revolucionária no Chile (García, 2010), a Ação Libertadora Nacional (ALN), Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), entre outros no Brasil. No Brasil, a ditadura se instaurou com o intuito da manutenção do controle pelas elites (Gorender, 1998). O populismo do presidente João Goulart preocupava elites e segmentos das Forças Armadas que temiam o crescimento da esquerda. O cenário eco-
nômico estava turbulento, a inflação anual beirava os 100% e Jango radicalizou suas práticas com decretos que “incluíam desapropriação de terras e a nacionalização de todas as refinarias de petróleo privadas” (Skidmore, 1998, p.215). Como Goulart e os movimentos de esquerda visavam a aceleração das reformas sociais, dirigentes militares, aliados a grupos conservadores da elite civil executaram o Golpe de Estado em 1º de abril de 19642. Depam Jango do poder com a justificativa de ser um golpe preventivo contra uma suposta tomada de poder sua ou dos comunistas (Gaspari, 2002). Um “golpe” da esquerda naquela conjuntura era bastante improvável, pois o Partido Comunista Brasileiro (PCB) estava otimista com sua aliança com os populistas e focava em sua legalização. Houve uma intrincada articulação do golpe. O governo dos EUA monitorou a operação e interviria com armamentos e apoio aos golpistas. Entretanto, a ajuda bélica não foi necessária, não houve resistência (Gaspari, 2002). Com a tomada do poder, as Forças Armadas iniciaram 21 anos de governo militar no país, contando com o apoio de segmentos sociais, como empresários e a Igreja. O Golpe instaurou um modo de gestão da sociedade pautado mais em relações de guerra do que de diálogo e negociação. Tal acontecimento surpreendeu toda a esquerda, que não esboçou nenhum tipo de resistência, pois não levou em consideração sua iminência (Gorender, 1998). No poder, os militares instauraram o estado de exceção através do dispositivo dos atos institucionais (AI). O primeiro conferiu poderes extraordinários ao Executivo, a reforma de militares, a cassação de mandatos eletivos e a suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão. O AI-2 extinguiu todos os partidos, reabriu as cassações políticas e criou um sistema bipartidário, com um partido do governo, Aliança Renovadora Nacional, e um da oposição, Movimento Democrático Brasileiro. A manobra do governo era de manter maioria permanente. A repressão atingiu seu apogeu com o decreto do AI-5, conhecido como o “Golpe dentro do golpe”: O Congresso foi fechado (embora não abolido) e todos os crimes contra a ‘Segurança Nacional’ aram a ser da alçada da Justiça Militar. A censura foi introduzida, visando especialmente
Para uma discussão mais aprofundada sobre as razões do golpe de 1964 e suas controvérsias, sugerimos a leitura do artigo de Fico (2004), que discute as principais versões sobre a realização do Golpe de Estado.
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à televisão e ao rádio [...] Escuta telefônica, violação de correspondência e denúncias por informante tornaram-se lugar comum. As aulas nas Universidades eram controladas e uma onda de expurgos atingiu os principais docentes. [...] As forças de segurança pam na mira especialmente clérigos e estudantes da oposição (Skidmore, 1998, p. 232). A posição da direção do PCB de não pegar em armas para combater a ditadura gerou descontentamentos, cisões internas e busca por novas referências para a luta contra a ditadura militar. Surgiram posições que romperam com a via institucional e pacífica do “Partidão”. Muitos militantes radicalizaram sua participação e pegaram em armas para lutar pela revolução, deixando o PCB e constituindo organizações guerrilheiras. Dessa forma, os partidos de esquerda perderam parte significativa de seus quadros políticos. Com o recrudescimento da repressão pelo Estado, as organizações da luta armada também intensificaram suas práticas. Entre 1968 e 1972 houve uma série de ações armadas dos guerrilheiros como assaltos a bancos, expropriações de armas, sequestros de embaixadores e cônsules, ataques aos militares, atentados gerais, fugas etc. (Gorender, 1998). Dentre as distintas organizações, cita-se a ALN e a VPR. A ALN foi uma frente ampliada formada por diversos segmentos sociais e teve como fim combater a ditadura por meio da luta armada, sendo uma das organizações guerrilheiras mais expressivas do país (Silva Junior, 2009). Carlos Marighella, comandante da ALN, estipula três princípios para a organização: (1) o dever de todo revolucionário é fazer a revolução; (2) não se pede licença para praticar atos revolucionários; e (3) só existe um compromisso – com a revolução. Dessa forma, não há uma submissão à hierarquia da organização, pois o compromisso maior sempre é com os atos revolucionários. Já a VPR, fruto da junção de dissidentes da Política Operária com o Movimento Nacionalista Revolucionário, foi uma das organizações guerrilheiras mais atuantes e congregou intelectuais, estudantes, ex-militares e operários. Também teve como um dos seus quadros o ex-capitão do Exército Carlos Lamarca.
A constituição de uma Psicologia militante e revolucionária: a Psicologia da Libertação
Não foi natural o movimento de a Psicologia assumir uma postura crítica frente à ditadura. Pelo contrário, houve uma tendência hegemônica de se adaptar ao regime instituído. É importante relembrar a contribuição de Coimbra (1995) sobre como, após o golpe de 1964 e a intensificação do terrorismo de Estado, a psicologização operou no Brasil. Entre as classes médias, fortaleceram-se o intimismo e o familismo: “O privado, o familiar, torna-se o refúgio contra os terrores da sociedade, nega-se o que acontece fora e volta-se para o que acontece dentro de si, de sua família” (p. 32). A Psicologia respondia às necessidades dessa subjetividade dominante e do regime vigente no país de quatro maneiras: (a) naturalizando o esvaziamento da esfera pública e a “tirania da intimidade”; (b) oferecendo contribuições “científicas” para aprimorar o aparato de repressão do terrorismo de estado identificando, por exemplo, o perfil psicológico do “terrorista”; (c) psicologizando o comportamento de militantes, que am a ser tratados como “desviantes” com problemas familiares; (d) por fim, mantendo-se silenciosa em relação aos problemas vivenciados das maiorias populares. Soma-se também as práticas das entidades dos psicólogos, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), que homenageou figuras importantes do regime civil-militar (Jacó-Vilela, & Braghini, 2015; Conselho Regional de Psicologia 6ª Região, 1994) e o Sindicato dos Psicólogos de São Paulo que se negou a participar dos movimentos humanitários que denunciavam o assassinato do jornalista Wladimir Herzog nos porões do Departamento de Operações Políticas e Sociais, por serem movimentos que iam contra a ideologia do Estado (Hur, 2007). No entanto, também é importante resgatarmos aquilo que foi anunciado pela luta insurgente. Pois, tal como afirmam Jacó-Vilela e Braghini (2015), a conivência de representantes com a ditadura, não significa que toda a Psicologia capitulara à ordem autocrática. A rebelião é uma atividade de criação: de novas ideias, práticas e possibilidades para a vida humana. Da luta insurgente surgiram novas formas de relação do sujeito com o mundo, assim como novas formas de se pensar e fazer Psicologia surgiram no contexto de lutas revolucionárias3. A radicalização de teorias
“A revolução abala as categorias que usamos para dar sentido à experiência; mostra o quão artificial, ainda que convincente, é a separação entre o ‘individual’ e o ‘social’ sob o capitalismo [...] É neste momento que disciplinas como a Psicologia, que fazem do isolamento uma virtude, são abaladas em seu âmago” (Parker, 2007, p. 147-148).
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sociais latino-americanas foi um contraponto da intensificação das lutas sociais. As estratégias de luta contra a ditadura na América Latina se dividiam em dois tipos, o “militarista”, que se refere ao combate direto do regime pela luta armada, e o “massista”, que se refere ao trabalho de conscientização popular e das massas (Lungaretti, 2004; Hur, 2012). O segundo contribuiu para o fortalecimento de teorias sociais críticas na América Latina em diversas áreas: teoria da dependência, teologia da libertação, filosofia da libertação, educação popular, sociologia militante, Psicologia da Libertação e Psicologia Comunitária (Flores, 2009). A intensificação dos conflitos sociais resultou em uma rejeição das ideias de uma Psicologia dominante que, por cumplicidade ou por omissão, era instrumento das ditaduras latino-americanas. Neste sentido, a atividade insurgente mudou a face da Psicologia. A seguir citaremos um expressivo exemplo: a Psicologia da Libertação4. A PL na América Latina surge nos trabalhos de Martín-Baró5, quem propõe construir uma Psicologia que critica a realidade latino-americana, enfrenta condições estruturais de injustiças e desigualdades sociais e fomenta processos de libertação (Dobles, 2016; Martín-Baró, 1986/2011). “A Psicologia da Libertação busca revelar processos psicológicos com o fim de descolonizar o povo oprimido; neste sentido, ela dirige sua práxis para problemas psicossociais gerados em formações sociais existentes no Terceiro Mundo” (Flores, 2009, p. 30). Trata-se de um projeto de reconstrução da Psicologia rompendo com o poder instituído. Ao invés de tentar se definir como uma abordagem teórica específica (psicanálise, behaviorismo etc.) ou como uma nova área de especialização (Psicologia Social, Psicologia Clínica etc.)6, a PL é um programa ético-científico-político que introduz a luta contra a opressão e pela edificação de uma nova
sociedade e de um novo ser humano no núcleo da Psicologia (Dobles, 2016; Martín-Baró, 1989/2011). A PL foi delineada especialmente após a intensificação das lutas sociais em El Salvador. Com a realização de um novo golpe de estado em 1979, houve uma unificação dos grupos de esquerda de El Salvador na Frente Farabundo Martí de Liberación Nacional (FMLN) e, com isso, um acirramento da luta entre dominadores e dominados (Montgomery, 1995). Foi nesse contexto, ao questionar o papel da Psicologia diante de uma realidade estruturalmente violenta, Martín-Baró escreveu alguns dos seus textos mais importantes e, em 1986, apresentou o termo “Psicologia da Libertação”. Simpático ao programa da FMLN, Martín-Baró (1980/2017) afirma que, em um processo revolucionário, cabe ao psicólogo se questionar sobre qual é a sua contribuição para a edificação de uma nova sociedade. Neste sentido, o “psicólogo revolucionário” deve, primeiro, ser um “bom psicólogo”, pois não pode mais buscar sua autoridade em estruturas de poder, mas sim em sua capacidade de responder aos problemas decorrentes do processo revolucionário e dos desafios de edificação do homem novo. Segundo, deve ser um “psicólogo do povo”, deve reconstruir os modelos teóricos a partir da ótica popular e de acordo com os fins populares (Martín-Baró, 1980/2017). A PL é, portanto, uma Psicologia que assume radicalmente um horizonte de libertação e coloca como aspecto central de seu ser e fazer os problemas vividos pelas camadas populares na América Latina (Martín-Baró, 1986/2011; 1987/2017a). O seu ponto de partida é a realidade latino-americana: os temas que aborda não são colocados por contendas abstratas. A proposta do autor é a de que: “não sejam os conceitos que convoquem a realidade, mas que a realidade busque os conceitos; que as teorias não definam os problemas de nossa situação; mas que os
4 Exemplos de como a atividade insurgente modificou a Psicologia podem ser identificados em toda a América Latina. Aqui, podem ser relembrados três exemplos. Primeiro, no Chile, durante o governo da Unidad Popular derrubado pelo golpe militar em 1973, a Psicologia foi transformada por debates sobre a determinação social do conhecimento e sobre a sua relevância social para a nova realidade do país (Zúñiga, 1975). Segundo, o exemplo cubano. A Psicologia em Cuba, após a revolução, buscou responder aos problemas práticos colocados pela sociedade pós-revolucionária, isto é, se desenvolveu impulsionada pela necessidade de resolver problemas vividos pelas maiorias populares ou apresentados por campanhas propostas pelo governo revolucionário (Torre Molina, 2009; Lacerda Junior, 2015; Solé, 2007). Por fim, a Psicologia Social Comunitária, que teve, entre suas primeiras práticas, a estreita associação com movimentos populares que combatiam as instituições dominantes (Freitas, 1996). Em trabalhos como o de Góis (2003), a finalidade da Psicologia Comunitária é claramente a de promover a auto-organização e a luta reivindicatória do povo oprimido. 5 Esta ressalva é importante, porque o termo “Psicologia da Libertação” aparece antes dos trabalhos de Martín-Baró (ver Flores, 2009). É interessante ressaltar que, na África, a ideia de libertação entre teóricos “psi” aparece associada com contextos em que lutas armadas contra a dominação imperialista ameaçavam a manutenção do status quo (Bulhan, 1982). 6 Assim, Martín-Baró justifica a importância de se refletir sobre o conceito de libertação pelas “possibilidades que abre para os diversos ramos do fazer psicológico em nossas circunstâncias latino-americanas” (1989/2011, p. 212).
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problemas as exijam e, por assim dizer, escolham sua própria teorização” (Martín-Baró, 1987/2017a, p. 78). A incorporação do horizonte de libertação na Psicologia tem duas implicações. A primeira é a libertação da Psicologia, isto é, uma redefinição da Psicologia latino-americana questionando os modelos teóricos predominantes. Não se trata de descartar o conhecimento existente, mas de reconstruir e redefinir a Psicologia a partir da perspectiva popular. A segunda implicação é o engajamento do saber e fazer da Psicologia com as lutas populares. A incorporação da perspectiva popular não deve se dar apenas pela realização de análises teóricas – já que não há efetiva libertação sem intensificação da luta contra a ordem instituída – mas por contribuições concretas às organizações populares que almejam a libertação (Martín-Baró, 1986/2011; 1987/2017a; 1989/2011)7. A partir dessa segunda implicação, Martín-Baró definiu diversas tarefas específicas para a PL. Em um primeiro trabalho (Martín-Baró, 1986/2011), destacou três tarefas: a recuperação da memória histórica, a desideologização da experiência cotidiana e a potencialização das virtudes populares. Em outro, (1987/2017a) destacou como tarefas urgentes o estudo sistemático das formas de consciência popular, o resgate das virtudes populares e a análise das organizações populares como instrumentos de libertação. Apesar das ligeiras diferenças, todas as tarefas tinham como centro a preocupação em intensificar a atividade insurgente dos povos. Este seria o elemento mais importante com o qual a Psicologia deve se preocupar: “Somente a prática revolucionária permitirá aos povos latino-americanos romperem a inflexibilidade de estruturas sociais congeladas em função de interesses minoritários” (Martín-Baró, 1987/2017b, p. 200).
Discursos da insurgência: a transição para a luta libertária
Neste tópico pretendemos discutir como se deu o processo de conscientização política e adesão à luta
armada de alguns militantes políticos. Conscientização é compreendida a partir da definição freireana: processo de desvelar a realidade mediante uma inserção crítica na sociedade, portanto, trata-se, de um lado, de análise e compreensão do mundo e, de outro, da atividade de fazer e refazer o mundo (Freire, 1968/2005). Martín-Baró (1996; 1986/2011) destaca que o processo de conscientização se inicia com a decodificação dos mecanismos de opressão e desumanização da realidade vivida, a pela construção de um novo saber da pessoa sobre si e sobre o seu mundo e, por fim, resulta na abertura de novas possibilidades de ação transformadora para o sujeito. Neste sentido: “conscientização articula a dimensão psicológica da consciência pessoal com a sua dimensão social e política e explicita a dialética histórica entre o saber e o fazer, o crescimento individual e a organização comunitária, a libertação pessoal e a transformação social” (Martín-Baró, 1986/2011, p. 187). A conscientização pode contribuir para a superação do “torpor” latino-americano, mas somente se articulada com a reapropriação da experiência cotidiana, a organização coletiva e a prática de classe (Martín-Baró, 1987/2017b). Por organização coletiva entende-se a busca de grupos sociais por formas cooperativas de resolução dos problemas estruturais que são desvelados pela consciência crítica. Já a prática de classe é a busca por mudança revolucionária de estruturas políticas, econômicas e psicossociais da ordem social capitalista, condição para que uma efetiva autonomia exista na história de vida do sujeito. Neste trabalho, a conscientização política foi analisada a partir de entrevistas semidiretivas realizadas com cinco ex-guerrilheiros que relataram sua participação política na guerrilha armada8. Os relatos analisados foram de: Fotógrafo (Organização Revolucionária Marxista Política Operária – Polop, VPR e Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares – VAR-P), Jornalista (VPR), Economista (VPR), Deputado (Guerrilha do Araguaia, organizada pelo Partido Comunista
7 Martín-Baró (1987/2017a, p. 83) foi enfático quanto a este aspecto: “Enquanto os povos não contarem com poder social, suas necessidades serão ignoradas e sua voz silenciada. Por isso, como psicólogos, devemos contribuir para fortalecer todas as mediações grupais – comunidades ou cooperativas, sindicatos ou organizações populares – que buscam representar e promover os interesses das classes majoritárias”. É preciso ressaltar que esta preocupação com a contribuição prática da Psicologia não ou despercebida. Para além do assassinato que, de forma brutal, ilustra o incômodo da obra de Martín-Baró ao poder instituído, pode-se citar, como exemplo, o fato de uma revista liberal estadunidense ter publicado um artigo destacando a importância das pesquisas de opinião realizadas por uma organização fundada em 1986 por Martín-Baró, o Instituto Universitario de Opinión Pública (Iudop), para revelar a falsidade das pesquisas de opinião realizadas por uma agência utilizada pelo governo dos EUA – a Organização Gallup (Bollinger, & Lund, 1988). 8 As entrevistas com os ex-guerrilheiros brasileiros foram realizadas no ano de 2008 em São Paulo e a do ex-guerrilheiro das FARC no ano de 2009 na cidade de Barcelona.
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do Brasil – PCdoB) e Colombiano (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – FARC). Como o foco aqui se dá sobre a gênese de suas participações políticas, são citadas apenas análises sobre o processo de conscientização política e adesão à luta armada.
O início da conscientização política
Todos os entrevistados relataram a percepção sobre as contradições sociais como um o inicial para a tomada da consciência sobre os processos político-sociais. A insurgência nascia da percepção de um cenário de injustiça social. Tal fato é correlato à afirmação de Carlos Fonseca, fundador da Frente Sandinista de Libertação Nacional, que entende que a origem dos movimentos armados na América Latina se deu mais por “vergonha” das situações político-sociais desses países, do que propriamente por uma “consciência” (Martí, 2006, p. 15). Para Economista, perceber as contradições sociais no Brasil foi importante para se indignar frente ao estado de coisas e posteriormente lutar contra o que considerava injusto. Cita seu choque ao mudar para o Nordeste e se deparar com situações extremas de pobreza: Essa minha compreensão, digamos, política e minha indignação, ninguém se torna revolucionário porque vê uma coisa bonitinha. Atitude pessoal, que é uma atitude não só intelectual, de conjunto, de visão de mundo, né, a por, digamos, um “sentir” as coisas de determinada maneira, tudo por um sentimento de solidariedade com pessoas obviamente esmagadas (Economista, 54-589). Com seu relato pode-se entender que determinada experiência concreta foi o ponto de partida de seu processo de conscientização. Ela se amplia quando estuda Economia e compreende os mecanismos que geram a desigualdade social: “acabei me vinculando ao curso de Economia Política da Universidade de Lausanne [...] Aí eu ei a entender os mecanismos econômicos que estão por trás dessa tragédia que é latino-americana” (Economista, 83-87). Deputado rememora a vivência que teve como família campesina para que compreendesse e vivesse a aguda contradição social existente no Brasil. Teve que trabalhar muito cedo: 9
Minha família é uma família pobre, de camponeses [...]. Comecei a trabalhar com oito anos de idade, na roça. Eu era o filho mais velho e ajudava meu pai. Então, eu praticamente não tive adolescência, minha infância foi na roça, trabalhando diretamente na agricultura (Deputado, 42-46). Ao sair da roça para estudar, foi morar numa Igreja. Começou a participar de movimentos religiosos, tendo uma militância inicial na Juventude Agrária Católica e na Juventude Estudantil Católica. Afirma que se engajou na militância política quando entrou na faculdade e no movimento estudantil. A influência do contexto que vivia foi um fator importante de politização: a Universidade naquela época era o centro político daquela efervescência cultural, ideológica e de oposição à ditadura [...] E dentro da Universidade a gente tinha uma vida intensa, não só de estudar, mas de fazer política, música, teatro, enfim a Universidade era o cenário propício para aquela efervescência política. [...] Depois veio as lutas pelos excedentes, as ocupações, o enfrentamento com a polícia, aquilo ali foi um crescente. E era uma vida muito libertária, no sentido do desprendimento, da dedicação que a gente vivia dentro da Universidade (Deputado, 164-172). A Universidade era considerada como espaço de vivência múltipla e que acolhia seus anseios de abertura ao mundo, tendo uma importância central para o engajamento e a politização. Nela, teve uma intensa atuação e rápida progressão nos espaços de participação política: E naquele clima de efervescência eu misturei com a compreensão das minhas origens, da situação da minha família e também com a consciência política. Aí eu fui escolhido para ser o presidente do Centro Acadêmico numa eleição direta. E fui eleito. Aí já foi rápido, no ano seguinte eu já estava no DCE, liderando as eatas, as mobilizações de Fortaleza. No período de 68, já estava participando dos encontros da UNE aqui em São Paulo, que o DCE no Ceará se equiparava à UEE, porque só tinha uma Universidade. Aí eu já estava numa militância engajada muito rapidamente.
Os números entre parênteses referem-se às linhas em que a presente citação se localiza na entrevista integral.
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Foi um ano no Centro Acadêmico, um ano no DCE e depois já na militância estudantil na UNE, foi uma coisa relativamente rápida. Numa época em que as coisas aconteciam com muita intensidade (Deputado, 136-145). Fotógrafo afirma que ser vizinho de famílias de operários foi fator que gerou o início da compreensão das contradições sociais. No seu processo de politização, ocorre fenômeno correlato como o que ocorreu com Deputado, a vivência da contradição social foi ressignificada quando ingressa na Universidade e começa sua formação política. Portanto, na infância a contradição social é sentida, mas apenas é “significada” depois do início da militância política. Mas, diferente de Deputado, a contradição social é vista na pobreza do outro, nos filhos dos operários, pois Fotógrafo sentia diferenças sociais entre sua família judia, de classe média, e as famílias de operários. Depois na adolescência, no ginásio, colegial, eu fui alienado, nas escolas que estudei não tinha movimento secundarista, não queria saber de nada. Pior que eu era jogador de futebol, queria ser jogador profissional de futebol, eu era totalmente alienado, só me salvei quando eu entrei na faculdade de Física, que era na Faculdade de Filosofia aqui da Maria Antônia (Fotógrafo, 40-44). Na faculdade eu entrei, no vestibular, em 64, e logo tem o golpe. E foi aquela agitação na Maria Antônia, aí comecei a ver assembleia, o que nunca tinha ouvido falar na minha vida. [...] Aí caiu a ficha, comecei a participar de assembleia, me manifestar, já fui doutrinado, já fiz cursinho político... (Fotógrafo, 120-125). Compreendia-se como um jovem despolitizado que teve a sorte de conhecer o Grêmio da Faculdade, pois assim se “salvou” da alienação. Tal participação em assembleias foi a porta de entrada para sua militância política estudantil e depois, para a luta armada. Já Jornalista, cita que a literatura foi o espaço potencial para a constituição de sua consciência política. Lia muito e desenvolveu uma consciência anticapitalista através da leitura precoce: Era meio adoentado, tinha problemas respiratórios, muita gripe, então de criança me habituei a ler muito cedo [...] Li a obra inteira infantil do 36
Monteiro Lobato, que era bem, assim, aberta, né, o cara era anticapitalista, [...] então foi, digamos, o começo de uma consciência; ler muito e as coisas que, ele, Monteiro Lobato, debochava dos poderosos do mundo, gozava até da roupa dos capitalistas, com as cartolas e tal, ele dava uma visão bem irônica, bem sarcástica da sociedade estabelecida, dos poderes estabelecidos. Então isso, acho que pegou muito, porque ler uma coisa dessas com nove-dez anos de idade marca (Jornalista, 48-57). Entende-se que para Jornalista, suas leituras foram de grande valor para descobrir o mundo e para sua politização, como ler e entrar em contato com as críticas ao capitalismo de Monteiro Lobato. Os amigos também foram fator importante para chegar ao movimento estudantil: Tive um amigo que era mais velho [...]: participou da luta armada comigo. Ele me trouxe esse approach socialista, alguma coisa já embrionária de marxismo, o anti-americanismo, tudo isso. E como ele era mais velho, também me indicou livros, se interessou antes de mim por Kafka, Camus, Sartre [...] Enfim, foram amizades que me tocavam para frente, me tornava adulto mais cedo (Jornalista, 137-147). A politização de Colombiano já se deu de outra forma, por influência de familiares que militavam em organizações de esquerda: muchos de ellos pasaron a militar dentro de organizaciones de izquierda [...] Había algunos que militaban en organizaciones de influencia maoísta, otros en el Partido Comunista. [...] Ellos, siendo familiares, algunos vivían cerca a mi residencia, a la casa nuestra. A veces iban a casa, algunos de ellos dejaban algún periódico de izquierda, en este caso me refiero a un periódico que ese entonces se llamaba “La voz proletaria”, que era el semanario del Partido Comunista Colombiano. Hasta que en una oportunidad, ya finalizando mis estudios de bachillerato, uno de ellos mi invitó a una conferencia sobre el tema de los chinos. En ese momento el PC Colombiano, alineado con la Unión Soviética, tenía una lucha ideológica contra todas las vertientes maoístas. Recuerdo yo que asistí esa conferencia en la sede del Sindicato de trabajadores de transporte aéreo (Colombiano, 53-66).
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Com a participação nessas conferências e os debates políticos em família, foi convidado a entrar para o PC colombiano, ingressando assim na Juventude Comunista. Ao entrar na Universidade a a ter uma atuação no movimento estudantil, participando ativamente dos debates universitários. Y creo que dos, tres años después, yo ya era una persona reconocida en todo el ámbito de la Universidad. Pero que además de eso dentro de la Juventud Comunista ya empecé a asumir mayores responsabilidades, ya hacía parte de lo que se llamaba la Comisión Regional Estudiantil, hacía parte del Comité Ejecutivo Regional de la Juventud Comunista, es decir, ya tenía unos roles cada vez más comprometidos desde el punto de vista orgánico. [...] Realmente mi hogar era la Juventud Comunista y era los problemas estudiantiles. Y lo que caracteriza a los militantes de la década de 70, es decir, un grado de sacrificio, en la que, los problemas familiares, académicos, de actitud individual eran irrelevantes con relación a los problemas de la organización y la lucha política revolucionaria (Colombiano, 131-141). Os relatos anteriores mostram que indignação e organização são dimensões associadas ao processo de conscientização política. Os relatos de Economista, Deputado e Fotógrafo demonstram que todos vivenciaram desigualdades ou viram a pobreza e a miséria. Mas essas experiências só foram convertidas em indignação após a decodificação de mecanismos opressivos e desumanizantes possibilitada por alguma forma de organização coletiva como, por exemplo, o movimento estudantil universitário. Já Jornalista decodifica o mundo pela literatura, mas suas ações dependem de experiências coletivas possibilitadas por amizades. Por fim, o relato de Colombiano mostra que a organização coletiva era parte constitutiva de sua vida. Assim, não somente a vivência das experiências de opressão, mas a sua análise crítica e a produção de novos posicionamentos nas relações sociais em organizações coletivas possibilitaram novas experiências, como a indignação, e o desdobramento de novas possibilidades de ação que se expressaram na luta revolucionária.
A entrada na luta armada
A participação estudantil foi um importante momento de politização dos entrevistados. Por meio
dela, engajaram-se com o projeto da luta contra a ditadura e, posteriormente, com organizações de luta armada. No discurso de Deputado aparece uma maior importância atribuída à atuação no movimento estudantil, tanto que chegou a participar da direção da União Nacional dos Estudantes (UNE). Para exemplificar o processo da transição à atuação armada, são citados trechos de falas dos entrevistados que justificam a mudança de suas práticas políticas, muitas vezes devido às ações opressivas do Estado militar. Para Fotógrafo, sua vivência de movimento estudantil foi potencializadora para seu processo de politização e entrada para a luta armada. Em pouco tempo após o início de sua militância política, entrou em uma organização revolucionária, a Polop: Era tudo muito rápido. Havia um golpe, que criou uma ditadura, aí para participar, já havia uma luta que tinha que enfrentar a ditadura. Aí logo em seguida que comecei a participar e fazer pergunta, eu cheguei a falar em assembleia: “Mas por quê?” Aí me chamaram, fiz meu primeiro curso de marxismo-leninismo, nunca ouvi falar de comunismo, socialismo, foi nos cursos elementares de doutrinação, né. Depois do primeiro cursinho já comecei a participar numa organização de tendência trotskista. Nós éramos propagandistas da luta armada, já éramos contra a posição política do PCB. Foi assim, me interessei logo e me engajei (Fotógrafo, 129-137). Economista cita as injustiças sociais como motivo para ingressar na luta armada. Na medida em que se politiza e entende os mecanismos que mantém o Brasil em seus grilhões econômicos, a a ver que a situação do país piora em virtude da ditadura militar. A intensificação das grandes contradições sociais brasileiras o indignou mais ainda: Esse para mim é o pano de fundo, digamos, de uma transformação que me levou na época a contatar várias pessoas que estavam se organizando em Paris, para se articular [...] Então muita dessa gente exilada estava em Paris, estava se organizando para voltar ao Brasil e fomentar um movimento de oposição, me chamaram e enfim, eu fui (Economista, 150-154). Portanto, é a partir desse repertório de valores e das redes de amizade que constituiu é que decide 37
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retornar ao Brasil e lutar pela Revolução Socialista no país. Deputado decide dedicar-se integralmente ao movimento estudantil e ao PCdoB. Abandonou o movimento estudantil depois do decreto do AI-5. Devido à perseguição, viveu clandestino em São Paulo durante um ano e meio, até que se disponibilizou ao PCdoB para a entrada na guerrilha rural que estava sendo organizada na região do Araguaia, entrando assim para a luta armada. Abaixo, relata o processo repressivo corrente, em que pessoas que tiveram participação em movimentos de massa eram bastante perseguidas: Quando veio o Ato Institucional número 5, foi um emparedamento daquela geração toda. A vanguarda do Movimento Estudantil, ou ela era presa, ou ia para a clandestinidade, ou para o exílio. Porque mesmo que as pessoas fossem cuidar de suas vidas, eram presas e torturadas. Então foi um conjunto de fatores, consciência, opção, emparedamento com o AI-5 e uma consciência de que o caminho era fazer a resistência armada, ou da forma da guerrilha urbana, como alguns companheiros fizeram, ou na forma da guerrilha rural, que foi a opção do PCdoB, no caso da Guerrilha do Araguaia (Deputado, 206-213). Deputado expressa o AI-5 como um marco da extrema repressão. Os militantes estudantis tiveram como destino a prisão, o exílio ou a militância clandestina. Mesmo as pessoas que abandonavam a militância política chegavam a ser perseguidas, presas e torturadas pela repressão do Estado; houve cerca de 20.000 torturados por motivos políticos no período da ditadura militar (Gorender, 1998). Jornalista explica que quando atuava no movimento estudantil secundarista, a luta armada adquiria maior eficácia política em seu imaginário. Tinha contato direto com a Dissidência Universitária de São Paulo, organização ligada à ALN: [...] mas naquele instante o pessoal da Zona Leste queria mesmo era se integrar com o pessoal da pesada, que estava assaltando banco, ia para a guerrilha; não gostávamos dos universitários, nos desprezavam e era mútuo. Eles viam a gente como tarefeiro e a gente via eles como bundas-mole [...] Então na hora que a Dissidência resolveu nos itir, nós ficamos fora (Jornalista, 228-234). 38
A divisão no seu discurso fica clara, em que associa aos universitários a figura de “pessoas frouxas”, com uma ação ineficaz e os guerrilheiros como o “pessoal da pesada”, o “novo” modelo de atuação política. Por isso seu grupo decidiu não se agregar à Dissidência Universitária e tentou aliar-se a um grupo que tivesse uma ação política considerada mais eficaz e contundente. Então, após o “racha” com a Dissidência, buscou contato com organizações de luta armada, pois queria integrar-se na luta radical pela revolução. Então, nós oito, conforme o movimento de massa que se tornava cada vez mais perigoso, impossível, reprimido, CCC fazendo provocações, tiroteio na Maria Antônia, conforme foram acontecendo todas essas coisas, ocupação militar na Greve de Osasco, conforme a coisa radicalizava a gente foi vendo, sentia que aquilo ia estourar, que não ia ter mesmo mais chance de continuar no esquema de movimento de massa. A gente começou a procurar, lá para outubro de 68, a gente já estava fazendo contato com as organizações, o pessoal vinha expor suas linhas, então veio o companheiro da ALN, do POC – Partido Operário Comunista – um desdobramento da Polop, veio PCBR, veio Espinosa da VPR (Jornalista, 257-265). Nota-se que a opção pela luta armada resultava da vontade de continuar na militância política, como também da avaliação de que participar no modelo de movimento de massas já não se sustentava, pois estavam sendo massacrados pela repressão e pela violência do Estado militar. Então uma saída possível para alguns militantes foi aderir à luta armada para poder se proteger. Nesses casos, a adesão à luta armada tornou-se algo “compulsório” para o militante que queria continuar sua atuação com “algum tipo de segurança”, sem sair do país, ou para tentar se defender em caso de prisão. Portanto, entende-se que o fenômeno do surgimento das organizações armadas teve uma relação direta com o recrudescimento da violência do Estado de Exceção. A intensa repressão do Estado foi a gota d’água que produziu a participação dos atores sociais na guerrilha. Fotógrafo e Economista nos contam processos similares: Não que a luta armada tenha sido um erro. Eu acho que havia todas as condições para começar a luta armada. Não havia nada de democracia, não havia
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mais formas de vida democrática no país. Aquilo que existia era fachada, havia uma ditadura que reprimia tudo e a maneira para lutar contra a ditadura, uma das formas, era fazer a luta armada contra a ditadura. Que não pode esquecer, além da luta contra a ditadura, a gente queria implantar o socialismo. Para fazer a revolução no Brasil, nossa primeira coisa era combater a ditadura. Então, acho que foi primário porque nós abandonamos o trabalho político (Fotógrafo, 260-267). Fotógrafo relata que, com a proibição das práticas democráticas no período da ditadura, a opção adotada foi pegar em armas para lutar pelo sonho revolucionário. E sua autocrítica, de considerá-la “primária”, refere-se ao fato de terem abandonado o trabalho político, ou seja, a adesão de sua organização à guerrilha fez com que abandonasse o trabalho de mobilização popular. Economista (179-182) alega que a adesão à luta armada se justificou devido ao golpe militar, ilegalmente perpetrado pelas elites sociais, portanto, em seu relato, a ditadura militar produziu as organizações de guerrilha. Após as organizações de esquerda optarem pela luta armada, houve uma institucionalização dessa prática, em que intensificaram seu caráter militarista e diminuíram seu caráter “político”. Houve uma estratificação desse viver: E se no começo a gente nasce como luta armada, com o tempo você anda armado pela própria repressão. Porque você tem que sobreviver como pessoa, está identificado, você está pronto para matar quem vem te prender, ou se não há outra alternativa, se matar para não ser preso e não ser forçado a delatar as outras pessoas sob tortura. A tortura na época, você sabe, era generalizada (Economista, 331-335). Colombiano, no início da década de 1980, também adere à luta armada a partir de uma maior implicação na luta política que assumia. Cita o debate político que ocorria: Va tomando fuerza el planteamiento dentro de la izquierda latinoamericana que la forma principal de lucha, y la única forma eficaz de lograr los cambios revolucionarios en America Latina es a través de la lucha armada. Porque ya se tenia presente el derrocamiento del gobierno de Salvador Allende
en septiembre del año de 1973, entonces hubo una discusión en el seno de la izquierda latinoamericana, unos, por ejemplo en el caso de los colombianos, que hacíamos un planteamiento en el sentido de que era necesario la combinación de toda las formas de lucha, es decir, priorizando no la lucha armada, sino la lucha política, la lucha callejera. Pero también combinándola por la acción política abierta de carácter legal, a través de la búsqueda de representación en los organismos de elección popular y también la expresión armada, entonces, ese era el planteamiento de las células comunistas en Colombia. Hubo algunos sectores en las que priorizaban, que daban solamente relevancia a la lucha armada y consideraban que participar de procesos electorales era revisionismo, era aceptar las reglas del enemigo y que por tanto el cambio solamente se podía lograr a través de la acción del fusil (Colombiano, 166-179). Colombiano intensificou sua participação política, organizando atos públicos e ou dez meses estudando comunismo na União Soviética. Em seguida, e com a aprovação do partido, ingressa nas FARC, compreendendo a luta armada como uma modalidade de “luta superior”, a qual teria eficácia para transformar o quadro de exploração social da América Latina. Nos relatos agrupados neste tópico, é possível notar a importância da prática de classe como dimensão importante da conscientização (Martín-Baró, 1987/2017). A busca por autonomia que começa com e que é parte do processo de conscientização implica em desenvolvimento de práticas sociais que resultem em mudança revolucionária das estruturas existentes. A decodificação do mundo existente e a organização coletiva só ganham sentido no interior da busca por criar condições que possibilitem o desenvolvimento e a manutenção de uma vida caracterizada pela luta pela transformação social. Assim, a opção pela luta armada relatada pelos entrevistados foi a opção por uma prática de classe específica que parecia ser mais efetiva ou a única alternativa viável de se alcançar mudanças significativas. Deputado, Economista, Fotógrafo, Jornalista e Colombiano apontam para essa necessidade de se fazer algo que implicaria em transformação revolucionária das relações sociais instituídas. Com esses fragmentos, buscou-se selecionar relatos de pessoas que aram por um processo de conscientização política e direcionaram suas vidas na 39
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luta contra o regime de opressão. A insurgência originou-se na percepção das injustiças sociais vividas, constituiu novos grupos políticos e a adoção de uma nova postura: pegar em armas para lutar pela revolução. Esses militantes tomaram a responsabilidade do país, pagando o preço ao colocar as próprias vidas em risco, através da atualização de um imaginário e de uma ação radical pela transformação social.
Considerações finais
O presente trabalho, a partir de resgate histórico de um período de intensos conflitos no continente latino-americano, tentou apresentar duas das diversas possibilidades abertas pelas atividades insurgentes contra as ditaduras civis-militares. Em primeiro lugar, a atividade insurgente possibilitou a emergência de ideias e práticas na Psicologia que buscam a construção de relações sociais justas, democráticas e emancipatórias. Resgatar e explorar o potencial dessas ideias e práticas é central para pensar como a Psicologia brasileira pode contribuir para a superação de situações estruturais de injustiça e desigualdade social. A emergência da PL demonstra que o desenvolvimento de um pensamento crítico não depende apenas da reflexividade. Diversas propostas de “Psicologia Crítica” surgiram na Europa ou nos EUA combatendo o positivismo, metodologias quantitativas e o experimentalismo, resultando em infindáveis debates reflexivos sobre realismo, construcionismo, discurso etc. (ver a compilação organizada por Parker, 1998). Mas a hipertrofia da reflexividade ou a ênfase no caráter social das relações humanas não são garantias para a construção de uma Psicologia que contribua para a transformação social, pois podem conviver, sem qualquer contradição, com um sistema opressivo e explorador (Parker, 2007). A PL, que surgiu em período de violência de Estado, também critica o positivismo e metodologias tradicionais, mas diferencia-se por sua implicação com a atividade insurgente contra a opressão e as ditaduras militares, constituindo-se como uma Psicologia Política Crítica (Hur, & Lacerda Junior, 2016). Problematiza as políticas da Psicologia, para refletir e elaborar possibilidades de intervenção crítica e transformadora. Assim, explorar esta vertente parece ser mais relevante do que reproduzir tendências dominantes provenientes do Norte, especialmente se a meta da crítica é transformar estruturas sociais de injustiça e desigualdade. 40
Em segundo lugar, a atividade insurgente também foi condição de possibilidade para a criação de novas experiências, subjetividades e reflexões sobre a atividade política. Os relatos destacados mostram, no âmbito da subjetividade e da luta política, que a conscientização não se relaciona apenas com a reflexividade, mas com a organização coletiva e a prática de classe que almejam a revolução. Indignação e atividade insurgente foram condições para a redefinição dos horizontes, possibilidades e trajetórias dos entrevistados. Diante de uma situação de crise social, a busca por autonomia não se reduziu à reflexão, mas à ação que, por sua vez, possibilitou aprofundar a compreensão da sociedade brasileira e a criação de novas formas de se tentar transformá-la. A ditadura civil-militar aprofundou e intensificou a crise social que produziu o acirramento das lutas sociais no Brasil. A sua consolidação explicitou as diversas contradições sociais que caracterizavam e ainda caracterizam a sociedade brasileira e, nesta situação, a busca por uma pretensa normalidade que só poderia ser alcançada pela imersão no intimismo foi incentivada por diversas instâncias sociais, inclusive a Psicologia. Ao mesmo tempo, contraditoriamente, as ditaduras latino-americanas contribuíram para a radicalização das atividades insurgentes e, portanto, das ações que buscavam transformação e autonomia social. Da radicalização brotaram a PL e o desenvolvimento de uma nova postura política na esquerda política brasileira. Tanto uma quanto a outra buscavam a produção de um novo mundo, de novas possibilidades, mesmo que isso significasse a possibilidade de perder a vida. Tomar a perspectiva da insurgência para a Psicologia nos faz compreender os momentos de crise pelo seu potencial de transformação e produção de autonomia. Seja no âmbito da Psicologia como ciência e profissão, em que se pode autoanalisar suas práticas e posicionamentos políticos, saindo assim de uma postura adaptativa e normalizadora, para uma crítica e transformadora. Ou no ponto de vista dos militantes políticos, em que se constatou a emergência de “subjetividades insurgentes”, com um potencial de ação e pensamento que acedeu a organizações coletivas de luta contra a ditadura instituída, numa postura em que não se contentava em conformar-se às estruturas políticas vigentes, mas sim em transformá-las, num devir e fazer revolucionário.
Hur, D. U.; Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina.
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Domenico Uhng Hur Graduado, mestre e doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, São Paulo – SP. Brasil. Professor adjunto de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Goiás – GO, Brasil. Editor da Associação Ibero Latino-americana de Psicologia Política (2016–2018). Atualmente realiza pós-doutorado na Universidade de Santiago de Compostela, Espanha. E-mail:
[email protected] 42
Hur, D. U.; Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina.
Fernando Lacerda Júnior Graduado e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica, Campinas – SP. Brasil. Professor adjunto de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás – GO, Brasil. Ex-presidente da Associação Brasileira de Psicologia Política (2014–2016). E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Faculdade de Educação. Rua 235, s/nº. Setor Universitário. CEP: 74605-050. Goiânia – GO. Brasil. Recebido 20/06/2017 Aprovado 28/09/2017 Received 06/20/2017 Approved 09/28/2017 Recebido 20/06/2017 Aceptado 28/09/2017
Como citar: Hur, D.U., & Lacerda Júnior, F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina: psicologia da libertação e resistência armada. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 28-43. https://doi.org/10.1590/1982-10.1590/1982-3703020002017 How to cite: Hur, D.U., & Lacerda Júnior, F. (2017). Dictatorship and insurgence in Latin America: liberation psychology and armed resistance. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 28-43. https://doi.org/10.1590/1982-10.1590/1982-3703020002017 Cómo citar: Hur, D.U., & Lacerda Júnior, F. (2017). Dictadura e insurgencia en Latinoamérica: psicología de la liberación y resistencia armada. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 28-43. https://doi.org/10.1590/1982-10.1590/1982-3703020002017 43
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 44-56. https://doi.org/10.1590/1982-3703030002017
Luta Armada na Psicologia: Prática de Classe contra o Terrorismo de Estado
Juberto Antonio Massud de Souza Universidade Estadual do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Ana Maria Jacó-Vilela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Resumo: Este artigo tem como objetivo retomar parte da historiografia sobre os psicólogos e estudantes de Psicologia que integraram agrupamentos armados contra o golpe de classe de 1964. Para tal, consideramos que o processo de desenvolvimento da Psicologia, enquanto ciência e profissão, mostra-se interligado nas múltiplas contradições da formação da classe trabalhadora brasileira. Partindo dos pressupostos teórico-metodológicos do materialismo histórico-dialético, recompomos, no plano ideal, parte do movimento real produzido pela ação daqueles sujeitos. Resgatamos as trajetórias das pessoas que participaram da luta armada contra o terrorismo de estado a partir de casos ilustrativos que nos mostram suas presenças em organizações políticas das quais fizeram parte. Para tal, reconstruímos este movimento a partir das publicações existentes. Concluímos que existe um elo entre a vanguarda da luta armada, com a presença de algumas frações da Psicologia, composta majoritariamente por sua juventude, e a construção contraditória dentro da própria profissão no Brasil. Ambos são momentos da totalidade da história da Psicologia, que mostra a maneira pela qual alguns importantes setores posicionaram-se na luta contra a ditadura civil-militar. Palavras-chave: História da Psicologia, Luta Armada, Ditadura Militar, Materialismo Histórico-dialético.
Armed Struggle in Psychology: Class Practice against State Terrorism Abstract: This article aims to recapture part of the historiography about the psychologists and students of psychology that integrated armed groups against the class coup of 1964. For this purpose, we consider that the process of development of psychology, as science and profession, shows itself interconnected in the multiple contradictions of the formation of the Brazilian working class. Based on the theoretical and methodological assumptions of historical and dialectical materialism, we recomposed, in the ideal plane, part of the real movement produced by the action of those subjects, who opened cracks and enlarged the basis for discussions that would be made, later, within psychology itself. Knowing this, we sought to recover some illustrative cases of their presence in the organizations of which they were part, reconstructing this movement from the existing publications. We conclude that there is a link between the vanguard of the armed struggle, with the presence of some fractions of psychology, composed mostly by its youth, and the contradictory construction within the profession itself in Brazil. Both are moments in the totality of the history of psychology, which shows the way in which some important sectors have positioned themselves in the struggle against the civil-military dictatorship. Keywords: History of Psychology, Armed Struggle, Military Dictatorship, Historical and Dialectical Materialism.
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Souza, J. A. M.; JACÓ-VILELA, A. M. (2017). Luta Armada e História da Psicologia.
Lucha Armada en la Psicología: Práctica de Clase contra el Terrorismo de Estado Resumen: Este artículo tiene como objetivo retomar parte de la historiografía sobre los psicólogos y estudiantes de psicología que integraron agrupaciones armadas contra el golpe de clase de 1964. Para eso, consideramos que el proceso de desarrollo de la psicología, como ciencia y profesión, se muestra interconectado en las múltiples contradicciones de la formación de la clase trabajadora brasileña. A partir del materialismo histórico-dialéctico, recompusimos, en el plano ideal, parte del movimiento real producido por la acción de aquellos sujetos, que abrieron grietas y ampliaron la base para las discusiones que podrían ser hechas, posteriormente, en el interior de la propia psicología. Sabiendo esto, buscamos recuperar algunos casos ilustrativos de sus presencias en las organizaciones de las que han participado, reconstruyendo este movimiento a partir de las publicaciones existentes. Concluimos que existe un eslabón entre la vanguardia de la lucha armada, con la presencia de algunas fracciones de la psicología, compuesta mayoritariamente por su juventud, y la construcción contradictoria dentro de la propia profesión en Brasil. Ambos son momentos de la totalidad de la historia de la psicología, que muestra la manera en que algunos importantes sectores se posicionaron en la lucha contra la dictadura civil-militar. Palabras clave: Historia de la Psicología, Lucha Armada, Dictadura Militar, Materialismo Histórico-dialéctico.
Introdução
Este artigo tem como objetivo retomar parte da historiografia dos psicólogos e estudantes de Psicologia que integraram agrupamentos armados contra o golpe de classe de 1964. Partimos dos pressupostos teórico-metodológicos do materialismo histórico-dialético e recompusemos, no plano textual, parte do movimento real produzido pela ação daqueles sujeitos. Para tal, nos aprofundamos no estudo bibliográfico do tema, buscando em nossa investigação a tomada daquilo que já foi produzido. Iniciamos o artigo descrevendo como a particularidade societária brasileira constitui a Psicologia em seu processo de reconhecimento enquanto ciência e profissão engendrando as condições para a formação do psicólogo enquanto fração da classe trabalhadora no Brasil. Em seguida, consideramos como a politização de estudantes de Psicologia da década de 1960 foi uma ruptura com o caminho institucional trilhado até então pela Psicologia como profissão. A partir de casos ilustrativos, indicamos a participação daqueles sujeitos em agrupamentos políticos caracterizados por especificidades que indicavam a perspectiva ideológica a qual se filiavam. No final, destacamos o processo que culminou com a transição da forma ditadura para a forma democrática de Estado no Brasil, inaugurando um novo pacto entre as elites econômicas no país.
A formação do psicólogo enquanto fração da classe trabalhadora brasileira
Para compreendermos a maneira pela qual a Psicologia brasileira é transformada em ciência e reconhecida como profissão, é necessário termos em vista o movimento pelo qual um país de economia periférica do capital se liga aos seus centros econômicos, já que: o estudo da história da ciência em países periféricos a necessariamente por colocar em cena questões políticas, de dependência, de autonomia ou de colaboração e intercâmbio em relação ao centro, entendido como alguns países da Europa e os Estados Unidos (Jacó-Vilela, 2009, p. 125). Isto mostra que existe um processo desigual e combinado na sociabilidade do capital que, em sua reprodução em escala ampliada, tende a se alastrar pelos diferentes cantos do globo. Prado Junior (1988) afirmou: “o nosso enquadramento no sistema internacional do capitalismo, [...] vem a ser o imperialismo, na posição de simples dependência dele” (p. 345). Aquilo que acontece no centro do capital é refratado na periferia que, com suas particularidades, dá diferentes expressões para aquele movimento. Isto também acontece no âmbito das próprias ciências que se desenvolvem na modernidade. 45
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 44-56.
Neste sentido, a Psicologia se apresenta em um dos complexos momentos pelo qual parte da classe trabalhadora brasileira, em sua multiplicidade de contradições estruturantes, se desenvolve. Inicialmente, ainda que não institucionalizada como profissão, emerge em diferentes setores e áreas que representavam os interesses de uma elite modernizadora que se formava no Brasil1. Sodré (1990) afirmou: “a década de 30 assinala novo período na acumulação de capitais aqui” (p. 100). É a partir deste momento que as novas bases estruturais para o desenvolvimento institucional de uma Psicologia começam a ser alargadas. Em 1932 foi elaborado o primeiro projeto de Curso de Formação de Psicólogos Profissionais (Centofanti, 1982). Nas décadas seguintes, tivemos a fundação, em 1945, da Sociedade de Psicólogos de São Paulo e, em 1949, da Associação Brasileira de Psicotécnica, no Rio de Janeiro (Angelini, 2011; Castro, & Alcântara, 2011). Mas, somente em 1962, é reconhecida nos marcos legais a profissão de psicólogo, pela Lei no 4.119, que regulamenta os cursos e a profissão (Jacó-Vilela, 2002). Até a década de 1960, vemos que a constituição da Psicologia, que buscava seu reconhecimento enquanto profissão, seguiu um caminho trilhado no interior da institucionalidade (Jacó-Vilela, 2012). Com o golpe de classe2 (Dreifuss, 1986, p. 146) de 1964, uma nova situação foi imposta na sociedade brasileira. Fernandes (2015) afirmou que se institucio-
nalizou um verdadeiro “totalitarismo de classe” (p. 35). A fratura da forma democrática de Estado serviu para colocar em primeiro plano novos problemas, fazendo com que existissem preocupações com questões que, até o determinado momento, não foram consideradas. Para alguns dos então psicólogos e estudantes de Psicologia também foi exigido “[...] travar o mesmo combate nas trevas da pior opressão que já se abateu sobre o povo brasileiro desde a conquista da Independência” (Gorender, 2014, p. 181). Se, de um lado, parte da teorização da própria Psicologia não oferecia subsídios para um enfrentamento contra um regime ditatorial, por outro, a prática de alguns psicólogos e estudantes, que estava subordinada a sua ação militante, implicou a abertura de uma ampla gama de discussões que foram incorporadas, posteriormente, pela própria Psicologia.
O terrorismo de estado
Não existe formação de estados nacionais sem a constituição de um exército armado para a sua proteção e defesa contra ameaças internas e externas. Estas aparecem, simultaneamente, como a constituição daquelas e justificam a sua existência e manutenção (Lenin, 2010). Neste sentido, as formações estatais são expressão política do movimento pelo qual a ordem do capital internacionaliza seus interesses e constitui a formação do mundo moderno3.
1 Esta foi uma tendência geral e global que caracterizou o desenvolvimento da própria Psicologia em diferentes lugares. Ao lado do desenvolvimento do capital, foi necessário um exército de trabalhadores especializados que pudessem extrair o máximo da eficiência do trabalho da classe operária que se formava. Afinal, “desde su surgimiento, la psicologia se posiciono como una ciencia auxiliar de las elites, para el dominio de los sujetos y grupos subalternos em todos los niveles” (Bravo, 2016, p. 11). No Brasil, o processo de desenvolvimento da Psicologia ocorreu na segunda metade do século XIX, sendo de Ferreira França (1809–1857) a primeira publicação que levaria o título de Psicologia. Já no início do século XX, a criação do laboratório de Psicologia Pedagógica, tendo como diretor Manuel Bomfim, marcaria novo impulso em sua expansão. Durante as décadas de 1910 e 1920, a criação de laboratórios de Psicologia em hospícios e escolas germinariam o solo para o interesse crescente da matéria. Mas somente com os processos sociais desencadeados na década de 1930, é que a Psicologia ganharia um terreno cada vez mais fértil para a sua expansão. 2 Sobre a articulação internacional de uma ação coordenada em diversos países, em que o Brasil ocupava um lugar estratégico na América do Sul, recomenda-se os ótimos livros de Rene Dreifuss: “1964: a conquista do estado” e “A internacional capitalista”. Neles, são mostrados em detalhes os diferentes movimentos arquitetados na construção de aparelhos de classe que serviram de modelo para a atuação de elites orgânicas criadas para impor ideologicamente os interesses das corporações que estavam por trás do golpe. Não foi um movimento autônomo das forças do exército, mas uma verdadeira coordenação de empresas de capital internacional, que conseguiam contatos no interior do aparelho estatal e coordenavam suas ações com a criação de elites locais aparelhadas aos seus interesses. Todas as peças foram milimetricamente planejadas em seus movimentos. Um dos exemplos desta coordenação é a “elite orgânica do Ipes/ Ibad [que] constitui-se num verdadeiro aparelho de classe [...] capaz de exercer uma ação planejada estratégica e de realizar manobras táticas, através de uma cuidadosa e elaborada campanha, que contrapôs o seu poder organizado de classe ao poder do Estado e do bloco histórico populista [...]” (Dreifuss, 1986, p. 141). 3 Marx (2014, p. 821) afirma: “Os diferentes momentos da acumulação primitiva [do capital] [...] foram combinados de modo sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais métodos, como, por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal. Todos eles, porém, lançaram mão do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e abreviar a transição de um para o outro”.
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Parte considerável da formação societária latino-americana foi marcada pelo chamado terrorismo de estado. Esta categoria analítica, que significou um verdadeiro ganho teórico para a explicação do movimento do real, foi incorporada por alguns psicólogos em suas análises. Basta lembrarmos que, em El Salvador, Martin-Baró (2017) avaliava que: [...] a guerra suja utiliza-se da repressão aterrorizante, isto é, a execução visível de atos cruéis que desencadeiam na população um amplo e incontrolável medo. Assim, enquanto a repressão produz a eliminação física de pessoas que são o alvo direto de suas ações, o seu caráter aterrorizante tende a, ao mesmo tempo, paralisar todos que, de uma forma ou de outra, se identificam com alguma característica da vítima; o terrorismo de estado e, concretamente, a guerra psicológica têm a necessidade de possibilitar que a população saiba dos fatos, ainda que a publicidade enquanto tal possa ser contraproducente [...] (p. 277-278. Destaques no original). Na particularidade sul-americana, o caso da Colômbia é outro exemplo. Bravo (2016), trabalhando com parentes das vítimas desaparecidas no confronto entre grupos guerrilheiros armados e o estado colombiano que se prolongou por décadas, afirmou: “La expresión terrorismo de Estado pasó a significar las acciones descritas. El Estado podia operar diretamente, por médio de sus agentes, o inderectamente, por médio de grupos paramilitares” (p. 25-26. Destaques no original). O terrorismo de estado chileno, que resultou no assassinato de Salvador Allende no Palacio de la Moneda pelas tropas de Augusto Pinochet, serviu de base para a “experiência psicoterapêutica no Chile pelo grupo liderado por Elizabeth Lira [...]” (Martin-Baró, 2017, p.327). No Brasil, Coimbra (2011), uma das psicólogas que ajudou a incorporar a discussão do terrorismo de estado dentro da própria Psicologia, afirmou: “silenciava-se e massacrava-se toda e qualquer pessoa e/ou movimento que ousasse levantar a voz: era o terrorismo de Estado que se instalava; a ditadura sem disfarces” (p. 43).
A politização estudantil e a Psicologia: na vanguarda da luta armada e na retaguarda da resistência
O processo de politização e radicalização nas fileiras da Psicologia levou alguns estudantes a romperem com o processo de institucionalização que marcou a Psicologia brasileira. O exemplo das estudantes encarceradas no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) de 1968, em Ibiúna, realizado de forma clandestina, nos mostra a participação de estudantes de Psicologia enfrentando o regime dominante4. É importante notarmos o papel de vanguarda que estes estudantes tiveram, pois levantaram questões relacionadas a ações contra a ditadura de classe em seus cursos. Se parte da Psicologia estava presa na armadilha institucional que prendeu a atuação de profissionais, há, por outro lado, importante fratura da ordem efetivada pela juventude e pelos estudantes (Hur, 2012). Parte destes estudantes já participava em estavam integrados a organizações políticas e o papel dos congressos estudantis foi o de ajudar a ampliar a rede de contato entre estes militantes. Contra o terrorismo de estado, germinado e cultivado na constituição societária brasileira, estudantes e psicólogos utilizaram diferentes formas de luta e resistência. Aqui, nos interessa uma em específico: a luta armada. Poderíamos defender que a viagem à luta armada de psicólogos e estudantes estaria apartada da história da própria Psicologia? Ou, pelo contrário, são esses sujeitos concretos, que vivem e transformam a realidade em determinado período histórico, que abrem frestas e alargam as bases de discussão para atividades que naquele momento não são reconhecidas como parte das atribuições de sua própria categoria profissional? Para qualquer tipo de resposta, é necessário o resgate da trajetória destes estudantes e militantes de Psicologia. Aqui, defendemos a concepção de que a prática destes psicólogos e estudantes, ainda que não tivesse imediatamente uma relação identitária com a Psicologia de seu tempo, é parte inseparável da história da Psicologia.
4 Na lista das prisioneiras do Congresso é possível identificara identificação de diversas estudantes de Psicologia, assim como o local em que realizavam seu curso. Destas estudantes se destacam: Beatriz Helena Verschoore, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Josefa Mendes Trepode, da Faculdade de São Bento; Leda Maria Marques Soares, da Faculdade Santa Úrsula do Rio de Janeiro; Maria Lia Iida, do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo; Sônia Coelho de Magalhães Comensoro, da Pontifícia Universidade Católica (PUC); e Yamara Pinheiro da Silva, da então Faculdade de Filosofia Gama Filho do Rio de Janeiro.
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Se não houvessem psicólogos que assumissem a vanguarda na luta contra a ditadura não existiria possibilidade alguma de discutir temas como as consequências psicossociais da ditadura, memória e história social e lutas insurgentes na América Latina, temas que constam na convocatória deste dossiê. Alguns pagaram com sua própria vida e foram essenciais para desbravar caminhos que não poderiam ser abertos de outra forma5. Portanto, podemos afirmar que a história da Psicologia no Brasil, em um dos seus momentos, é atravessada pela história da luta armada. A completa subordinação de estudantes e profissionais à prática militante nos indica que não é possível a compreensão da história destes sujeitos sem a consideração da mediação grupal6, já que o grupo é fundamental para compreender quais foram as teses incorporadas em sua prática militante. Assim, com a finalidade de resgatar as trajetórias destes militantes que participaram da luta armada contra o terrorismo de estado, faz-se necessário recorrer à história de suas organizações, cada um processo de gênese, desenvolvimento e contradições internas, que ajudam a compreender a maneira pela qual estes militantes estavam inseridos na luta.
Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)
Inicialmente, um grupo de dissidentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) formou a Dissidência da Guanabara (DI-GB) a partir de quadros oriundos, principalmente, do movimento estudantil. Após realizar a opção pela guerrilha urbana e luta armada, o grupo foi rebatizado com nome de Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), em uma homenagem a Che Guevara, que havia morrido na Bolívia nesta data (Arquidiocese de São Paulo, 1985). No interior desta organização, destaca-se a atuação de, pelo menos, uma psicóloga e duas estudantes
de Psicologia. As três foram mortas na luta contra a ditadura. Primeiramente, será descrita a trajetória da psicóloga Iara Iavelberg, que inicialmente foi militante da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop)7 e, posteriormente, integrou os quadros do MR-8. Ainda era estudante, quando, em 1964, prenderam o professor Florestan Fernandes na USP. Sua soltura “lotou de alunos e professores o saguão da Faculdade, Iara no meio” (Patarra, 1992, p. 97). O ostensivo clima de repressão criava a atmosfera da época, em que diferentes setores da classe trabalhadora, entre eles professores e estudantes, eram gradativamente atingidos pelos conflitos sociais em curso. O depoimento da professora de Psicologia Ecléa Bosi, da USP, revela parte das atividades de Iara: Eu me lembro da Iara já não como colega de classe, mas como colega de departamento naqueles caracóis que hoje estão lá perto da FEA [Faculdade de Economia, istração e Contabilidade da Universidade de São Paulo], ali que era a Psicologia Social, e a Iara estava fazendo uma análise de conteúdo. Só que a Iara fazia a análise de conteúdo dos discursos do Fidel Castro. Eu me lembro muito bem disso. E ela não chegou a terminar esse trabalho porque ela desapareceu. Nessa época, entrou pra luta clandestina, num movimento chamado MR-8. Movimento Revolucionário 8 de outubro. E ela [...] depois nós soubemos, pelos jornais, pelos livros, que ela foi combater no Vale da Ribeira e foi assassinada na Bahia em 1972. Ela foi companheira do célebre guerrilheiro capitão Lamarca. E nós perdemos a Iara (Centro Acadêmico Iara Iavelberg, 2014). Ao mesmo tempo em que Iara fez sua graduação em Psicologia, foi professora no cursinho do grêmio da
“Todo começo é difícil, e isso vale para toda ciência” (Marx, 2014, p. 77). A ampliação de temas e preocupações na Psicologia também foi marcada por dificuldades e obstáculos. A superação destes não depende de giros de paradigmas baseados em revoluções científicas, mas de uma luta concreta com interesses de classes bastante nítidos. 6 A discussão sobre a mediação grupal é um dos elementos da Psicologia que dá base para a compreensão de como o grupo possibilita a potencialização do próprio indivíduo. Basta lembrarmos que Ignácio Martin-Baró e Silvia Lane desenvolveriam, na América Central e na América do Sul, esta ideia. A implicação política fica clara quando lembramos que o primeiro foi morto pela repressão em El Salvador, quando tropas do exército invadiram a Universidad Centroamericana e o eliminaram fisicamente. A segunda foi investigada pelo Serviço Nacional de Informação (SNI) no Brasil, infiltrando uma babá em sua residência, quem tirou fotos de sua biblioteca para rear à repressão (Ciampa, 2007). 7 Para compreender a particularidade da trajetória da Polop, antigos militantes criaram o Centro de Estudos Victor Meyer, que lançou livros que contam a trajetória da organização, com seus documentos fundadores, artigos em jornais clandestinos da época, assim como biografias de seus militantes, ar http://centrovictormeyer.org.br/. 5
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Faculdade de Filosofia, e se tornou, posteriormente, professora na Universidade de São Paulo (USP). Sobre sua curta atuação profissional na universidade, dizem-nos que: “Nas aulas que deu, poucas, Iara divertia-se em contestar a Psicologia behaviorista e a ciência oficial” (Patarra, 1992, p. 198). Por outro lado, quando já estava integrada na militância da luta armada, teve a sensibilidade de considerar que o acompanhamento psicológico de militantes poderia ser um dos papéis específicos que os psicólogos poderiam desempenhar em suas ações. As duras medidas impostas na clandestinidade impunham implicações para subjetividade. É por isso que, em sua organização, “Iara insistiu no atendimento psicológico aos militantes, seu nicho na luta armada8” (Patarra, 1992, pp. 348-349). Ficou conhecida por ter seu rosto estampado, ao lado de seu companheiro Carlos Lamarca, em diversos cartazes com a frase: “Terroristas Procurados. Ajude a proteger sua vida e a de seus familiares. Avise a polícia” (Gaspari, 2002). No Vale do Ribeira, lecionou marxismo no campo de treinamento para militantes. A relação de amor-camaradagem entre Iara Iavelberg e Carlos Lamarca, germinada e cultivada na ação clandestina, terminou com a morte dos dois. Foi morta quando membros da repressão pretendiam, na ânsia de eliminar a guerrilha urbana e rural, destruir fisicamente todos os quadros que poderiam se posicionar contra a ditadura. Sobre a destruição do psiquismo e a desorganização mental em situações de extrema pressão, um caso ligado ao MR-8 chama a atenção. A estudante de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Solange Lourenço Gomes, ficou dois anos presa. Teve um surto psicótico enquanto estava na clandestinidade, se dirigindo a uma delegacia e entregando parte de sua organização: Solange Lourenço Gomes, a Emília, dirigente do MR-8, marcara um “ponto” na Fonte Nova e estivera na arquibancada enlouquecida. Em estado de choque, entrou numa delegacia informando: “Eu sou uma subversiva, eu sou uma subversiva”. Uma semana depois, tendo contado tudo o que sabia a respeito do MR-8, levou a polícia ao encontro do seu companheiro. No final de maio
o MR-8 baiano estava nas mãos do DOI. Tinha-se conhecimento até mesmo da existência de um dispositivo rural, coordenado por um certo Dino, ou João Lopes Salgado (Gaspari, 2002, p. 351). Com traumatismos psicológicos devido à situação pela qual ou, que incluía abusos sexuais, e sem jamais ter se recuperado, Solange se matou em 1982. Outra vítima do terrorismo de estado brasileiro que pertenceu ao MR-8 foi a estudante de Psicologia Marilene Villas-Boas Pinto. Era conhecida como “a Índia do MR-8, [e] foi entregue ao DOI [...]. Mataram-na com um tiro no pulmão” (Gaspari, 2002, p. 382). Sobre a sua trajetória e sua biografia Marilena era estudante de Psicologia na Universidade Santa Úrsula, cursando até o 2º ano, quando, em 1969, por sua participação no movimento estudantil, foi obrigada a viver na clandestinidade. Inicialmente militou na ALN e, posteriormente, ligou-se ao MR-8. Nasceu no Rio de Janeiro e foi morta aos 22 anos (Miranda, & Tibúrcio, 2008, p. 481).
Vanguarda Popular Revolucionária
A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) era formada por militantes remanescentes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e da Polop. O primeiro contava em suas fileiras com ex-militares que foram cassados em 1964. Com o exílio de Leonel Brizola para o Uruguai, parte do auxílio financeiro e de armamentos, vinha a partir dele. O MNR protagonizou a primeira experiência de guerrilha pós-golpe de 1964 na área do Caparaó (Arbex, 2015). Com a derrota a partir do cerco da Polícia Militar, parte destes quadros se dirigiu a outras organizações. Já a Polop, tinha em sua base estudantes de diversas tendências marxistas e de diferentes agrupamentos espalhados pelo Brasil (Miranda, & Falcón, 2010). Parte de seus militantes se fundiria com o MNR, para formar a VPR. Na VPR, uma psicóloga que integrou seus quadros foi Pauline Philipe Reichstul. Nascida na Tchecoslováquia, foi para a Suíça, onde “estudou com Jean
8 Sobre este assunto, o depoimento de Inês Etienne é revelador: “Para ela, tão importante quanto as discussões sobre estratégia e tática de luta, era a situação psicológica dos militantes, que desejava fosse a melhor dentro do possível. Sugeriu que a organização criasse condições para que os companheiros tivessem um local onde pudessem descansar das tensões a que eram submetidos” (Patarra, 1992, p. 349).
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Piaget” (Carvalho, 1998, p. 417)9. Depois, se mudou para a França, onde viveu o maio de 1968 e travou contatos sistemáticos com militantes sul-americanos exilados. Vindo para o Brasil para integrar as fileiras da luta armada, foi morta no massacre da Chácara São Bento10. Neste mesmo episódio também foi derrubada Soledad Barret, em um dos maiores casos de infiltração e traição realizadas por Cabo Anselmo11.
Ação Libertadora Nacional
A Ação Libertadora Nacional (ALN) foi formada por um grupo de dissidentes expulsos e desligados do PCB, liderados por Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira. Em 1965, Marighella (1994) afirmou: “fiz questão de tornar público que vivemos sob uma ditadura militar fascista” (p. 115). Já em 1966, prescrevia: “sem o emprego da força, não há como derrubar a ditadura” (Marighella, 2013, p. 200). Aquilo que chamou de “golpes militares antipovo” não poderia ser confrontado pelo voto, já que “Todos veem que o caminho da derrubada da ditadura não pode ser por via eleitoral” (Marighella, 2013, p. 202). Em 1969, a análise da particularidade da situação brasileira em meio à crise estrutural se mostrava como importante termômetro para se avaliar a polarização de diferentes forças que decorria do golpe: A crise estrutural crônica característica do Brasil de hoje, e sua resultante instabilidade política, são as razões pelo abrupto surgimento da guerra revolucionária no país. A guerra revolucionária se manifesta na forma de guerra de guerrilha urbana, guerra psicológica, ou guerra guerrilheira rural. A guerra guerrilheira urbana ou a guerra psicológica na cidade depende da guerrilha urbana (Marighella,1969, s/p). No interior da ALN, encontramos, pelo menos, uma estudante de Psicologia e um psicólogo, à época
estudante. Luiz Celso Manço, professor da Universidade Católica de Santos. Este foi preso e brutalmente torturado na prisão e relembra a armadilha que vitimou uma das principais figuras da luta armada da seguinte maneira: “Nosso comandante, o Marighella, é traído e morto em São Paulo” (Conselho Federal de Psicologia, 2013, p. 542). O depoimento revela que o impacto da morte de uma das principais figuras da luta revolucionária no Brasil se fez sentir, inclusive, em meios estudantis da Psicologia. Quando foi preso, Manço teve que lidar com situação em que seu carrasco, no domínio da situação, começa a utilizar de jogos psicológicos para extrair informações para prender outros membros de sua organização. A utilização de tortura psicológica pelos agentes da repressão, inclusive com o envolvimento de elementos sádicos, era comum: Durante a tortura, uma das coisas que me pegaram muito... eles falaram: “Nós sabemos que você está com o casamento marcado [...] Só que é o seguinte, você nunca mais vai ter ereção, você se prepare, vou te amarrar pendurado no pau de arara, nunca mais você pensa que vai ter ereção, acabou, cara, tu sai daqui inútil, e você sabe como é que nós vamos começar? Com um pau de vassoura com uma mecha de tecido embebido em gasolina, vamos te penetrar e por aí vai começar a sua esterilização, sua impotência (CFP, 2013, p. 549). Aurora Maria Nascimento Furtado, estudante de Psicologia que pertenceu à ALN, foi morta aos seus 26 anos de idade, depois de ser presa e torturada. Fon (1980), que teve seu irmão mandado para a formação de guerrilheiros em Cuba diretamente por Marighella, lembra que: foi o torniquete que matou Aurora Maria Nascimento, 26 anos, no DOI-CODI do I Exército [...].
9 Outra referência nos diria ainda que: “Pauline abandonou o trabalho que fazia como educadora em Genebra, num grupo ligado a Jean Piaget” (Patarra, 1992, p.242). 10 Em 8 de janeiro de 1973, Cabo Anselmo, agente infiltrado, entregou a localização de um grupo de militantes a uma equipe de policiais do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), chefiada por Sergio Paranhos Fleury. Na versão montada pelo Estado, existiu um confronto armado que terminou com os militantes mortos. A versão reconstruída a partir de testemunhos e relatos, as seis vítimas foram sequestradas em lugares diferentes de Recife, levados a Chácara São Bento, onde foram torturados e mortos, sem combate (Miranda, & Tibúrcio, 2008). 11 Cabo Anselmo consegue sintetizar os piores momentos da ditadura brasileira. Antigo marinheiro que se tornou um agente infiltrado em organizações da luta armada, contribuiu para a morte dezenas de militantes, entre eles, Soledad Barret, sua companheira grávida de um filho seu, que foi entregue a Sergio Paranhos Fleury, membro do Esquadrão da Morte. Como ainda está vivo, é possível ver a sua patética participação em programas de televisão e vídeos na internet com personagens da sua estatura moral, como Olavo de Carvalho e Lobão.
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Seu atestado de óbito, feito pelo IML do Rio de Janeiro, indica como causa da morte: “dilaceração encefálica” [...] seu corpo apresentava um afundamento de dois centímetros em volta de todo o crânio e, devido à pressão do torniquete, seu olho esquerdo saltara do globo ocular (p. 76). Depois de sua morte, ganhou um romance, escrito por seu cunhado, Tapajós (1979), em sua homenagem. “Em câmara lenta” é um livro que narra a guerrilha das décadas de 1960 e 1970 e Aurora da ALN é a protagonista de uma das lutas pela derrubada da ditadura. Em sua narrativa, os detalhes da morte de Aurora, que se negou a entregar seus companheiros enquanto estava sendo torturada, são aterrorizadores: Furiosos, os policiais tiraram-na do pau-de-arara, jogaram-na ao chão. Um deles enfiou na cabeça dela a coroa-de-cristo: um anel de metal com parafusos que o faziam diminuir de diâmetro. Eles esperaram que ela voltasse a si e disseram-lhe que se não começasse a falar, iria morrer lentamente. Ela nada disse e seus olhos já estavam baços. O policial começou a apertar os parafusos e a dor a atravessou, uma dor que dominou tudo [...]. Ele continuou a apertar os parafusos e um dos olhos dela saltou para fora da órbita devido à pressão no crânio. Quando os ossos do crânio estalaram e afundaram, ela já havia perdido a consciência, deslizando para a morte com o cérebro esmagado lentamente (p. 172).
Partido Comunista do Brasil, Ação Popular e a Guerrilha do Araguaia
O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi formado a partir de uma fratura do PCB em 1962, quando parte de seus quadros organizativos, entre eles Pedro Pomar, Maurício Grabois, João Amazonas e Ângelo Arroyo, rompeu com a linha preconizada pelo partido12. O PCdoB, inicialmente recusando o caráter revi-
sionista do Relatório de Khrushchev13, incorporou o maoismo herdado da Revolução Chinesa, de que parte dos combates decisivos seriam decididos a partir da luta no campo, através de uma guerra popular prolongada que faria o cerco a cidade. A Ação Popular (AP) foi um grupo cristão que também se aproximou das teses maoistas e, posteriormente, foi incorporado na estrutura do PCdoB (Arquidiocese de São Paulo, 1985). No PCdoB, destaca-se a atuação de Idalísio Soares Aranha Filho, estudante de Psicologia morto na Guerrilha do Araguaia. A tragédia do Araguaia (a qual, até hoje, não teve descobertas as ossaturas e o número total de mortos, estimados em pelo menos 61) foi um dos momentos mais brutais e ferozes das forças de repressão: “Pelo número de mortos, a guerrilha pagou caro. [...] Oito morreram em áreas de combate ou em emboscadas” (Gaspari, 2002, p. 424). Entre os mortos na emboscada, estava Idalísio. A psicóloga Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes14, que viveu 11 anos na clandestinidade, pertenceu aos quadros organizativos da AP. Fez parte da militância no momento em que a influência maoista traçou os caminhos táticos da organização, tendo a política de integração na produção sendo instituída. Na prática, isso significava que os militantes seriam deslocados pela organização para ingressar em áreas geográficas distantes com o objetivo de se integrarem a base social camponesa para: “comer junto, trabalhar junto, lutar junto. Os ensinamentos de Ho Chi-Min e Mao Tsé-tung encontram um terreno receptivo entre os militantes da AP” (Arantes, 1994, p. 32). Para desenvolverem tal tática de luta, a clandestinidade era um momento fundamental para a luta contra a ditadura: “o clandestino se esconde do inimigo, que está no poder, para combatê-lo” (Arantes, 1994, p. 129). Mas, com as opções de luta sendo sistematicamente estranguladas e os militantes sendo fisicamente eliminados e brutalmente torturados, as
A política adotada pelo PCB a partir da “Declaração de Março de 1958” seria responsável por: “uma guinada à direita na política dos comunistas – uma adesão ao reformismo burguês, ou seja, a sujeição dos interesses da classe operária aos da burguesia, uma ilusão de que através de reformas do capitalismo seria possível alcançar a emancipação dos trabalhadores” (Prestes, 2013). Com esta “virada a direita” do partido, diferentes grupos se oporiam em seu interior. Entre eles, o grupo que seria responsável pela criação do PCdoB seria caracterizado por ser: “defensor da tática “esquerdista” [...] adotada, que, politicamente isolado, seria afastado do Comitê Central e posteriormente romperia com o PCB, dando origem ao PCdoB” (Prestes, 2016). 13 O XX Congresso do Partido Comunista (PC) da União Soviética, realizado em 1956, seria o primeiro após da morte de Stálin, em 1953. Nele, seu Secretário Geral, Nikita Khrushchev, afirmaria a existência de crimes de Stálin, assim como a existência do culto à personalidade. O resultado seria um abalo aos PCs de todo o mundo. Registra-se que brasileiros estavam na URSS naquele momento, entre eles Jacob Gorender e Diógenes de Arruda. 14 Registra-se aqui que os 11 anos de vida clandestina de Maria Auxiliadora, no interior da AP serviriam de base para a problemática com o qual trabalharia em sua dissertação de mestrado, culminando no livro “Pacto re-velado: psicanálise e clandestinidade política”. 12
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duras condições de luta na clandestinidade atuaram para transformá-la em peso no transcorrer do tempo: “o disfarce que era pra protegê-lo [...] vai se tornando um fardo e se constituindo em um processo de marginalização de suas relações pessoais e familiares tão queridas” (Arantes, 1994, p. 130) Maria Auxiliadora relata o momento em que o coronel Brilhante Ustra coordenou a operação – conhecida como Chacina da Lapa – que eliminou fisicamente parte do núcleo revolucionário do PCdoB, assim como prendeu seu companheiro Aldo Arantes:
Brasil, atendimento de militantes que precisavam de alguma intervenção psicológica depois de terem ado por torturas e abertura das portas de suas casas para servirem como aparelhos. A psicóloga Coimbra (1995)15, foi membro do PCB, presa e torturada, participou da criação, na década de 1970, do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM). Ela foi uma das responsáveis pela denúncia do famoso caso do médico psicanalista Amilcar Lobo, que agiu como colaborador dos agentes repressivos do Estado:
Chacina da Lapa foi comandada pelo Brilhante Ustra, uma operação casada entre o Exército, o DOPS de São Paulo e outros órgãos militares, e o Brilhante Ustra era um dos “cabeças” dessa operação. Ele e o [Sérgio Fernando Paranhos] Fleury. O Fleury ou a me procurar (CFP, 2013, p. 580).
Seu “trabalho” até 1974 é “atender” os presos políticos antes, durante e depois das sessões de torturas. Com o codinome de Dr. Carneiro, Amilcar Lobo “acompanha” o terror que se abate sobre o país fazendo parte eficaz de sua engrenagem. Antes, durante e depois! Antes das torturas, executa um “trabalho preventivo”, no sentido de torná-las mais eficazes, procurando saber se há alguma doença, se o preso é cardíaco, etc. (a primeira “entrevista” antes das torturas de muitos que são conduzidos para o DOI-CODI/RJ é feita com o Dr. Carneiro, que vai às celas dos recém-chegados). Durante, executa também um “trabalho de prevenção”, no sentido de testar a resistência do torturado, e avaliar até que ponto ele pode agüentar. Depois das torturas, faz “curativos” quando “cuida” dos farrapos humanos em que o terror converte as pessoas para que, se necessário, voltem a ser torturadas (p. 99).
Não raro era o envolvimento de militantes em que parte da família estava presente como uma unidade dentro da luta. A presença de irmãos, pais e mães fizeram da luta contra a repressão algo que os unisse. José Dalmo Ribeiro Ribas, formado em Psicologia pela Universidade São Marcos de São Paulo, militante do PCdoB, que teve um de seus irmãos mais novos como um “combatente do Destacamento B na Guerrilha do Araguaia, permanece como desaparecido político” (CFP, 2013, p. 491). Tendo conhecido diversos membros da guerrilha do Araguaia, que foram exterminados, como Maurício Grabois, Pedro Pomar e Osvaldão. José Dalmo, em uma de suas ações, serviu como guarda-costas de um conhecido membro do movimento revolucionário latino-americano em 1967: “Então, vi o [Che] Guevara chegando acompanhado por um guarda-costas. Sei que logo depois foi noticiada a presença do Guevara na Bolívia e eu fiquei sabendo que ele havia sido morto” (CFP, 2013, p. 506).
A luta não armada na retaguarda
Além da ação armada de vanguarda, houve importante luta de resistência na retaguarda que foi caracterizada por atividades de denúncia de torturadores, agitação e propaganda sobre o que ocorria no
O trabalho de atendimento psicológico a militantes vítimas de torturas foi parte importante da atuação da Psicologia na retaguarda da luta, assim como no período posterior, já que as marcas se mantiveram por toda a vida dos torturados. Sobre a importância dos atendimentos de militantes no período pós-ditadura, um caso é bem sintomático. Carlos Eugênio Paz da ALN, sucessor no comando militar de Joaquim Câmara Ferreira e Carlos Marighella que ficou conhecido por ter desferido os tiros que acabaram com a vida de Henning Boilesen – figura repudiada por sua participação no financiamento da repressão e em sessões de tortura no DOI-CODI16.
Coimbra (1995) faz um grande trabalho sobre a prática do psicólogo nos tempos da ditadura, sintetizado em seu importante livro: Guardiães da Ordem: Uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “Milagre”.
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Souza, J. A. M.; JACÓ-VILELA, A. M. (2017). Luta Armada e História da Psicologia.
Depois da luta armada, do exílio e do retorno ao Brasil, o primeiro agradecimento de um de seus livros, que carrega o singular título de Viagem à Luta Armada, vai à: “minha terapeuta Heloísa Abrantes, que me deu instrumentos para ser feliz” (Paz, 1996, p. 5).
aos 93 anos, meses antes do envolvimento de sua empresa nas investigações da Lava-Jato. Seu neto Marcelo, que comandava o grupo, foi preso em junho de 2015 (Gaspari, 2016, pp. 333-334. Destaques no original).
A ditadura de classe e o pacto das elites: a forma democrática assume o poder
Por isso, pode-se afirmar que parte da corrupção que existe atualmente no interior do aparelho estatal brasileiro foi apenas fruto de um processo ampliado e fomentado durante os anos 1964–1985. A corrupção é a expressão nítida dos interesses de uma elite econômica que não mediu esforços para articular a instrumentalidade da repressão estatal e fazer valer seus interesses. A união entre capital internacional, capital nacional e Estado brasileiro formaram a santíssima trindade que constituiu o terrorismo como prática de estado. Contra eles, a insurgência dos de baixo e a luta das organizações, que tinham entre seus quadros, psicólogos e estudantes de Psicologia que não aceitaram o estado de terror. Se de um lado, houve o silenciamento e complacência de frações inteiras da Psicologia, por outro, existiram aqueles que resistiram. A luta de classes, com todas as suas complexas contradições, se mostrou no interior da própria Psicologia. Sua história não seria mais a mesma17. Recuperar a memória histórica, e a maneira pela qual são lembrados determinados fatos em detrimento do velamento e ocultação de outros, a pela disputa dos instrumentos mnemônicos que se tornam disponíveis para as diferentes frações de classe na sociedade. Quem domina os instrumentos mediadores mnemônicos, domina a maneira pela qual se constrói a própria história. Não por acaso, Dom Paulo Evaristo, uma das incansáveis vozes de toda esta luta, com a sensibilidade que lhe era peculiar disse: “O “desaparecido” transforma-se numa sombra que
A forma democrática de dominação de classe no Brasil resultou de um processo lento, seguro e gradual, pelo qual se deu a agem do poder executivo dos militares a um presidente civil que não foi eleito diretamente. Na verdade, a “transição” foi um acordo pactuado entre as elites econômicas para obter fins que a instrumentalidade militar já não poderia mais conseguir. Novos conglomerados econômicos se desenvolveram e, com isso, a transição se deu de forma a consolidar a elite que havia florescido no interior da ditadura. Basta lembrarmos que grandes empreiteiras, que transnacionalizaram seu capital, só puderam se desenvolver com o apoio institucionalizado do terrorismo de Estado: As três grandes empreiteiras da ditadura sobreviveram a ela até que, em 2014, foram apanhadas na Operação Lava-Jato. Sebastião Camargo, o “China”, morreu em 1994, deixando seu império para três filhas. [...] A Camargo Corrêa foi a maior empreiteira do país de 1964 a 1985. Chegou a ser a maior do mundo. [...] Roberto Andrade, fundador da Andrade Gutierrez (Itaipu), morreu em 2006 e a empresa ou a ser dirigida por um de seus filhos. Seu presidente foi preso em 2015 e meses depois a empresa ou a colaborar com as autoridades. Norberto Odebrecht, fundador e mola mestra da empreiteira que suplantou todas as demais, morreu em julho de 2014,
16 A ação conjunta da ALN e do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) compôs um comando revolucionário que terminou por julgar e condenar Boilensen pelos crimes praticados, culminando com o justiçamento deste que fora um dos quadros desta ditadura de classe. Ele era um dos elos que personificava os interesses dos industriais internacionais e brasileiros e servia como ligação no interior do aparelho do Estado. Em suas reuniões ao lado de Delfim Neto, um dos signatários do AI-5, arrecadou dinheiro para o financiamento da atividade repressiva. O panfleto, deixado ao lado do corpo de Boilesen, dizia o seguinte: “HENNING ARTHUR BOILESEN, foi justiçado, não pode mais fiscalizar PESSOALMENTE as torturas e assassinatos na OBAN, nem oferecer banquetes aos altos oficiais das forças armadas brasileira, que comandam o terror e a opressão de que é vítima o povo brasileiro desde 31 de março de 1964. Boilesen era apenas um dos responsáveis por este terror e opressão. Como ele, existem muitos outros e sabemos quem são. Todos terão o mesmo fim, não importa quanto tempo demore; o que importa é que todos eles sentirão o peso da JUSTIÇA REVOLUCIONÁRIA” (MRT, & ALN, 1971). 17 Ainda que nosso tema tenha sido a atividade prática de psicólogos e estudantes, a atividade teórica institucionalizada também seria afetada pela ditadura, basta lembrarmos de que uma das discussões emblemáticas se deu entre cartas trocadas entre Aroldo Rodrigues e Serge Moscovici. O primeiro, perguntado se não teria como intervir naquele determinado contexto, daria como resposta: “Nós temos como princípio separar a política da ciência” (CFP, 2013, p. 306). Aroldo Rodrigues foi a personificação de como parte da Psicologia tratou o tema.
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ao escurecer-se vai encobrindo a última luminosidade da existência terrena” (Arquidiocese de São Paulo, 1985, p. 12). Contra o terrorismo de Estado em
uma sociedade de classes, a lembrança retomada significa a instrumentalização para o desenvolvimento das novas gerações.
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Juberto Antonio Massud de Souza Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e doutorando em Psicologia Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. E-mail:
[email protected] Recebido 30/06/2017 Reformulação 24/09/2017 Aprovado 01/10/2017 Received 06/30/2017 Reformulated 09/24/2017 Approved 10/01/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 24/09/2017 Aceptado 01/10/2017
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Como citar: Souza, J. A. M., & Jacó-Vilela, A. M. (2017). Luta armada na Psicologia: prática de classe contra o terrorismo de estado. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 44-56. https://doi.org/ 10.1590/1982-3703030002017 How to cite: Souza, J. A. M., & Jacó-Vilela, A. M. (2017). Armed struggle in Psychology: class practice against state terrorism. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 44-56. https://doi.org/ 10.1590/1982-3703030002017 Cómo citar: Souza, J. A. M., & Jacó-Vilela, A. M. (2017). Luta armada en la Psicología: práctica de clase contra el terrorismo de estado. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 44-56. https://doi.org/ 10.1590/1982-3703030002017 56
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A Psicologia Brasileira nos Ciclos Democrático-Nacional e Democrático-Popular Filipe Milagres Boechat Universidade Federal de Goiás, GO, Brasil.
Resumo: Partindo do pressuposto da vinculação da Psicologia a determinados compromissos de classe, buscaremos evidenciar como sua história articula-se à história da formação social brasileira e às principais ideologias de dois de seus ciclos históricos: o ciclo democráticonacional e o ciclo democrático-popular. Como método, lançaremos mão dos pressupostos, da lógica e dos conceitos provenientes da tradição marxista, especialmente aqueles oriundos das reflexões do marxista sardo Antonio Gramsci. Procuraremos, ainda, apontar de que maneira a Psicologia nascida durante o ciclo democrático-popular, em que pese a contribuição dada à reflexão sobre o caráter ideológico e elitista da Psicologia brasileira, não necessariamente deixou de cumprir, ela também, determinado papel ideológico, seja ao retirar do horizonte de suas análises o núcleo central da teoria social marxista, seja ao promover algumas práticas que pouco contribuem para fornecer às classes subalternas os elementos de que necessitam para potencializar suas lutas radicalmente emancipatórias. Com esse objetivo, esperamos contribuir com alguns apontamentos para a crítica da ideologia do compromisso social da qual esta Psicologia é intimamente solidária, da mesma forma como a Psicologia do ciclo democráticonacional foi intimamente solidária à ideologia nacional-desenvolvimentista. Palavras-chave: Psicologia crítica, História da Psicologia, Ciclo Democrático-Nacional, Ciclo Democrático-Popular, Marxismo.
Brazilian Psychology during the Democratic and National Cycle and the Democratic and Popular Cycle Abstract: Based on the assumption of the relation between Psychology and certain class commitments, we will seek to demonstrate how its history is connected with the history of Brazilian society and with the main ideologies of two of its historical cycles: the Democratic and National cycle and the Democratic and Popular cycle. As a method, we will adopt the premises, logic and concepts deriving from Marxist tradition, especially those emanating from the works of the Sardinian Marxist Antonio Gramsci. At the same time, we will seek to point out how the Psychology born during the Democratic and Popular cycle, notwithstanding its contribution to the reflection on the ideological and elitist character of Brazilian Psychology, not necessarily stopped playing a certain ideological role too, either by wiping the core of the Marxist social theory out of its analysis, or by promoting practices that contribute little to enhance the struggles of the subordinated classes for its radical emancipation. With this purpose, we expect to contribute with some observations to the critique of the ideology of the social compromise, to which this Psychology is closely related, in the same way that Psychology was closely related to the national-developmentalist ideology during the Democratic and National cycle. Keywords: Critical Psychology, History of Psychology, National and Democratic Cycle, Democratic and Popular Cycle, Marxism.
Disponível em www.scielo.br/p
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La Psicología Brasileña en el Ciclo DemocráticoNacional y en el Ciclo Democrático-Popular Resumen: Partiendo del presupuesto de la vinculación de la psicología a determinados compromisos de clase, buscaremos evidenciar cómo su historia se articula a la historia de la formación social brasileña y a las principales ideologías de sus ciclos históricos: el ciclo democrático-nacional y el ciclo democrático-popular. Como método, recorreremos a los presupuestos, la lógica y los conceptos provenientes de la tradición marxista, especialmente aquellos provenientes de las reflexiones del marxista sardo Antonio Gramsci. Buscaremos, además, señalar cómo la psicología nacida durante el ciclo democrático-popular, no obstante la contribución que dio a la reflexión sobre el carácter ideológico y elitista de la psicología brasileña, no necesariamente dejó de cumplir, también, determinado papel ideológico, al retirar del horizonte de sus análisis el núcleo central de la teoría social marxista, o al promover algunas prácticas que poco contribuyen a proporcionar a las clases subalternas los elementos que necesitan para potenciar sus luchas radicalmente emancipatorias. Con ese objetivo, esperamos contribuir con algunas observaciones a la crítica de la ideología del compromiso social de la cual esta psicología es íntimamente solidaria, de la misma forma que la psicología del ciclo democrático-nacional fue íntimamente solidaria a la ideología nacional-desarrollista. Palabras claves: Psicología Crítica, Historia de la Psicología, Ciclo Democrático-Nacional, Ciclo Democrático-Popular, Marxismo.
Introdução
Neste mesmo periódico, há exatos cinco anos, por ocasião da comemoração dos 50 anos da regulamentação da profissão de psicólogo no Brasil, Antunes (2012) mostrou-nos algumas das contradições presentes no processo de desenvolvimento da Psicologia brasileira. Remetendo-nos às suas condições de produção e apontando suas principais afiliações ideológicas, a autora evidenciou a presença de ideias e práticas psicológicas divergentes em relação às ideias e práticas dominantes em cada um dos períodos considerados (dentre as quais se destacavam aquelas de Manoel Bomfim, Ulysses Pernambucano e Helena Antipoff ). Partindo da produção dos saberes psicológicos, no período colonial, e chegando ao processo de regulamentação da profissão, na década de 1960, ando pelo processo de autonomização da Psicologia, entre os séculos XIX e XX, e de sua consolidação institucional, a partir da década de 1930, Antunes também desvelou alguns dos vínculos mais ou menos imediatos que unem a história da Psicologia brasileira ao quadro mais geral da história de nossa formação social. O recurso de Antunes às condições histórico-sociais de produção das ideias e práticas psicológicas, aos 58
projetos político-ideológicos e seus respectivos compromissos de classe, partiam da convicção de que: No caso da Psicologia brasileira, faz-se necessário compreendê-la como construção histórica e social, síntese de múltiplas determinações, orientada por determinadas concepções de homem e de sociedade e comprometida com posições de classe e, portanto, contraditória, sendo que o embate entre esses elementos que se opõem produz movimento e possibilita superação (Antunes, 2012, p. 46). Mais recentemente, realizando apontamentos sobre a história e o desenvolvimento da Psicologia crítica no Brasil, Lacerda Junior (2013) fez, por sua vez, a seguinte observação: Não é exagero dizer que a Psicologia emergiu associada às classes dominantes da formação social brasileira. Da mesma forma como a Psicologia nos EUA no início do século XX, na busca por legitimidade social, se associou aos setores dominantes da sociedade norte-americana, a Psicologia brasileira soube rapidamente se posicionar diante das lutas de classes (Lacerda Junior, 2013, p. 219).
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Partindo do pressuposto dessa vinculação da Psicologia a determinadas posições de classe, indicada tanto por Antunes (2012) como por Lacerda Junior (2013), buscamos evidenciar, dentro dos limites deste ensaio, de que maneira a história da Psicologia brasileira articula-se à história da formação social brasileira. Particularmente, tentamos mostrar de que maneira a história da Psicologia brasileira articula-se à história política brasileira e, consequentemente, às ideologias hegemônicas de dois de seus últimos ciclos históricos: o ciclo democrático-nacional e o ciclo democrático-popular. Procuramos, ainda, apontar de que maneira uma das variantes de Psicologia crítica nascida no ciclo democrático-popular, em que pese a contribuição dada à reflexão sobre o caráter ideológico e elitista da Psicologia brasileira, não deixou de cumprir determinado papel ideológico ao retirar do horizonte de suas análises o núcleo central da teoria social marxista (Carvalho, 2014) e ao promover algumas práticas que pouco contribuem para fornecer às classes subalternas os elementos de que necessitam para potencializar suas lutas radicalmente emancipatórias. Esperamos, assim, contribuir com alguns apontamentos para a crítica da ideologia do compromisso social (Silva, 2015, 2017), da qual esta forma particular de Psicologia crítica é intimamente solidária, da mesma maneira como a Psicologia nascida no ciclo democrático-nacional foi intimamente solidária à ideologia nacional-desenvolvimentista (Paiva, 1980; Toledo, 1978). No que concerne, particularmente, às relações entre a história da Psicologia e o ciclo democrático-popular, cumpre assinalar que os apontamentos e as indicações a que chegamos resultam de pesquisa ainda em curso que lança mão, de maneira exploratória, de materiais heterogêneos, como a produção bibliográfica (livros, teses, dissertações, artigos, comunicações etc.) diretamente vinculada aos autores dessa nova forma de Psicologia crítica; materiais textuais e audiovisuais produzidos por associações e instituições do campo psicológico, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Conselho Regional
de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), o Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PEPG-PSO/ PUC-SP), a Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso); entrevistas com personagens que participaram da criação desses espaços, entre outros. O método que empregamos para a análise, interpretação e explicação das relações entre a história da Psicologia brasileira e os referidos ciclos históricos fundamentou-se nos pressupostos, na lógica e nos conceitos provenientes da tradição marxista (Netto, 2006, 2011). Como nos interessa deslindar os nexos entre estratégias de dominação de classe e seus correspondentes agentes sociais em determinados ciclos históricos, recorremos a alguns dos conceitos desenvolvidos por Gramsci (1891–1937). Isso porque a participação orgânica de intelectuais na conformação dos blocos históricos, analisada por Gramsci (2000), parece-nos peça-chave para compreendermos como a Psicologia tem participado das estratégias de dominação postas em marcha na história da formação social brasileira, independentemente da consciência e das eventuais boas intenções de seus principais agentes1. Dito isso, resta-nos dizer, nesta breve introdução, que as análises, interpretações e explicações a que chegamos não pretendem ser exaustivas ou definitivas, mas apenas servir à tarefa de desvelamento das contradições imanentes à história da Psicologia brasileira, para que possamos contribuir com a tarefa, necessariamente coletiva, de compreensão da história social e política “como processos constitutivos de nosso objeto de estudo, a Psicologia no Brasil, com a certeza de que muitos estudos e pesquisas são necessários para que essa compreensão se aprofunde e se amplie” (Antunes, 2012, p. 63).
Desenvolvimento
Uma vez que o objetivo geral deste artigo consiste em apreender algumas das relações entre a história da Psicologia brasileira e os ciclos democrático-nacio-
1 Gramsci oferece uma compreensão mais nuançada das articulações entre as superestruturas e a estrutura social, dos nexos entre ideologias e a conformação de “blocos históricos”. Não ignoramos, como salientou Portelli, que “Esse súbito interesse pelo autor dos Quaderni del Carcere e redator de Ordine Nuovo não está [...] isento de segundas intenções e frequentemente se presta a justificar tal ou qual corrente marxista, ou mesmo a seguir um ‘novo’ teórico que bruscamente vira ‘moda’, depois de trinta anos de esquecimento” (1977, p. 13). Também não desconhecemos, conforme observou Florestan Fernandes, que “O que se está fazendo com as ideias de Gramsci exige de nós todos um repúdio frontal: as universidades norte-americanas e europeias tentam convertê-lo em um representante amorfo do ‘socialismo democrático’” (in Ammann, 1980, p. 12-13). Mas achamos que seria grave erro descartarmos suas contribuições ao estudo das formas contemporâneas de dominação burguesa, sobretudo quando consideramos sua capacidade de articulá-las a uma opção política radical pela emancipação humana das classes subalternas.
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nal e democrático-popular, convém definirmos o que entendemos por cada um desses ciclos históricos. Primeiramente, apresentaremos aquilo que entendemos por ciclo democrático-nacional, indicando alguns aparelhos privados de hegemonia nascidos durante este ciclo que influíram decisivamente sobre a história da Psicologia brasileira. Futuramente, o exame desses aparelhos poderá contribuir para uma compreensão histórico-concreta da forma como se materializou a chamada ideologia do desenvolvimento nacional. Em seguida, aremos à apresentação do que entendemos ser o ciclo democrático-popular, seus principais aparelhos privados de hegemonia e o movimento de inflexão conservadora que descreveram, acompanhando o recuo da consciência da classe trabalhadora no descenso do movimento operário, sindical e popular. Criados pela classe trabalhadora ou por iniciativa de intelectuais ligados aos anseios e às lutas das classes subalternas, alguns desses aparelhos sofreram claro processo de transformismo (Gramsci, 2011), contribuindo para o aivamento das classes subalternas e a consolidação do ciclo democrático-popular a partir do desenvolvimento e difusão da ideologia do compromisso social. Como procuramos indicar, a história da formação desses aparelhos cruza-se com a história da Psicologia brasileira, o que nos sugere a necessidade de uma história social da Psicologia que considere a totalidade da vida social e as idiossincrasias da formação social brasileira na riqueza de suas mediações, como forma de superar tanto o idealismo, que caracteriza boa parte de sua historiografia, quanto o materialismo mecânico e abstrato.
O ciclo democrático-nacional
Por ciclo democrático-nacional, compreendemos o período da história brasileira situado entre dois golpes de Estado: o golpe de 1930, que conduziu Getúlio Vargas ao poder, e o golpe empresarial-militar de 1964, que pôs termo às mobilizações populares em torno das Reformas de Base. Em que pese a natureza política desses dois marcos, o que caracteriza fundamentalmente este ciclo é o intenso e acelerado processo econômico de industrialização e urbanização da sociedade brasileira (consequência, em grande medida, dos impactos em nossa economia da crise mundial de 1929) e sua contrapartida no plano da luta de classes: o ascenso e a organização político-revolucionária da classe trabalhadora. 60
O conjunto das transformações desse período refletiu-se no pensamento social brasileiro sob a forma de uma ideologia particular: a ideologia do desenvolvimento nacional, também conhecida como nacional-desenvolvimentismo ou, muito simplesmente, desenvolvimentismo (Iasi, 2012a; Paiva, 1980; Toledo, 1978). De acordo a ideologia do desenvolvimento nacional, a chave para a superação do atraso econômico, político, social e cultural brasileiros encontrar-se-ia no pleno desenvolvimento de relações capitalistas, desenvolvimento este que se encontraria entravado pelo latifúndio e as oligarquias agrárias, de um lado, e pelos interesses e pela atuação das potências imperialistas, por outro (Iasi, 2012a). A ideologia do desenvolvimento nacional, que orientou a atuação política de organizações à direita e à esquerda, foi determinante, como veremos, para a forma assumida pela Psicologia brasileira no período.
O ciclo democrático-nacional e seus aparelhos
Como dissemos, o ciclo democrático-nacional demandou, por parte das classes dominantes, reordenamentos institucionais e produções ideológicas – sobretudo a partir de 1950, como resultado do aprofundamento das contradições imanentes ao processo de industrialização capitalista, das quais o surgimento das Ligas Camponesas dava testemunho (Ammann, 1980). A história do Brasil desenvolvimentista foi, nesse sentido, a história da indução, por parte do Estado, do processo de modernização capitalista e do desenvolvimento de estratégias visando sua legitimação social, ampliando de forma segmentada os direitos de cidadania e impedindo a organização da classe trabalhadora (Neves, s.d., p. 54, tradução livre). A implementação dessas estratégias de legitimação social deu-se, em parte, através da criação de algumas instituições de âmbito nacional, algumas das quais por iniciativa do próprio Estado brasileiro. A dominação burguesa exigia a produção de aparelhos privados de hegemonia com o papel de consolidação do bloco histórico nacional-desenvolvimentista. Tratava-se, portanto, daquele movimento em que a sociedade política se encarrega da formação de seus “funcionários” (Gramsci, 2011, p. 207). O Estado brasileiro buscava legitimar-se formando não apenas seus próprios quadros, mas avançando ideologicamente sobre o conjunto da
Boechat, F.. M. (2017). Psicologia Brasileira nos Ciclos Históricos.
sociedade civil2. Historicamente autocrático e particularista, apresentava-se sob novas formas, como garante da soberania popular e representante legítimo da vontade geral. Em termos gramscianos, a coerção buscava revestir-se de consenso. Entre as instituições criadas no curso do ciclo democrático-nacional, algumas determinaram sobremaneira o curso da história da Psicologia brasileira. Dentre essas instituições, destacamos o Instituto Nacional de Pedagogia, o Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP) e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Criado em 1937, o Instituto Nacional de Pedagogia transformou-se em Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) pelo Decreto-Lei n° 580, de 30 de julho de (Brasil, 1938), tendo Lourenço Filho como seu primeiro diretor-geral. Durante o ciclo democrático-nacional, ao Instituto competia, entre outras funções, o desenvolvimento da Psicologia aplicada à educação e à orientação e seleção profissionais, tendo papel destacado na difusão dos princípios da pedagogia escolanovista. O Dicionário Histórico de Instituições de Psicologia no Brasil (Jacó-Vilela, 2011) menciona o Instituto como continuação do Pedagogium, instituição que abrigou o primeiro laboratório de Psicologia experimental do país (Antunes, 2017, p. 68 e ss.). A importância do INEP para o desenvolvimento da Psicologia brasileira não deve ser desprezada, sobretudo se consideramos o peso conferido à ciência psicológica na definição das diretrizes pedagógicas deste período da história da educação brasileira (Antunes, 2017). Sua importância para a Psicologia não se limitou ao campo da educação. Segundo nos mostrou Antunes, “a Psicologia aplicada à educação e a psicologia aplicada às relações de trabalho constituem-se ambas em campos diversos, porém voltados, pelo menos, em última instância, para objetivos comuns, num mesmo contexto histórico” (2017, p. 110). Esses “objetivos comuns” consistiam na formação da força de trabalho adequada às novas condições de produção da vida social, além da normalização, da higie-
nização, moralização e disciplinarização sociais, formação esta operada por profissionais liberais, membros da pequena-burguesia sob direção das classes dominantes. O ISOP, por sua vez, criado em 1947 pela Fundação Getulio Vargas (FGV, criada em 1944), teve papel decisivo no desenvolvimento da Psicologia brasileira do período. Segundo Antunes (2012, p. 58), o ISOP “foi base para o desenvolvimento de pesquisas, de diversas modalidades de intervenção psicológica e de formação de profissionais especialistas nas questões psicológicas relacionadas à organização do trabalho”. Na primeira edição do periódico Arquivos Brasileiros de Psicotécnica, órgão de divulgação do instituto, lia-se que sua criação objetivava “contribuir para o ajustamento entre o trabalhador e o trabalho, mediante o estudo científico das aptidões e vocações do primeiro e dos requisitos psicofisiológicos do segundo” (Fundação Getúlio Vargas, 1949, p. 7). Assentava-se sobre a convicção de que “a preponderância do fator humano entre as questões ligadas à racionalização do trabalho constitui, hoje em dia, ponto de aceitação pacífica” (FGV, 1949, p. 7-16). Na apresentação do periódico, assim se expressara o então presidente da FGV, Luiz Simões Lopes: A publicação destes Arquivos visa conclamar os que estudam o assunto do ponto de vista científico, os profissionais da psicotécnica, os nossos es, empregadores, nas atividades públicas ou privadas, “consumidores” do fator humano, que tanto necessitam de mão de obra adequada, encetarmos, juntos, uma forte campanha de aumento da produção nacional, de maior rendimento, de maior felicidade no trabalho, através da Seleção e da Orientação Profissional (FGV, 1949, p. 2). O ISEB foi criado em 1955. Ao Instituto coube a formulação da ideologia do desenvolvimento nacional (Toledo, 1978). Segundo a ideologia nacional-desenvolvimentista isebiana3, as formações sociais perifé-
2 Como observou Gramsci, “As classes dominantes precedentes eram essencialmente conservadoras, no sentido de que não tendiam a assimilar organicamente as outras classes, ou seja, a ampliar ‘técnica’ e ideologicamente sua esfera de classe: a concepção de casta fechada” (Gramsci, 2011, p. 279). Com o desenvolvimento do capitalismo, no entanto, “A classe burguesa põe-se a si mesma como um organismo em contínuo movimento, capaz de absorver toda a sociedade, assimilando-a assim a seu nível cultural e econômico; toda a função do Estado é transformada: o Estado torna-se ‘educador” (Gramsci, 2011, p. 279). 3 Se é verdade que o nacional-desenvolvimentismo é gestado ao longo de toda a Era Vargas, seu nascimento data da década de 1950, impulsionado, no plano internacional, pelas vicissitudes do pós-guerra e, no plano nacional, pelo processo acelerado de industrialização. Esse processo de desenvolvimento das relações capitalistas nos países da periferia do sistema mundial visava não apenas frear o avanço mundial do socialismo, como baratear o valor da força de trabalho no centro do sistema e a ampliar suas reservas de “acumulação primitiva” (Oliveira, 2013, p. 109). Caberia lembrar que datam desse período a Conferência de Bretton Woods, em 1944, que resultou na criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial (BM), da Organização das Nações Unidas (ONU), bem como sua Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), instituições que desempenharam papel crucial durante a “guerra fria”, sobretudo no que se refere à política dos EUA para a América Latina.
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ricas estariam marcadas por conflitos entre setores “tradicionais”, “atrasados”, comprometidos com as estruturas de dominação “coloniais ou semicoloniais”, e setores “progressistas” ou “modernos”, empenhados na modernização, industrialização e emancipação nacionais (Toledo, 1978). Vejamos, na seção seguinte, de que maneira a ideologia do desenvolvimento nacional foi determinante para a Psicologia brasileira deste período, delimitando seus objetos, definindo suas prioridades e orientando suas ações.
A Psicologia brasileira no ciclo democrático-nacional
Como nos mostrou Antunes, a Psicologia brasileira esteve empenhada, desde a chegada da corte portuguesa, na higienização, moralização e normalização da sociedade brasileira. A partir de 1930, a Psicologia inicia seu processo de institucionalização. Daí em diante, ela estará engajada na produção de “um novo homem, adequado aos novos tempos” (Antunes, 2012, p. 53), auxiliando as classes dominantes em seus esforços de diferenciação e disciplinarização da força de trabalho, segundo uma “concepção política de ‘colaboração de classe’, eliminando as contradições e conflitos presentes na relação entre capital e trabalho” (Antunes, 2017, p. 85). O psicólogo formado nos quadros deste ciclo histórico era considerado como agente de modernização e desenvolvimento nacional. “Racionalizando” as relações de trabalho, educação e assistência; empregando técnicas e procedimentos cientificamente qualificados, o psicólogo contribuiria não apenas para o progresso da Nação, como para a desalienação do povo brasileiro (Toledo, 1978). A Psicologia brasileira, portanto, subordinava-se à ideologia do desenvolvimento nacional, que influenciava setores tanto à esquerda quanto à direita do espectro político. Essa subordinação não se limitou aos quadros do ciclo democrático-nacional. Referindo-se ao momento da regulamentação da profissão, em 1962, e às décadas que se seguiram ao golpe de 1964, Scarparo e Guareschi (2007, p. 100) observaram que “as práticas psicológicas se consolidaram sobre a influência das ideologias desenvolvimentistas, pautadas pela repressão política e pelo patrulhamento ideológico que caracterizaram o Brasil ao longo de quase três décadas de ditadura explícita”. 62
Entretanto, a partir do final da década de 1960, como parte das agitações que sacudiram o mundo e como resposta à ofensiva do Estado ditatorial sobre as instituições universitárias, mas sobretudo em consequência de mudanças do mercado de trabalho brasileiro, da abertura de novos campos de atuação, e da afluência de novos referenciais teórico-metodológicos, a Psicologia brasileira viu nascer uma forma alternativa (Yamamoto, 1987, 2003, 2007). Como veremos adiante, essa Psicologia correspondia a um movimento mais geral no seio da sociedade brasileira. Expressão de um ciclo histórico que estava por nascer, ela assumiu a feição das demais expressões do ciclo, compartilhando das linhas mais gerais de seu desenvolvimento.
O ciclo democrático-popular
Consideramos o ciclo democrático-popular, grosso modo, como o período da história da brasileira aberto no final da década de 1970 com o ascenso das lutas operárias, sindicais e populares contra as políticas de arrocho salarial, o aumento do custo de vida e o rebaixamento real dos salários reais pela inflação, lutas que ganharam destaque com as greves do ABC paulista. Data do início deste ciclo o surgimento do assim chamado novo sindicalismo, com seu “novo modo de condução das lutas”; das oposições sindicais, “organizações sindicais extraoficiais, fundadas nas comissões de fábricas”; dos movimentos sociais contra as restrições impostas pela forma autocrática assumida pelo Estado burguês desde o golpe de 1964, movimentos esses apoiados, em larga medida, por setores progressistas da Igreja Católica (Meneguello, 1989; Rainho, & Bargas, 1983; Tumolo, 2002). No plano internacional, vale lembrar que a década de 1970 assistiu ao golpe no Chile, início do primeiro experimento neoliberal. A crise de acumulação impôs um conjunto de medidas que redundaram na reestruturação dos processos produtivos e das relações de trabalho em escala planetária (Tumolo, 2002). No Brasil, a ofensiva do Capital sobre o Trabalho não tardou em encontrar novas formas de expressão. Como resposta a essa ofensiva, na década de 1980, temos a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A campanha pelas eleições diretas, que se encerra com a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988, marca o desfecho do grande ascenso de massas do período.
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A queda do muro de Berlim, em 1989, a dissolução da URSS e o desmonte do bloco socialista, na década de 1990, sugeriram o triunfo definitivo do capitalismo, dando lugar às ideologias sobre o fim da história, da centralidade do trabalho, da luta de classes e, por fim, da própria ideologia. Este ciclo histórico, que tem mostrado haver alcançado seu limite (Demier, 2016; Iasi, 2017), caracterizou-se por haver desenvolvido, ele também, uma ideologia, assim como aparelhos voltados à sua elaboração e difusão. A essa ideologia, que apresenta traços de ruptura e de continuidade com a ideologia nacional-desenvolvimentista (Iasi, 2012b; Martins, Prado, Figueiredo, Motta, & Souza, 2014), tem-se dado o nome de ideologia do compromisso social (Silva, 2015, 2017). Em torno da ideologia do compromisso social, cuja marca principal consiste em condicionar a emancipação humana à radicalização da democracia participativa e, progressivamente, em limitar a ideia de emancipação aos quadros da emancipação política (Lacerda Junior, 2015; Marx, 2010), orbitam os conceitos de cidadania, democracia, inclusão social, justiça social, participação social, bem como o clamor pela defesa e ampliação de direitos através da organização e fortalecimento da sociedade civil e da conquista de políticas públicas e sociais. Conforme Martins et al. (2014, p. 360), esse ciclo, a princípio, pauta-se no processo de alargamento da democracia, compreendido como a ampliação progressiva de um conjunto de direitos e de participação política, através da pressão dos movimentos sociais e da ocupação dos espaços no Estado, que se chocariam contra os interesses de nossa classe dominante. É desse choque que emergiria a necessidade do socialismo. Ao longo do desenvolvimento deste ciclo, em parte devido às derrotas do movimento operário e sindical brasileiro, em parte pela derrota do movimento comunista internacional, o horizonte socialista limitou-se cada vez mais à natureza de simples ideal. Não nos ocuparemos aqui desse movimento de rebaixamento da perspectiva revolucionária que esteve em sua origem, já examinado por Iasi (2012b), Martins et al. (2014), entre outros (Demier, 2016; Figueiredo, 2014). Limitamo-nos à breve apresentação de algumas das objetivações deste ciclo, algumas das quais
assumiram a forma de aparelhos privados de hegemonia da classe trabalhadora, responsáveis, como tais, por contribuir para a formação e atuação de seus intelectuais orgânicos na luta pela conquista da hegemonia, isto é, pela direção intelectual e moral de seus aliados no seio das demais classes subalternas.
O ciclo democrático-popular e seus aparelhos
Um dos aparelhos privados de hegemonia mais significativos desse novo ciclo é o PT. Nascido das lutas do assim chamado “novo sindicalismo”, o partido soube aglutinar em torno de si todo um conjunto de forças sociais. Enquanto polo aglutinador, as bandeiras empunhadas pelo “novo sindicalismo” foram decisivas para a conformação do grande bloco de forças que pôs em xeque o regime ditatorial, inaugurando o ciclo democrático-popular. Analisando os principais documentos oficiais do partido, Iasi (2012b) mostrou o movimento que redundou na acomodação do PT aos limites da ordem burguesa e, segundo Figueiredo (2014, p. 64), à retomada de velhos “fetiches desenvolvimentistas e nacionais”. Como sintetizou Musse, Organizado a partir das lutas concretas, sindicais, como um movimento político de afirmação da independência e autonomia da classe operária, o PT apresenta-se, inicialmente, como representante da “classe trabalhadora”; depois, do conjunto dos “trabalhadores”; em seguida do “povo”; e, por fim, dos “cidadãos”. A agem da “classe” à “nação” atesta a prevalência da estratégia do “gradualismo reformista” e a subordinação à tática eleitoral, que redefiniram o horizonte social, político e econômico do projeto partidário (apud Iasi, 2012b, p. 10). A CUT é outra das expressões significativas do ciclo democrático-popular. Criada em 1983, ela deu forma institucional ao “novo sindicalismo”, servindo de braço sindical do PT desde então. Tumolo (2002) desvelou os momentos do movimento que levou a formação sindical da maior central sindical do país a transformar-se numa mescla de formação instrumental e qualificação profissional. Esse movimento correspondia à reorientação estratégica da Central, como resposta política às transformações do mundo do tra63
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balho e das derrotas do movimento sindical. A CUT acabaria por sucumbir às exigências imediatas postas pela sociabilidade do capital, abandonando paulatinamente uma perspectiva classista e anticapitalista, substituindo-a pela ideia do “sindicato cidadão”. O importante agora é destacar que uma das variantes de Psicologia crítica nascida no ciclo democrático-popular desempenhou papel de peso na instrumentalização ideológica e na consolidação deste ciclo, acompanhando mais ou menos sincronicamente o movimento de inflexão conservadora realizado pelas demais objetivações a que fizemos referência. Referimo-nos à Psicologia crítica nascida nas dependências da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), aquela que veio a se desenvolver, fundamentalmente, em torno dos trabalhos e da atividade político-pedagógica de Silvia Lane (1933–2006) e que Carvalho (2014) analisou, recentemente, sob a rubrica da “Escola de São Paulo de Psicologia Social”.
A Psicologia no ciclo democrático popular Do ciclo democrático-popular à “Psicologia democrática e popular” A participação ativa da PUC-SP no processo de formação do PT e, consequentemente, na consolidação do ciclo democrático-popular, é fato notório. Conforme observou Meneguello, Fundamentalmente em São Paulo, a maioria dos intelectuais envolvidos nas discussões partidárias eram elementos ligados ao CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), CEDEC, (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea), UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas - SP), USP (Universidade de São Paulo) e PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) (Meneguello, 1989, p. 61). No que diz respeito à participação da Psicologia da PUC-SP, esta foi mediada, em grande parte, pelo PEPG-PSO. Criado no início da década de 1970, o PEPG-PSO aglutinou professores de Psicologia e psicólogos avessos à Psicologia “tradicional”. Segundo Bock, que fora orientanda de Lane, ex-diretora da Faculdade de Psicologia da PUC-SP, ex-presidente do Conselho Federal de Psicologia por três gestões e atual presidente do Instituto Silvia Lane – Psicologia 64
e Compromisso Social, essa nova forma de Psicologia estaria marcada pelo rechaço à Psicologia “tradicional”, considerada elitista, individualista e positivista (Bock, 1999). Essa nova forma de Psicologia veio a ser sistematizada com a criação do PEPG-PSO e, posteriormente, da Abrapso. A criação desses dois espaços deu-se em contexto de franco acirramento da luta de classes, em que “a luta pelo o aos ganhos da produtividade por parte das classes menos privilegiadas transforma-se necessariamente em contestação ao regime, e a luta pela manutenção da perspectiva da acumulação transforma-se necessariamente em repressão” (Oliveira, 2013). O PEPG-PSO iniciou suas atividades num clima de intensa fermentação social, às vésperas da crise econômica que acabaria por repercutir sobre os rumos do regime militar. O programa dava prosseguimento à experiência inovadora realizada, anos antes, no curso de Psicologia, sob forte influência de Silvia Lane, com a criação de núcleos que procuravam romper com a rígida separação entre as disciplinas e propunham a articulação entre teoria e prática. (Carvalho, 2014) Procurava-se enfrentar a contrarreforma universitária de 1968, resultado do acordo MEC-USAID, que buscava, entre outros objetivos, despolitizar o ensino brasileiro e desarmar a resistência estudantil (Antunes, 2012; Bock, 1999; Carvalho, 2014; Lacerda Junior, 2013). A Abrapso, por sua vez, foi criada em 1980, como parte dos esforços de ampliação dessa perspectiva “progressista” em Psicologia. De acordo com os apontamentos de Molón sobre o que veio a chamar de “Psicologia abrapsiana”, “A criação da Abrapso é um marco decisivo na orientação da Psicologia Social brasileira em direção à problemática da nossa realidade sócio-econômico-político-cultural (sic)” (2001, p. 53). Mas essa nova forma de Psicologia brasileira, desenvolvida nas dependências do PEPG-PSO e, posteriormente, também nos encontros regionais e nacionais da Abrapso, sofreu profunda inflexão, de forma análoga ao que se ou com o PT e a CUT. Um dos traços mais marcantes dessa inflexão foi, sem dúvida, a ampliação de seu referencial teórico-metodológico. Assim descreveu Carvalho (2014) essa inflexão: Tendo substituído o paradigma do trabalho pelo mundo da vida, acatado a autonomização da esfera das objetivações sociais, aberto mão da teoria do valor-trabalho para compreender a
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sociedade a partir das esferas da comunicação (inversão idealista), das relações intersubjetivas e dos valores, anunciado o fim das lutas de classe ou o seu marasmo e abandonado qualquer referência à transformação revolucionária da sociedade por um socialismo ético (ou revolução ética), a Escola de São Paulo4 não figura como uma alternativa marxista de psicologia social (Carvalho, 2014, p. 260). Movimento semelhante de inflexão ocorreu no conjunto dos trabalhos apresentados nos encontros nacionais e regionais da Abrapso, sobretudo a partir da década de 1990. Segundo Molón, A década de 1990 se caracteriza fundamentalmente pela diversidade de temas e pela pluralidade e diferenciação de enfoques teórico-metodológicos. Dentro disso, ocorre a proliferação dos encontros nacionais e regionais, a intensificação das publicações, as quais oportunizam o surgimento de novas veredas e novos horizontes, e, simultaneamente, constituem novos modos e espaços de atuação e pesquisa em Psicologia Social, norteados por pressupostos epistemológicos, ontológicos e metodológicos semelhantes, orientados pela preocupação ética, ou seja, comprometidos social e politicamente com as transformações da sociedade e com uma vida mais digna para a maioria da população brasileira (Molón, 2001, p. 61). Essa inflexão acompanhava o processo de redemocratização da sociedade brasileira. Como outras objetivações do ciclo, a Psicologia desenvolvida no interior do PEPG-PSO e da Abrapso sofreu um processo de transformação que se caracterizou por aquilo Lacerda Junior (2015) diagnosticou como uma hegemonia da emancipação política em detrimento da perspectiva marxista da emancipação humana. Partindo de uma perspectiva classista e anticapitalista, essa forma nova de Psicologia abandonou progressivamente o núcleo da teoria social marxiana. Contrapondo-se à Psicologia “tradicional”, elitista,
individualista e positivista, a Psicologia “progressista” desenvolvida nas dependências do PEPG-PSO e na Abrapso assumiu progressivamente um “historicismo desenfreado” (Toledo, 1978, p. 56-57), deixando ao segundo plano de suas preocupações a análise concreta da formação social brasileira. Produzir um conhecimento que servisse “para o Brasil, ou seja, para todos os brasileiros” (Bock, 2010, p. 253), prescindindo da referência à luta entre as classes sociais fundamentais e de uma clara posição de classe; desenvolver a democracia participativa e a consciência cidadã, opondo os interesses das “elites” aos interesses da “maioria da população”, aria a constituir seu horizonte político-estratégico. Da Psicologia democrática e popular ao aivamento Mas, sendo expressão do ciclo democrático-popular, seria natural que essa Psicologia expressasse suas determinações mais gerais. Acontece que essa relação não foi uma relação unilateral. Conforme procuraremos indicar, a Psicologia formulada no seio do PEPG-PSO, desenvolvida e difundida a partir da Abrapso, contribuiu ativamente para o desenvolvimento do ciclo histórico do qual ela é uma das expressões. Sem desconsiderarmos divergências e dissidências no interior deste processo, nossa pesquisa tem indicado que a Psicologia nascida e desenvolvida no interior desses novos aparelhos, forjados por aliados da classe trabalhadora, cumpriu papel ativo no movimento de inflexão e capitulação tanto do PT quanto da CUT, contribuindo para a consolidação do ciclo democrático-popular e, consequentemente, para o fortalecimento de uma forma sutil de dominação burguesa no Brasil. Tomemos, por exemplo, a entrevista com Pedro Pontual para o jornal do Conselho Regional de Psicologia de SP (Pontual, 2001). Nela, Pontual, que viria a se tornar diretor do Departamento de Participação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República do governo Dilma Rousseff, e que, àquela altura, era apresentado como “Psicólogo e educador, discípulo de Paulo Freire e atual secretário de Participação e Cidadania da Prefeitura de Santo André, SP”, com “uma trajetória extensa e marcada pelo compromisso social”, depois de confessar sua dívida intelectual para
Não ignoramos a diferença que separa a Psicologia desenvolvida originalmente por Lane, a “Psicologia sócio-histórica”, de proveniência soviética, os trabalhos da “Escola de São Paulo de Psicologia Social” e os trabalhos de autores que, futuramente, nelas buscarão uma referência e legitimidade. Suas continuidades e descontinuidades e a diferença entre suas intencionalidades políticas, algumas das quais foram objeto de análise de Carvalho (2014), serão analisadas noutra ocasião.
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com a Psicologia da PUC-SP, responde o seguinte, ao ser perguntado sobre o que é fazer política: Fazer política hoje é, para mim, colocar o instrumental profissional que construí, como psicólogo e educador, a serviço do “empoderamento” das pessoas, como indivíduos e como coletividade. Para quê? Primeiro para ampliar, aprofundar e alargar os estreitos limites de nossa democracia. Um país não pode se contentar com o direito de votar nos seus representantes. Isso é importante, uma conquista fundamental, mas democracia é muito mais: significa cidadãos participando das decisões que afetam seu cotidiano, como atores-protagonistas do espaço público. Há muito que se caminhar nesse sentido. Construir esse espaço público, essa esfera pública supõe construir cidadãos ativos, individual e coletivamente. Para mim, fazer política hoje é apostar nisso (Pontual, 2001, n. p.). A apresentação do entrevistado também nos informa que Pontual “integrou a equipe do Instituto Cajamar, voltado para a formação de lideranças políticas e populares” e “acompanhou Paulo Freire na implantação do Projeto do Mova – Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos – durante o governo de Luíza Erundina na Prefeitura de SP” (Pontual, 2001). Tomemos agora o artigo de Odair Furtado, intitulado Psicologia e compromisso social – base epistemológica de uma psicologia crítica (1999), no qual o autor, formado nas dependências do PEPG-PSO, ao descrever sua participação no Programa Integrar, da Confederação Nacional de Metalúrgicos da CUT, diz-nos o seguinte: O curso tem como objetivo fornecer uma formação de caráter geral, que amplie o horizonte cultural do aluno e lhe dê condições de ampliar sua participação social ao mesmo tempo em que discute as condições sociais e históricas que geram o desemprego do trabalhador no Brasil de hoje. Em resumo, trata-se de uma opção pedagógica que se assenta sobre a noção de cidadania e de inclusão social (Furtado, 2000, p. 226-227). Concluindo seu artigo, Furtado ainda afirma o seguinte: Evidentemente, não se trata de construirmos uma psicologia classista, voltada exclusivamente para 66
os trabalhadores, para as classes populares. Tal compromisso representa apenas que precisamos romper com uma psicologia que tem sido classista de uma outra forma (Furtado, 2000, p. 226-228). No caderno de resumos da XXIX Reunião Anual de Psicologia da Sociedade Brasileira de Psicologia, a mesa-redonda n° 6, intitulada “Psicologia Social e do trabalho – a alternativa popular”, é igualmente reveladora da hegemonia da emancipação política e o compromisso com o desenvolvimento da democracia participativa, ao qual fizemos referência. Em “A qualificação profissional e a organização dos trabalhadores – o caso do Programa Integrar da CNM/CUT”, Furtado diz-nos que O Programa Integrar, da CNM/CUT de qualificação e requalificação de metalúrgicos desempregados, desenvolvido a partir do convênio com a PUC-SP, foi a experiência piloto de uma política da Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT para transformar os sindicatos filiados em ‘sindicatos cidadãos’” (Sociedade Brasileira de Psicologia, 1999). Por último, tomemos um trecho do Relatório Final do I Encontro Nacional de Psicologia: Mediação e Conciliação. No parecer da comissão ad hoc convidada pelo Conselho Federal de Psicologia para recomendações de posicionamento do Sistema Conselhos acerca da temática, lemos que A mediação permite acordos vantajosos para todos, mas muito mais que isso, favorece o protagonismo e a geração de mundos possíveis onde o confronto decorrente das diferenças – origem dos conflitos – seja conduzido sem gerar desigualdade e sustentar privilégios (Conselho Federal de Psicologia, 2006). Na introdução do Relatório, a então presidente do Conselho, Ana Bock, “acreditando que haja, na Psicologia, competência acumulada para contribuir com o desenvolvimento de uma cultura de conciliação”, informa-nos de que A mediação de conflitos – o mais popular dos meios consensuais de resolução de controvérsias – é uma prática que valoriza e facilita a inovação e
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provoca mudanças em procedimentos baseados na autonomia da vontade (Conselho Federal de Psicologia, 2006, p. 9-10). Que nos sugerem esses dados? Sem ignorar que esses trechos não nos dão senão uma parte da realidade, e sem desconsiderar a diversidade que se abriga sob o guarda-chuva do “compromisso social”, os resultados mostram-nos que psicólogos declaradamente comprometidos com “o social” na verdade comprometem-se pura e simplesmente com o desenvolvimento da democracia participativa e da cidadania. Implicitamente, contribuem para difundir ilusões sobre a possibilidade de emancipação no interior de uma ordem social que se funda, precisamente, na manutenção da contradição entre a igualdade formal e a desigualdade real. Caberia perguntar se a Psicologia surgida no ciclo democrático-popular, declaradamente “progressista”, ao buscar superar a Psicologia “tradicional” e “elitista”, não permanece refém das oposições e dualismos forjados no ciclo histórico democrático-nacional. Ao que nos parece, a ideologia do compromisso social acaba reencontrando-se com a ideologia do desenvolvimento nacional, sugerindo a necessidade de uma aliança nacional ou de toda a população para a conquista progressiva dos direitos que caracterizam a sociabilidade burguesa. Os aparelhos criados para sua elaboração e difusão, o PEPG-PSO e a Abrapso, em que pese haverem se constituído, inicialmente, como aliados da classe trabalhadora, comprometidos com a “maioria dos brasileiros”, acabam por se sobrepor aos interesses dessa classe. Posteriormente, ao ocuparem os espaços privilegiados de formação política da classe trabalhadora, especialmente o Instituto Cajamar e a CUT, esses intelectuais, sempre imbuídos do “compromisso social”, de aliados da classe trabalhadora am a dirigentes, impondo os interesses de sua classe particular, que não deixam de ser interesses de classes subalternas. Trata-se, no entanto, de interesses tipicamente pequeno-burgueses, na medida em que buscam conciliar aquilo que é estruturalmente inconciliável: os interesses do Capital aos interesses do Trabalho. Supõem a possibilidade e, mais do que isso, a necessidade de um pacto de classes como condição para a emancipação da maioria da população. Não pretendemos negar que a ideologia do compromisso social e seus aparelhos contribuíram e têm
contribuído para o fortalecimento da democracia brasileira e de suas principais instituições. A afluência dos psicólogos para o campo das políticas públicas tem sido uma das marcas desse novo ciclo histórico, e não se pode negar que essa proletarização impôs à Psicologia novos e desafiadores problemas. No entanto, resta saber se, ao promover ativa e conscientemente os valores e os ideais democráticos, os psicólogos do compromisso social não desempenham, à maneira dos psicólogos do desenvolvimento nacional, o papel de intelectuais orgânicos da burguesia no estágio atual de sua supremacia; se a classe média, ao assumir o leme das lutas e impor o lema do compromisso social, realmente o faz em nome da maioria da população brasileira: a classe trabalhadora. Pois o papel dos intelectuais em aliança com as classes subalternas não deve significar a deferência acrítica aos seus interesses, ideias, valores e temores imediatos. Para um intelectual organicamente vinculado com os interesses da classe trabalhadora, não se trata de colocar-se a serviço das classes subalternas, mas de colocar-se a serviço da emancipação das classes subalternas, o que implica, mais do que um simples compromisso “social” ou “ético-político”, uma estratégia político-revolucionária que se comprometa declarada e conscientemente com a superação da sociedade de classes. Uma estratégia político-revolucionária que não se comprometa com abstrações como “o social”, “o Brasil” ou “a população brasileira”, mas com o conjunto daqueles sujeitos sociais concretos que, pelo lugar que ocupam na produção social da vida, possuem a possibilidade de romper as amarras que os afastam do caminho de sua própria emancipação.
Conclusão
Procurando dar prosseguimento ao trabalho desenvolvido por Antunes (2012), esperamos haver mostrado que as contradições presentes na história da Psicologia brasileira não se limitam ao campo das divergências entre diferentes proposições teóricas e práticas, fazendo-se igualmente presentes no interior mesmo de cada uma dessas proposições. Ao apontarmos os vínculos orgânicos entre a Psicologia brasileira e os ciclos democrático-nacional e democrático-popular, buscamos mostrar de que maneira a Psicologia nascida no último ciclo histórico é solidária de uma ideologia bem determinada, a ideologia do compromisso social, funcional à dominação burguesa na atual etapa do capitalismo no Brasil. 67
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Gostaríamos de encerrar este artigo, que apenas insinua todo um conjunto de reflexões que estão por vir, com algumas palavras sobre como entendemos o significado desta nossa pesquisa. Em tempos de forte ofensiva do capital sobre o trabalho, em que a classe trabalhadora se encontra fragilizada e fragmentada, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, convém não alimentarmos ilusões sobre as alternativas a esta ordem social que aliena, desumaniza, e que nos conduz incessantemente para o precipício da barbárie. Desde nossa perspectiva teórica e de nossa opção política, acreditamos que convém superarmos as ideologias que contribuem para aumentar o fosso entre a Psicologia da classe trabalhadora e sua consciência de classe (Martín-Baró, 1985), isto é, entre as ideias, valores, atitudes e sentimentos de nossa classe e a consciência de seus reais interesses no sentido da emancipação humana. Evidentemente, não esperamos que tais reflexões conduzam, por si só, à emancipação de nossa classe. Mesmo porque, estamos de acordo, “A psicologia não desempenhará nenhum papel decisivo na resolução dos grandes problemas que acometem os povos latino-americanos”, uma vez que “os dilemas latino-americanos são fundamentalmente de natureza econômica e política e dependem de forças objetivas que estão muito distantes do alcance do psicólogo” (Mar-
tín-Baró, 2002, p. 110). Mas não ignoramos a importância do trabalho teórico e crítico na superação de algumas mistificações que afastam as classes subalternizadas, oprimidas e exploradas, do caminho de sua emancipação. Por último, gostaríamos de acrescentar que o esforço teórico-crítico de compreensão das contradições de nossa história pouco tem a contribuir para a emancipação humana se não se presta a armar as classes dominadas e fornecer-lhes os instrumentos adequados às suas lutas cotidianas. Uma consciência crítica que desafie as ideologias e as instituições que se prestam à nossa dominação e uma teoria social que deslinde os obstáculos históricos interpostos à nossa emancipação são, sem sombra de dúvidas, elementos fundamentais para todos que lutam contra um inimigo de dimensões como o Capital; mas ainda são pouco se a essa consciência crítica e a essa teoria não se vem somar uma clara opção política pela defesa dos interesses materiais das classes subalternizadas. Como sentenciou Fernandes, “Ser ‘intelectual orgânico das classes trabalhadoras’ é uma opção política. Mas, não se pode fazer essa opção e ficar numa ‘prática teórica’ crítica ou rebelde que se compõe com a reprodução da ordem burguesa e com o Estado capitalista” (Ammann, 1980, p. 13).
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Filipe Milagres Boechat Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás. Membro da Rede Ibero-americana de Pesquisadores em História da Psicologia, do GT de História Social da Psicologia da ANPEPP, do Núcleo de Educação Popular 13 de maio, do Núcleo de Estudos e pesquisas Crítica, Insurgência e Emancipação (CRISE) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Avançadas - Ética e Política Emancipatória. E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Faculdade de Educação. Rua 235, s/n, Setor Leste Universitário, 74605-050 Recebido 30/06/2017 Reformulação 03/10/2017 Aprovado 06/10/2017 Received 06/30/2017 Reformulated 10/03/2017 Approved 10/06/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 03/10/2017 Aceptado 06/10/2017 Como citar: Boechat, F. M. (2017). A Psicologia brasileira nos ciclos democrático-nacional e democrático-popular. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 57-70. https://doi.org/10.1590/1982-3703040002017 How to cite: Boechat, F. M. (2017). Brazilian Psychology during the democratic and national cycle and the democratic and popular cycle. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 57-70. https://doi.org/10.1590/1982-3703040002017 Cómo citar: Boechat, F. M. (2017). La Psicología brasileña en el ciclo democráticonacional y en el ciclo democrático-popular. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 57-70. https://doi.org/10.1590/1982-3703040002017 70
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O Fazer Psicológico na Ditadura Civil Militar Ana Maria Batista Correia Universidade Federal do Piauí, PI, Brasil.
Carla Náyad Castelo Branco Dantas Universidade Paulista, SP, Brasil.
Resumo: O presente artigo apresenta discussão sobre o fazer psi na época da ditadura civil militar, objetivando responder ao seguinte questionamento: a Psicologia brasileira esteve a serviço da ditadura civil militar ou da sociedade?. Considerando que a regulamentação da profissão de psicólogo em 1962 coincidiu com o período ditatorial vivenciado no Brasil entre os anos de 1964 a 1985, objetivamos discutir sobre o desenvolvimento da Psicologia como ciência e profissão neste contexto turbulento para a sociedade brasileira. Para alcançar esse objetivo, utilizou-se como metodologia a pesquisa bibliográfica. Nesse sentido, referenciamo-nos na discussão sobre o papel do psicólogo, na perspectiva de Martín-Baró, para discutir o compromisso do profissional com o processo de conscientização das pessoas. Conforme as discussões empreendidas, foi possível descortinar os movimentos de atuação que corroboravam com a manutenção do sistema, ou seja, que compactuavam com práticas repressivas, mas também, os movimentos que buscavam promover a conscientização, ou mesmo dispor a Psicologia a serviço dos menos favorecidos, mesmo que de modo clandestino. Palavras-chave: Psicologia, Ditadura Civil Militar, Ignácio Martín-Baró, Atuação do psicólogo.
The Psychological practice during the Military Civilian Dictatorship Abstract: This article presents a discussion about the psychological practice in the era of the military civilian dictatorship, in order to answer the following question: Has Brazilian Psychology been at the service of the civilian military dictatorship or of society? Considering that the regulation of the profession of the psychologist in 1962 coincided with the dictatorial period experienced in Brazil between 1964 and 1985, we aimed to discuss the development of Psychology as a science and profession in this turbulent context for Brazilian society. To reach this objective, the bibliographic research methodology was used as methodology. In this sense, we refer to the discussion about the role of the psychologist in the perspective of Martín-Baró to discuss the commitment of the professional with the process of awareness of the people. According to the discussions, it was possible to reveal the psychological practices that ed the maintenance of the system, that is, that compacted with repressive actions, but also, the practices that sought to promote awareness, or even used psychology at the service of the less favored, even if clandestinely. Keywords: Psychology, Military Civilian Dictatorship, Ignácio Martín-Baró, Psychologist’s Performance.
Disponível em www.scielo.br/p
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 71-81.
El Quehacer Psicológico de la Dictadura Civil Militar Resumen: El presente artículo presenta una discusión sobre el quehacer psicológico en la época de la dictadura civil militar, con el objetivo de responder al siguiente cuestionamiento: ¿La Psicología brasileña estuvo al servicio de la dictadura civil militar o de la sociedad?. Considerando que la reglamentación de la profesión de psicólogo en 1962 coincidió con el período dictatorial vivido en Brasil entre los años 1964 a 1985, tenemos el objetivo de discutir sobre el desarrollo de la Psicología como ciencia y profesión en este contexto turbulento para la sociedad brasileña. Para alcanzar ese objetivo, se utilizó como metodología la investigación bibliográfica. En ese sentido, nos referimos a la discusión sobre el papel del psicólogo, en la perspectiva de Martín-Baró para discutir el compromiso del profesional con el proceso de concientización de las personas. Conforme a las discusiones emprendidas, fue posible desvendar las prácticas que apoyaban el mantenimiento del sistema, o sea, que eran complacientes con prácticas represivas, y también, los movimientos que buscaban promover la concientización, o incluso poner la psicología al servicio de los menos favorecidos aunque de forma clandestina. Palabras clave: Psicología, Dictadura Civil Militar, Ignacio Martín-Baró, Actuación del Psicólogo.
Introdução
O presente artigo originou-se a partir das discussões em um grupo de estudo, bem como pela relevância em compreender os impactos da ditadura civil-militar sobre a Psicologia como ciência e profissão. A partir das discussões sobre o papel do psicólogo, na perspectiva de Martín-Baró (1997), questionou-se: a Psicologia brasileira esteve a serviço da ditadura ou da sociedade? Considerando que a regulamentação da profissão de psicólogo ocorreu com a Lei no 4.119, em 27 de agosto de 1962 (Brasil, 1962), e menos de dois anos depois ocorreu, em 31 de março de 1964, o golpe e a instauração do regime militar que vigorou no Brasil entre os anos de 1964 a 1985, objetivamos discutir sobre o desenvolvimento da Psicologia como ciência e profissão neste contexto turbulento para a sociedade brasileira. Para alcance desse objetivo, utilizou-se como metodologia a pesquisa bibliográfica. O artigo está divido nos tópicos: o papel do psicólogo de acordo com Martín-Baró; a Psicologia no período da ditadura civil militar (lado A e lado B) e considerações finais.
O papel do psicólogo de acordo com Ignácio Martín-Baró (1942–1989)
A escolha do referido autor, para subsidiar o presente artigo, deve-se às particularidades encontradas em sua história como psicólogo atuante na área sociocomunitária em El Salvador, na América Central. Vale ressaltar o contexto de exceção política que a socie72
dade salvadorenha vivenciava, bem como as contribuições dos seus estudos sobre o papel do psicólogo que suscitaram reflexões acerca do papel do psicólogo brasileiro no período da ditadura civil-militar. De acordo com Oliveira e Guzzo (2013), Ignácio Martín-Baró nasceu na Espanha em 1942 e estudou na Escola Jesuíta de São José, onde desde cedo se identificou com os ideais religiosos e, posteriormente, aderiu à Companhia de Jesus aos 17 anos. Nos anos 1960, ele foi para a América Latina em missão jesuíta e cursou Psicologia em El Salvador na Universidade Centro-Americana (UCA) que, conforme problematizam Mendonça e Lacerda Júnior (2015), é uma instituição criada em 1965, como demanda da elite nacional. Em 1979 tornou-se doutor em Psicologia Social e Organizacional, ao defender sua tese na Universidade de Chicago, EUA. Ao retornar do doutorado assumiu vários cargos na UCA, inclusive como de vice-reitor e editor da revista Estudios Centro-americanos (Oliveira, & Guzzo, 2013). O compromisso de Martín-Baró foi com a população salvadorenha, mas seu legado ultraou os limites geográficos e culminou com a reconhecida Psicologia da Libertação que: “se coloca como uma concepção diferenciada dentro do campo teórico da Psicologia, pelo seu compromisso epistemológico, ético e político com as maiorias populares” (Oliveira, & Guzzo, 2013, p. 2). Essa dimensão da atuação do psicólogo fundamenta o entendimento sobre qual deve ser o papel do
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psicólogo como profissional que trabalha para possibilitar o empoderamento, a emancipação, a desalienação, seja em que área de atuação ele estiver. O trabalho compromissado de Ignácio Martín-Baró teve um preço alto, pois custou sua vida. Em 1989 foi emitida uma ordem do alto escalão militar e dos assessores norte-americanos para ass os intelectuais jesuítas da Universidade, que eram acusados de serem comunistas, terroristas e de apoiarem as guerrilhas de resistência. Martín-Baró, o reitor Ignácio Ellacuria, também jesuíta, além de outros jesuítas foram alvejados em sua moradia dentro da Universidade (Oliveira, & Guzzo, 2013). Para Martín-Baró (1997), antes de pensarmos sobre o papel do psicólogo, precisamos refletir sobre o contexto social no qual ele atua, entendendo que esse profissional faz parte dele. Todas as profissões encontram-se a serviço de uma estrutura social mais ampla e, assim, é a Psicologia. Sobre o papel do psicólogo o autor afirma que: trabalhar não é apenas aplicar uma série de conhecimentos e habilidades para a satisfação das próprias necessidades; trabalhar é, antes e fundamentalmente, fazer-se a si mesmo, transformando a realidade, encontrando-se ou alienando-se nesse quefazer sobre a rede das relações interpessoais e intergrupais. [...] A luz desta visão da psicologia, pode-se afirmar que a conscientização constitui-se no horizonte primordial do quefazer psicológico (Martín-Baró, 1997, p. 15). Diante do exposto, o papel do psicólogo transcende a simples aplicação de técnicas psicológicas e desenvolvimento de posturas estereotipadas. Para isso, o profissional deve conhecer a realidade em que vive, não se satisfazendo em apenas executar um trabalho, mas visando construir uma Psicologia que transforme a realidade, promovendo mudanças. Independente das abordagens ou dos locais de atuação, o que deve importar ao psicólogo é a promoção da conscientização, corroborando com os processos de rompimento das alienações, questionando os paradigmas dominantes. Nosso psicólogo “salvadorenho” (já que adotou o país centro-americano) acreditava que a Psicologia poderia tornar-se uma Psicologia da Libertação por meio da parceria com outras áreas das ciências sociais. Assim, sua obra recebeu grande influência do
educador e escritor brasileiro Paulo Freire, sobretudo com sua proposta de alfabetização conscientizadora (Martín-Baró, 1997, 2006). Esse conceito de conscientização articula: “[...] la dimensión psicológica de la consciência personal com su dimensión social y política, y pone de manifesto la dialéctica histórica entre el saber y el hacer” (Martín-Baró, 2006, p. 7). Essa parceria revela a necessidade de repensarmos o papel da Psicologia como uma profissão que pode e deve levar as pessoas a tomarem conhecimento da realidade, afinal, qual a melhor forma de conhecermos o mundo a nossa volta, senão, pela leitura e escrita? Obviamente os psicólogos não são os profissionais que alfabetizam, mas o que se sugere é que sejam conhecidos os mecanismos pelos quais é possível conscientizar as pessoas de sua realidade. Nesse ponto, Martín-Baró (2006) é taxativo ao afirmar que é dada pouca importância ao estudo crítico da obra de Paulo Freire. Essa discussão, embora haja sido iniciada em 2013, durante o Concurso de Artigos “Psicologia e Direitos Humanos”, como uma das ações do Conselho Federal de Psicologia, juntamente com a publicação do livro “A verdade é revolucionária: testemunhos de psicólogas e psicólogos sobre a ditadura civil-militar brasileira”, nunca foi tão atual, à medida que identificamos uma sociedade cada vez mais carente de conscientização, alienada pelos meios de comunicação e que se satisfaz com o entretenimento por meio das redes sociais, tem ficado mais doente com transtornos de ansiedade e de depressão (Conselho Federal de Psicologia, 2013). Mas essa é uma polêmica que ficará para outros artigos. O que urge, neste momento, é discutirmos amplamente o que significa resgatar a obra de Martín-Baró para entender o papel do psicólogo. Segundo Moreira e Guzzo (2015, p. 570), o resgate da obra desse autor constitui a recuperação “da práxis constituída na, para e com a América Latina”, o que significa pensar em uma Psicologia latino-americana que percebe os problemas e dilemas desse “povo marcado, povo feliz” (alusão à música de Zé Ramalho, “irável gado novo”, gravada em 1979 [Ramalho, 1979]). De acordo com Cecília Santiago (Fachin, 2009), Baró acreditava em fazer uma Psicologia política que considere o poder social na configuração do psiquismo humano, contribuindo para construção do poder histórico como requisito de uma nova identidade psicossocial dos povos oprimidos. Para isso, estabeleceu três tarefas libertadoras para a Psicologia 73
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social latino-americana: o estudo das formas de consciência popular, o resgate e a potenciação das virtudes populares e a análise das organizações populares como instrumento de libertação histórica. Martín-Baró nos convida a desvendar um dos motivadores para o início da Psicologia científica, a consciência. Esse é o caminho para examinar criticamente o papel do psicólogo. Essa consciência que não se limita ao âmbito privado do saber das pessoas, mas ao âmbito em que cada ser humano encontra o impacto refletido de seu ser e seu fazer na sociedade. A consciência é o saber sobre si e sobre o mundo a sua volta, que “só condicionada parcialmente se torna saber reflexivo” (Martín-Baró, 1997, p. 14). O processo de conscientização possui três aspectos. O primeiro é que o homem se transforma ao modificar sua realidade, por um processo dialético, que somente será possível mediante o diálogo, e não a imposição. O segundo é que à medida que o homem vai decodificando seu mundo, ele apreende os mecanismos que o oprimem e desumanizam, deixando de entender a situação opressora como natural. E o terceiro aspecto relatado pelo autor é que o novo saber desse homem acerca de sua realidade o leva a um novo saber sobre si mesmo e sua identidade social e “assim, a recuperação de sua memória histórica oferece a base para uma determinação mais autônoma do seu futuro” (Martín-Baró, 1997, p. 16). Mas, afinal, como é possível colocar em prática esse processo de conscientização? A obra de Baró foi escrita em meados de 1980, mas, mesmo hoje, a minoria dos psicólogos se detém a estudar sistematicamente seus ensinamentos. Fato é que os psicólogos brasileiros aram por uma reviravolta sobre seu papel antes elitizado para um papel profissional mais aliado às necessidades da população. Sobretudo com a inserção dos psicólogos no corpo técnico das equipes dos Centros de Referência da Assistência Social, mediante a democratização do país e sua inserção nos concursos públicos (Silva, & Corgozinho, 2011). Mesmo assim, essa ainda parece uma tarefa difícil para o psicólogo. A partir de sua realidade de guerra, Baró oferece alguns apontamentos sobre como pode ser o chamado “quefazer” do psicólogo a fim de buscar a desalienação de pessoas e grupos. Seu exemplo remete ao caso das vítimas de guerra, que devem receber uma atenção especial por meio da extensão de atendimento clínico a grupos majoritários. Porém, a seu ver, esse atendimento deve promover a conscientização e devolver a palavra 74
às pessoas, como indivíduos e como parte do povo. Para Martín-Baró (1997, p. 20), essa clínica precisa “apontar diretamente para o desaparecimento de uma identidade social cultivada sobre os protótipos do opressor e do oprimido, e a configurar uma nova identidade das pessoas enquanto membros de uma comunidade humana, responsáveis por uma história”. Em síntese, esse olhar deve ser o mesmo em todas as outras áreas de atuação, seja a escola, a organização, ou o hospital. A ideia de Martín-Baró vai além de atribuir ao psicólogo um papel de agente transformador, mas de um agente revolucionário. Em uma exposição em 1980, o autor expressa que o psicólogo deve fazer parte do processo revolucionário, entendendo que uma revolução é mais que enfrentar situações difíceis em uma dada ordem social, mas é um processo que visa modificar a ordem social. Para isso, o psicólogo deve ser um bom psicólogo e, também, ser um psicólogo do povo, que atue e acompanhe a nova ordem social almejada. Para essa nova ordem estão questões como: satisfazer as necessidades do povo, mudar a mentalidade da sociedade (com valores de solidariedade e responsabilidade) e atacar os vícios da sociedade capitalista, sobretudo a corrupção (Martín-Baró, 2017). É possível afirmar que o legado teórico de Martín-Baró nunca foi tão atual e provocador, em um momento em que o Brasil e outros países no mundo vivem assolados por pobreza, guerras e turbulências políticas, sociais e econômicas. É preciso que os psicólogos comecem a se inteirar dessas discussões e busquem apoio do entendimento sobre os processos de conscientização, começando a conscientizarem a si mesmos sobre seu papel na sociedade como agente político ou transformador, que atua para mudar as formas de pensar e fazer, de si e do outro, o povo. De acordo com Furtado (2000), toda Psicologia é política. O que não significa que a Psicologia deve ser classista e unicamente a serviço da classe de trabalhadores explorados, mas que deve parar de olhar apenas para o lado daqueles que podem pagar. Deve reinventar-se e compreender o processo de conscientização sob o ponto de vista da grande plasticidade da consciência psicológica que leva o sujeito para autonomia de si no mundo (Furtado, 2000). Ter o psicólogo como agente do processo revolucionário implica visitarmos a história profissional, verificando os momentos de atuação que fortaleceram a alienação da classe e do povo, mas também os momentos de atuação que de alguma forma rompe-
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ram com o status quo estabelecido. Então, a seguir, discutiremos o desenvolvimento da Psicologia no contexto da Ditadura civil militar no Brasil, iniciando pelo momento em que o psicólogo esteve em parceria com o sistema ditatorial e, posteriormente, apresentando os movimentos em que psicólogos buscaram romper com as práticas de atuação dominantes.
A Psicologia no período da ditadura civil-militar: dois recortes históricos
O presente artigo está dividido em dois lados da história da Psicologia durante o período da ditadura civil-militar. Não se pretende extenuar todos os acontecimentos documentados sobre as duas versões, mas problematizar o papel do psicólogo que, nesse momento da história, ora atua calado e calando e ora atua para transformar a realidade a sua volta. Por isso, convencionou-se denominar lado A e lado B, estabelecendo que o objetivo não é a crítica pela crítica aos que atenderam a interesses governamentais, mas registrar fazeres psi, instigando a refletir sobre o que aconteceu e como “devemos” acontecer. Para isso, inicialmente, recorremos à canção de Zé Ramalho, “irável gado novo” (Ramalho, 1979), inspirada na obra de Aldous Huxley, “irável Mundo Novo”. Há um trecho que diz: “Lá fora faz um tempo confortável, a vigilância cuida do normal”. Esse lado da canção nos lembra a postura acomodada e, ao mesmo tempo, conivente dos profissionais psicólogos. E analisando o contexto social, veremos que mesmo as entidades da época estavam dominadas pela política do medo. Em outro trecho: “E ter que demonstrar sua coragem, à margem do que possa parecer”, inspirados pela mesma canção, vemos que, ante um cenário opressor e punitivo, pessoas se revelaram corajosas o suficiente para agir, fosse como opositores ao sistema, fosse como profissionais agindo na clandestinidade junto às comunidades, mesmo que exercendo trabalhos voluntários. Assim como o psicólogo Martín-Baró, cuja obra proporciona o entendimento sobre o papel do psicólogo como agente que leva o outro a pensar além. Ante os dois lados, será possível responder a questão norteadora da pesquisa: a Psicologia brasileira esteve a serviço da ditadura ou da sociedade?
Lado A: a Psicologia em favor do Estado
Embora já existisse a atuação da Psicologia há cerca de 30 anos nas áreas consideradas tradicionais
(clínica, escolar e organizacional), a regulamentação como profissão se deu apenas em 1962. Segundo Bernardes (2004), algumas conquistas da Psicologia teriam sido retardadas com o Golpe Militar de 1964. A partir desse acontecimento, pode-se afirmar que, em seu desenvolvimento, a Psicologia caracterizou-se pelo “obscurantismo, pelas delações, pelos rompimentos com compromissos éticos, políticos e sociais fundamentais para o convívio com a sociedade” (Bernardes, 2004, p. 95). Ou seja, a atuação dos profissionais, em sua maioria, esteve aliada aos interesses da minoria no poder. De acordo com Scarparo e Ozorio (2009), no período da exceção política, lacunas e silêncios marcaram os fazeres psi. As autoras esclarecem que existiu nesse período um processo de assimilação do sistema que impulsionava os estudantes e psicólogos a não se envolverem no regime opressor “no caso do Brasil, nos anos da ditadura, as práticas psicológicas contribuíram para calar o grito dos injuriados, a indignação dos desrespeitados e o livre pensar” (Scarparo, & Ozório, 2009, p. 1). Assim, desse entendimento incorre pensar que a atuação do psicólogo se restringia a manter as aparências, fingindo que nada estava acontecendo ou ainda endossando práticas arbitrárias, o que corresponde a um papel profissional bem divergente da proposta de Martín-Baró, que enfatiza uma atuação promotora de conscientização e livre de padrões preconcebidos. Nesse período, o Brasil teve sua economia direcionada pela lógica do neoliberalismo, o que influenciou significativamente a Psicologia como ciência e profissão. Conforme essa lógica, deve haver o mínimo de intervenção do estado na economia, marcada pelo livre comércio e, tal como vivemos atualmente, a constante privatização de instituições estatais. Para Bernardes (2004), antes mesmo da profissão ser regulamentada, o psicólogo já era visto como profissional liberal e sem vinculações hierárquicas. Esse panorama favorecia a atuação do psicólogo na área clínica e ou a ser um modelo de atuação hegemônico, também denominado como “modelo médico” (Antunes, 2012). O chamado milagre econômico favoreceu a classe média, que ou a procurar mais o psicólogo, como o clínico. Porém, as outras atuações, como escolas e organizações também cresceram. A atividade do psicólogo nesses setores era movida pela lógica neoliberal, centrada no indivíduo e no mercado (Bernardes, 2004). 75
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Nesse sentido, Batitucci (1978, p. 141) afirmou que a formação do psicólogo empresarial: “para ser válida deve necessariamente atender às necessidades e demandas da empresa, por isso, nunca pode ser dirigida a Psicologia em si mesma, mas sim a Psicologia que a empresa precisa para resolver seus problemas humanos e organizacionais”. Essa assertiva evidencia que, nesse período, a atuação do psicólogo estaria distante dos interesses da maioria da população, ou seja, dos menos favorecidos da sociedade. O que prevalece é a lógica mercadológica, contribuindo para uma Psicologia elitizada. Neste recorte da história da Psicologia brasileira, não vemos uma profissão para o povo pobre e vulnerável, mas aliada aos interesses de uma minoria rica e no poder, como esclarece Hur (2013, p. 2), ao afirmar que a “psicologia brasileira manteve-se elitista e assumiu a matriz cientificista e positivista importada dos Estados Unidos com fortes traços normalizadores e adaptativos”. Assim, como em uma brincadeira infantil de encaixe, as teorias advindas de outras nações eram traduzidas e utilizadas pelos profissionais, na realidade brasileira, sem haver uma preocupação com o contexto cultural do povo, que deveria encaixar-se nos padrões esperados. Essa realidade configura uma Psicologia que prima pela adaptação do homem ao seu meio. Nesse cenário neoliberalista, com atos de violência e intensa censura do livre pensar e agir, surge o fenômeno “cultura psi” (Bernardes, 2004; Dimenstein, 2000; Figueiredo, 1993), que corresponde a um movimento de disseminação das ideias advindas da Psicologia, psiquiatria e psicanálise, tornando-as íveis à população e divulgando uma lógica intimista, que culpabiliza o sujeito pelo problema que apresenta, desconsiderando o entorno social no qual ele está inserido. Assim, a Psicologia, nesse recorte, esteve atrelada ao militarismo e Bernardes (2004, p. 96-97) é incisivo ao afirmar que “o universo psi sobrevive nos porões da ditadura, alimentando o terrorismo de Estado, torturando e silenciando”. O autor discorre sobre a atuação de profissionais da Psicologia compactuando com a repressão. Pode-se inferir uma Psicologia antiética e vergonhosa, pois sugere ir contra os direitos humanos hoje tão discutidos, embora ainda não tão respeitados. Coimbra (2011) esclarece que os psicólogos atuantes em parceria com o Regime Militar exerciam práticas caracterizadas pelo uso de ferramentas psicológicas como a aplicação de anamneses ou de testes psicológicos (de personalidade, de inteligência etc.) que classificavam e rotulavam os sujeitos da oposição, como 76
desestruturados ou desajustados. Esse entendimento advém da pesquisa do “Perfil Psicológico do Terrorista Brasileiro”, realizada por uma entidade de Psicologia que buscou explicar as causas que levaram os militares presos na época a participarem da luta armada. O período de exceção política e democrática pelo qual o Brasil ou durou 21 anos, e isso foi decorrente das práticas de diversos profissionais que permitiram, através de suas explicações teóricas e exercícios profissionais que o terrorismo de Estado continuasse operando (Coimbra, 2001). Sobre as entidades de Psicologia da época, vale ressaltar que foi em meio à ditadura civil-militar que foram criados o Conselho Federal e sete Conselhos Regionais de Psicologia. Segundo a psicóloga Coimbra (2011), a criação dos conselhos se deu: “no auge do terrorismo de Estado, quando as perseguições se davam de uma forma totalmente naturalizada”. Para ela, todos aqueles que estivessem contra o regime eram inimigos internos e, inclusive, a Lei no 5.766, de 20 de dezembro de 1971 (Brasil, 1971), que criou os Conselhos (Federal e Regionais), é considerada autoritária e centralizadora, pois não possibilitava a discussão com a categoria. Pode-se imaginar o cenário preocupante que se apresentava aos formandos de Psicologia, visto que os órgãos regulamentadores da profissão estariam também contaminados por ideias autoritárias e alienantes. Aliás, causa estranhamento o fato de os Conselhos serem criados durante o período da ditadura civil militar. Sobre isso, Hur (2012) esclarece o receio do Estado quanto à organização da sociedade civil. Por esse motivo, foi criada a lei que instituía a profissão de psicólogo e, apenas anos depois, foram criados órgãos para fiscalizar e regulamentar a categoria. No entanto, contraditoriamente é nesse período ditatorial que os psicólogos se organizam para criar os conselhos; os psicólogos voltam a se reorganizar justamente quando há um refluxo e uma intensa repressão aos movimentos sociais. A organização dos psicólogos não foi feita como um movimento social, reivindicador, e sim numa ação institucionalizada, direta, com os representantes do Estado da ditadura (Hur, 2012, p. 74). Isso nos revela que os profissionais da época precisaram entrar em acordo com os governos a fim de institucionalizarem a organização da categoria.
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A organização da classe dos profissionais de Psicologia, conforme Hur (2012), emerge como ação institucionalizada, atrelada ao Estado, sem caracterização de movimento social e reivindicador. Institui-se, inicialmente, as Associações como protótipo de Sindicado, ligadas a questões técnicas para a consolidação das práticas. Com a associação de um terço dos profissionais de Psicologia do estado de São Paulo, no ano de 1973, cria-se o Sindicato do referido estado, instalando-se o Conselho Federal no mesmo ano. De acordo com Bernardes (2004), os documentos encontrados nesse período foram todos produzidos pelo Estado e apresentam forte caráter normativo e regulador e, em seu entender, isso justifica a escassa produção científica das entidades de Psicologia. Ante o exposto, a Psicologia como ciência e profissão sofreu grandes consequências do contexto político e econômico brasileiro com atividades que são consideradas antiéticas e que impactavam as subjetividades humanas no sentido de calar os opositores ao Estado.
Lado B: a Psicologia em favor da Democracia
Sobre as discussões do papel do psicólogo até aqui, tem-se uma visão de que a Psicologia como ciência e profissão esteve aliada aos interesses do Estado. Contudo, faz-se necessário pontuar a existência de pequenos movimentos que agiam no sentido de tentar romper as práticas psicológicas alienantes favorecedoras do Regime Militar. Um exemplo disso foi o fato de ter havido psicólogos e estudantes de Psicologia perseguidos pelos militares por se envolverem diretamente nos atos revolucionários e de resistência ao regime militar, como citado por Arantes (2012) no artigo intitulado “Em nome da memória”. O estudo apresenta cinco histórias de jovens mulheres, estudantes e profissionais de Psicologia, que foram torturadas e assassinadas durante a ditadura civil militar. Essa talvez seja parte da história que ninguém vê ou discute na academia e que constitui um aspecto fundamental, para que situações como essas não mais se repitam. Como o caso de Aurora Maria Nascimento Furtado, estudante de Psicologia na Universidade de São Paulo. Em 1968, a jovem respondia pelo setor de imprensa da União Estadual dos Estudantes de São Paulo. Em 1972, foi presa por policiais no Rio de Janeiro, com 26 anos de idade. Aurora foi torturada no pau de arara, com sessões de eletrochoque, espancamentos, afogamento e
queimaduras. Seu rosto ficou deformado devido à utilização do instrumento “coroa de cristo”, que apertava o crânio do torturado. A fim de encobrir seu assassinato, seu corpo foi jogado em uma rua no Rio de Janeiro e os órgãos da Repressão divulgaram na imprensa que a jovem morreu em uma troca de tiros com a polícia (Arantes, 2012). A história dessas mulheres revela que haviam ações de militância por parte de psicólogas em favor dos direitos humanos brasileiros. Além das histórias particulares de pessoas que individualmente se opam ao Estado, fato que pouco ou nada se fala no ambiente acadêmico, sobretudo nas aulas de história da Psicologia, cabe resgatar a criação de uma revista carioca muito importante para revelar um movimento social dos psicólogos. No período compreendido ente 1976 e 1981, paralelo ao surgimento de uma Psicologia Crítica no Brasil, dá-se à trajetória da “Rádice”, uma revista de Psicologia que possuía como público-alvo o universo psi, pessoas interessadas em Psicologia, psicanálise e psiquiatria. A revista lançava o olhar a vários assuntos como as lutas travadas no âmbito da saúde mental, discussões sobre o currículo da formação, as novas regulamentações da profissão e, até, as denúncias de torturas e desaparecimentos daqueles que lutavam contra o regime militar tanto no Brasil, como em outros países da América Latina. Em seu primeiro número, trouxe um artigo do psicólogo Carlos Ralph, que fez uma crítica às práticas hegemônicas da época. A revista, que se tornou posteriormente um jornal, é considerada pelos autores Santos e Jacó-Vilela (2005, p. 26) “um dos poucos dispositivos de divulgação do pensamento de outras formas de se fazer psicologia”. Outro exemplo pode ser verificado no texto de Freitas (2008), em que a autora sistematiza os períodos de atuação do psicólogo na comunidade, no Brasil, nas décadas de 1960 a 1990. Assim, o trabalho do psicólogo comunitário na década de 1960 se caracterizava por ser voluntário, não remunerado, no qual o psicólogo era convicto do papel político junto aos setores menos favorecidos da população. Entretanto, Freitas (2008) explica que era uma atividade “tímida”. Já na década de 1970, os profissionais de Psicologia aram a atuar em novos espaços, fora das clínicas, escolas e empresas, inserindo-se em associações de bairro, comunidades eclesiais ou favelas por meio de práticas diferentes das que estavam acostumados a exercer. Os psicólogos desse período chegaram a se envolver em atividades como de assistência psicológica gratuita à população, 77
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promoção de reuniões, discussões e levantamentos descritivos sobre as necessidades da população, participação em abaixo-assinados e eatas. Em meados de 1980, devido ao movimento de abertura democrática, a atividade do psicólogo comunitário, que era clandestina e não remunerada, ou a ser repensada. A atividade começou a receber mais atenção e ser mais discutida, inclusive nos cursos de formação, nas conferências e em artigos, haja vista que muitos dos psicólogos comunitários eram também professores. Considera-se que esse movimento de atuação era semelhante à proposta de Martín-Baró (1997) para o “quefazer” psicológico. Assim, conclui-se a outra parte da pergunta sobre a quem serviu a Psicologia. Esse lado B apresenta a outra face da história, tantas vezes esquecida na formação do psicólogo, pois revela a possibilidade de exercer uma Psicologia política ou uma Psicologia da libertação. Dessa forma, destaca-se a impossibilidade de separação entre Psicologia e política: [...] pois a psicologia trabalha com sujeitos habitantes de um lugar em determinado momento histórico da sociedade. Diante disso, qualquer intervenção realizada com os sujeitos produz efeito no coletivo, sempre havendo uma implicação política, pois essa prática é sempre uma ação sobre a vida desses sujeitos. Estar atento a isso é o que vai diferenciar os profissionais que se colocam em uma postura ético-política, ou seja, que se comprometem com o cuidado relativo à vida dos sujeitos que afetam (Reis, & Guareschi, 2010, p. 857). Tal como Reis e Guareschi (2010) discorrem, Psicologia e política se inter-relacionam e o que precisamos é de posturas mais democráticas, pois cada prática psi é capaz de alterar de algum modo a vida das pessoas. Entender a profundidade dessas ações é o que corrobora para uma atuação ética e compromissada com a sociedade. Sobre as situações ora relatadas (Arantes, 2012; Freitas, 2008; Santos, & Jacó-Vilela, 2005), podemos inferir que retratam fazeres psi mais parecidos com a proposta de Martín-Baró (1997), que visava refletir sobre as problemáticas sociais, aproximando a Psicologia das classes menos favorecidas e majoritárias da população, ando a se inserir em situações novas, porém diversas. Assim, cabe discutir sobre até que ponto, delimitar a Psicologia como uma ciência e profissão aliadas apenas aos interesses elitistas e ditatoriais pode ser uma análise reducionista. 78
Pois o destino de quem se opusesse ao Estado ou atuasse em favor da conscientização das massas era torturas e assassínios. Sem chance de defesa, sem julgamento justo e sem a divulgação e esclarecimento sobre a verdade por trás das histórias das psicólogas ou das estudantes de Psicologia. Não nos esquecendo ainda da revista “Rádice” como meio de conscientização dos profissionais psicólogos ou as ações de profissionais na comunidade. Esses “lados” precisam ser mais revelados, mais discutidos, desde a formação universitária, bem como precisa vir à reflexão de profissionais psicólogos para nortear sua atuação, em qualquer espaço que ele estiver (clínica, escola, organizações, entre outros), independentemente de abordagens de mundo, pois vê-se muitas discussões improdutivas na Psicologia, no campo filosófico, que muito atrapalham o crescimento da profissão como categoria. Essa discussão pode promover maior sentimento de união à classe, e evitar que práticas inadequadas sejam desenvolvidas novamente.
Considerações finais
O presente artigo buscou responder à questão: a Psicologia brasileira esteve a serviço da ditadura civil militar ou da sociedade? Para responder tal questionamento, foi realizado um levantamento bibliográfico acerca das práticas desenvolvidas na época do governo militar. Diante das discussões construídas até aqui, verificou-se que a atuação do psicólogo esteve majoritariamente atrelada aos interesses do Estado. Essa postura contribuiu para a construção de uma Psicologia elitizada e distante das classes menos favorecidas, evidenciando uma prática normalizadora, adaptativa ao sistema, com técnicas estereotipadas, restringindo-se as aparências e endossando práticas arbitrarias. O que responde parcialmente ao questionamento que norteou as discussões, considerando que a Psicologia como ciência e profissão esteve a serviço da ditadura civil militar, ponto bastante divergente das propostas de Martín-Baró. Paralelamente às práticas alienadas e alienantes, emergiram, no bojo das inquietações do período ditatorial, tímidas atuações de grupos isolados que lutaram para romper os paradigmas dominantes. Verificou-se a existência de estudantes e psicólogos que se envolveram diretamente no movimento opositor, que foram duramente torturados e executados. Além disso, encontrou-se registros da participação de psicólogos em área pouco explorada até a década de 1960: a Psicologia comunitária, que nasceu com o propósito de colocar
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a Psicologia a serviço dos setores menos favorecidos da sociedade. Como vimos, eram atuações clandestinas, voluntárias e não remuneradas, mas já vislumbravam as preocupações com o contexto social em que o psicólogo estava inserido e, poderia se inserir, refletindo sobre as necessidades da população, buscando romper as práticas alienantes que favoreciam o Regime Militar. Considera-se que esse movimento de atuação era semelhante à proposta de Martín-Baró (1997) para o “quefazer” psicológico. Assim, conclui-se a outra parte da pergunta sobre a quem serviu a Psicologia. Destarte, convém responder que a dicotomia proposta no questionamento norteador foi superada à medida que identificamos mais movimentos profissionais coniventes com o regime opressor da época. Contudo, entende-se que o clima era de tensão e medo, assim, não podemos simplesmente culpabilizar os profissionais por entendermos que os processos de coerção foram estendidos a todos, inclusive aos psicólogos que partilharam práticas aliadas ao governo. Devemos, sim, utilizar os conhecimentos adquiridos com essas experiências para seguir na construção de uma Psicologia a serviço da sociedade, negando-nos a agir de forma a transgredir a ética profissional que nos rege. Refletir e pesquisar sobre essa realidade vivenciada nas práticas dos profissionais da Psicologia em meio à ditadura possibilita profundos questionamentos e reflexões para a construção do fazer da Psicologia na contemporaneidade. Todas as provocações aqui apresentadas oportunizam recordar e concluir que somos uma geração (de psicólogas e psicólogos) marcada por experiências de silenciamento, perdas e dores, ao tempo que também recebemos como herança práticas de lutas pelos rompimentos de vivências alienadas. Isso corresponde à possibilidade de um resgate histórico que contribui para ressignificar nossas identidades sociais e pessoais como parte do, ainda, “povo marcado”, mas “povo feliz” que continua, mesmo após mais de 50 anos de criação dessa profissão, buscando entender: qual o nosso papel nessa sociedade? Como podemos de fato agir com compromisso social e ético? Discutir o papel do psicólogo revela a necessidade contínua de uma prática que não se esquive de seus princípios fundamentais, tão claros no Código de Ética Profissional. É construir um hoje com atitudes que atendam às necessidades das pessoas, ou seja, como prestadores de serviço para o social e coletivo, contribuindo para a ampliação de consciências, ajudando as pessoas a superarem situações alienantes,
considerando os contextos vivenciados e os impactos da sua atuação profissional frente aos sujeitos. As discussões até aqui empreendidas possuem caráter preventivo, pois podem evitar práticas elitistas e normalizadoras, mas também caráter interventivo, por vislumbrar caminhos a seguir, sugerindo aos psicólogos que mantenham uma postura crítica frente a sua realidade. Ainda assim, frente a uma realidade opressora e paradigmática, que esse profissional conscientize-se sobre seu papel, que não aceite também ser violentado com cenários de desvalorização e que transforme a si mesmo, para transformar o outro em sua jornada. Por tanto, que seja um “quefazer” baseado nos aspectos da conscientização de transformação de si, decodificação da realidade e transformação da realidade. Nesse contexto, as ideias de Baró serviram de inspiração para compreender que o papel do psicólogo remete à possibilidade de transformação de si e do outro, por meio do processo de conscientização que deve ser o objetivo principal do fazer psicológico. Será mais produtivo, para a Psicologia como ciência e profissão, bem como para a constituição da identidade desse profissional, discutir nas universidades formadoras o papel do psicólogo, ao invés de grupos se digladiarem discutindo questões frívolas como: a melhor opção de abordagens para atuação na área clínica ou mesmo sobre as áreas de atuação que mais promovam retorno financeiro para o profissional. Infelizmente, o que vemos hoje são mais pessoas buscando o destaque pessoal em detrimento do grupo, quando o melhor seria vivenciar essa atuação de modo reflexivo e questionador, buscando o compromisso social e, sobretudo, ético, sempre. Enquanto esse sentimento de grupo não for internalizado, a começar pela graduação, dificilmente será possível que o papel do psicólogo seja realmente exercido em conformidade com o que Ignácio Martín-Baró propôs anos atrás. Se fosse possível considerar o período do governo militar como uma canção, entende-se que, para o desenvolvimento da própria Psicologia como ciência e profissão, seria necessário que a Psicologia dançasse conforme o ritmo. Contudo, não é possível desconsiderar que houve psicólogos e estudantes de Psicologia que buscaram criar novos os. Olhar para todo esse ado é entender como se produziu o momento presente, é oportunizar um senso crítico capaz de fortalecer as categorias profissionais, neutralizando processos capazes de produzirem alienação e dominação subjetiva das pessoas. 79
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Ana Maria Batista Correia Mestre em Educação – UFPI. Psicóloga do campus Amílcar Ferreira Sobral – UFPI E-mail:
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Psicologia no Contexto da Ditadura Civil-militar e Ressonâncias na Contemporaneidade Fabíola Figueirêdo da Silva Universidade Federal de São Paulo, SP, Brasil.
Resumo: Este trabalho tem por objetivo versar sobre as relações da Psicologia com a sociedade no contexto da ditadura civil-militar, considerando o papel das entidades de Psicologia nesse período. Há algumas considerações sobre as características deste contexto histórico e os seus efeitos na subjetividade dos indivíduos que vivenciaram tal momento. O artigo propõe também uma reflexão acerca dos desafios da Psicologia no cenário brasileiro contemporâneo. Foi adotado o tipo de pesquisa bibliográfica, e os dados obtidos foram analisados de forma qualitativa, utilizando-se livros e artigos científicos de língua portuguesa. A ditadura nos remete a um período violento e triste na história brasileira, que teve a característica da violação dos direitos humanos, sendo comum as práticas de tortura, prisões ilegais e mortes. Inicialmente, as associações profissionais dos psicólogos priorizavam questões organizativas e técnicas da profissão, evitando entrar em conflito com a ideologia do Estado ditatorial; e é justamente neste período que a profissão foi consolidada, com a atuação destas entidades que tinham por finalidade defender e representar a categoria dos psicólogos. Contudo, tais associações possuíam postura ambígua frente à violência de Estado: não se pronunciavam contra o regime, ao mesmo tempo em que eram coniventes com esse sistema repressivo. Atualmente, em que se reconhece o compromisso da Psicologia com a realidade em que está inserida, a produção de memória sobre este período da história é fundamental para se compreender as relações complexas que existiram durante a ditadura militar, e que repercutem até os dias atuais. Palavras-chave: História da Psicologia, Ditadura, Direitos Humanos.
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Psychology in the Context of the Military Civil Dictatorship and Resonances in the Contemporaneity Abstract: The purpose of this paper is to study the relationship between psychology and society in the context of civil-military dictatorship, considering the role of Psychology entities in this period. There are some considerations about the characteristics of this historical context and its effects on the subjectivity of individuals who experienced such a moment. The article also proposes a reflection on the challenges of Psychology in the contemporary Brazilian scenario. A bibliographic research was conducted, and data obtained were qualitatively analyzed, being used scientific books and articles in Portuguese language. The dictatorship refers to a violent and sad period in Brazilian history, which had the characteristic of violations of human rights, being common practices of torture, illegal prisons and deaths. Initially, professional associations of psychologists prioritized organizational and technical issues of the profession, avoiding conflict with the ideology of the dictatorial state; and it was precisely in this period that the profession was consolidated, with the performance of these entities whose purpose was to defend and represent the category of psychologists. However, such associations had an ambiguous stance against state violence: they did not speak out against the regime, being conniving at the same time with this repressive system. Nowadays, recognizing the commitment of Psychology to the reality in which it is inserted, and the production of memory about this period of history are fundamental to understand the complex relationships that existed during the military dictatorship, which have repercussions until the present day. Keywords: History of Psychology, Dictatorship, Human Rights.
Psicología en el Contexto de la Dictadura Civil Militar y Resonancias en la Contemporaneidad Resumen: Este trabajo tiene por objetivo versar sobre las relaciones de la Psicología con la sociedad en el contexto de la dictadura civil-militar, considerando el papel de las entidades de Psicología en ese período. Hay algunas consideraciones sobre las características de este contexto histórico y sus efectos en la subjetividad de los individuos que han vivido tal momento. El artículo propone también una reflexión acerca de los desafíos de la Psicología en el escenario brasileño contemporáneo. Se adoptó el tipo de investigación bibliográfica, y los datos obtenidos fueron analizados de forma cualitativa; y se utilizaron libros y artículos científicos de lengua portuguesa. La dictadura nos remite a un período violento y triste en la historia brasileña, que tuvo como característica la violación de los derechos humanos, siendo comunes las prácticas de tortura, prisiones ilegales y muertes. Inicialmente, las asociaciones profesionales de los psicólogos priorizaban cuestiones organizativas y técnicas de la profesión, evitando entrar en conflicto con la ideología del Estado dictatorial; y es justamente en este período que la profesión fue consolidada, con la actuación de estas entidades que tenían por finalidad defender y representar la categoría de los psicólogos. Sin embargo, tales asociaciones poseían postura ambigua frente a la violencia de Estado: no se pronunciaban contra el régimen, al mismo tiempo siendo conniventes con ese sistema represivo. Actualmente, cuando se reconoce el compromiso de la Psicología con la realidad en la que está incluida, la producción de memoria sobre este período de la historia es fundamental para comprender las relaciones complejas que existieron durante la dictadura militar, y que repercuten hasta los días actuales. Palabras claves: Historia de la Psicología, Dictadura, Derechos Humanos. 83
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Introdução O compromisso da Psicologia com o resgate de sua própria história
Um dos sentidos do trabalho do psicólogo consiste em promover a saúde e a qualidade de vida de indivíduos e de coletividades, o que está relacionado com a dimensão ética de sua profissão (Conselho Federal de Psicologia, 2005). Em sua atuação, faz-se importante também conhecer e resgatar a história do próprio contexto social, para que se possa analisar, de forma crítica, os múltiplos determinantes que compõem a realidade que vivencia. Tais pressupostos estão em conformidade com o Código de Ética Profissional do Psicólogo (CFP, 2005) e podem contribuir para o desenvolvimento da Psicologia, tendo em vista que refletem um interesse na vida e nos valores humanos, bem como no enriquecimento da construção de sentidos de seu saber e conjunto de práticas. O trabalho de Antunes (2012) tece considerações sobre a história da Psicologia brasileira, abarcando suas características e as produções teóricas e práticas em cada período de tempo. Em sua análise, considera as construções históricas, sociais, poíticas, econômicas – para citar alguns aspectos - que influenciaram os modos da Psicologia em produzir conhecimentos, de compreender o homem, atingindo assim suas próprias práticas. Inicialmente, a Psicologia se preocupou com os discursos sobre a subjetividade presentes em diversas áreas do saber, especialmente atrelada à filosofia, medicina e educação. Ao longo da história de sua consolidação no Brasil, alguns cursos e laboratórios foram criados de forma a se debater as questões psicológicas. No avanço do reconhecimento desta área, foram marcos consideráveis a regulamentação da profissão pela Lei nº 4.119, em 27 de agosto de 1962, e a criação de dispositivos formais mediante a Lei n° 5.766, como os Conselhos Federal e Regionais de Psicologia, em 20 de dezembro de 1971 (Pereira, & Pereira Neto, 2003). Cabe salientar que pesquisar em Psicologia e resgatar sua própria história envolve aspectos éticos, estéticos e políticos. Deve-se reconhecer a complexidade do fenômeno que está sendo estudado, bem como os valores e a atuação do pesquisador neste processo de pesquisa. Trata-se de um processo de criação e intervenção na própria realidade, posto que implica em relações entre sujeitos e a sociedade, que são mutuamente constitutivos. Ainda, considera-se que,
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por ser uma prática social, o processo de pesquisa é vinculado às condições históricas do contexto em que se vive, visando sua compreensão, entendimento e proposta de soluções para a transformação da realidade (Zanella, & Sais, 2008). Com base nisso, para a compreensão dos primórdios da Psicologia brasileira, é fundamental o estudo das intensas mudanças no cenário político-social que repercutiram sobre a sua existência. Desta forma, estudar as histórias da Psicologia durante o período da ditadura militar envolve a sua apreensão enquanto criação humana, e como tal, relacionada com este período sócio-histórico (Cambaúva, Silva, & Ferreira, 1998). Este trabalho visa uma reflexão sobre as relações entre a Psicologia e a ditadura civil-militar, considerando o papel das entidades de Psicologia nesse contexto. Este estudo tece algumas considerações sobre as características deste período e os seus efeitos na subjetividade dos indivíduos que vivenciaram tal momento histórico. Por fim, tem-se uma reflexão acerca dos desafios da Psicologia no cenário brasileiro contemporâneo.
Método
Para a realização deste trabalho, foi adotado o tipo de pesquisa bibliográfica, que consiste no “exame, levantamento e análise do material existente sobre determinado assunto”. (Di Domenico, & Cassetari, 2010, p. 69). Os materiais utilizados foram livros e artigos científicos, principalmente da área da Psicologia, datados de 1985 até o presente ano. Como critério de inclusão, foram levantados textos que se relacionassem com a temática do estudo, que fossem de língua portuguesa, e excluídos materiais que não tivessem relação com o objetivo da pesquisa. Os descritores utilizados na seleção de artigos foram: História da Psicologia; Ditadura; Direitos Humanos.
Características da ditadura civil-militar brasileira
A ditadura civil-militar brasileira, que compreende o período de 1964 a 1985, nos remete a um momento triste e violento na nossa própria história, caracterizado pela violação dos direitos humanos, sendo comum as práticas de tortura, prisões ilegais e mortes. Quando os militares tomaram o poder, com a ideologia de segurança nacional, desprezaram o sistema político instituído e as suas instituições (como Congresso, Judiciário, dentre outros), criando suas
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próprias regras de funcionamento (Scarparo, Torres & Ecker, 2014). Para justificar as suas ações, criaram os Atos Institucionais, compreendidos como um conjunto de normas que concediam plenos poderes aos militares, além da criação de vários dispositivos e órgãos secretos de informações e de segurança. O país atravessava um período turbulento, caracterizado por manifestações da população contrários ao este regime ditatorial, e ainda agravado pela alta concentração de renda, inflação e dívida externa (Chiavenato, 1994). Houve uma verdadeira agressão ao público, de forma geral. Por exemplo, ocorreu diminuição de verbas na saúde; agressão à educação, pelo desprezo ao ensino básico, tendo como consequência milhões de crianças sem estudos; ataque à Universidade, considerando a invasão de seus estabelecimentos, com a apreensão de documentos e livros, demissão de reitores, professores e funcionários e expulsão de estudantes que não se alinhavam aos valores da ditadura; agressão à cultura, com a proibição e censura de inúmeras peças, filmes e músicas; agressão ao trabalho, pela perda de direito do trabalhador, que sequer podiam se reivindicar por seus direitos, e se rebelar em greves, além dos baixos salários fornecidos, para qual a capacidade de consumo era pouca. O país também experimentou uma brutal censura à imprensa: qualquer ação que pudesse ofender o governo não poderia ser veiculada (Chiavenato, 1994). Nesse momento histórico, tem-se relatos e provas de cidadãos que foram cruelmente torturados e mortos, sendo que, em muitos casos, houve contradições em documentos oficiais falseados ou inexistentes. Ocorriam detenções sem mandato judicial, com desrespeito às leis que garantem direitos aos cidadãos. Eram comuns torturas de várias formas, sessões de eletrochoque, queimaduras, afogamentos, cadeiras e camas eletrificadas, utilização de insetos e animais perigosos durante interrogações, utilização de produtos químicos, cadáveres dos opositores políticos eram largados em terrenos baldios ou sepultados anonimamente. Mendigos nas ruas e cidadãos comuns eram utilizados como cobaias, e assim torturados em aulas de militares nos quartéis. Inclusive, a tortura foi incluída como disciplina nos currículos de formação de militares. Nem mesmo crianças, mulheres, gestantes e idosos eram poupados (Arantes, 2012; Arquidiocese, 1985; Chiavenato, 1994). E ainda houve indivíduos que foram torturados com a assistência de agentes da saúde, o que tornam ainda mais graves tais abusos (Martín, 2005). Assim, a
tortura foi apoiada e respaldada por muitos profissionais da saúde, como psicólogos, psiquiatras, médicos, e de outras áreas do conhecimento, que por meio de seus saberes e práticas fortaleceram ações de violência e de exclusão. Poderiam argumentar que estavam cumprindo ordens, no entanto, tais práticas apoiaram e fortaleceram os terrorismos do Estado, numa dessensibilização frente à violência (Coimbra, 2001). Tais atos podem ser caracterizados pela negação do próprio desenvolvimento humano (Santos, 1994). Como consequência, as sequelas psicológicas podem afetar vários aspectos da existência humana: destruição da pessoa e de seus valores, desorganização da relação que o indivíduo tem consigo mesmo e com a sociedade em que vive, havendo a possibilidade de se ter uma conduta que está em maior ou menor consonância com os valores cruéis da ditadura. Embora não haja um quadro sintomatológico único, as sequelas psicológicas de quem vivenciou tais situações podem ser graves e permanentes, considerando a alta porcentagem de suicídios, os problemas identitários, a angústia crônica, os lutos não elaborados, alterações de hábitos alimentares, sexuais dentre outros aspectos, ocorrência de sentimento de culpa e vergonha, de perseguição e de dano, isolamento, dificuldades relacionais e de inserção laboral; apenas para citar algumas consequências. Para tais pessoas que sofreram esses horrores, foram negados o direito à vida e o de realizar os seus projetos pessoais (Martín, 2005). Outras mudanças estruturais ocorreram, por exemplo, na educação, como a ênfase no ensino tecnicista, conforme a lógica de interesses político-econômicos; no controle da mídia e fortalecimento de instituições de segurança pública (Scarparo et al., 2014). O cenário econômico e atual é de fato, herança e consequência do período militar. Considerando as principais mudanças que ocorreram no período da ditadura militar e que deixaram heranças, marcas, resquícios, cabe o estudo dos efeitos deste período nos processos subjetivos da população brasileira atualmente. Por se tratar de um tema complexo, várias produções artísticas e projetos políticos foram criados, e que visam a um esclarecimento acerca deste período. Nesse sentido, alguns grupos e instituições tem se esforçado em resgatar essas histórias que foram ocultadas, de forma a denunciar as diferentes violações dos direitos humanos, tanto as do ado, quanto as existentes atualmente; e há também, por parte do Estado, alguns mecanismos de reparação. 85
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Psicologia no contexto da ditadura civil-militar
O período da ditadura civil-militar, sem dúvida, marcou a história da formação da Psicologia. Inclusive, foi nesse período que aconteceu a criação das entidades regulamentadoras do exercício profissional do psicólogo, para defender e organizar a categoria. Foi quando houve um crescimento considerável do número de profissionais que se formaram nesta área, devido à criação dos cursos universitários particulares, e do aumento da demanda da população que precisava de serviços psicológicos (Pereira & Neto, 2003). O trabalho de Hur (2012) detalha com maestria a criação da profissão e as principais entidades de cunho acadêmico – científico que se organizaram e realizaram intensos debates e articulações políticas. A regulamentação da profissão pela Lei nº 4.119 de 27 de agosto de 1962 ocorreu a partir da atuação de entidades como a Sociedade de Psicologia de São Paulo (SPSP) e a Associação Brasileira dos Psicólogos (ABP). Antes da criação dos conselhos de Psicologia, foi necessária a autorização do Estado, que recomendou a organização de sindicato para obter um reconhecimento legal. As associações supracitadas fundaram então a Associação Profissional dos Psicólogos do Estado de São Paulo (APPESP), que foi o projeto do sindicato. Numa retrospectiva histórica, em 20 de dezembro de 1971, foi aprovada a Lei no 5.766, sobre a criação dos Conselhos Profissionais de Psicologia e do Conselho Federal de Psicologia. Em 1973 foi criado oficialmente o Sindicato dos Psicólogos no Estado de São Paulo (Spesp) e foi instalado o Conselho Federal de Psicologia. Apenas em 1974 é que foram criados os Conselhos Regionais de Psicologia (Hur, 2007). De forma geral, estas instituições citadas tiveram uma atuação corporativista na década de 1970, na qual a ênfase de discussão era o campo profissional, e não no campo político. Desta forma, as reivindicações dos psicólogos discutidas em reunião centravam-se em temas operacionais, como ética, fiscalização, testes psicotécnicos, piso salarial, dentre outros (Hur, 2012). As entidades temiam que um questionamento frente à sociedade pudesse trazer prejuízos para a categoria, num momento em que estavam focados na defesa da profissão (Hur, 2012). De certa forma, evitava-se questionar as políticas do Estado ditatorial, denotando assim uma ausência de crítica para com a violência, a repressão e a perda de direitos humanos, característicos deste momento histórico. Havia, indi-
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retamente, um posicionamento político de cumplicidade, evidenciado por homenagens feitas a presidentes e ministros que tinham aliança com o regime militar, e considerando que as instituições não se manifestavam publicamente contra o Estado (Hur, 2012). Por outro lado, consideramos que tal posicionamento de omissão política diante da ditadura civil-militar até favoreceu a expansão da profissão, tendo em vista que as práticas em Psicologia foram consideradas pouco ameaçadoras. Ao privilegiar as questões técnicas da profissão e íntimas e particulares de cada paciente, as questões sociais e políticas ficaram em segundo plano, ou seja, camufladas (Coimbra, 1995). O espaço psicoterapêutico tornava-se atraente, tendo em vista que a palavra de ordem, na sociedade, era o silêncio (Langenback, 1988 citado por Pereira, & Pereira Neto, 2003). As normas disciplinares psicológicas também puderam ser utilizadas a favor do Estado, em que se patologizava o opositor político. Utilizou-se a falácia de que “os culpados são os indivíduos anormais, de psiquismo patológico, e não o Estado e o regime que os criou e sustentou” (Coimbra, 2001, p. 14). Assim, de início, a Psicologia brasileira foi orientada predominantemente pelo modelo biológico, numa lógica em que o homem era responsável pelo seu próprio sofrimento, e que tinha que se ajustar à normalização social. Conforme já explicitado, o espaço da clínica foi enfatizado e ganhou status. Deste modo, como o paciente era tratado no consultório particular, preocupado com suas próprias questões emocionais, as reflexões coletivas eram deixadas de lado. Consequentemente, a relação do homem com a sociedade não era articulada claramente (Cambaúva et al., 1998). Portanto, as práticas psicológicas da época buscavam uma suposta neutralidade, afastada de reflexões sobre os efeitos políticos de suas práticas. Tinham uma função normalizadora, por meio da qual buscavam adaptar os indivíduos a uma sociedade desajustada e opressora, e uma postura ambígua frente à violência de Estado: não se pronunciava contra o regime, mas, ao mesmo tempo, era conivente com esse sistema repressivo (Scarparo et al., 2014). Na década de 1980 já se percebe uma ruptura com tais ideologias, havendo assim, uma determinada abertura política, por meio de um questionamento da realidade social e ao próprio caráter normatizador das entidades de Psicologia, que participaram de forma mais clara em movimentos como o direito ao voto direto e o fim da ditadura militar (Hur, 2009).
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As temáticas tratadas pelos psicólogos voltavam-se a questões relacionadas à formação profissional e às políticas públicas, sendo questões emergentes na sociedade. Os Conselhos e Sindicatos de Psicologia am a sustentar um posicionamento político claro pela democratização do país e contra as opressões. Nas décadas seguintes, segue-se o mesmo mote, com uma postura crítica da realidade, que é difundida e discutida na realização de vários eventos na área, como os Congressos Nacionais de Psicologia (Hur, 2012). As entidades regulamentadoras do exercício do psicólogo tiveram uma importante função ao discutir qual é o compromisso social da Psicologia. Assim, compreende-se que, no período da distensão política da ditadura civil-militar, é que ressurgiram movimentos sociais em prol da luta pelos direitos humanos, por meio dos quais se buscava melhores condições de vida, em todas as esferas, além de esforços para a democratização da sociedade. Desta forma, a partir da emergência desses movimentos que questionavam as lógicas de poder instaladas, as mudanças efetivamente surgiram a partir de mudança de paradigmas, e pelos esforços por uma sociedade ética e transparente (Coimbra, Lobo, & Nascimento, 2008). Há de se ressaltar que as lutas pela democratização empreendidas pelos movimentos sociais a partir da segunda metade da década de 1970 e pelas entidades de Psicologia no início da década de 1980 tratam de “uma luta de todos, e de todas as sociedades [...] uma luta geral, coletiva, por uma nova concepção de mundo, de homem e de humanidade: por uma sociedade sem torturas” (Coimbra, 2001, p. 19). Portanto, consideramos que conhecer o ado é fundamental para que os acontecimentos esvaziados de valores humanos não sejam repetidos pela sociedade e pelo Estado. Este olhar é fundamental para que os fatos não sejam esquecidos, também por consideração e memória pelos que lutaram por um país mais justo.
Considerações finais Reflexões acerca dos desafios da Psicologia contemporânea
Considera-se que se fazem necessários mais estudos acerca da história da Psicologia e de suas relações com os múltiplos determinantes sociopolíticos que a influencia, para que possamos compreender quais conhecimentos estamos produzindo, a finalidade e as
repercussões disso na própria sociedade. Nas palavras de (Antunes, 2012): no caso da Psicologia no Brasil, faz-se necessário compreendê-la como construção histórica e social, síntese de múltiplas determinações, orientada por determinadas concepções de homem e de sociedade e comprometida com posições de classe e, portanto, contraditória, sendo que o embate entre esses elementos que se opõem produz movimento e possibilita superação. Ainda há poucos estudos sobre a problematização da prática psicológica em tempos de ditadura civil-militar. Estudar este ado é entender que os saberes estão em contínua transformação e que não são conhecimentos neutros, considerando que estão relacionados com as relações de poder existentes. Desta forma, “olhar para a ditadura é entender como foi engendrado o presente, evitando que a categoria profissional venha a ser utilizada – por determinados grupos ou saberes/poderes – na produção de processos de captura e dominação subjetiva” (Scarparo et al., 2014, p. 71). Ao voltar-se neste período da história brasileira, uma das indagações que podem ser feitas é com relação aos abusos cometidos, e eis que surge um sentimento de incompreensão à primeira vista: Como entender todas as torturas, as prisões, desaparecimentos e mortes? Como entender tais atrocidades cometidas contra as pessoas que viveram naquele contexto histórico-social? Quais as repercussões e marcas deste período na atualidade, e como isso tem influenciado os modos de relação entre o indivíduo, sociedade e Estado? O Código de Ética Profissional do Psicólogo (CFP, 2005) é bem claro no tocante aos direitos humanos. O psicólogo não deve ser conivente com práticas que caracterizem violência, opressão, negligência, discriminação e práticas desse tipo, nem mesmo com o uso de conhecimentos e práticas psicológicas para tal finalidade. Há pesquisas na área psicológica que indicam a violência manifestada sob diversas formas e que atinge vários setores da sociedade. Enfim, o psicólogo não deve consentir com qualquer demonstração de violação de direitos humanos e faltas éticas, aliás, deve contribuir para eliminar estas formas opressivas. Ignorar tais palavras prescritas no código implica no desrespeito a princípios e direitos inalienáveis ao ser humano. As declarações, códigos e resoluções são 87
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legitimados quando postos em prática. Por isso que se faz importante a reflexão acerca das questões da sociedade que afetam a população, que interferem nos modos de vida, percebendo as consequências disso, para que se possa analisar e propor alternativas de mudanças. E considera-se que, desde o período de reabertura política, os Conselhos de Psicologia vêm adotando um papel importante neste processo de democratização da sociedade. Os obstáculos podem ser superados se a Psicologia focalizar a sua atenção aos avanços coletivos na direção da implementação do processo democrático, com a questão da igualdade e aceitação das diferenças que o tema abrange. Lembrando-se que mudanças podem ser propostas a partir da demanda pela cidadania. O que reanima é saber da potencialidade existente na categoria dos psicólogos para a transformação da realidade (Carrara,1996). Nas palavras de Scarparo et al. (2014, p. 71), refletir sobre as práticas psicológicas em época de ditadura possibilita colocarmos nossas produções contemporânea em análise. Neste sentido, apontamos algumas questões que emergem: que lugar a psicologia tem ocupado nessa sociedade desigual? Para que e para quem nossos conhecimentos têm servido? Que violações de direito estamos praticando, mesmo sob a pretensa justificativa de neutralidade científica? Nota-se que a Psicologia vem conquistando maior visibilidade, sendo inserida e legitimada em diversos contextos sociais. Compreende-se que atualmente há uma pluralidade de teorias e técnicas psicológicas em seu escopo. Porém, mais do que o conhecimento de disciplinas técnicas e científicas, o psicólogo deve ter uma atuação comprometida com a realidade e com as necessidades da população. Reafirma-se, novamente, que a Psicologia precisa estar articulada com o projeto coletivo, de forma a apreender os diversos significados compartilhados na relação entre os indivíduos. Isto faz parte de sua tentativa de compreensão dos fenômenos humanos. Nesse sentido, a formação profissional do psicólogo envolve o compromisso individual, bem como o compromisso coletivo, tendo em vista que tornar-se um profissional em Psicologia envolve assumir o seu papel de cidadão (Santos, 1994). Portanto, urge pensar a Psicologia em seu projeto social e histórico, em sua devida arti88
culação com a realidade que vivencia, considerando as relações de poder existentes de sua realidade e o impacto desses fenômenos em seu cenário de atuação. O resgate da própria história permite a apropriação do senso crítico, culminando no compromisso social do indivíduo desde o momento de sua formação (Cambaúva et al., 1998). Deste modo, a Psicologia deve privilegiar um processo formativo contextualizado e formalizar a participação como estratégia de trabalho ou, em outras palavras, levar em consideração as teorias existentes, refleti-las e articulá-las com a realidade social vivida (Carrara,1996). Nesse sentido, as reminiscências e os relatos das pessoas que aram por esse período turbulento são imprescindíveis para que se propicie o resgate de narrativas e histórias que, além de serem únicas, são coletivas, por representarem este período turbulento, e que consequentemente, fazem parte da história brasileira. Por isso a produção de memória deste período é essencial, para o entendimento de questões sociais que enfrentamos hoje. Só pode se pensar acerca da realidade e dos direitos humanos se olharmos e compreendermos as relações complexas que existiram durante o ado, percebermos as lógicas que operaram e que ainda são produzidas atualmente. Quando se conhece os fatos do ado, por meio das narrativas de quem vivenciou tais acontecimentos, abrem-se possibilidades de se compreender as repercussões disto que acontece no presente, e também, de prevenir tais experiências no futuro (CFP, 2012). São histórias que, embora silenciadas por décadas, não foram esquecidas. O problema recai não somente sobre as vítimas, mas por toda a sociedade que luta por uma sociedade mais digna e democrática (CFP, 2012). É neste cenário que nos encontramos hoje: entre sombras do ado e reminiscências que repercutem no presente, silêncio, esquecimentos e repetições; omissão e conivência; repressão e resistência, dores do ado que persistem, traumas... É preciso falar sobre tais questões. Há um ado sombrio e obscuro querendo ser enterrado à força, como se, ao simples virar das páginas do tempo, os acontecimentos desaparecessem, fossem apagados com a névoa do suposto esquecimento. Se faz necessária a tomada de medidas corajosas que viabilizem a consolidação de um país mais justo e democrático e, também, aprender com as lições do ado recente pode fortalecer ainda mais a convicção pela defesa dos direitos humanos, pela defesa da
Silva, F. F. (2017). Relações entre Psicologia e Ditadura Civil-Militar e Reflexões Atuais.
ética, pela defesa da cidadania (Arquidiocese, 1985). Além disso, as pesquisas em Psicologia são de suma importância para o avanço da área e para a compreensão dos fenômenos psicológicos, de forma que os conhecimentos sejam utilizados para o bem comum. Que a Psicologia não se esqueça de suas memórias e que se fortaleça ainda mais como ciência e
profissão, de forma a contribuir para a melhoria de diversos setores da sociedade; que possa sempre refletir acerca de sua realidade, resgatando, também sua história, de forma a participar de mudanças que beneficiem toda a população; que, além de estudar a existência humana com sensibilidade e rigor, possa contribuir em sua dignidade, respeito e valorização.
Referências Antunes, M. A. M. (2012). A Psicologia no Brasil: um ensaio sobre suas contradições. Psicologia: Ciência e Profissão, 32(spe), 44-65. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500005 Arantes, M. A. A. C. (2012). Em nome da memória. Psicologia: Ciência e Profissão, 32(spe), 310-317. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500022 Arquidiocese de São Paulo. (1985). Brasil: Nunca mais (20a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. Cambaúva, L. G., Silva, L. C., & Ferreira, W. (1998). Reflexões sobre o estudo da história da Psicologia. Estudos de Psicologia (Natal), 3(2), 207-227. https://doi.org/10.1590/S1413-294X1998000200003 Carrara, K. (1996). Psicologia e a construção da cidadania. Psicologia: Ciência e Profissão, 16(1), 12-17. https://doi.org/10.1590/S1414-98931996000100003 Chiavenato, J. J. (1994). O golpe de 64 e a ditadura militar (8s ed.). São Paulo, SP: Moderna. Coimbra, C. M. B. (1995). Guardiões da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do ‘milagre’. Rio de Janeiro, RJ: Oficina do Autor. Coimbra, C. M. B. (2001). Tortura ontem e hoje: resgatando uma certa história. Psicologia em Estudo, 6(2), 11-19. https://doi.org/10.1590/S1413-73722001000200003 Coimbra, C. M. B.; Lobo, L. F., & Nascimento, M. L. (2008). Por uma invenção ética para os Direitos Humanos. Psicologia Clínica, 20(2), 89-102. https://doi.org/10.1590/S0103-56652008000200007 Conselho Federal de Psicologia – CFP. (2005). Código de Ética Profissional do Psicólogo. Recuperado de http://site. cfp.org.br/wp-content/s/2012/07/codigo-de-etica-psicologia.pdf. Conselho Federal de Psicologia – CFP. (2012). Psicologia e o direito à memória e à verdade (Cadernos temáticos CRP SP, vol. 13). São Paulo, SP: o autor Recuperado de http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/cadernos_ tematicos/13/frames/caderno_13.pdf. Di Domenico, V. G. & Cassetari, L. (2010). Métodos e técnicas de pesquisa em Psicologia: uma introdução (4a ed.). São Paul, SP: Moderna. Hur, D. U. (2007). A Psicologia e suas entidades de classe: histórias sobre sua fundação e algumas práticas no Estado de São Paulo nos anos 70. Psicologia Política, 13(1). Recuperado de http://www.fafich.ufmg.br/~psicopol/seer/ ojs/viewarticle.php?id=17&layout=html Hur, D. U. (2009). O surgimento da esquerda nas entidades profissionais dos psicólogos de São Paulo, CRP-06 e SPESP, no período da abertura política brasileira. Mnemosine, 5(1), 126-145. Recuperado de http://www.mnemosine.com.br/ojs/index.php/mnemosine/article/view/167/pdf_152 Hur, D. U. (2012). Políticas da psicologia: histórias e práticas das associações profissionais (CRP e SPESP) de São Paulo, entre a ditadura e a redemocratização do país. Psicologia USP, 23(1), 69-90. https://doi.org/10.1590/ S0103-65642012000100004 Martín, A. G. (2005). As seqüelas psicológicas da tortura. Psicologia: Ciência e Profissão, 25(3), 434-449. https://doi.org/10.1590/S1414-98932005000300008 Pereira, F. M., & Pereira Neto, A. (2003). O psicólogo no Brasil: notas sobre seu processo de profissionalização. Psicologia em Estudo, 8(2), 19-27. https://doi.org/10.1590/S1413-73722003000200003
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Scarparo, H. B. K., Torres, S., & Ecker, D. D. (2014). Psicologia e ditadura civil-militar: reflexões sobre práticas psicológicas frente às violências de estado. Revista EPOS, 5(1), 57-78. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2014000100004 Santos, M. F. S. (1994). Formar psicólogos para quê?. Psicologia: Ciência e Profissão, 14(1-3), 40-41. https://doi. org/10.1590/S1414-98931994000100008 Zanella, A. V., & Sais, A. P. (2008). Reflexões sobre o pesquisar em psicologia como processo de criação ético, estético e político. Análise Psicológica, 26(4), 679-687. Recuperado de http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0870-82312008000400012&lng=pt&tlng=pt
Fabíola Figueirêdo da Silva Psicóloga, graduada em Psicologia pela Universidade Braz Cubas, São Paulo – SP. Brasil. Psicóloga residente em Aleitamento Materno e Banco de Leite Humano pela Universidade Federal de São Paulo, São Paulo – SP. Brasil. E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Unifesp – Universidade Federal de São Paulo Rua Botucatu, 740 - Vila Clementino. CEP: 04023-062. São Paulo – SP. Brasil. Recebido 28/06/2017 Reformulação 07/10/2017 Aprovado 09/10/2017 Received 06/28/2017 Reformulated 10/07/2017 Approved 10/09/2017 Recebido 28/06/2017 Reformulado 07/10/2017 Aceptado 09/10/2017
Como citar: Silva, F. F. (2017 ). Psicologia no contexto da ditadura civil-militar e ressonâncias na contemporaneidade. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 82-90. https://doi.org/10.1590/1982-3703060002017 How to cite: Silva, F. F. (2017). Psychology in the context of the military civil dictatorship and resonances in the contemporaneity. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 82-90. https://doi.org/10.1590/1982-3703060002017 Cómo citar: Silva, F. F. (2017). Psicología en el contexto de la dictadura civil militar y resonancias en la contemporaneidad. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 82-90. https://doi.org/10.1590/1982-3703060002017 90
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 91-102. https://doi.org/10.1590/1982-3703070002017
Psicologia e a Política de Direitos: Percursos de uma Relação Vinicius Furlan Pontifícia Universidade Católica, SP, Brasil.
Resumo: Este é um ensaio que visou recuperar os percursos da relação da Psicologia com a Política de Direitos no período da ditadura civil-militar e da atualidade. Para tanto, recorremos à pesquisa bibliográfica e à pesquisa documental. A primeira busca recuperar os processos históricos desta relação, fazendo um resgate das práticas da Psicologia durante o período da ditadura até o atual momento. A segunda objetiva encontrar elementos deste percurso e que revelam como tem se dado a relação da Psicologia com a Política de Direitos em nosso tempo. A partir das investigações, observa-se que a Psicologia serviu e andou de mãos dadas com a ditadura militar, contribuindo com a aplicação de testes e práticas de tortura aos presos políticos. Apesar de esta prática ter sido hegemônica nesse período, a Psicologia conformava-se enquanto um campo conflituoso de saberes, fazeres e posicionamentos político-ideológicos e, com os processos de democratização do país, ela também se reorientou e se reinventou, assumindo como norte um compromisso ético e político com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária e com a Política de Direitos. Não obstante este compromisso ter tomado conta da Psicologia, a partir de articulações da atuação da Psicologia durante a ditadura e em nosso tempo, identificam-se heranças em seu seio que foram deixadas pela ditadura, como as violações de direitos em instituições e entidades em que o profissional da Psicologia atua e contribui para tais violações, bem como quando apoiam projetos que estão na contramão da Política de Direitos, como do suposto projeto da “cura gay”. Palavras-chave: Psicologia, Direitos Humanos, Ditadura Civil-militar.
Psychology and the Rights Policy: Paths of a Relationship Abstract: This essay intends to recover the paths of the relationship between Psychology and the Rights Policy, through a bibliographical and documentary research. The first one seeks to recover the historical processes of this relationship, rescuing the practices of Psychology during the period of the dictatorship up to know. The second aims to find elements of this course and to reveal how the relationship between Psychology and the Rights Policy in our time has been given. From the investigations, it is observed that Psychology served and went hand in hand with the military dictatorship, contributing with the application of tests and practices of torture to the political prisoners. Although this practice was hegemonic in that period, Psychology was a conflictive field of political-ideological knowledge, actions and positions, and, with the country’s democratization processes, it also reoriented and reinvented itself, assuming as a guide an ethical and political commitment with the construction of a more just and egalitarian society and with the Rights Policy. Despite Psychology preserves this ethical and political commitment, it is possible to identify inheritances left by the dictatorship, such as rights violations in institutions and entities in which Psychology professionals act and contribute to such violations, as well as the by some psychologists to projects that are divergent from the Rights Policy, such as the supposed “gay conversion therapy”. Keywords: Psychology, Human Rights, Civil-Military Dictatorship.
Disponível em www.scielo.br/p
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 91-102.
Psicología y Política de Derechos: Caminos de una Relación Resumen: Este es un ensayo que pretende recuperar los caminos de la relación de la Psicología con la Política de Derechos. Para ello, recurrimos a la investigación bibliográfica y a la investigación documental. La primera busca recuperar los procesos históricos de esta relación, haciendo un rescate de las prácticas de la Psicología durante el período de la dictadura hasta el momento actual. La segunda tiene el objetivo de encontrar elementos de este camino que revelan cómo se ha dado la relación de la Psicología con la Política de Derechos en nuestro tiempo. A partir de las investigaciones, se observa que la Psicología sirvió y anduvo de la mano de la dictadura militar, contribuyendo con la aplicación de pruebas y prácticas de tortura a los presos políticos. A pesar de que esta práctica fue hegemónica en ese período, la Psicología se conformaba como un campo conflictivo de saberes, prácticas y posicionamientos político-ideológicos, y, con los procesos de democratización del país, ella también se reorientó y se reinventó, asumiendo como orientador un compromiso ético y político con la construcción de una sociedad más justa e igualitaria y con la Política de Derechos. A pesar de que este compromiso ha tomado cuenta de la Psicología, a partir de articulaciones de la actuación de la Psicología durante la dictadura y en nuestro tiempo, se identifican herencias que fueron dejadas por la dictadura en su seno, como las violaciones de derechos en instituciones y entidades en las que el profesional de la Psicología actúa y contribuye a tales violaciones, así como el apoyo a proyectos que están en contra de la Política de Derechos, como del supuesto proyecto de la “curación gay”. Palabras clave: Psicología, Derechos Humanos, Dictadura Cívico-Militar.
Introdução
Depois de um longo histórico da Psicologia no país, a instância representativa da categoria, Conselho Federal de Psicologia, propôs a premiação de trabalhos que abordassem a temática da relação da Psicologia com os Direitos Humanos, bem como os impactos do drástico período histórico do país vivenciado sob a égide da ditadura-civil militar (1964–1985) sobre a Psicologia na atualidade1. Neste sentido, este ensaio teórico tem como objetivo discutir agens acerca da relação da Psicologia com a Política dos Direitos nos períodos da ditadura civil-militar e da atualidade. Visou-se discorrer sobre algumas práticas da Psicologia enquanto profissão e de suas entidades representativas, como o Sistema Conselhos de Psicologia e o Sindicato dos Psicólogos. Por políticas de direitos compreendemos, de acordo com o sociólogo Santos (2012; 2013), uma política orientada para a garantia e efetivação dos direitos humanos sustentada na concepção de que todos os humanos são cidadãos, portanto, sujeitos de diretos e, assim, busca a construção de uma sociedade mais justa e igualitária para todos, respaldando-se nos interesses 1
da coletividade e do bem comum. Esta política, por sua vez, não se dá apenas enquanto aparato institucionalizado do Estado, mas implica na busca constante de constituir e efetivar uma política institucional dos direitos humanos: que recubra todas as populações, tanto por parte dos interesses do Estado como por meio de mobilizações e posicionamentos incansáveis da sociedade civil, e que se efetive nas relações de sociabilidade intersubjetivas em que se forjam as subjetividades por vias das dimensões do reconhecimento. Para tanto, como método para nossa reflexão, recorremos a dois caminhos: o da pesquisa bibliográfica e o da pesquisa documental (Gil, 1987). O primeiro busca recuperar, a partir de fontes secundárias já trabalhadas por outros autores, os processos históricos desta relação, fazendo um resgate desde as práticas da Psicologia durante o período da ditadura até o atual momento. O segundo objetiva encontrar elementos deste percurso, a partir de materiais ainda não trabalhados por outros autores como sites, jornais, anais de congressos etc. – que citamos à guisa de ilustração – e que revelam como tem se dado a relação da Psicologia com a Política de Direitos em nosso tempo.
Este texto foi elaborado, portanto, no ano de 2013, para concorrer a tal premiação, momento em que ainda cursava a graduação.
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Furlan, V. (2017) Psicologia e Política de Direitos.
Assim, a partir destes objetivos e investigações, o texto comporta uma discussão que busca recuperar os percursos históricos das práticas hegemônicas da Psicologia desde o tempo da ditadura civil-militar bem como de nosso tempo, buscando elencar, por meio da bibliografia e recursos documentais, os elementos que indicam os modos com que a Psicologia tem se articulado com a Política e os Direitos.
“Num tempo, página infeliz da nossa história”2
A Psicologia se configura como uma imensa pluralidade e heterogeneidade de vertentes teóricas e epistemológicas que constituem o que tem se costumado a chamar de psicologias. Cada uma destas psicologias possui construtos teóricos e perspectivas epistemológicas que orientam a prática (ou práxis) a qual a(o) psicóloga(o) está vinculada(o), o que, por sua vez, a conforma enquanto um campo conflituoso de saberes e fazeres, que se norteiam por diferentes posicionamentos ideológicos e políticos intercambiados por grupos, associações e instituições. Neste sentido, as relações da Psicologia com a Política, por meio de suas práticas e saberes, são atravessadas por estes diferentes posicionamentos, o que implica reconhecer que, embora os conflitos inerentes a seu campo por conta de tais diferenças ideológicas e políticas, de tempos em tempos, a relação entre Psicologia e Política se transforma e isto reverbera em processos de ressignificação de seus construtos teóricos, seus fazeres e posicionamentos político-ideológicos. Assim, recuperar a memória dos meados das décadas de 1960 e 1970 no Brasil é, sobremaneira, uma forma de resgatar um período de nossa história que muito tem se tentado esquecer, por conta de questões políticas e ideológicas. Situar o lugar da Psicologia no seio dessa história permite, portanto, trazer à memória uma “outra” narrativa histórica da Psicologia que tem ficado ocultada ou silenciada. Nos tempos de ditadura, Coimbra (1995) destaca que a prática hegemônica da Psicologia junto à sociedade foi a de adaptar os indivíduos à ordem vigente, ao status quo da sociedade, com vistas a contribuir para o controle dos indivíduos, tornando-os ivos
e submissos frente as injustiças da estrutura sociopolítica, legitimadoras do poder e da exclusão social. Assim, com o golpe militar, “a nova profissão não buscava apenas legitimidade social, mas pretendia mostrar para as classes dominantes atuantes no Brasil que a psicologia não era uma ameaça à ordem social” (Lacerda Junior, 2013, p. 220). De acordo com Patto (2003, p. 14), foi “assim que a Psicologia fez-se discurso ideológico que justifica a desigualdade social transformando-a em desigualdade psíquica individual”. Cabia, pois, à Psicologia realizar diagnósticos psicológicos, a fim de identificar as dificuldades e problemas de ajustamento dos indivíduos e colaborar para a sua solução, ajustando-os aos seus respectivos contextos. Uma característica marcante da Psicologia era a sua restrição e isolamento à prática do contexto clínico. Em que pese os ambientes da escola e da indústria também sejam característicos dessa época, sendo a Psicologia, nestes contextos, um instrumento de exclusão. Outra marca forte da Psicologia era sua vinculação com a elite da sociedade, já que a classe excluída dos bens culturais e econômicos era privada de seus serviços. Tinha-se, assim, uma Psicologia elitizada e elitista, contribuindo para a perpetuação da exploração desta classe social sobre as demais. A Psicologia, portanto, era utilizada como um instrumento de dominação social para docilizar e domesticar os sujeitos humanos. Esta prática da Psicologia estava orientada por uma compreensão epistemológica e metodológica da ciência sustentada pela filosofia positivista; tinha-se então uma compreensão naturalizante e biologizante do homem, de uma ciência humana pautada na neutralidade e objetividade, num tecnicismo científico controlador e reducionismo psicológico, reificante das questões sociais e humanas tidas como a-históricas. Conforme destaca Coimbra (1995), nessa época, [...] a formação “psi”, em geral, traz certas características modelares instituídas e tão bem marcadas; como, em nossa formação, predomina o viés positivista, onde se tornam hegemônicos os conceitos de neutralidade, objetividade, cientificidade e tecnicismo; onde, nos diferentes discursos e práticas, o homem e a sociedade são apre-
2 O texto está estruturado em três tópicos, cada um leva como título versos de letras de músicas que estão relacionadas com a discussão e a história a qual se narra. No caso, os dois primeiros títulos foram retirados de músicas de Chico Buarque, a saber, “Vai ar” e “Cálice”; o último foi retirado da música “Latinoamérica” do grupo porto-riquenho Calle 13.
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sentados como “coisas em si”, abstratos, naturais e não produzidos historicamente (p. 9). Oliveira (2013) destaca que a ditadura foi condicionante para a configuração da prática liberal da Psicologia e que esta configuração era resultante tanto de um “cerceamento à liberdade de expressão, como censura a todos os aspectos relativos ao social e à dimensão política de vida em sociedade” (p. 74). Isto, por sua vez, marcava uma Psicologia que não podia fazer leitura crítica da realidade social. Foi neste contexto que a Lei no 5.766/71 (Brasil, 1971) que cria o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e os Conselhos Regionais foi instaurada. Durante o momento que o país ava pela ditadura declarada, sem disfarces, tido como o pior período do regime militar (1971–1974), em que se utilizava a tortura e a violência como instrumento oficial da política, os Conselhos Regionais receberam um papel policialesco e autoritário de fiscalizadores com relação à prática profissional dos psicólogos (Coimbra, 2009). Coimbra (2009) destaca que a Psicologia serviu e andou de mãos dadas com a ditadura, tanto que o CFP homenageou Emílio Garrastazu Médici dando-lhe diploma de psicólogo honorário e, não por acaso, seu grande boom no Brasil se deu neste período. Vale lembrar que Médici, após o Ato Institucional no 5 comandou o período mais repressivo do Regime Militar, marcado por perseguições, prisões e assassinatos de pessoas que faziam parte da oposição. Por outro lado, parte das(os) profissionais de Psicologia que não estavam de mãos dadas com o regime implicava em opôr-se a ele. Em estudo realizado por Scarparo e Ozorio (2009) acerca do Conselho Regional de Psicologia (CRP) da 7a região no período da ditadura, os participantes da pesquisa, que atuaram neste Conselho durante 1981 a 1984, afirmaram que em suas práticas e pautas não era dada ênfase nas questões políticas. Nos estudos de Hur (2007; 2012) fica evidente que o modus operandi das Associações e do Sindicato de Psicologia se orientava apenas por preocupações técnicas da profissão e não “políticas”. O pesquisador relata um episódio do sindicato dos psicólogos em que lhe foi solicitado um posicionamento diante do assassinato de Vladimir Herzog, acompanhando Sindicatos de outras categorias e movimentos que se solidarizaram. O Sindicato de Psicologia decidiu por não se manifestar, alegando que, por Herzog não ser psicólogo, qualquer manifestação em sua solidarie94
dade se trataria de “posicionamento político” e a eles cabiam apenas discutir questões técnicas, corroborando, assim, a lógica corporativista e de subserviência ao Estado, como previa o Estatuto de sua fundação. Não obstante, é importante demarcar que esta é uma parcela da representatividade da Psicologia e estamos tratando aqui da sua prática hegemônica, pois muitos psicólogos, psicólogas, estudantes de Psicologia, professores e professoras, militaram e opam-se ao regime, sendo até presos e torturados. De modo enfático, Coimbra (2009) ressalta que também serviram o regime, mesmo que indiretamente, aquelas(es) psicólogas(os) que ignoravam as condições sociopolíticas do país e exerciam práticas extremamente fascistas e conservadoras. Coimbra destaca ainda que, durante o regime, a Psicologia criou um projeto chamado de “Perfil psicológico do terrorista brasileiro”, para dizer que aqueles que se opunham ao regime militar eram pessoas desestruturadas, desajustadas e vinham de famílias problemáticas: “Os psicólogos aplicavam anamnese, testes de nível mental, um teste de frustração, testes de personalidade, testes projetivos etc., e traçavam o perfil do opositor político” (Coimbra, 2009, p. 4). [...] houve profissionais “psi” que apoiaram e respaldaram a patologização dos que lutavam contra a ditadura, classificando-os como “carentes”, “desestruturados”, ou seja, “doentes”, por meio de uma pesquisa, “O Perfil Psicológico do Terrorista Brasileiro”, que usou uma série de testes psicológicos aplicados a presos políticos. Alguns desses profissionais forneceram laudos psiquiátricos e psicológicos de militantes presos, entre 1964 e 1978, também patologizando-os. Uma prática mais indigna ainda foi a dos profissionais que davam e às torturas, orientando os torturadores acerca dos limites dos presos, para continuarem sendo torturados ou não, como foi o caso de Amílcar Lobo, que, à época, fazia formação psicanalítica. Muitos profissionais, como psicólogos, psiquiatras, médicos, legistas, advogados colaboraram para que a tortura e o terrorismo de Estado funcionassem de forma eficiente e produtiva; ainda hoje, continuam respaldando processos de exclusão e estigmatização, com os seus saberes e suas práticas, no Brasil e em outros países. [...] Não por acaso, foi nos anos de 1970 que ocorreu, em nosso país, o “boom” das práticas psi, em especial
Furlan, V. (2017) Psicologia e Política de Direitos.
da Psicologia e da Psicanálise; práticas que afirmavam uma Psicologia assistencialista, cientificista, objetiva e neutra. Tais práticas fortaleceram, além do essencialismo e do individualismo, uma psicologização do cotidiano: tudo o que ocorria no mundo era remetido para explicações psicológico-existenciais. E, ainda, através de intimidação e do familiarismo, as práticas psi andaram de mãos dadas com a ditadura, ao deixar de considerarem o contexto histórico, político e social na análise das situações “psi” (Coimbra, s.d., p.p. 15-16). Assim a Psicologia teve participação direta no aparato repressivo da ditadura militar brasileira. Essa participação assemelhava-se àquela que vários médicos tiveram, em que não só acompanhavam os presos políticos torturados, mas também ministravam treinamentos a torturadores e elaboravam laudos psicológicos de presos políticos, sem fazer qualquer menção às inúmeras sessões de torturas às quais eles eram submetidos (Coimbra, 2011). Para a autora, as práticas psicológicas realizadas junto ao governo militar tinham objetivos contrários a qualquer possibilidade de se pensar nas condições subjetivas dos prisioneiros e torturados por militares e, com argumentos de defesa da ordem proporcionada pelo regime militar, acreditavam na necessidade de traçar um perfil daqueles que se mostravam contrários ao regime. Vemos assim que analogamente ao aparato jurídico que, de acordo com Agamben (2004), possuía uma relação instituída com um sistema de estado de exceção – representado na figura de uma ditadura –, o governo ditatorial do nosso país também teve, disposto a seus serviços, o aparato da categoria da Psicologia. Isto ratifica, por sua vez, conforme assinala Oliveira (2013), que o clima político de seu tempo é determinante direto daquilo que resulta nas práticas e orientações do aparato da categoria da Psicologia. Nossa reflexão até aqui permite observar o modo como a Psicologia se relacionava, em sua prática hegemônica, com as questões políticas e os direitos durante o período da ditadura, ficando evidente que nalguns casos
contribuiu para as violações dos direitos humanos tendo posicionamentos políticos como sendo “não políticos”. Iremos a partir de agora refletir acerca de construtos psicológicos que buscaram produzir posicionamentos críticos e políticos e práticas diferenciadas frente às que configuravam a prática hegemônica da Psicologia daquele período, e como estes construtos e posicionamentos foram determinantes para a reorientação e reinvenção de seu panorama atual, embora sequelas da atuação da Psicologia que serviu a ditadura ainda estejam imbricadas em determinadas práticas e saberes.
“Esse pileque homérico no mundo”3
Como destaca Lacerda Junior (2013), durante a ditadura, houve diversos setores da sociedade civil que se organizaram em lutas contra o capital e o regime militar. Este processo, por sua vez, também atingiu a Psicologia, criando cisões, crises e transformações. Assim, surgiram novos construtos teóricos e práticas na Psicologia brasileira e na América Latina. É importante demarcar, neste sentido, o papel da Psicologia Social e da Psicologia Política neste processo, que naquele período, em toda a América Latina, começaram a apontar para a necessidade de se construir uma Psicologia de orientação crítica e com compromisso ético-político demarcado com a transformação dos problemas sociais vividos pelas classes populares (Hur & Lacerda Jr, 2016; Lima, Ciampa & Almeida, 2009). Neste sentido, tal proposição se orientou (a) por uma compreensão ontológica do homem enquanto ser histórico e social, tendo a práxis como orientadora de suas ações, e assumiu, naquele momento, um caráter político com a redemocratização da sociedade durante a ditadura. Esta proposição política e crítica teve papel essencial para a reorientação do olhar e compreensão da Psicologia acerca das questões sociais, do compromisso ético e político com a construção do bem comum e com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Não obstante, é importante lembrar que não apenas a Psicologia Social e Política tiveram papel na reorientação da compreensão de homem, sociedade
3 O título deste tópico, como já exposto, foi retirado de um trecho da música de Chico Buarque “Cálice”; canção que foi produzida nos tempos de ditadura e que foi censurada, devido aos compositores Chico Buarque e Gilberto Gil, metaforicamente, fazerem alusão à situação que sociedade vivenciava durante o regime. O “pileque homérico” trata das inquietações, indagações e contestações do homem sobre a vida e outras possibilidades de formas de vida e, especificamente na música, se refere ao desejo de liberdade dos cidadãos do regime ditatorial. Recuperamos este trecho para ser um dos títulos do artigo por conta de estarmos tratando desta história e das inquietações que mobilizaram os cidadãos a se posicionarem frente as injustiças daquele governo, bem como por fazermos analogia com as indagações de certas vertentes da Psicologia que possibilitaram a construção de outros posicionamentos políticos e éticos em seu seio.
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e compromisso ético-político da Psicologia, mas também outras. Todavia, elas foram pioneiras e trouxeram contribuições importantíssimas neste sentido. Assim, esta emergência de posicionamentos críticos em relação à situação da população vivida naquela época culminou também no desenvolvimento da Psicologia Social Comunitária, por meio da qual profissionais vinculados a movimentos contrários do regime ditatorial, preocupados com a construção de novas práticas críticas às instituições sociais conservadoras, iniciaram uma nova relação com as populações subalternas, buscando criar estratégias para a garantia de direitos humanos e do exercício de cidadania. Estas novas proposições e práticas marcaram profundamente a orientação da política da Psicologia que, em seu panorama atual, tem se implicado e assumido sérios compromissos com a construção do bem comum, com os direitos humanos, com as políticas públicas e com o político. Como um dos fatos reveladores deste interesse e preocupação da Psicologia, podemos citar a criação da Comissão dos Direitos Humanos do CFP (oficializada na Resolução CFP no 11/1998), cujas funções, conforme o artigo 2º da Resolução, demarcam que: Art. 2º - São atribuições da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia: I – incentivar a reflexão sobre os direitos humanos inerentes à formação, à prática profissional e à pesquisa em psicologia; II – intervir em todas as situações em que existam violações dos direitos humanos que produzem sofrimento mental; III – participar de todas as iniciativas que preservem os direitos humanos na sociedade brasileira; IV – apoiar o movimento internacional dos direitos humanos; V – estudar todas as formas de exclusão que violem os direitos humanos e provoquem sofrimento mental. Isto também está previsto pelo Código de Ética Profissional do Psicólogo (Resolução CFP nº 10/2005), logo no início de seus Princípios Fundamentais, ao orientar que às(aos) psicólogas(os) cabe respaldar suas ações nos valores da Declaração Universal dos Direitos Humanos e trabalhar no sentido de eliminar todas as formas de violência da sociedade. I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, 96
da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Além deste fator temos observado que está havendo (e isto tem sido um processo gradativo) um grande interesse por parte das(os) profissionais de Psicologia em participar e adentrar espaços em que se discute e luta pela promoção, proteção e garantia dos direitos humanos (Furlan, & Pelissari, 2013). Espaços como: movimentos sociais, fóruns de discussões, conselhos de controle social, centros de referências, espaços de construção de políticas públicas etc., bem como espaços em que se pautam temáticas como saúde, direitos das crianças e adolescentes, direitos do idoso, direitos da mulher, da família, medicalização da sociedade e da educação, antimanicomialismo, saúde do trabalhador, direito à política, direito à cidadania, entre outros. Isto é observado não apenas nos contextos de inserção prática do profissional da Psicologia, mas também na Psicologia produzida e ensinada no meio acadêmico-universitário, onde se vê uma grande quantidade de núcleos e grupos de estudos e pesquisas que se debruçam acerca das temáticas expostas acima, em que tais pesquisas não apenas têm esses campos de forças e contradições como meros objetos de estudo para coleta de dados e produção de conhecimento, mas como um campo para o exercício da participação política e transformação social. Yamamoto (2012) destaca que na pesquisa nacional acerca da profissão do psicólogo realizada pela Anpepp (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia), publicada em 2010, foi constatado que aproximadamente 40% dos psicólogos que participaram do estudo trabalham no campo das políticas sociais. Este interesse ainda é notado quando na “2ª Mostra Nacional de Práticas em Psicologia”, ocorrido em 2012, após 12 anos do acontecimento da primeira, tivemos como tema “Compromisso com a Construção do Bem Comum”, e para discutir como fazermos isso contamos com a presença de: Pedro Pontual, ligado à Secretaria-geral da Presidência da República no Departamento de Participação Social; Paulo Vanuchi,
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principal responsável pelo Plano Nacional de Direitos Humanos; Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, atual coordenador da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP; Marcus Vinícius de Oliveira, discutindo a posição do Sistema Conselhos de Psicologia acerca do Direito a Verdade; e outras figuras importantes que partilham e lutam pela conquista de um país mais justo, além de outros temas que compam as mesas e as diversas discussões que tratavam do bem comum, da conquista de direitos humanos e outros direitos, de controle social, de gestão pública e outros. Em uma das salas foi apresentado um vídeo sobre os direitos humanos, organizado pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP e intitulado “Direitos Humanos, Nossos Direitos”, que fazia uma homenagem a Vladimir Herzog. Aqueles que por ela aram não saíram sem ter despertado uma inquietação e indignação frente as injustiças e violências cometidas nesse país. A “2ª Mostra Nacional de Práticas em Psicologia” revelou, portanto, o imprescindível e necessário compromisso que a Psicologia, em seu panorama atual, tem assumido com as políticas públicas, os projetos sociais, os direitos humanos, ou seja, o compromisso com o bem comum para a construção uma sociedade mais justa e igualitária. Temos ainda a criação de outras instâncias e eventos que se orientam neste sentido. Podemos citar: a criação do Crepop (Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas) em 2006, que revela o interesse e a demanda que tem sido apresentada à Psicologia para atuar no âmbito das Políticas Públicas, principalmente no que se refere à redução da desigualdade social; a criação dos Seminários de Psicologia e Políticas Públicas e de Psicologia e Direitos Humanos; além de tantos outros exemplos. Isto mostra como a Psicologia tem se orientado pelo compromisso com os direitos dos cidadãos e com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, travando uma resistência com os drásticos impactos gerados pelo capital sobre a vida das pessoas e uma luta com a falta de investimento em políticas públicas para a garantia de uma vida digna para os cidadãos. Para Pereira (2007), o fato de a Psicologia adentrar o campo do público é uma forma contra-hegemônica de se fazer Psicologia. De acordo com Carmo (2001), o compromisso dos psicólogos com as políticas públicas tem a ver com sua inserção social enquanto exercício de sua cidadania.
Essas reorientação e transformação da Psicologia, de acordo com Antunes (2012), têm a ver particularmente com o processo de organização da categoria, em que Muitas das entidades representativas da Psicologia assumiram papéis de grande relevância na transformação da Psicologia no Brasil, fomentando a crítica e proporcionando condições para o debate e para a busca de soluções e possibilidades de superação daquela Psicologia limitada e elitista, em direção à constituição de uma ciência e de uma profissão radicada em sua realidade e com ela comprometida (p. 62). Observa-se, portanto, como já vimos no primeiro tópico, conforme Oliveira (2013), o clima político de seu tempo é determinante direto das práticas e orientações de uma categoria profissional, em nosso caso da categoria das(os) psicólogas(os). Assim, como as mobilizações dos movimentos, associações etc., que possibilitaram os processos de democratização do país e novos rumos a política institucional, no seio da Psicologia também houve mobilizações, conflitos internos e posicionamentos crítico e políticos que possibilitaram com que este campo de saberes e fazeres pudesse se reinventar e reorientar, embora não em sua totalidade, seu compromisso social e político eticamente voltados a Políticas dos Direitos, em que se devem basear os valores democráticos.
“Aquí se respira lucha”?
Apesar da preocupação e do interesse da Psicologia em discutir, colaborar e ocupar espaços em que se luta por direitos, se discute e se constroem políticas públicas, em livro de publicação do CRP-SP, a coordenadora da Comissão de Direitos Humanos (de 2009 a 2010) do mesmo Conselho destaca que ainda [...] emerge das práticas profissionais e das denúncias do movimento de defesa dos direitos humanos, uma série de situações que revelam a ausência da garantia dos direitos humanos em diversas instituições ou entidades em que o profissional da psicologia atua, particularmente aquelas em que há privação de liberdade (sistema prisional, hospitais psiquiátricos, abrigos 97
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para crianças e idosos, Fundação CASA, entre outras). [...] através da interlocução com várias dessas entidades acusadas de realizar violações de direitos humanos pode-se observar que os profissionais da psicologia em algumas situações manifestaram conivência com as violações e violências propagadas na instituição. Em alguns casos, inclusive defendendo o uso de práticas como a tortura, castigo e humilhações para coibir determinados comportamentos incompatíveis com as regras da entidade (Sposito, 2011, p. 17). Este tipo de prática dos profissionais da Psicologia nestas instituições, sejam elas filantrópicas, privadas, ou públicas, em que se viola os direitos humanos e se contribui para o sofrimento e adoecimento psíquico, herdamos dos tempos de ditadura. A atuação dos profissionais da Psicologia em instituições que têm como objetivo lucrar com aquilo que é sofrimento humano e que camufla esse objetivo por trás de um discurso altruísta nos remete às práticas da Psicologia durante o regime militar. Geralmente as práticas cometidas que violam os direitos humanos, sejam de agressão, contenção corporal, xingamento, ofensas, intimidações, humilhações e outras, ocorrem por conta da não submissão à norma institucional ou a “àquele que manda” etc. E os profissionais da Psicologia têm contribuído com este tipo de prática, muitas vezes sendo os responsáveis por fazer com que os sujeitos institucionalizados sejam cada vez mais domesticados à ordem institucional e por gerar sofrimento psíquico. Quando isso não ocorre, o profissional da Psicologia que está na instituição acaba por se institucionalizar e tal prática a a ser entendida como natural. Vemos ainda práticas do período ditatorial que perduram dentro dos contextos clássicos da Psicologia (clínica, escola e indústria), como: o isolamento de alguns profissionais da Psicologia no consultório clínico, atendendo apenas a elite da sociedade; a atuação dentro da escola a partir de uma perspectiva clínica, realizando diagnósticos e contribuindo para a produção de deficiências e crianças “problemas”, culpabilizando a criança e a família e, com isso, obscurecendo as contradições intraescolares e sociais; e a atuação do psicólogo dentro da indústria como mero aplicador de testes para seleção de pessoal e assim contribuindo para excluir o trabalhador do mercado do trabalho, entendo-o como não capacitado. 98
Em outro exemplo, podemos citar o estudo de Costa, Oliveira e Ferraza (2014), que demonstra o distanciamento político ou os posicionamentos políticos não ligados aos direitos humanos de muitos profissionais “psi” ao tomarem as polêmicas que envolveram as propostas do antigo presidente da Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados, que ficaram conhecidas como “cura gay”, e que afetariam diretamente as práticas e discursos das(os) profissionais da Psicologia. As(os) psicólogas(os), assegurados pela Resolução do CFP, publicada em 1999, não podem colaborar com eventos e com a divulgação de serviços que ofereçam tratamento para a suposta “cura” da homossexualidade, além de serem vedados de participar de manifestações que reforcem preconceitos sociais em relação às práticas homoafetivas. Tal projeto visava derrubar a resolução do CFP com o intuito de assegurar a prática de profissionais “psi” que divulgam a possibilidade de “tratarem” homossexuais e que alegam promoverem o suposto bem-estar para a família e para a nação brasileira. Diante da polêmica causada pelo referido projeto, inúmeros profissionais se posicionaram como contrários às propostas do presidente da Comissão de Direitos Humanos; no entanto, muitas(os) psicólogas(os) também saíram em apoio ao projeto, alegando que sofriam perseguições do conselho de classe devido ao posicionamento em relação às relações homoafetivas. O distanciamento desses profissionais em relação às noções de direitos humanos e cidadania ficam evidentes ao desconsiderarem as possibilidades de que projetos como aqueles poderiam provocar mais atos homofóbicos, agressões, torturas e mortes apenas pela orientação sexual de diversos indivíduos no país, bem como revela ainda concepções de homem naturalizantes e biologizantes e ideais moralistas de família e das relações afetivas. Esta contradição das práticas no seio da Psicologia Trata-se da coexistência de uma Psicologia que avançou para uma ampliação em seu espectro de ação e que se consolidou como instância social comprometida com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária e uma psicologia que ainda se submete a concepções tradicionais e ultraadas, que não se atualiza e que atua com base em modelos que já foram analisados, criticados e superados há décadas. O movimento
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histórico é, pois, heterogêneo, e há segmentos que tomam a dianteira do processo, outros que respondem mais tardiamente e outros que resistem (Antunes, 2012, p. 62). Vemos, portanto, que ainda se faz importante, em nossa prática, se orientar pela indagação levantada por Bicalho, Kinoshita, Castilho e Carvalho (2013) e assumida como campanha pela Comissão Nacional dos Direitos Humanos do CFP: “Em nome da proteção e do cuidado, que formas de sofrimento e exclusão temos produzido?”. Conforme o artigo primeiro da Declaração de 1948, “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Todavia, destaca Coimbra (2000), que “sempre estiveram fora desses direitos à vida e à dignidade os segmentos pauperizados e percebidos como ‘marginais’: os ‘deficientes’ de todos os tipos, os ‘desviantes’, os miseráveis, dentre muitos outros” (p. 142). Isto é reflexo, como afirma o sociólogo Santos (2013), da não efetividade da Política de Direitos Humanos e, apesar de incontestável na linguagem de dignidade humana na hegemonia global, a grande maioria da população é apenas objeto desse discurso e não sujeitos de direitos humanos de fato. Como comenta Teles (2012), os segmentos menos favorecidos socialmente e desprovidos de recursos estão, na mesma medida, desprovidos de direitos, e isto pode ser observado por meio da violência provocada contra os moradores de Pinheirinho e das “cracolândias”, sustentada por uma lógica espúria dos interesses do mercado e do capital. Podemos, nesta perspectiva, observar que a lógica da Política de Direitos se orienta por dois contrapontos: de um lado, visa atender aos interesses do mercado e aos interesses individuais dos donos de capital, de outro, busca garantir uma vida mais digna para toda a população. Neste sentido, como enfatiza Santos (2012), é preciso cuidado para não cair na armadilha que sustenta os diferentes discursos acerca dos direitos, tendo em vista que eles se orientam por ideologias hegemônicas e contra hegemônicas. As hegemônicas prezam pelo individualismo proprietário, por reproduzir as relações capitalistas, colonialistas e patriarcais; os casos da comunidade de Pinheirinho, a política higienista das “cracolândias” e o genocídio dos povos indígenas se prestam bem como exemplos desta forma ideológica, que se valem pelos interesses individuais e econômicos.
As contra-hegemônicas buscam oferecer concepções alternativas, potencialmente orientadas para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, se respaldando nos interesses da coletividade e do bem comum. Assim, Teles (2012) se indaga em que medida uma política de inclusão social é compatível com a lógica do mercado determinada pelas elites do sistema financeiro, já que o Estado tem exercido um papel de dos interesses do capital e dos mais ricos, provocando, consequentemente, um crescente constante da desigualdade econômica que contribui para minar sistematicamente a democracia (Peschanski, 2012). Frente a esta realidade, o psicólogo será o estrito avaliador da intimidade, aperfeiçoando seus métodos de exame? Ou lembrar-se-á que este sujeito também é sujeito-cidadão, cujos direitos e deveres se constituem no espaço público, território onde peram outros discursos e práticas que não o exclusivamente psicológico? (Jacó-Vilela, 1999, p. 17). Esta autoconscientização ética, portanto, que vem transformando a Psicologia é por demasiado necessária, para inscrevê-la num movimento histórico enquanto uma ciência e profissão que pode contribuir com a dimensão humano-genérica da humanidade (Heller, 2008), ou seja, ela pode e tem buscado se elevar enquanto consciência de “nós” comunidade humana e se inserir na dimensão ética coletiva de colaboração com o bem comum de todos os homens. A Psicologia que busca, assim, ter um compromisso com a Política dos Direitos pode ter um papel tanto analítico como de intervenção para sua construção, afirmação ou negação, na medida em que pode criar um campo de tensão para planejar estratégias que contribuam para o movimento histórico do humano-genérico (Souza, 2015).
Considerações finais
A partir de nossas investigações, podemos ver que a Psicologia dos tempos ditatoriais foi determinada pela política de seu tempo, tendo colaborado com aquele sistema de governo, com a criação e aplicação de testes psicológicos, práticas de tortura a presos políticos e silenciamentos frente as formas de injustiças. Isto, por sua vez, revela que, assim como 99
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outros aparatos, a ditadura teve uma relação instituída com o aparato da categoria da Psicologia. Em que pese esta forma de fazer Psicologia tenha sido hegemônica naquele período, ela conforma-se enquanto um campo conflituoso de saberes, fazeres e posicionamentos político-ideológicos e, como as mobilizações populares pela democratização do país, parte dos atores ligados à Psicologia – estudantes, profissionais, pesquisadoras (es), docentes etc. – buscou produzir um campo implicado com tais mobilizações e com os processos de democratização, forjando suas práticas psicológicas como formas de resistência, tendo como orientador um compromisso ético-político com as classes populares e com as transformações da realidade social. Assim, com os processos de democratização do país e os impactos que a política institucional tem sobre as categorias profissionais, a Psicologia também se reorientou e se reinventou, buscando assumir em seus saberes e fazeres um compromisso ético e político com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária e com a política de direitos, como podemos ver com os temas de pesquisas e congressos, as preocupações do Sistema Conselhos, os trabalhos em projetos sociais e nas políticas públicas, a criação do Crepop e de Comissões de Direitos Humanos em associações e entidades da Psicologia, dentre outros exemplos.
Não obstante este compromisso ter tomado conta da Psicologia, ainda se identificam heranças das práticas psicológicas ditatoriais que foram deixadas em seu seio, como as violações de direitos em instituições e entidades em que o profissional da Psicologia atua e contribui para tais violações, bem como quando apoiam projetos que estão na contramão da Política de Direitos, como no suposto projeto da “cura gay”. Como podemos ver, a partir das tensões produzidas no seio da Psicologia por conta dos diferentes posicionamentos políticos e ideológicos, ela caminhou no sentido a um processo de autoconscientização ética de compromisso com a política de direitos, embora não em sua totalidade. Temos construído, portanto, em seu panorama atual, um campo que, por um lado, resguarda heranças das práticas do período ditatorial, na medida em que pactua ou contribui com as formas de violações de direitos humanos em instituições e entidades, quando se silencia e colabora com a perpetuação das injustiças sociais e comunga de projetos ideológicos que estão na contramão dos direitos humanos, e que, por outro lado, busca lutar e ter um compromisso ético-político com a política de direitos, com as políticas públicas, visando colaborar com a construção do bem comum e de uma sociedade mais justa e igualitária, na dimensão ética coletiva do “nós” humanos.
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Vinicius Furlan Doutorando em Psicologia Social – PUC-SP. Mestre em Psicologia – UFC. E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Francisco Jorge de Moraes, 153, Santa Helena, Charqueada – SP, Brasil. CEP: 13515-000. Recebido 30/06/2017 Reformulado 06/09/2017 Aprovado 20/09/2017 Received 06/30/2017 Reformulated 06/30/2017 Approved 06/30/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 06/09/2017 Aceptado 20/09/2017
Como citar: Furlan, V. (2017). Psicologia e a política de direitos: percursos de uma relação. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 91-102. https://doi.org/10.1590/1982-3703070002017 How to cite: Furlan, V. (2017). Psychology and the rights policy: paths of a relationship. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 91-102. https://doi.org/10.1590/1982-3703070002017 Cómo citar: Furlan, V. (2017). Psicología y política de derechos: caminos de una relación. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 91-102. https://doi.org/10.1590/1982-3703070002017 102
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 103-115. https://doi.org/10.1590/1982-3703080002017
Psicologia Social e Pesquisa com Memória: Método e Reparação de Danos da Ditadura Civil-Militar Luis Eduardo Franção Jardim Universidade de São Paulo, SP, Brasil.
Resumo: As marcas profundas deixadas pela ditadura civil-militar atingiram não somente os perseguidos políticos e seus familiares, mas todos cidadãos, pois seu legado permanece vivo ainda hoje na memória individual e memória social de todos. O fim da ditadura impôs silenciamento e esquecimento forçados, que impedem o direito à memória, verdade e justiça, bem como a elaboração dos danos produzidos. O enfrentamento de um problema político deve necessariamente atuar em seu caráter político, e não apenas no aspecto psicológico. Depois da Abertura, as possibilidades de reparação dos danos ficaram restritas a organizações sociais que prestaram assistência e atendimento psicológico em grupo. Recentemente, a criação das Clínicas do Testemunho e da Comissão da Verdade foi uma importante iniciativa do Estado em direção à averiguação dos crimes, ao reconhecimento público de suas responsabilidades, à politização do dano e a sua elaboração. Inicialmente, apresentaremos as Clínicas do Testemunho e a Comissão da Verdade como alternativas de reparação psíquica e política dos danos provocados pela ditadura civil-militar. Para, em seguida, discutirmos uma possibilidade metodológica de pesquisa com memória em Psicologia Social e possíveis contribuições dessa atuação para a reparação destes danos. A Psicologia Social atua na fronteira entre o indivíduo e o social, entre o psicológico e político, e é importante para a reparação dos danos da ditadura. O trabalho do psicólogo social com a evocação da memória pode contribuir tanto para elaboração e reflexão da experiência do depoente, quanto para a tarefa política de pensar seus fundamentos, para que esta experiência não se repita. Palavras-chave: Memória, Elaboração, Ditadura, Psicologia Social.
Social Psychology and Memory Research: Method and Repair for Damages of the Civil-Military Dictatorship Abstract: The deep marks left by the civil-military dictatorship reached not only the politically persecuted and their families, but also every citizen. Its legacy remains alive today in individual memory and social memory of citizens. The end of the dictatorship imposed forced silence and forgetfulness, avoiding the right to memory, truth and justice, as well as the elaboration of the damage produced. Facing a political problem must necessarily involve its political aspect, and not only its psychological one. After the Opening, the possibilities for repair for damage were restricted to social organizations that provided assistance and group psychotherapy. Recently, the creation of the Clinics of Testimony and Truth Commission were important initiatives of the State towards the investigation of crimes, public recognition of their responsibilities, politicization of the damage and its elaboration. Initially, we intend to present the Clinics of Testimony and Truth Commission as psychic and political reparations of the damages caused by the civil-military dictatorship. Then, we discuss a methodological possibility of research involving memory in Social Psychology and possible contributions of this action for the repair of damages. Social psychology works at the boundary between the individual and the social spheres, between the psychological and political aspects, important for repairing the damage caused by dictatorship. The work of the social psychologist with the evocation of memory can contribute to both elaboration and reflection of the experience of the person who produces testimony, as to the political task of thinking its foundations, so that this experience is not repeated. Keywords: Memory, Elaboration, Dictatorship, Social Psychology. Disponível em www.scielo.br/p
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Psicología Social e Investigación con Memoria: Método y Reparación de los Daños de la Dictadura Cívico-Militar Resumen: Las profundas cicatrices dejadas por la dictadura cívico-militar llegaron no solo a los perseguidos políticos y sus familias, sino también para todos los ciudadanos. Su legado sigue vivo hoy en día en la memoria individual y la memoria social de los ciudadanos. El fin de la dictadura impuso el silencio y el olvido forzado, evitando el derecho a la memoria, la verdad y la justicia, así como la elaboración de los daños producidos. El enfrentamiento de un problema político necesariamente debe actuar en su carácter político, y no solo en el aspecto psicológico. Después de la Apertura, las posibilidades de reparación de daños se limitaron a las organizaciones sociales que proporcionan asistencia y psicoterapia de grupo. Recientemente, la creación de la Clínica del Testimonio y Comisión de la Verdad fueron iniciativas importantes del Estado hacia la investigación de los delitos, el reconocimiento público de su responsabilidad, la politización de los daños y su elaboración. Inicialmente, presentaremos las Clínicas del Testimonio y la Comisión de la Verdad como alternativas de reparación psíquica y política de los daños provocados por la dictadura civil-militar. Luego discutiremos una posibilidad metodológica de investigación con memoria en Psicología Social y posibles contribuciones de esa actuación para la reparación de estos daños. La psicología social opera en el límite entre lo individual y lo social, entre lo psicológico y lo político, importante para la reparación del daño de la dictadura. El trabajo del psicólogo social con la evocación de la memoria puede contribuir tanto a la elaboración y reflexión de la experiencia del quien da testimonio, como a la tarea política de pensar sus fundamentos, por lo que esta experiencia no se repite. Palabras clave: Memoria, Elaboración, Dictadura, Psicología Social. La memoria que me persigue a mí no está en el Olimpo, sino en los rincones más sórdidos y tristes, y en la esperanza más obstinada del drama humano. Ignacio Dobles Oropeza (2009)
Introdução
Este artigo foi desenvolvido com base no legado dos 21 anos de ditadura civil-militar no Brasil e seus impactos no cotidiano do brasileiro e naqueles que lutaram contra o regime autoritário. O objetivo deste escrito é apresentar uma possibilidade metodológica de pesquisa com memória com base na Psicologia Social e levantar possibilidades de reparação e elaboração que este trabalho com a memória possa oferecer. Inicialmente, pretende-se: apresentar brevemente as Clínicas do Testemunho e as Comissões da Verdade como alternativas de reparação psíquica e política dos danos provocados pela ditadura civil-militar. Para, em seguida, discutir uma possibilidade metodológica de pesquisa com memória em Psicolo104
gia Social e possíveis contribuições dessa atuação para a reparação destes danos. Trata-se de uma articulação entre um método de pesquisa baseado na memória de depoentes e o contexto psicossocial que a ditadura civil-militar estabeleceu no Brasil. Nas palavras de Bosi (2009), pode-se dizer que a articulação proposta neste trabalho “situa-se na fronteira em que cruzam-se os modos de ser do indivíduo e da sua cultura (política): fronteira que é um dos temas centrais da psicologia social” (p. 37), fundamento principal deste texto. Em outras palavras, esta disciplina de fronteira caracteriza-se não pela focalização da subjetividade no homem separado, mas pela exigência de encontrar o homem na cidade, o homem no meio dos homens, a subjetividade como aparição singular, vertical, no campo intersubjetivo e horizontal das experiências (Gonçalves Filho, 1998a). adas mais de três décadas do fim da ditadura no país, uma nebulosidade ainda obscurece a verdade sobre os acontecimentos do regime e reluta abrir espaço para a justiça, memória e reparação. Esse fundo lodoso contribuiu para que a ditadura brasileira encon-
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trasse diversas maneiras “de não ar, de permanecer em nossa estrutura jurídica, em nossas práticas políticas, em nossa violência cotidiana, em nossos traumas sociais que se fazem sentir mesmo depois de reconciliações extorquidas” (Safatle, & Teles, 2010, p. 09). De nossa história recente, ainda identificamos hoje o legado disciplinar do regime de intensa repressão militar que impôs, também durante a transição, um registro de silenciamento que, embora não proíba dizer, incita a calar (e esquecer), muitas vezes em meio a uma ofuscante prolixidade aparente (Kolker, & Mourão, 2002; Rodrigues, & Mourão, 2002). As estratégias de silenciamento e acobertamento dos crimes da ditadura impostas nos anos de redemocratização (e ainda hoje) relegam nossa história recente ao caráter de esquecimento institucionalizado. Durante o regime, a política repressiva do Estado dirigiu-se não apenas ao opositor político, considerado inimigo interno, mas sua maquinaria de terror atingiu o campo social como um todo. A abrangência da violência se deu de modo que “a cultura da violência e do terror penetra dos espaços mais íntimos aos mais coletivos da vida social” (Almeida, 2002, p. 46), atravessando as instituições e instaurando a vigilância e o medo no cotidiano do brasileiro (Jardim, 2016). Para além da obtenção de informação, o objetivo da tortura era fundamentalmente a quebra de toda e qualquer resistência e iniciativa do opositor e da população. A experiência clínica com atendimento às vítimas da ditadura, de Kolker e Mourão (2002), revelou que “os métodos utilizados tanto podiam ser físicos como psicológicos. Os últimos tinham a vantagem de não deixar marcas visíveis e seus efeitos serem mais duradouros” (p. 241). É fundamental entender que o impacto de toda tortura, necessariamente, resulta em marcas físicas e psicológicas. Não há tortura física que não tenha um impacto psicológico que não se desfaz (Arantes, 2013). A violência não atingiu apenas aqueles que foram presos e torturados ou as mães que ainda hoje choram “a dor de quem viu um ente querido desaparecer atrás das grades da cadeia, sem mesmo poder adivinhar o que lhe aconteceu”, de acordo com o relatório Brasil Nunca Mais – BNM (Arns, 2009, p. 12). Sua amplitude estende-se, por vezes, velada e insidiosa, a todo cidadão que
viveu aquela época, e também aos que hoje, sem saber, transitam por entre os emaranhados ocultos da malha política tecida pelo regime. Para o historiador Coggiola (2001), “as consequências desse período são sentidas até hoje, não se tratando de algo superado” (p. 9). Seja pelas marcas pessoais que carregam, seja pelas mudanças nas condições de vida e de trabalho, muitos dos que sobreviveram à repressão tiveram suas vidas alteradas para sempre: perseguições, carreiras interrompidas, vocações abandonadas, exílios (Coggiola, 2001; Jardim, 2016). A ausência de uma Justiça de Transição e de uma reparação dos danos da ditadura contribuíram para que o impacto da violência na população se estendesse após a redemocratização, presente ainda hoje também pelas marcas impostas nas relações cotidianas na cidade, no trabalho e nas relações sociais. A ideologia dominante e os anos de negação desta violência pelo Estado ocultam o caráter político dessa violência e individualizam o sofrimento das vítimas diretas e indiretas. Sofrimentos políticos não são enfrentados apenas psicologicamente, uma vez que são políticos. Mas enfrentá-los politicamente inclui enfrentá-los psicologicamente (Gonçalves Filho, 2004; 2007). Deste modo, qualquer possibilidade de elaboração deste tipo de dano deve, necessariamente, também perar a dimensão do político, da politização do dano (Brasil, 2012; Kolker, 2009; Kolker, & Mourão, 2002). Até muito recentemente, todas as iniciativas de elaboração dos danos decorrentes da ditadura estavam concentradas nas mãos de associações e/ ou organizações sociais1, muitas vezes apoiadas por entidades internacionais. Dentre diversas outras atividades voltadas à elaboração de danos, essas organizações prestaram e prestam atendimento psicológico em grupo às vítimas da ditadura. Em 2013, com a instalação das Clínicas do Testemunho2 por meio da Comissão da Anistia vinculada ao Ministério da Justiça, pela primeira vez, o Governo Federal financia um projeto de atendimento psicológico a sua população atingida pelas marcas da ditadura. Outra importante contribuição para verdade e recuperação da memória são as comissões da ver-
1 Os Grupos Tortura Nunca Mais por todo o Brasil foram responsáveis por parte significativa dos atendimentos psicológicos às vítimas do regime civil-militar nos anos pós-democratização. Até a década de 2010, as principais publicações sobre clínica nessa área proviam da experiência do GTNM/RJ. 2 Ao longo dos dois editais das Clínicas do Testemunho, em 2012 e 2015, o projeto foi conduzido em São Paulo pelo Instituto Sedes Sapientiae, Instituto Projetos Terapêuticos e Margens Clínicas.
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dade ao redor de todo o país, especialmente a Comissão Nacional da Verdade (Lei no 12.528/2011, Brasil, 2011), instalada em 2012 e concluída em 10 de dezembro de 2014. Essas medidas de reparação são fundamentais nesse processo, no entanto, não esgotam as possibilidades de reparação desses danos irreversíveis. Neste sentido, o psicólogo social, por atuar na fronteira entre psicológico e político, pode oferecer uma importante contribuição por meio da pesquisa com a memória. De modo complementar às outras iniciativas – e não substitutivo –, a pesquisa com a memória de pessoas que viveram o período da ditadura e/ou sofreram em decorrência da força do Estado autoritário atua na articulação entre o privado e o político. O tempo da memória é social. Descrever a substância social da memória – a matéria lembrada – revela que a lembrança é tanto individual quanto social. E, principalmente, esse trabalho deve prestar-se à reflexão e ao pensamento sobre os elementos sociais que fundam esta violência em sua especificidade. A relevância do resgate da memória e reflexão sobre o esquecimento relativo a este período sombrio, não está apenas na elaboração individual daqueles que experienciaram diretamente a violência de Estado, mas também por seu caráter político, em direção à verdade e esclarecimento sobre a abrangência do impacto da barbárie da ditadura. Trata-se de um esforço visando não mais permitir que as ressonâncias autoritário-ditatoriais permaneçam na silenciosidade obscura do esquecimento, para romper com a proibição e clandestinidade de uma memória que ocupa a cena cotidiana e para que as memórias subterrâneas (Pollak, 1989) da ditadura possam invadir os espaços públicos. A partir das reflexões deste possível papel do psicólogo social no trabalho com a memória daqueles que viveram a ditadura, pretende-se que este artigo seja um pequeno eco para a voz das pessoas que lutaram e lutam quase solitárias pela memória, justiça e verdade em no Brasil. Concordamos com Coggiola (2001) que “lutar pela memória, como arma de recusa ao atual estado de impunidade que pera aqueles anos, é transformar a capacidade de lembrar em instrumento político de mudança e justiça” (p. 62). Eis aqui um esforço para que a lembrança do ado ajude a compreender o presente e contribua para que a história não se repita e a violência de Estado não se perpetue. 106
Sobre a especificidade do dano produzido pela ditadura
Para que se possa pensar as possibilidades de reparação dos danos decorrentes da violação dos direitos humanos durante a ditadura, é fundamental que se faça algumas considerações sobre a especificidade do dano produzido por este tipo de violência. O Estado tem como função principal proteger os cidadãos e garantir seus direitos e integridade física. Para este fim, é o único órgão que detém o poder de uso da violência. Quando esta violência se volta contra a mesma população que deveria ser protegida, o Estado transgride sua própria norma. Portanto, o que distingue um dano produzido por violência de Estado de outras formas de violência é seu caráter político, agravado pela relação com o momento histórico de gestão da ditadura, que repercutiu em exclusão social e destruição (Vital Brasil, 2009). As ações do Estado durante a ditadura possuem abrangência para além do sofrimento individual dos perseguidos, e revelam seu fundamento político. Na medida em que se tratava de uma violência de um grupo ideológico contra outro, a repressão aos opositores do regime mostra-se como um processo político. Para Gonçalves Filho (1998a; 2004; 2007), os processos políticos informam a subjetividade, desdobramse internamente, desdobram-se “para dentro”, mas um tal desdobramento sofre metabolismo pessoal e assume figura singular – metabolismo e figura que exigem detida consideração e consideração diferenciada. Sobre esse processo, Kolker (2009) entende que todos somos afetados por esta violência, mas não se pode ignorar que aqueles atingidos diretamente pela violência carregam marcas distintas daquelas que afetam o conjunto da sociedade. Um dano que possua, ao mesmo tempo, um caráter político e psicológico, não pode ser enfrentado apenas psicologicamente, uma vez que também é político. Mas enfrentá-lo politicamente inclui enfrentá-los psicologicamente (Gonçalves Filho, 2004; 2007). O reconhecimento público do dano é uma parte essencial do processo de reparação e elaboração. A elaboração de um acontecimento histórico-político necessariamente pera o reconhecimento público do acontecido e devida punição dos atores. O reconhecimento pelo Estado da própria responsabilidade pelo uso da violência durante a ditadura é um dos primeiros os para a legitimação do sofrimento das vítimas e politização do dano. A memória não se constitui como
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um encapsulamento solitário, mas, com base na experiência, que é sempre experiência com o outro em meio a um determinado contexto histórico, delineiam-se as possibilidades e os modos de se estar em sociedade.
Atendimento psicológico e Clínicas do Testemunho
Com o fim da ditadura em 1985, algumas políticas públicas e o autoperdão impostos pelos próprios torturadores instalaram uma atmosfera de silenciamento e obscurecimento que, pela negação, inibiu a possibilidade de elaboração da memória coletiva da ditadura. A tortura, o silenciamento e a impunidade, juntamente com a aprovação da violência por uma parcela significativa da população, relegaram o sofrimento dessa violência à dimensão somente individual. O silenciamento e a desresponsabilização do Estado pelas próprias ações repressivas estabeleceram uma espécie de legitimação pública desta violência e de deslegitimização do sofrimento, mantendo-o no âmbito privado, no isolamento e desamparo. Esta privatização dos danos e desamparo às vítimas repercutiu também nas parcas possibilidades de elaboração existentes no período de redemocratização. Desde o fim do regime autoritário, as possibilidades de elaboração desse sofrimento concentraramse em organizações sociais mantidas por doações e recursos de entidades internacionais, na maioria das vezes, sem apoio algum do Governos Federal. Dentre estas organizações sociais, os Grupos Tortura Nunca Mais em todo o Brasil têm grande importância na luta pelo direito à memória e verdade e prestação de atendimento psicológico às vítimas do regime. Os membros do Rio de Janeiro (GTNM-RJ) merecem destaque pela ampla gama de atividades psicológicas promovidas com este propósito e pelas publicações de seus trabalhos (CINTRAS, EATIP, GTNM/RJ, SERSOC, 2009; Mourão, 2009; Rauter, os & Benevides, 2002) nas primeiras décadas após o fim do regime. Para o GTNM-RJ, a clínica tem um caráter político. Isto significa entender sua implicação com as políticas de subjetivação, seja em sentido da reprodução como da desconstrução da subjetividade instituída (Kolker, 2009; Mourão, 2009; Rauter et al., 2002; Vital Brasil, 2009). No que se refere ao atendimento psicológico às vítimas da ditadura, a modalidade grupal tem uma importância significativa pelo compartilhamento com outros que viveram sofrimento semelhante. A modalidade em grupo já é um grau de politização do
dano. No grupo, o absolutamente esquecido, aquilo que permanece obscuro, espalhando suas raízes subterrâneas que alimentam o existir com a seiva da violência sofrida, pode ganhar certa voz e atingir alguma elaboração (Jardim, 2014). O grupo é lugar de pensar junto, o que se aproxima do que Arendt (2000) chamou de ato de julgar. No entendimento de Gonçalves Filho (2004), com base no pensamento de Arendt, o julgamento é uma experiência que acontece em meio aos outros e implica o pensar e também o conversar; é o pensamento que conversa com o pensamento dos outros: “as visões parecem desembaçar, porque vão ando por vários olhos que tocaram seus pontos de vista. Começo respondendo pelo que vejo e o para o que vêem os outros” (p. 14). O pensamento que conversa com o pensamento do outro é um elemento da politização do dano. A politização do dano retira-o da esfera isolada do “eu” para olhá-lo em suas irradiações na coexistência. Em um grupo de psicoterapia, conseguindo-se estabelecer um espaço de acolhimento e confiança entre os membros daquele microcosmo, abre-se também para que cada um seja tal como ele é na relação de um com o outro (Jardim, 2012). Ser tal como se é em grupo, a partir do dano, abre a possibilidade inicial de lidar com o dano em seu caráter político e não apenas individualizado. No que concerne à elaboração psicológica do sofrimento de cada participante do grupo, cada um processará esses danos em diferentes graus e modos, de acordo com as possibilidades ao seu alcance. Contudo, é importante ressaltar que, para os danos produzidos pela violência de Estado com a tortura, perseguição, extermínio, desaparecimento de corpos, não existe reparação e elaboração plenas. A experiência como ex-presa política e como psicóloga de Arantes (2013) nos alerta que “as consequências do excesso e da crueldade produzidas pela tortura não se extinguem e nada do que uma vez se formou pode perecer” (p. 386). A reparação e elaboração serão sempre parciais e, prioritariamente, simbólicas. Outra importante inciativa nesse âmbito são as Clínicas do Testemunho, via Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. No ano de 2013, ados quase 30 anos do fim da ditadura, entrou em vigor a primeira iniciativa do Governo Federal com o intuito de promover a elaboração psicológica dos danos das vítimas do regime autoritário. O projeto oferece atendimento psicológico de grupo às vítimas da ditadura 107
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numa parceria do Estado com a iniciativa privada, visando reparações coletivas, projetos de memória e ações para a não repetição com o claro objetivo de permitir a toda a sociedade conhecer, compreender e, então, repudiar tais erros (Brasil, 2012). As Clínicas do Testemunho têm um caráter político. O grupo de psicoterapia é parte de um processo de elaboração de um dano, que, muito antes, é um dano a um povo, não circunscrito “apenas” aos afetados diretamente. Neste sentido, para que a psicoterapia de grupo não “saia pela culatra” e, ingenuamente, reforce ainda mais o caráter de dominação reforçado pelo regime, é de fundamental importância que o psicólogo de um grupo de vítimas com essa especificidade tenha profundo conhecimento e crítica em relação à história e aos acontecimentos políticos em jogo na ditadura civil-militar brasileira. É fundamental que o terapeuta esteja intimamente implicado com a questão e com os participantes do grupo, cuidando para que esta prática, em hipótese alguma, se preste a reproduzir o discurso do opressor e a individualizar ainda mais o sofrimento daqueles que foram mais diretamente afetados3.
Memória, comissões da verdade e reparação política
A partir do ano 2012 no Brasil, dezenas de comissões da verdade – municipais, estaduais, em universidades e entidades de classe – atuaram em parceria com a Comissão Nacional da Verdade. As comissões são órgãos oficias de investigação e apuração de abusos e violações dos direitos humanos com importância fundamental para a reelaboração da memória histórica do país. O artigo 1o da Lei no 12.528 de 2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade no Brasil, estabelece a necessidade “de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (Brasil, 2011). Seu principal objetivo é possibilitar o estabelecimento de um registro apurado do ado histórico e dar voz às vítimas caladas pelo terror e relegadas ao esquecimento, para assim, “descobrir, esclarecer e reconhecer abusos do ado” (Núcleo de Preservação da Memória Política, s.d., p. 8). As comissões da verdade pretendem estabelecer o direito à memória e buscar respostas sobre a violên-
cia imposta no ado, na maioria das vezes, ocultas pelas forças hegemônicas do país. Sua ação repercute no âmbito coletivo da memória social. A relevância da luta pelo direito à memória e o enfrentamento dos danos políticos permanentes provocados em nosso ado recente estão em “lembrar de onde vem o que impede nossa experiência democrática de avançar” (Safatle, & Telles, 2010, p. 11). Por se tratar de uma iniciativa do Estado para investigação de suas próprias ações e pelo caráter de garantia do direito à memória e verdade, as comissões da verdade são um primeiro reconhecimento da própria responsabilidade do Estado nos crimes da ditadura e reparação de danos. Reparação não significa aceitar o dano, tampouco adequar ou apaziguar a dor. Não há aceitação cabível para a violência. Muito pelo contrário, antes de tudo, reparar é dar voz e reconhecimento ao sofrimento. Dar um lugar ao sofrimento e escutá-lo. A partir deste lugar, podem surgir o questionamento e a crítica e, talvez, novas ações. Apesar da inegável importância dos trabalhos das comissões da verdade, enquanto recuperação de uma memória dos acontecimentos da ditadura e da responsabilização do Estado, o trabalho com a memória pode ainda ir além destas possibilidades. Bosi (2003) indica que “nos depoimentos biográficos é evidente o processo de re-conhecimento e de elucidação” (p. 33). No entanto, o trabalho amplo das comissões não consegue acolher suficientemente o sofrimento do depoente, que rememora experiências dolorosas, e em sua evocação da lembrança, pode ar zonas obscuras que há muito permaneciam esquecidas.
Sobre método de pesquisa com memória e a possibilidade de reparação de danos
A pesquisa com a memória não se resume à transcrição do relato do depoente. Bosi (2009) ressalta que “uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugidia” (p. 81). A escuta da memória exige que se debruce sobre sua história, visões de mundo, os sentimentos e esquecimentos, sobre aquilo que foi escolhido ser contado, no modo como foi contado. A atuação do psicólogo social busca abrir a possibilidade de realizar um trabalho, ao mesmo tempo que ampliado e social, também aprofundado e
3 Em 2016, com o impeachment da Presidenta eleita, as verbas para a Comissão da Anistia foram cortadas e as Clínicas do Testemunho somente puderam manter-se, reduzidamente, com financiamento britânico do Fundo Newton.
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íntimo com o depoente e a memória. “Uma pesquisa é um compromisso afetivo, um trabalho ombro a ombro com o sujeito da pesquisa” (Bosi, 2009, p. 38). O trabalho de pesquisar a memória das vítimas dos crimes da ditadura pera a realização de entrevistas que permitam a aproximação mais livre e a recuperação da memória dos depoentes. A interrogação pela memória garante a permanência na questão, ao mesmo tempo em que, quando posta em movimento, traz consigo todas as outras funções psicológicas do pensamento, sentimento e elaboração. Na entrevista, um aspecto fundamental a ser considerado é a escolha das perguntas e a postura na condução do encontro, de modo que o roteiro deve suscitar a narrativa sobre uma experiência, a expressão informada pela memória do depoente (Gonçalves Filho, 2005). A elaboração do roteiro das entrevistasdepoimentos visa superar a cristalização da opinião e evitar a possibilidade de o depoimento decair em uma articulação de conceitos ou um punhado de ideias abstratas, sem conteúdo. Ao mesmo tempo, deve permitir reflexão, discussão e, possivelmente, alguma elaboração do sofrimento. As perguntas devem servir de iscas para a lembrança que não deve sofrer interrupções inconvenientes e abruptas que busquem adequar a narrativa a uma sequência esperada pelo entrevistador. Sobre o roteiro e a condução da entrevista, Svartman (2010) sintetiza: “o entrevistador deve acompanhar o depoente pelas regiões apresentadas, jamais tentar reduzir a complexidade do que observa ou forçar a agem por espaços em que não foi convidado” (pp. 42-3). A atuação do psicólogo social na interrogação pela memória é uma tarefa a ser realizada como caminho de enfrentamento político e psicológico. A evocação da lembrança da experiência das vítimas da ditadura pretende alcançar elementos que permitam uma atenção concreta, e não abstrata, sobre o que se ou com todos os cidadãos. Os depoentes são pessoas que têm a possibilidade de se pronunciar sobre uma experiência própria de sofrimento, a respeito da qual muitos brasileiros estão implicados politicamente e também são afetados. Sobre os depoimentos, ouçamos as palavras de Bosi (2003): “ grande mérito dos depoimentos é a revelação do desnível assustador de experiência vivida nos seres que compartilham a mesma época; a do
militante penetrado de consciência histórica e a dos que apenas buscam sobreviver” (p. 19). O esforço na escuta da memória pera também a lapidação da memória do militante para encontrar, em um relato mais consciente, traços psicossociais pertinentes à vida cotidiana de muitos outros brasileiros (Jardim, 2016). Traços que desvelem a experiência de cidadania interrompida, de vigilância constante, medo, censura e autocensura, mesmo que muitos nem se apercebessem disso. A possibilidade de que a pesquisa com a memória contribua, em algum grau, com a reparação de danos ganha corpo na própria relação do depoente com sua memória (e esquecimento) e no convite à reflexão, próprio da pesquisa. A lembrança remete ao modo como entendemos a nós mesmos em determinada situação, remete à significação e aos sentidos do recordado e, inevitavelmente, aos afetos e emoções da experiência. Entendemos que a recuperação da memória é um modo de registro de como “a pessoa sofre e habita a experiência comum: em alguma medida, sofrendo-a, vem afetá-la por traços originais, por qualidades surpreendentes que tornam irredutível a fisionomia de cada homem” (Gonçalves Filho, 1998a, p. 3). No processo de entrevista, o cuidado deve levar em conta a complexidade da experiência pessoal do depoente, considerar que a memória remete também a áreas densas e sombrias da biografia de cada um e a obstáculos e/ou regiões abandonadas ou claras da história de cada um (Bosi, 2003; 2009). A própria extensão do encontro ite que a entrevista possa tornar-se, assim, um valoroso momento de elaboração da experiência, podendo conduzir a consciência por veredas ainda mais longe nos depoimentos. No curso da pesquisa, a transcrição das entrevistas para revisão do seu conteúdo pelos depoentes também pode favorecer a oportunidade de apropriação de suas memórias e de aspectos esquecidos, que possam vir ou ter vindo à tona e, talvez abrir para alguma elaboração. O o à memória a partir da interrogação da experiência na ditadura pode trazer elementos concretos que contribuam tanto para alguma reparação de danos individualmente aos depoentes, quanto para futuras análises sobre as marcas deixadas pelo regime autoritário na experiência coletiva do brasileiro, enfrentando um aspecto político da questão. 109
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Uma análise qualitativa das entrevistas, buscando discutir as dimensões psicossociais da ação política ditatorial sobre o cidadão, possibilita identificar e articular impactos do regime militar na vida do cidadão brasileiro. Trata-se de uma análise que leva em conta os elementos concretos que emergem da memória dos depoentes sobre a experiência cotidiana na ditadura. Aprendemos com Gonçalves Filho (2004) que “a luta por cancelar a dominação a por também pensar o seu fundamento” (p. 18). De modo que a análise proposta para o trabalho com a memória torna-se relevante na medida em que possibilite pensar o fundamento desta violência, e contribua para a luta contra as heranças do regime autoritário.
Reparação coletiva na pesquisa com memória
Como sugestão de caminho metodológico para análise da memória dos depoentes – que permita a reflexão sobre fundamentos da ditadura e sua violência –, recomenda-se uma pesquisa histórica que retome as origens e o desenvolvimento das estruturas sociais e econômicas de dominação no Brasil. O amplo conhecimento das raízes históricas brasileiras – assim como o aprofundamento nas características constitutivas próprias do regime civil-militar brasileiro – permite alcançar maior clareza na compreensão da inserção da ditadura e suas ações no percurso deste processo histórico. Mas, sobretudo, é essa relação que permitirá pensar as condições que fundamentam a possibilidade de um fenômeno como a ditadura e a intensa repressão que se ou. Pensar o fundamento da dominação é essencial como reparação coletiva dos danos da ditadura e para que essa violência estanque e não se repita. A desigualdade corresponde a um fato histórico-político anterior ao capitalismo e nele renovado. Fomos precedidos por sociedades que itiam soluções pela monarquia, oligarquia, escravismo e servidão. O poder ficou confundido com a força de alguns, a força de comandar e coagir, a força que se tornou força econômica e força armada (Gonçalves Filho, 2004). As ações do regime autoritário aprofundaram as marcas da concentração de renda e desigualdade social, contribuindo para a intensificação da concentração econômica e de poder nas mãos de uma elite minoritária. Para Furtado (2002), “o autoritarismo político, que a partir de 1964 neutralizou por duas décadas todas as formas de resistência dos excluídos, 110
exacerbou as tendências perversas do nosso desenvolvimento mimético” (p. 32). O autor analisa que esse processo “abriu espaço para a concentração do poder econômico e para a emergência das estruturas transnacionais” (p. 10). O crescimento do setor industrial no Brasil na segunda metade do século XX e, posteriormente, o chamado “milagre econômico” no início dos anos 1970, somados ao aumento de renda per capita do conjunto da população “não são suficientes para provocar modificações significativas da estrutura ocupacional do país” (Furtado, 2002, p. 31), não refletindo ganhos e benefícios proporcionais à população. Pelo contrário, esse crescimento foi absorvido por uma pequena parcela dominante, ampliou o abismo social e reforçou “tendências atávicas da sociedade ao elitismo e à exclusão social” (Furtado, 2002, p. 27). Levar em conta a formação econômica e social do Brasil, anterior ao Golpe Civil-militar, é um importante o para que, na análise e reflexão da memória dos depoentes, seja possível refinar a compreensão da experiência das vítimas, bem como identificar e pensar as peculiaridades desse acontecimento em um âmbito político. O aspecto da elaboração política dos danos da ditadura a partir da análise e reflexão sobre a memória não parte de uma proposta de amostragem, tampouco busca apurar o caráter de veracidade das informações fornecidas, mas busca ter o à experiência de quem viveu durante o período da ditadura militar, com as afetividades e emoções que os dados e relatórios de época não podem transmitir. Recorrendo às palavras de Bosi (2009), concordamos que “este registro alcança uma memória pessoal que, como se buscará mostrar, é também uma memória social, familiar e grupal” (p. 37). Para Arendt (2003), somente o homem é capaz de se relacionar e exprimir a igualdade e a diferença. E somente o homem, por meio da ação e discurso, pode comunicar a si próprio, e não apenas comunicar alguma coisa ou necessidade: “Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo, [...] na conformação singular do corpo e no som singular da voz” (Arendt, 2003, p. 192). No discurso, o homem não revela apenas quem é e a constituição de suas relações, mas também o con-
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texto no qual está inserido e sua compreensão deste. Em outras palavras, na fala, o mundo se revela em sua rede de significações compartilhadas. Nos depoimentos das vítimas, portanto, deve-se explicitar não somente a constituição deste imaginário da sociedade, todo o contexto político e social no qual a experiência lembrada aconteceu, como também revelar quem são estes cidadãos. Uma análise desta base material, que emerge da memória dos depoentes, é o substrato para que os fundamentos das relações de dominação na ditadura e a violência do período possam ser pensados e elaborados. Mas pensar estes fundamentos não é um pensar isolado, é imprescindível que este pensar seja uma conversa. A conversa, no sentido pensado por Arendt (2000), é a troca entre o pensamento de um com o pensamento do outro. Na conversa cada um é tocado e transformado pelo pensamento e opinião do outro. A conversa coloca a alternância dos interlocutores, os sentidos e novos sentidos vão e vêm e se constroem no respeito às opiniões alheias (Gonçalves Filho, 2004). O exercício do pensar e a troca pela conversa possibilita um deslocamento do lugar familiar. Abre a possibilidade de se fazer uma experiência, isto é, ser tocado por algo que nos vem ao encontro, ser atravessado e transformado por uma outra compreensão. A conversa põe em movimento a essência do pensar compartilhado e rompe com o instituído, podendo inaugurar novos sentidos e visões de mundo, alargar as compreensões sobre a cidade, sobre as relações de uns com os outros e inaugurar novos modos de ser. O direito à memória e à verdade são peças centrais no processo de reparação e elaboração das marcas deixadas pelos vinte e um anos de regime autoritário. Reparação nunca pode ser entendida como um ponto final que reinstala um esquecimento, mas como processo, conversa perene, algo que mantém viva a lembrança de uma história que não pode ser esquecida. É a conversa pensante e constante sobre os fenômenos que marcaram a ditadura e a violência do regime, que não permite que a história de dominação e violência caia no esquecimento e impeça que, mais uma vez, os mesmos fundamentos atuem cegamente na população. Reparação é ponto de partida para um outro modo de pensar a sociedade, um início de novos modos de relações, uma vez que ficaram explícitos os desdobramentos do modelo antigo. Significa manter politicamente viva a memória daquilo que somos e do que podemos fazer uns com os outros, possibilitar
novos modos de ser e reorganizar a cultura. Enquanto conversa que se mantém viva, reparar os danos possibilita que uma ditadura como a que vivemos e golpes antidemocráticos não se repitam mais. O direito à verdade é o direito à democracia. É direito ao diálogo, à escuta e à voz do cidadão. É o poder construído na pluralidade do humano, na convivência entre diferentes, é o poder que surge da igualdade de direitos entre os homens e da liberdade. Com base no pensamento de Hannah Arendt, ouçamos Gonçalves Filho (2004) sobre a verdade, em seu entendimento político: “resultado crescente e nunca terminado do diálogo entre cidadãos. [...] A verdade imanta acordos ou desacordos entre as primeiras opiniões cruzadas. Conduz, sem parar, a um ponto cada vez maior e mais complexo, porque alcança, reúne e supera pontos de vista particulares” (p. 26). Lutar pelo direito à memória, verdade e justiça é lutar contra o esquecimento. É tarefa de todo cidadão brasileiro. As marcas produzidas pela ditadura afetaram e afetam toda população: os que foram perseguidos pelo regime, os que se calaram, os que seguiram sua vida como se nada acontecesse e também aqueles que, muito depois, já nasceram em uma história obscurecida pelos véus do silenciamento, sobre as tramas ocultas que continuam à espreita, exercendo sua força e violência. Aprendemos com Bosi (2003) que “quando as relações, as leis do sistema, não são evidentes, ficam em nosso conhecimento lacunas entre a ação e a consequência. Compreender a ação social nos torna participantes inteligentes desse campo mutuamente compartilhado” (p. 118). O esquecimento obscurece o campo social, o campo da experiência compartilhada e política. As memórias esquecidas e tamponadas pela história dominante continuam a atuar silenciosamente no subterrâneo (Pollak, 1989). O esquecimento é a maior arma a favor da manutenção do status quo e da permanência das marcas produzidas pelas diversas violências perpetradas à sociedade durante a ditadura. Lutar pelo direito à memória, verdade e justiça é lutar contra o esquecimento! 111
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Considerações finais
As ações do Estado durante ditadura civil-militar imprimiram marcas profundas na história do Brasil. Marcas estas que permanecem arraigadas na estrutura social, econômica e trabalhista do país, não restringindo seu impacto à vida daqueles que foram presos, perseguidos, torturados ou tiveram familiares nestas condições, mas atingindo também a todos brasileiros. As marcas da ditadura permanecem na memória individual de quem foi vítima da força autoritária do Estado e daqueles que, em algum momento, sentiram medo, sufocamento, impotência ou revolta com o que se ou; e permanecem também na memória coletiva de uma sociedade que foi forçada a silenciar mais uma vez, mesmo terminada a ditadura. O fim do regime militar foi caracterizado por mais uma violência social. A imposição do autoperdão aos torturadores e assassinos do regime, o não reconhecimento pelo Estado da tortura e de sua responsabilidade nos crimes, bem como as barreiras para averiguação das violências cometidas e silenciamento das vítimas criaram uma atmosfera de obscurecimento e esquecimento forçado. O processo de Abertura “lenta, gradual e segura” promovido pelo regime impediu que o Estado democrático se consolidasse, conservando até hoje marcas do autoritarismo em sua estrutura debilitada. Apesar do longo atraso e de haver ainda extenso caminho pela frente em diversos âmbitos, pela primeira vez o Estado financiou ações visando a apuração (mesmo que parcial) dos crimes da ditadura, ações de reparação financeira (desde 1995) e psicológica às vítimas e familiares (2013–2016). Pela primeira vez houve um esforço real do Estado em direção ao direito à memória e verdade, em direção ao combate do esquecimento institucionalizado imposto com a redemocratização – exceto no campo da justiça, onde os avanços foram ínfimos. Hoje, o Brasil é o país da América Latina que mais abriu seus arquivos à população4, sendo que boa parte já está disponível para consulta na internet. No entanto, com o impeachment de 2016, estas medidas de reparação e elaboração dos danos da ditadura sustentadas pelo Estado foram extintas, voltando às mãos das poucas organizações sociais capazes de levantar recursos privados para a manutenção parcial de seus trabalhos.
Apesar da atmosfera de obscurecimento, alguns núcleos da Psicologia e algumas organizações sociais ativas nunca adormeceram ou silenciaram sua luta pelo direito à memória, verdade e justiça. Estes núcleos, nunca deixaram de lado os esforços pela elaboração dos danos produzidos pelo regime autoritário. Elaborar é antes de tudo dar voz e reconhecimento ao sofrimento. Dar um lugar ao sofrimento e escutá-lo. A partir deste lugar pode surgir questionamento, crítica e ações. Mas a elaboração não pode circunscrever sua ação “apenas” ao caráter psicológico das vítimas diretas do regime. A violência da ditadura é um problema político, e como tal, uma elaboração dos danos deve necessariamente ser enfrentada psicologicamente, mas também politicamente. É importante ressaltar que nenhuma das possibilidades de elaboração é completa e se esgota em si, mas devem complementar suas ações nos aspectos políticos e psicológicos. Iniciativas como as Clínicas do Testemunho (2013–2016) e a Comissão Nacional da Verdade (2012– 2014) são de significativa importância na tarefa de elaboração individual e coletiva dos danos produzidos pela ditadura. Além da importância na apuração dos crimes da ditadura, as comissões da verdade também são parte do reconhecimento público do Estado da sua responsabilidade nas ações do regime autoritário. Outra possibilidade apresentada, a pesquisa com memória em Psicologia Social, por ser uma prática que atua numa região fronteiriça entre os modos de ser individuais e sociais (políticos), também tem um papel importante na possibilidade de elaboração dos danos da ditadura. O trabalho ombro a ombro com a memória das experiências das vítimas da ditadura pode abrir a possibilidade de elaboração dos danos no caráter individual do depoente, como também a memória pode trazer uma base concreta de material para reflexão compartilhada e elaboração em seu caráter político e social. A evocação da memória traz à tona toda rede de significado na qual se constituiu a experiência e abre à rearticulação de sentidos. No desvelamento dessa significância, desvela-se também o fundamento no qual se assentam e determinam a compreensão de si e as possibilidades cotidianas. O trabalho do psicólogo social a partir da memória da ditadura visa trazer
4 Informação amplamente debatida por historiadores de todo o Brasil na III Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos (2015), organizada pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul (Apers) em Porto Alegre-RS. Parte dos arquivos considerados mais importantes para averiguação da ditadura ainda permanecem fechados ao o: arquivos das Forças Armadas e os documentos secretos e ultra-secretos do Governo. Episódios e personagens significativos da história do golpe de 1964 e do regime civil-militar no Brasil vieram ao conhecimento público graças à liberação de documentos oficiais dos EUA e da CIA relativos ao período.
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ao diálogo pensante os fundamentos da barbárie. Uma escuta à voz do cidadão. E assim, contribuir democraticamente para a constituição do poder construído na pluralidade do humano, na convivência entre diferentes, é o poder que surge da igualdade de direitos entre os homens e da liberdade. O direito à memória, verdade e justiça são elementos centrais para que haja uma elaboração política e psicológica dos danos produzidos pela dita-
dura. Lutar pelo direito à memória, verdade e justiça é lutar contra o esquecimento. Elaboração é o ponto de partida para um outro modo de pensar a sociedade, a inauguração da possibilidade de não repetição. A memória mantém politicamente vivo aquilo que somos e o que podemos fazer uns com os outros, possibilitando novos modos de ser, mas, sobretudo, que novos golpes e uma ditadura como a que vivemos não se repitam mais.
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Kolker, T. (2009). Problematizaciones clínico-políticas acerca de la permanencia y transmisión transgeneracional de los daños causados por el terrorismo de Estado. In CINTRAS, EATIP, GTNM/RJ, SERSOC (Eds.). Danõ Transgeneracional: consecuencias de la represion política en el Cono Sur (pp. 253-287). Santiago: LOM. Kolker, T. & Mourão, J. C. (2002). Marcas Invisíveis ou Invisibilizadas?. In C. M. Rauter, E. os, & R. Benevides (Eds.). Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos (pp 239-245). Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia/Editora TeCorá. Mourão, J. C. (Ed.). (2009). Clínica e política 2: subjetividade, direitos humanos e invenção de práticas clínicas. Rio de Janeiro, RJ: Abaquar: Núcleo de Preservação da Memória Política - São Paulo – NPMP (Eds.). (s. d.). A Comissão da Verdade no Brasil – Por quê, O que é, O que temos de fazer?. São Paulo, SP: Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Cidadania, da Participação e das Questões Sociais. Oropeza, I.D. (2009). Memorias del Dolor: consideraciones acerca de las Comissiones de la Verdad en América Latina. Costa Rica: Arlekín. Pollak, M. (1989). Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 2(3), 3-15. Recuperado de http://www.uel. br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf Rauter, C. M., os, E., & Benevides, R. (Eds.) (2002). Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Franco Basaglia. Rodrigues, H. B. C., & Mourão, J. C. (2002). A herança da violência: o silêncio e a dor das famílias atingidas: aspectos do tratamento. In C. M. Rauter, E. os, & R. Benevides (Eds.), Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos (pp. 205-214). Rio de Janeiro, RJ: Instituto Franco Basaglia. Safatle, V., & Teles, E. (2010). Apresentação. In V. Safatle, & E. Teles (Eds.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira (pp. 9-12). São Paulo, SP: Boitempo. Svartman, B. P. (2010). Trabalho e desenraizamento operário: um estudo de depoimentos sobre a experiência de vida na fábrica (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, SP. Vital Brasil, V. (2009). Efectos transgeneracionales del terrorismo de Estado: entre el silencio y la memoria. In CINTRAS, EATIP, GTNM/RJ, SERSOC (Eds.). Danõ Transgeneracional: consecuencias de la represion política en el Cono Sur (pp. 289-325). Santiago: LOM.
Luis Eduardo Franção Jardim Doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, São Paulo – SP. Brasil. Professor de Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo. E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Rua Capote Valente, 1394. CEP: 05409-003. São Paulo – SP. Brasil. Recebido 30/06/2017 Reformulado 02/10/2017 Aprovado 04/10/2017 Received 06/30/2017 Reformulated 10/02/2017 Approved 10/04/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 02/10/2017 Aceptado 04/10/2017 114
Jardim, L. E. F. (2017 ).Psicologia Social e Pesquisa com Memória.
Como citar: Jardim, L. E. F. (2017 ). Psicologia social e pesquisa com memória: método e reparação de danos da ditadura civil-militar. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 103-115. https://doi.org/10.1590/1982-3703080002017 How to cite: Jardim, L. E. F. (2017). Social psychology and memory research: method and repair for damages of the civil-military dictatorship. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 103-115. https://doi.org/10.1590/1982-3703080002017 Cómo citar: Jardim, L. E. F. (2017). Psicología social e investigación con memoria: método y reparación de los daños de la dictadura cívico-militar. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 103-115. https://doi.org/10.1590/1982-3703080002017 115
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 116-132. https://doi.org/10.1590/1982-3703090002017
Análise Reparável e Irreparável: o Conceito Psicanalítico de Reparação na Agenda da Transição Brasileira
Rafael Alves Lima Universidade de São Paulo, SP, Brasil.
Resumo: O presente trabalho visa estabelecer uma reflexão crítica acerca do emprego do conceito psicanalítico de reparação pela agenda da Justiça de Transição no Brasil. Por meio de uma recuperação da gênese do conceito de reparação em psicanálise, primeiramente é retomado o princípio norteador da reparação em referência ao conceito do trauma em Freud e em Ferenczi, para então lançar luz sobre Klein e a tradição do pós-kleinismo que consagrariam o conceito de reparação em psicanálise, matizando diferenças em relação à perspectiva da irreparabilidade em Lacan. Posteriormente, discute-se os modos pelos quais a dimensão reparatória se destina à história, na medida em que o reconhecimento social da experiência traumática se torna possível pela função do testemunho, expediente por excelência de crítica ao revisionismo. Por fim, conclui-se dispondo elementos para a proposta de reparação psíquica na Justiça de Transição brasileira segundo o legado psicanalítico, tendo em vista a importância da assimilação do papel do objeto em psicanálise nas diferentes matrizes que esta reflexão inspira no que diz respeito à compreensão do tratamento analítico. Palavras-chave: Reparação, Psicanálise, Transição, História, Brasil.
Reparable and Irreparable Analysis: The Psychoanalytic Concept of Reparation in the Agenda of the Brazilian Transition Abstract: This paper aims to establish a critical reflection on the use of the psychoanalytic concept of reparation by the Transitional Justice agenda in Brazil. Through a recovery of the genesis of the concept of reparation in psychoanalysis, the guiding principle of reparation in relation to the concept of trauma in Freud and in Ferenczi is first taken up, to shed light on Klein and the tradition of post-Kleinism that would consecrate the concept of reparation in psychoanalysis, making a difference in relation to the perspective of irreparability in Lacan. Subsequently, it discusses the ways in which the reparatory dimension is intended for history, insofar as the social recognition of the traumatic experience is made possible by the function of testimony, the expedient par excellence of criticism of revisionism. Finally, it is concluded by ordaining elements for the proposal of psychic reparation in the Brazilian Transitional Justice according to the psychoanalytic legacy, considering the importance of the assimilation of the role of the object in psychoanalysis in the different matrices that this reflection inspires with regard to the understanding of the analytical treatment. Keywords: Reparation, Psychoanalysis, Transition, History, Brazil.
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Alves Lima, R. (2017). Análise Reparável e Irreparável.
Análisis Reparable e Irreparable: el Concepto Psicoanalítico de Reparación en la Agenda de la Transición Brasileña Resumen: El presente trabajo busca establecer una reflexión crítica acerca del empleo del concepto psicoanalítico de reparación por la agenda de la Justicia de Transición en Brasil. Por medio de una recuperación de la génesis del concepto de reparación en psicoanálisis, primero se reanuda el principio orientador de la reparación en referencia al concepto del trauma en Freud y en Ferenczi, para entonces arrojar luz sobre Klein y la tradición del post-kleinismo que consagrarían el concepto de reparación en psicoanálisis, matizando diferencias en relación a la perspectiva de la irreparabilidad en Lacan. Posteriormente, se discuten los modos por los cuales la dimensión reparadora se destina a la historia, en la medida en que el reconocimiento social de la experiencia traumática se torna posible por la función del testimonio, expediente por excelencia de crítica al revisionismo. Por último, se concluye disponiendo elementos para la propuesta de reparación psíquica en la Justicia de Transición brasileña según el legado psicoanalítico, teniendo en vista la importancia de la asimilación del papel del objeto en psicoanálisis en las diferentes matrices que esta reflexión inspira en lo que se refiere a la comprensión del tratamiento analítico. Palabras clave: Reparación, Psicoanálisis, Transición, Historia, Brasil.
Introdução
As Clínicas do Testemunho, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça do Governo Federal, têm o objetivo de promover a reparação psíquica das vítimas de violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura civil-militar brasileira (1964–1985). Graças a esta iniciativa desbravadora e pioneira na história do nosso país, familiares de mortos e desaparecidos políticos, torturados, presos e exilados receberiam assim um inédito tratamento psicológico no Brasil, com a finalidade de tratar os danos psíquicos causados pela violência de Estado promovida no período histórico referido. Tais medidas têm o nome de reparação psíquica. Promovidas desde o interior do Estado, elas são balizadas desde complexas zonas de fronteira entre o campo social, histórico e político e o campo clínico, no que se refere ao tratamento psicológico individual ou em grupo. De acordo com o Presidente da Comissão da Anistia, Paulo Abraão, e com o Coordenador-Geral de Memória Histórica desta mesma Comissão, Marcelo Torelly, o processo de reparação às vítimas foi o eixo estruturante da justiça de transição no Brasil. [...] Seu fluxo de seguimento nunca cessou e desenvolveu-se gradualmente, com o somatório de forças ocorrendo justamente à medida que o processo de reparação corroía dois dos pilares
de sustentação da estratégia de saída do regime (a negação da existência de vítimas e a imposição do esquecimento) (Abrão, & Torelly, 2012, p. 192). Vale notar que a ênfase conferida ao caráter estruturante e central do processo de reparação se desdobra em duas constatações capitais: 1) a de que era imprescindível reconhecer que as violações contra os direitos humanos promovidas pelo Estado ditatorial não eram ficções inventadas por um ou outro setor de nossa sociedade, mas sim que elas existiram concretamente; e 2) a de que as condições para conferir realidade a essas existências seriam dadas pelas categorias da memória e do reconhecimento. Será preciso, destarte, introduzir a interface psicanalítica desta discussão desde ao menos duas ordens. Uma primeira é instaurar a reflexão em que o conceito psicanalítico de reparação vem a informar sobre a proposta de reparação psíquica na Justiça de Transição. Uma segunda ordem é buscar compreender como os dois conceitos, diferentes em suas origens epistêmicas, convergem em uma proposta de manifestação das experiências subjetivas na superfície da história. Por fim, levantaremos a tese de como a história, sendo então o receptáculo final dos testemunhos individuais do sofrimento, acaba por ser o solo do reconhecimento social da incidência do trauma, lá 117
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onde a reflexão deve se direcionar à não repetição das graves violações de direitos humanos do período ditatorial na transição para a democracia.
Raízes e ramificações do conceito de reparação em psicanálise
Para qualquer psicanalista, é quase imediata a constatação de que o conceito de reparação se tornará consagrado pela psicanalista Melanie Klein, que o formula com o objetivo de delinear a relação que a criança estabelece com os objetos na constituição subjetiva. A origem do conceito de reparação em psicanálise remete a dois termos presentes no alemão de Freud: Wiederherstellung (restauração ou restabelecimento) e Wiedergutmachung (restituição ou reparação). Wiederherstellung refere-se tanto ao sentido médico de se restabelecer de uma doença quanto no sentido técnico (restabelecer uma conexão perdida, por exemplo); Stellen no alemão remete a “lugar”, “posição”, enquanto a forma Herstellung significa fabricação, produção, construção. Assim, Wiederherstellung aponta para o reconstruir enquanto um processo, para um “deixar em ordem novamente”. Já Wiedergutmachung significa, literalmente, “fazer de novo o bom”: ung é a partícula, também presente no primeiro termo, que designa o devir, a “fazência”; mach é “fazer”, gut é “bem” ou “bom”, enquanto Wieder é o “de novo”. Há um sentido transitivo de “fazer o bem” (gutmachung) que o primeiro não tem, além do sentido de restituir uma perda. Este último termo ficou bem marcado depois da II Guerra Mundial, porque é como ficou conhecida a ação com a qual o governo alemão teve de se comprometer para indenizar aqueles que foram atingidos severamente pelo Holocausto1. Ou seja, enquanto Wiederherstellen aponta para o tornar ao que era antes, ou tomar o processo de restabelecimento como construção, Wiedergutmachen designa a reparação propriamente dita, no que se refere a restituir algo perdido, mas levando em conta o que há nisso de irreparável. Ou seja, já no início do presente artigo nos vemos diante de um ime absolutamente nobre no que se refere à conceitografia psicanalítica: primeiramente, não é possível compreender o mecanismo de reparação sem compreender a natureza e a função do objeto referido neste processo – contendo aqui toda a variedade do uso do objeto que compõe a experi1
A este respeito, conferir Ludi, 2012.
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ência intelectual de Freud; consequentemente, é preciso compreender que, em termos da direção da cura psicanalítica, a reparação aponta para uma dimensão intersubjetiva, uma vez que reparar-se-ia por meio do outro, ou com o outro. Isso por si só pauta os diferentes programas clínicos da psicanálise e suas respectivas concepções de transferência – ou seja, da qualidade do laço entre analista e analisando. A aposta transferencial, comum a todo e qualquer tratamento psicanalítico, se dá e se confirma na medida em que o analista ocupa a posição de objeto para o analisando na condução de uma análise. No entanto, cada qual dará um destino a essa premissa geral; serão as diferentes matrizes metapsicológicas, teóricas e epistêmicas que darão curso a diferentes concepções de tratamento e de cura, a depender da tradição psicanalítica a qual se está inclinado. Ou seja: muito rapidamente chega-se à constatação de que, no limite, problematizar o conceito de reparação em psicanálise implica em compreender o que cada autor chama de objeto.
Método
Sem recuar diante deste ime, impõe-se aqui o desafio de apresentar minimamente este largo panorama sob o ângulo do conceito de reparação. Não obstante, todo e qualquer empenho para operar distinções, promover agrupamentos e sistematizar categorias conceituais do campo psicanalítico é e será, tão somente, (mais) um modo de fazê-lo. Há no campo da história e da historiografia da psicanálise inúmeros esforços nesse sentido com o objetivo de estabelecer linhas gerais de diferenciação entre as ditas escolas psicanalíticas, ou seja, naquilo que se refere ao entendimento dos motivos pelos quais uma determinada escola toma um certo rumo em seu processo de teorização, enquanto outra escola escolhe outro caminho. Uma vez tomados os tensionamentos em torno do conceito de reparação como nosso eixo central – portanto, em detrimento de outros eixos possíveis –, opta-se aqui pelo método da genealogia conceitual, que busca recuperar a gênese do conceito percorrendo os movimentos de sua evolução em seus diferentes usos e atributos na história da disciplina, bem como a serviço de que ele se presta em sua terminação clínica e prática. Um exemplo que pode ser recuperado na esteira deste método é O tronco e os ramos de Mezan (2014). Nele são apresentadas algu-
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mas hipóteses que decompõem o modelo das “relações objetais” e o modelo “estrutural-pulsional”. É a chamada escola inglesa da psicanálise capitaneada pelo kleinismo, destacada nos anos 1940 do annafreudismo e que contempla ainda o chamado Middlegroup, aquela ficou também conhecida como a escola das “relações de objeto”. Sob esta denominação se incluem movimentos díspares, desde aqueles que se colocam ao lado de uma finalidade adaptacionista do tratamento psicanalítico, cujas possibilidades de integração dos elementos estranhos ao psiquismo encontrem seu recinto no alargamento das funções do eu, até aqueles que se dedicaram à compreensão do itinerário do desenvolvimento emocional, da maturação subjetiva e do crescimento. A experiência sa, cuja expressão maior se concentra no ensino de Jacques Lacan, por sua vez, se mostrou crítica em relação às finalidades clínicas contidas na ideia de reparação. Analisaremos adiante como serão mobilizados conceitos diversos nestas linhagens, referidos a Freud cada qual de uma maneira, incutindo-lhe uma determinada leitura, sem que uma seja “mais correta” ou “mais verdadeira” do que outra, mas nos posicionando em relação a elas. Parte-se aqui da premissa de que o conceito de reparação não pode ser pensado, primeiro, sem mobilizar diferenças de natureza e função do objeto, diferenças das matrizes epistêmicas que dão ensejo a uma ou outra leitura do texto freudiano, diferenças da concepção de intersubjetividade, diferenças de programas clínicos. Ou seja, reparação é um conceito tão polifônico quanto são estes que necessariamente o acompanham na diversidade da psicanálise. Não é sequer possível falar, já apontando um paradoxo em nosso próprio título: não há um conceito de reparação unívoco e contínuo na psicanálise; dever-se-ia, de início, ou falar no plural (“nas psicanálises”), ou se perguntar com a devida franqueza: “em qual psicanálise?”.
Trauma, reparação e fim de análise: de Freud a Ferenczi, de Ferenczi a Freud
A concepção freudiana de trauma é tão central para a psicanálise que ela se confunde com o seu próprio nascimento. É de Charcot que Freud retira a ideia de “origem traumática” para pensar na causalidade dos sintomas histéricos a partir da vivência do abuso sexual infantil. Inicialmente concebido como 2
um acontecimento real, dentro da perspectiva denominada “teoria da sedução” – na qual o abuso sexual cometido pelo adulto contra a criança seria determinante para as afecções neuróticas –, Freud posteriormente abandona esta perspectiva para aceder a uma teorização sobre a fantasia. Assim, o trauma a a ser concebido como um excesso de excitação subjetivamente inável, lá onde a experiência libidinal extrapola as condições de compreensão do aparelho psíquico. É justamente o caráter quantitativo que acompanha a ideia de excesso traumático que leva Freud a justificá-lo em termos da economia libidinal (Freud, 1917/2014). A vivência traumática se torna intolerável para o repertório representacional de que o sujeito dispõe; no momento em que ocorre, esta vivência do excesso não é ível de uma experiência no campo do sentido, permanecendo na vida psíquica como uma “presença adiada” (uma criança sob abuso não tem condições psíquicas de entender o que lhe acontece, por exemplo) –, ou seja, uma vivência intervalar no que se refere aos requisitos próprios do processo de significação. Será somente quando for possível conferir significado e sentido à experiência do excesso – em termos freudianos, quando for possível representá-la – que a condição traumática rigorosamente se instalará (lá onde tardiamente a criança é capaz de reconhecer retroativamente o que enfim lhe ocorrera na situação do abuso). É por isso que, para compreender a condição traumática no que ela tem de transformacional desde esse segundo momento que se sobrepõe ao primeiro, Freud necessita de um esquema com ao menos duas cenas em dois tempos distintos para a sua teorização do trauma: é lá quando há recursos psíquicos para a subjetivação do trauma que ele se instala, a posteriori (Nachträglichkeit)2. Obviamente, o abuso sexual infantil não é a única figura do trauma que Freud tem em vista. É deveras conhecida sua experiência com as neuroses traumáticas em decorrência da guerra. O choque abrupto pelo qual aram os soldados na Primeira Guerra Mundial, das neuroses de guerra. Entre 1915 (Freud, 1915/2010) e 1920 (Freud, 1920/2010), Freud reconfigurará seu programa metapsicológico, propondo ao fim deste período sua segunda teoria pulsional, pautada pela dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte. Esta nova concepção do conflito pulsional possibilitou ao pai da psicanálise compreender como
Um roteiro detalhado deste percurso no pensamento freudiano pode ser encontrado em Celes, 1999.
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o sonho traumático dos soldados de guerra insistia em uma repetição surpreendentemente incapaz de dar ensejo à função onírica de elaboração. É como se, ao retificar em partes o postulado de sua Interpretação dos sonhos em que o sonho realiza um desejo e, não obstante, ao desigualar o trauma do protótipo do abuso sexual tal como concebido até então, nem mesmo a condição de significação a posteriori fosse possível, permanecendo o sujeito traumatizado em um estado de repetição contínua, na eternização do intervalo entre os dois tempos do trauma. Logo, é justamente porque Freud não se restringiu ao problema do abuso sexual infantil (posto que soube extrair dele as principais consequências teóricas e clínicas) que lhe foi possível expandir o horizonte da condição traumática mantendo a temporalidade que lhe é própria, mas destinando-a ao campo do que pode permanecer no campo da irrepresentabilidade (na ordem das pulsões de morte) e do que resiste à elaboração psíquica. Ou seja, com a segunda teoria pulsional freudiana, a dinâmica das pulsões é inteiramente reformulada desde uma perspectiva no qual a pulsão de vida é representável e a pulsão de morte é irrepresentável. Se a pulsão de morte a a designar a partir de 1920 as experiências subjetivas que se dissociam da dimensão da representação em um vórtice que tende a um retorno ao estado inorgânico livre do conflito, é preciso que haja uma maneira de elaboração (e também reparação) do irrepresentável. Ora, se é verdade que Freud nunca recuou diante da pergunta: “Como então esquecer aquilo de que não dá pra não lembrar?”, desde as suas primeiras impressões sobre o trauma sexual até as decisivas impressões sobre as neuroses de guerra e à segunda teoria pulsional, cria-se na tradição psicanalítica uma discussão a respeito do que se realiza e do que não se realiza em um percurso de análise. É acompanhando Freud que seu discípulo e analisando Sandor Ferenczi – certamente um dos autores mais brilhantes da história da psicanálise – dispõe ao longo de sua obra discussões muito versáteis, estabelecidas ao longo de toda a sua experiência intelectual, que se debruçam sobre a dimensão do trauma, suas implicações e consequências. O psicanalista húngaro pôde abrir outras perspectivas para a compreensão da condição traumática que levarão às últimas consequências a dimensão do não integrável ao psiquismo, sendo o trauma aquele 3
elemento não metabolizável pelo sujeito no repertório representacional. Coube a ele descrever de que maneira a clivagem do Eu aparece como um esforço de sobrevivência psíquica. Dizendo de outro modo, a autotomia narcísica aparece como a descrição do processo de clivagem: analogamente à lagartixa que abandona sua própria cauda para sobreviver em uma situação de perigo, o Eu se dissocia dos elementos que o compõem para permanecer subsistindo. Ferenczi dirá: “Um novo Eu não pode ser formado a partir do Eu precedente, mas a partir de fragmentos, produtos mais ou menos elementares de decomposição deste último” (Ferenczi, 1932/1990, p. 227). A experiência do trauma é aquela que pulveriza, fragmenta, estilhaça as condições integrativas da vida psíquica. A solução somática se apresenta no retorno da sensação física angustiante que acompanha a lembrança traumática. Para Ferenczi, a simbolização parte dos fenômenos do corpo, posto que este é a sede e o destino do símbolo (Ferenczi, 1913/2011), como na conhecida alusão à criança que se põe à frente do Rio Sena e se espanta dizendo “Nossa, quanto cuspe!”. As possibilidades de simbolização do trauma am pelo corpo, enquanto sede da experiência da angústia, sendo a própria relação entre o corpo e o símbolo determinante para os imes e os encaminhamentos da vivência traumática no psiquismo. A angústia traumática sinaliza o medo da loucura (Ferenczi, 1934/2011): a clivagem constitui, portanto, uma defesa que, se não analisada, pode levar o sujeito ao que o psicanalista húngaro chamará de “progressão traumática”, um estado constante de repetição dos mecanismos de fragmentação da vida psíquica. Há ainda uma restituição da temática do acontecimento real do trauma em Ferenczi; ele não retorna à teoria da sedução, certamente, mas imprime em sua teorização do trauma a reatualização própria do acontecimento real do trauma na relação entre crianças e adultos, lida sob a chave de uma “confusão de línguas” entre eles em seu ponto último de teorização do trauma. Neste texto, Ferenczi versa sobre o fenômeno em que a língua da ternura da criança é atravessada pela língua da paixão3 do adulto. Nota-se aqui que não há uma recuperação simples e inadvertida do protótipo do abuso sexual infantil para todo e qualquer pensamento sobre o trauma em psicanálise. Há sobretudo uma forma de alçar a dissimetria
Paixão aqui compreendida enquanto excesso. A este respeito, conferir Osmo e Kupermann (2012).
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da experiência traumática definitivamente para além da realidade material ordinária (a ocorrência real do abuso) em direção à realidade psíquica, na materialidade própria do campo da linguagem. Dizendo de outro modo: Confusão de língua entre os adultos e a criança (Ferenczi, 1933/2011) é provavelmente o texto que satisfatoriamente “quita a dívida” do protótipo do abuso sexual infantil na concepção do trauma em psicanálise para, enfim no campo da linguagem, pensa-lo em sua dimensão intersubjetiva – tão necessária para as inquietações próprias à clínica do trauma. Não será por outro motivo que este autor é hoje considerado como “pai” da atenção conferida pela psicanálise às dimensões da intersubjetividade; graças às suas inflexões teóricas, a partir de Ferenczi tornou-se imprescindível a necessidade de tornar a técnica psicanalítica mais “elástica”. Uma análise, portanto, estaria a serviço de uma tentativa de reunificação dos fragmentos clivados do eu. A aposta nesta possível reunificação em uma síntese psíquica é assegurada pela simbolização partilhada na experiência analítica, que depende fundamentalmente da disposição do analista à empatia, ao tato e ao sentir-com (Einfuhlung). A importância da empatia reside fundamentalmente no fato de que a análise deve não se esgotar na repetição eterna da experiência traumática. Logo, será a técnica psicanalítica que será interpelada a partir dos imes de uma paradoxalidade radical: se a repetição, cujo motor desde Freud é a pulsão de morte, é convocada a se reatualizar na situação transferencial, então como a transferência ela mesma não estará fadada a um giro infinito e indissolúvel em torno do impossível simbolizar, do impossível integrar? Torok afirma: “se seus tormentos não relaxam, apesar dos sofrimentos causados, é que neles revive o desejo com relação ao objeto e que, neles, ele se satisfaz” (Torok, 1995, p. 231); saciado em uma “regressão alucinatória”, o encontro entre o desejo e o objeto pode estar fadado à repetição. Ora, o antídoto contra este curto-circuito da repetição do trauma na transferência é a presença empática do analista: é a capacidade de sentir-com que se apresenta como determinante para garantir a sobrevivência de um psiquismo estilhaçado. Ferenczi, em sua Questão de fim de análise, não deixa de ser otimista: não deveria, ao fim e ao cabo de um processo de análise, haver restos no fim da análise. Freud, por sua vez, em Análise terminável e interminável, rende homenagem ao pioneirismo de Ferenczi de introdu-
zir a questão do fim da análise na história da psicanálise, mas o faz com alguma reserva. Não seria justamente esta finalidade da cura analítica proposta por Ferenczi uma espécie de “protoconceituação” da noção de reparação ou, ao menos, a primeira grande aposta em sua positivação? Aquela que consagrará definitivamente o conceito de reparação em psicanálise será, como já anunciamos anteriormente, sua analisante, Melanie Klein. A ela nos caberá perguntar: o que repara, afinal, uma análise?
Reparação e sublimação: Melanie Klein e a tradição inglesa da psicanálise
Ao longo de três décadas de experiência intelectual e clínica, Melanie Klein foi a responsável por tornar factível a clínica psicanalítica com crianças. Coube a ela, analisada por Ferenczi e encorajada por ele a prosseguir nas investigações clínicas do tratamento de crianças, desbravar este campo fértil e promover as técnicas adequadas para tal. Antes mesmo de nos debruçarmos sobre a especificidade do conceito de reparação na obra kleiniana, será preciso apresenta-la ao lado de uma noção que lhe é suplementar, que é a de restauração. Na segunda parte de A Psicanálise de crianças (Klein, 1932/1997), restaurar e reparar acompanha o movimento da criança em direção ao seio materno em termos de ataques sádicos e destrutivos. Levada pela ansiedade que caracteriza a experiência subjetiva do bebê pela exigência implacável de dar destino à pulsão de morte, inicia-se o intrincado processo de constituição das relações objetais: “podemos talvez dizer que a relação do sujeito com a realidade externa exprimiria, em última instância, sua constituição pulsional agressiva” (Caropreso, 2015, p. 395). A agressividade gera um curto-circuito em que a ameaça de destruição do objeto se reverte em ameaça de autodestruição, caracterizando o tom persecutório da fantasia primitiva da criança. Segundo ela, a possibilidade de a criança restaurar o objeto danificado ou retalhado em sua fantasia destrutiva é aquilo que poderá oferecer uma relação mais integrada com o objeto. Ao longo da década de 1930 e nos anos seguintes, em que a psicanalista receberia em seu consultório casos em que o comprometimento psíquico era crescentemente mais grave, ela centralizará em sua teorização o processo de reparação. Em textos centrais para a compreensão dos desenvolvimentos do pensamento kleiniano como Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos de 1935 (Klein, 1935/1996) e 121
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O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos de 1940 (Klein, 1940/1996), o conceito de reparação ará a se tornar proeminente para sinalar “o reconhecimento de responsabilidade pelas depredações da agressão fantasiada: o portão para o mundo das relações interpessoais maduras” (Dews, 2008, p. 26). É neste sentido que reparar se coloca ao lado do amar e do (se) culpar. Efetua-se assim a agem da “lei da selva” característica do primeiro semestre de vida do bebê para a “lei da cultura e do social” (Cintra, & Figueiredo, 2004): a atividade reparatória busca integrar aquilo que ela crê estar ainda despedaçado por conta de seus ataques destrutivos iniciais contra o seio materno fragmentado – objeto originário a que todo e qualquer processo de reparação está necessariamente dirigido. Por um lado, a reparação decorre da restauração no que tange o processo de constituição de uma experiência de constância de objeto; enquanto progressivamente o bebê se exonera do estado de controle onipotente próprio da posição4 esquizoparanoide, nas relações objetais totais5 ele cria condições para vir a assumir a condição própria da posição depressiva, em que seio bom e seio mau se tornam, na verdade, um objeto integrado, capaz de ser simultaneamente amado e odiado de modo ável. Por outro, a reparação é condição para a subjetivação da experiência de culpa, uma vez que a expectativa persecutória de retaliação ou ataque sádico do objeto destruído não se confirma; sem a chancela desta espécie de vingança do objeto que acossava o bebê nos períodos rudimentares da vida, a conquista da distinção entre fantasia e realidade em termos de equilíbrio subjetivo entre mundo interno e mundo externo imprime ao processo reparatório um estado madurado de integração. Esta incursão na obra kleiniana se faz necessária para que se possa inferir uma diferença sensível entre restauração e reparação na obra da psicanalista. Não seria arriscado deduzir que a psicanalista, vienense de nascimento, tinha conhecimento da sutil dessemelhança que evocamos inicialmente entre
Wiederherstellung e Wiedergutmachung em sua língua mãe. É deste modo que a condição de “fazer de novo o bom” na reparação é que a criança esteja na posição depressiva, na qual a criança após os 6 meses de idade configura um tipo particular de melancolia – não equivalente à definida por Freud em Luto e melancolia (Freud, 1917/2010), mas uma melancolia “em status nascendi” (Klein, 1940/1996, p. 388). Haveria, deste modo, um elemento obsessivo6 no processo reparatório, uma vez posta “a necessidade de controlar outras pessoas [...] até certo ponto explicada por um impulso defletido de controlar partes do self” (Klein, 1946/1991, p. 32). Ao mesmo tempo em que designa um mecanismo de defesa próprio da posição depressiva, a reparação institui a capacidade criativa própria do procedimento artístico. Não será por acaso que, em textos tardios como Inveja e gratidão, lemos que “a criatividade é a causa mais profunda da inveja” (Klein, 1957/1991, p. 234): é a maneira que a psicanalista encontra para reafirmar, à maneira de Freud, que mesmo os processos criativos são impelidos pela pulsão de morte. Não obstante, se aquilo que ela chama de inveja primária implicaria uma fantasia sádica vivenciada como profundamente perturbadora, na experiência tardia da reparação será a gratidão que se apresentará como o seu correlato necessário, no qual a capacidade de amar é motivada pelas pulsões de vida; sem que a inveja da criatividade impeça mais a própria criação, o sentimento de gratidão configura o estado último de permanência e sobrevivência do objeto bom na vida psíquica. Dito isso, vale ao menos apontar que o conceito kleiniano de reparação ecoará em autores como Wilfred Bion e Donald Winnicott. Ainda que faça pouco uso da recuperação do conceito de reparação kleiniano (Junqueira Filho, 2014), Bion promove o conceito de at-one-ment (redenção, reconciliação, concórdia, também traduzido por reparação) em seu livro clássico Atenção e interpretação (Bion, 1991). A raiz da palavra remente à religião: atonement é reparação no sentido de expiação,
4 “Posição” não se confunde com a estratégia freudiana de definição de fases do desenvolvimento psicossexual. Para Freud, a organização libidinal se dá em torno da eleição de diferentes zonas erógenas na infância para a obtenção de prazer e satisfação das pulsões sexuais. As estratégias da criança para a obtenção do prazer se transformam de acordo com as zonas erógenas priorizadas, que por sua vez determinam as fases pelas quais ela a – oral, sádico-anal, fálica e genital. Já Melanie Klein define duas posições no curso da constituição subjetiva: a posição esquizoparanoide (Klein, 1946/1991) – do nascimento até seis meses em média – e a depressiva – após seis meses de idade; sem encerrá-las em um “etapismo” em que cada estágio se obsoletaria pelo simples surgimento do estágio seguinte, a estratégia kleiniana abre espaço para pensar a posição enquanto matriz do funcionamento psíquico, interessando mais as modalidades de relação de objeto do que a compreensão da via direta de satisfação pulsional pela fase em que a criança se encontra. 5 A distinção entre objeto parcial e objeto total é uma das principais contribuições à psicanálise de Karl Abraham, que viria a ser o segundo analista de Melanie Klein. Conferir Mezan, 1999. 6 A respeito da concepção kleiniana de neurose obsessiva, conferir Klipan e Mello Neto (2012).
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sacrifício, com vistas à compensação. O jogo de palavra que permite a Bion conceber at-one-ment – termo de difícil tradução: unificação ou unicidade, mas também “com-união”, “ser-um-com”, “estar em uníssono com” (Bianchedi, & Bianchedi, 1998, p. 193) – indica uma reconciliação para consigo mesmo por meio da capacidade de rêverie, conceito-chave que destaca e ilumina a relação de objeto, indicando ideias como tolerância ou harmonia. Winnicott por sua vez, rende homenagem ao conceito kleineano de reparação em A reparação em função da defesa materna contra a depressão, de 1958 (Winnicott, 1958/2000), e, posteriormente, revisita-o em Agressão, culpa e reparação, de 1960 (Winnicott, 1960/1999). Já antes destes, o psicanalista inglês toma distância do kleinismo para desenvolver um pensamento original, especialmente a partir da publicação de Objetos transicionais e fenômenos transicionais, em 1951 (Winnicott, 1951/2000). É a partir deste texto que o autor inglês coloca a questão da transicionalidade, estranha ao kleinismo clássico, cujo objetivo principal é o de propiciar, por meio de um complexo processo de subjetivação do par presença-ausência materna, um ambiente facilitador, um espaço potencial criativo para as relações do sujeito com o mundo. O objetivo do tratamento psicanalítico consistiria assim na restituição da confiabilidade no ambiente, que aqui se inscreve como um espaço intermediário da experiência entre sujeito e objeto. O estatuto intersubjetivo da transicionalidade permite que o trauma seja reconciliado com o largo espectro compreendido entre os polos da dependência e da independência subjetiva, nuançado pelas ideias de dependência absoluta e dependência relativa. Em síntese, para Winnicott, “o trauma é um fracasso relativo à dependência” (Winnicott, 1965/1994, p. 113). O que acompanha assim a experiência traumática é o que ele denomina de medo do colapso: “o medo clínico do colapso é o medo de um colapso que já foi experienciado” (Winnicott, 1974/1994, p. 72). A significativa transformação que sofre o conceito de reparação em Winnicott refere-se ao que ele chama de função do paradoxo. Há uma reticência razoavelmente maior do autor quando comparada à gratidão kleiniana quanto à possibilidade de integração total do objeto; por mais que o programa clínico winnicottiano seja pautado pela ideia da regressão à dependência para a restituição das falhas ambientais, o paradoxo na cons-
tituição subjetiva é encaminhado no processo analítico de modo a ser tolerado, suficientemente ado, mas não solucionado, resolvido ou dissolvido. Obviamente, cada autor do pós-kleinismo mereceria uma exposição de conceitos mais profunda. Em suma, há uma linha (um tanto tortuosa, por vezes descontínua, mas verificável) da história da psicanálise7, que se estende de Melanie Klein a Bion e Winnicott, bordejando outros autores do chamado middlegroup (como Michael Balint e Ronald Fairbain), até autores mais contemporâneos como Thomas Ogden, Christopher Bollas e outros. Mas, na evidente impossibilidade de fazer isso ao menos agora, cabe retomar nosso objetivo para já afirmar que na conceitografia kleineana (e na tradição que esta instala no pós-kleinismo) o conceito de reparação descende não do conceito de trauma, como se poderia supor inadvertidamente, mas sim é formulado a serviço do reposicionamento do conceito psicanalítico de sublimação. Reparação, neste sentido, caminha lado a lado na conceitografia kleineana com a ideia de gratidão, postas as duas no horizonte da cura psicanalítica enquanto competência de ampliação do psiquismo no que diz respeito à capacidade de ar a angústia e exercer a criatividade em sua forma sublimada. Este aspecto, para os nossos fins, é central. É possível afirmar deste modo que, ainda que consagrado por Melanie Klein, o conceito de reparação para esta autora nos informa menos a respeito da herança psicanalítica do conceito de trauma oriundo de Freud e Ferenczi – e, portanto, menos sobre a reparação que visa uma cura para a condição traumática – do que parecem sugerir os próprios autores do pós-kleinismo, Winnicott em destaque. No entanto, aquilo que aqui foi chamado de reticência em relação à reparação não foi alçado ao seu ponto mais radical na experiência inglesa. Foi preciso atravessar o Canal da Mancha para que a desconfiança crítica em relação à reparação pudesse se instalar na história da psicanálise em termos de discussão clínica e teórica, para enfim informar sobre a sua dimensão ética e política.
Lacan, o objeto a e a ética da psicanálise: que clínica para uma irreparabilidade inexorável?
Controverso, de originalidade ímpar, Jacques Lacan é autor indispensável e imprescindível em qual-
Uma apresentação coesa sobre o pós-freudismo relacionando a matriz inglesa com o cenário psicanalítico do pós-guerra pode ser lida em Dunker, 2006a. Para uma análise mais demorada, recomenda-se o supracitado Mezan, 2014.
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quer discussão que recupere os debates mais relevantes da história da psicanálise. Sua formação em psiquiatra marcaria desde o início a distinção de sua experiência intelectual: no caso do psicanalista francês, não estava na gênese de seus trabalhos de escuta a clínica com crianças, mas a clínica das psicoses – em especial, a paranoia (Lacan, 1932/1987). Isso não impedirá Lacan de ser em vida um “diagnosticador do presente”, para usar uma expressão de Michel Foucault. Colocando-se na dianteira das discussões sobre a psicanálise de seu tempo, este leitor ávido dos principais periódicos de psicanálise de então (e, talvez, até hoje), principalmente do International journal of psychoanalysis, mas também do The Psychoanalytic quarterly, da Revue française de psychanalyse e de tantos outros, Lacan esteve sempre apoiado em uma série de autores, repercutindo criticamente seus pressupostos, comentando seus casos clínicos, discutindo e dedicando lições de seus seminários àqueles que criticava. O fôlego largo de suas estratégias argumentativas se deve a isso e necessariamente exige um caminho de reconstrução. Fala-se aqui em reconstrução porque o psicanalista francês era notadamente avesso a “revisões” da obra freudiana: a ele interessava mais o “retorno a Freud” e, conforme suas próprias palavras, dele se fará arauto. Com sua paradoxal “ortodoxia renovada”, ele levará ao pé da letra freudiana as condições de suas possíveis releituras e de seus próprios reposicionamentos. A “revisão”, portanto, era para ele uma estratégia de esquecimento proposital do sentido da experiência freudiana e seu motor. Assim, é possível entender por que o a-historicismo, segundo ele, estava na América do Norte, mais precisamente, nos Estados Unidos. Texto exemplar é A coisa freudiana, de 1955: ao mesmo tempo em que criticava o neofreudismo culturalista de Karen Horney, criticava também uma preocupação hipostasiada pela teoria das relações objetais kleinianas e pós-kleinianas sobre “o pré-verbal, o gesto e a mímica, o tom, a ária da canção, o humor e o con-ta-to a-fe-ti-vo” (Lacan, 1955/1998, p. 414). Posto isso, cabe aqui apenas indicar que a perspectiva do objeto perdido inaugura uma real diferença entre Lacan e os psicanalistas das relações objetais, sendo isso o mínimo suficiente para a nossa discussão a respeito do conceito de reparação. Como bem resume Chatelard, Lacan, em seu ensino, ressalta que só se pode conceber o objeto se ele for apreendido sob a 124
modalidade de sua falta, o que o inscreve fundamentalmente como objeto perdido; é por causa de sua perda que podemos falar de objeto. Seu estatuto é fundado retroativamente sobre o objeto a (Chatelard, 2005, p. 199). Não é por acaso que, em sua ontologia negativa, o psicanalista francês pôde sublinhar ainda mais o caráter da falta, radicalmente estabelecida, pela insustentabilidade de qualquer proposta clínica de restituí-la, restaurá-la ou mesmo repará-la. Ou seja, Lacan recusa radicalmente um programa clínico que patine indefinidamente nas promessas nunca cumpridas da completude e da plenitude, de unificação de um suposto objeto dilacerado: a falta é condição implacável com a qual o sujeito terá que lidar pelo resto da vida, não sendo nunca e de nenhum modo tamponável. Assim sendo, o objeto faltante é uma espécie de pressuposto para o e da pulsão, esvaziado de sentido em si mesmo, a serviço da promoção do curto-circuito desejante. Na tradição lacaniana está mais em jogo a possibilidade de ler a relação de objeto desde a castração simbólica, ou seja, aquela que instaura a falta fundante, do que desde a frustração, imaginária, que pressupõe a possibilidade de completude alienada, ou mesmo a privação cuja natureza é real, o “furo”, segundo a conceitografia lacaniana (Lacan, 1956-57/1995). Logo, existe todo um programa clínico pautado nas dimensões dos registros do Real, Simbólico e Imaginário, que se entrelaçam nas perspectivas nuançadas da concepção lacaniana de transferência e incutem a ideia da falta inerente ao objeto nestes registros –cada qual referido a uma espécie de falta: a frustração, a castração e a privação. O modelo “estrutural-pulsional” de que fala Mezan se apresenta na ideia de que o alvo da pulsão é a negação do objeto (Safatle, 2006). Lacan dirá: “se Freud nos faz esta observação de que o objeto na pulsão não tem nenhuma importância, é provavelmente porque o seio deve ser revisado por inteiro quanto à sua função de objeto” (Lacan, 1964/1995, p. 160); ou seja, a ele interessa menos o objeto em sua materialidade ordinária, mas sim a sua função, que é a de ser e para a circulação e causação do desejo em sua rotatividade. Sendo deste modo o desejo fundado na falta, a reparação do seio primevo despedaçado pelas injunções sádicas destrutivas tal como a concebia Melanie Klein seria uma proposição de completude imaginária, alienada por definição, impossível de se realizar.
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Um engodo, portanto: não haveria assim uma suplantação da falta; pelo contrário, há uma radicalização do confronto com a falta fundante que se apresenta como projeto clínico fundamental para Lacan. O objeto por excelência, segundo Lacan, é o chamado objeto a, causa do desejo. O objeto a é o resto que escapa à significação fálica; ele cria um curto-circuito no campo do desejo lá onde ele se apresenta como o objeto perdido desde sempre. Pois é pela função de objeto que o analista se posiciona em uma análise: é desde esta posição que ele faz operar uma análise. Indo além, na proposição dos quatro discursos, o objeto a ocupa a posição de agente no discurso do analista; é por “não pretender nenhuma solução” (Lacan, 1969-70/1992, p. 66), por não se permitir ser conduzida pelas imperícias do furor curandis, por não antecipar seu expediente segundo tal ou qual cartilha técnica do proceder analítico, que a análise leva a cabo sua função de tratamento. Logo, não seria arriscado dizer que a psicanálise, segundo Lacan, comporta algo da ordem da irreparabilidade do objeto: há de se criar uma nova relação com o desejo, despida dos anseios do “fazer-Um”, para que, se ainda quisermos falar em reparação, que esta seja substancialmente motivada pelo desejo, e não que tenha em suas pretensões de cura uma ortopedia do Eu. Não obstante, como adverte Dunker, tal conclusão não é exclusiva nem original em Lacan; já a psicanálise do eu, com uma versão sociológica da realidade, Winnicott, com uma revisão própria da “realidade da ilusão”, e Klein, com sua teoria da ‘realidade das relações de objeto” (interna e externa), conduziram-se, teoricamente, de maneira semelhante. No fundo, são todas elas concepções que giram em torno da realidade precária do objeto (Dunker, 2007, p. 237). Aqui já parece inegável que o ponto crítico radical quanto à colocação da reparação no horizonte de cura se deve ao lacanismo. Ainda que se possa guardar mais afinidade com a escola sa, como é o caso deste que aqui escreve, não se deve fazer aqui, como é de costume em tantos espaços lacanianos ortodoxos, da conjectura do objeto uma profissão de fé antikleineana (ou anti-inglesa), tecendo juízo de valores sobre qual escola deve se sobrepujar em relação à outra – declino com absoluta segurança o convite ao juízo de valores, pois não é da velha e inócua “briga entre escolas” que se trata aqui. Ratificando os propósitos do presente artigo,
pode-se minimamente inferir que a desconfiança e a hesitação de Lacan em relação a um programa clínico que prometa reparações plenas serve como uma advertência de ordem ética. Pois as consequências de se pensar a reparação na finalidade da cura psicanalítica não como um projeto adaptacionista, mas sim (e sobretudo) desalienante, inclui o desafio ético de não recair na tentação do Bem, que só conduz ao Pior (Koltai, 2002). Não será por outro motivo que a heroína da ética lacanina é Antígona. Filha do casamento incestuoso entre Édipo e Jocasta, na tragédia de Sófocles, Antígona é a representante do desejo levado às últimas consequências, na medida em que, ao tentar sepultar o cadáver do irmão, cujo corpo em decomposição é abandonado à mesma animalidade dos detritívoros que o devoram, indigno aos olhos da Lei de Creonte seu tio, acaba presa e enterrada viva. Antígona para Lacan é “braba – Ela é omos. Traduz-se isso como se pode, por inflexível. Quer dizer literalmente algo de não civilizado, de cru. [...]” (Lacan, 1959-60/1988, p. 319). O que está no centro do drama de Antígona é a Até ('Aτη), que na tragédia grega, que designa categorias múltiplas como a “desgraça”, a “fatalidade”, a “ruína”, mas também a “cegueira da razão”, a “insensatez”. Cabe a longa citação: Não há ninguém para assumir o crime e a validade do crime senão Antígona. Entre os dois, Antígona escolhe ser pura e simplesmente a guardiã do ser criminoso como tal. As coisas certamente poderiam ter tido um término se o corpo social tivesse aceitado perdoar, esquecer e cobrir tudo com as mesmas honras funerárias. É na medida em que a comunidade se recusa a isso que Antígona deve fazer o sacrifício de seu ser para a manutenção desse ser essencial que é a Até familiar – motivo, eixo verdadeiro, em torno do qual gira toda essa tragédia. Antígona perpetua, eterniza, imortaliza essa Até (Lacan, 1959-60/1988, p. 342). Aqui a leitura lacaniana da tragédia de Antígona, cuja ética se fundamenta no não ceder do desejo lá onde este exige do sujeito a violação e transposição dos limites da Lei, parece encontrar a nossa temática da demanda por reconhecimento dos crimes perpetrados pelo Estado. Não é raro que os pacientes que procuram a reparação psíquica se encontrem em um estado de luto interrompido em seu curso esperado, cuja incapacidade de enterrar seus mortos esteja chancelada pela ausência sistemática do reconhecimento por parte 125
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do Estado. Ao restituir ao resto que não se inscreve na simbolização possível o lugar que lhe coube na devida herança freudiana, o psicanalista francês nos deixa a lição de que o ato ético é, em última instância, da ordem do irreparável. No entanto, irreparável não é o mesmo que impossível. Lacan, ele mesmo costumava dizer as melhores compreensões sobre a dimensão do impossível não se dão ao tomá-las pela negação que lhe é própria. Logo, compreender o que é possível respeitando a inexorabilidade do impossível reparar nos leva à discussão sobre a inscrição do acontecimento na rede de reconhecimento socialmente partilhada a que podemos chamar História.
Permeabilidades da História ao caso: o testemunho enquanto combate ao revisionismo
Parte-se aqui do pressuposto de que a historiografia da psicanálise deve se haver com a permeabilidade ao caso clínico enquanto um acontecimento singular. Há uma dimensão na qual a reunião de casos faz arquivo, justamente por poder potencialmente produzir verdades desde sua permanência e consolidação na cultura e na sociedade por uma política de memória. Ora, é esta a situação que tensiona, de um lado, aquilo que é próprio do exercício clínico, cujas bases residem na possibilidade de o paciente presentificar uma experiência ada – no tempo ulterior por definição do trauma em sua radical singularidade –, a fim de abrir, pela fala e pela palavra, novas formas de significação da experiência; e, de outro lado, aquilo que é próprio da história, que, desafiada pela experiência singular, deve se prestar a contínuos reposicionamentos e transformações diante dos acontecidos relatados. A história a longo prazo é interpelada pelos acontecimentos; são estes que podem de fato remodelar a compreensão geral de como nos tornamos o que hoje somos. Logo, “o trabalho de exumação de arquivos capaz de conceder privilégio à dimensão do acontecimento tem por objetivo possibilitar uma história com sujeitos falantes” (Lima, 2015, p. 115). Uma história de violações sistemáticas de direitos humanos, como a que ocorreu em nosso país, acaba por se tornar o solo do silêncio de nossa história não contada. Por mais contra intuitivo que possa parecer a princípio demandar tamanha responsabilidade das terapêuticas “psi” (em especial as de orientação psicanalítica, como é o caso das Clínicas do Testemunho), a aposta é mantida porque, muito longe de se redu126
zir à privatização do sofrimento psíquico, elas estão no cerne da possibilidade de produzir condições de escuta de um sofrimento que não é chancelado ou legitimado enquanto tal no campo social. Ou seja, o desmentido do fato real [...] inviabiliza a introjeção, a inscrição psíquica de todo evento traumático, restando somente para o sujeito ferido uma vivência sensorial, inível à memória e à palavra, porém existente. O desmentido, que impede a representação do acontecido, é a causa primordial para que o trauma se torne desestruturante, atenta contra o eu do sujeito, colocando em questão o jogo das identificações (Uchitel, 2001, p. 87). Ou seja, aquilo que permanece como desmentido (Verleugnung) e que não se inscreve simbolicamente em um sistema representacional por meio do qual os indivíduos de uma determinada sociedade podem se fazer reconhecer uns pelos outros retorna sistematicamente como sintoma, não apenas no corpo e no psiquismo individual, mas também no sofrimento compartilhado de uma história denegada. Há algumas agens que precisam ser trabalhadas para a formação deste arquivo. Uma primeira agem fundamental é a da escuta, incumbência propriamente clínica do psicanalista, para a escrita, função dramática na qual, como afirma o psicanalista André Green, “qualquer que seja ele [o objetivo], o autor analista está diante da folha em branco” (Green, 1992, p. 168). A escrita, outro conceito nobre em psicanálise, é compreendida aqui como uma tradução narrativa à luz da teoria de uma determinada experiência de atendimento que se deu em um número de sessões dispostas ao longo dos anos. Por conseguinte, essa escrita se transformará em relato de caso, capaz de expor os avanços ocorridos durante o tratamento; as diversas escritas de caso, no plural, serializadas e sequencializadas, dão origem a um acervo ou um catálogo, reunindo assim um trabalho comunitário à disposição pública de quem vier a consultá-lo em pesquisas universitárias, exercícios de reflexão clínica e formação de políticas públicas de saúde, para promover o avanço qualitativo de uma práxis. Portanto, do curso da escuta à constituição de um arquivo sensível que se anseie ou que se almeje patrimônio público, há uma apreciação que se dá graças a um processo minucioso de elaboração, no qual a experiência possa vir a ser posteriormente replicada em instâncias diversas.
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No horizonte destas instâncias, deve-se ter permanentemente em vista a criação de políticas públicas em saúde mental que sejam apropriadas para cumprir e executar esse ofício. Penso assim que a composição de tal arquivo sensível é uma das tarefas fundamentais do exame a ser realizado pelas Clínicas do Testemunho nesse período atual – algo próximo dos Livros dos votos da Comissão de Anistia, exemplo bem-sucedido do que deve ser a montagem de um arquivo, compilando os processos jurídicos de retratação promovidas pelo Estado entremeados a um “mosaico de casos individuais” (Abrão, 2013, p. 18). Todavia, é preciso ir além e indagar como imprimir a tonalidade de testemunho analítico a um arquivo sucedâneo a este. Tal justificação só será possível se considerarmos que as ações de políticas reparatórias promovidas pelo Estado estão situadas em uma zona de compromissos entre urgências sociais, históricas, políticas e clínicas. Uma terapêutica capaz de promover uma reparação psíquica à altura do sofrimento que lhe é demandada deve ser um exercício ético não conivente com as práticas de tortura e de violações de direitos humanos constitucionais, como o é, por exemplo, o direito à palavra – que, não por acaso, é também instituinte última da regra fundamental da psicanálise, a chamada associação livre. Se é necessário manter o estado de liberdade indispensável para que o paciente diga o que lhe vier à cabeça e ressignifique sua trajetória de vida, essa liberdade não pode ser de outra ordem que não aquela garantida pela política. Ademais, não seria arriscado afirmar que, estando suspenso o direito político à palavra, o pilar ético fundamental da psicanálise se encontra ameaçado de extinção (Roudinesco, 1995). É bem verdade que partimos aqui da tese de que o estado democrático de direito garante (de algum modo, mas nem em todos os casos) a sobrevivência da psicanálise – e isso é a própria história da psicanálise quem prova. Não obstante, só se pode falar em reparação psíquica na medida em que o que está em jogo no horizonte da cura psicanalítica é o inverso à adaptação do sujeito ao meio social. Em outras palavras, o compromisso mais substancial da política da escuta analítica é com a suspensão da perspectiva de ajuste dos desviantes à norma. Permanece assim o desafio de manter unidos o dever ético de alavancar a palavra testemunhal no interior do trabalho de escuta para além do espaço supostamente privado em que ela ocorre; ou seja, no expediente das Clínicas do
Testemunho, é indispensável fecundar a sua correlata instalação na pólis. Sublinhar que “é a pressão social que alimenta a agenda da justiça transicional” (Abrão, 2011, p. 196) é sublinhar o modo pelo qual se informam mutuamente as Clínicas do Testemunho, com o seu louvável pioneirismo de reconstruir a posteriori os não ditos intersubjetivamente partilhados, e as exigências de uma Justiça de Transição, agenda política responsável pela consolidação decisiva de um estado democrático de direito. Quero crer que a reforma das instituições perpetradoras das violações contra os direitos humanos, um dos pilares fundamentais da Justiça de Transição, também há de ser pautada pelo trabalho realizado pelas Clínicas do Testemunho. O desencontro entre a experiência do trauma vivenciado por aquele que sofreu violações fundamentais de seus direitos humanos e a chance de seu recolhimento em uma política que preze pelo direito à Memória, à Verdade e à Justiça se dá em uma complexa gramática do reconhecimento. Não ter a sua história reconhecida pelo Estado é entrar em permanente estado de repetição social da experiência traumática, que, do lado do sujeito, gira em torno de um sofrimento que não circula pelo Outro, e, do lado do Estado, mantém seus pontos cegos à custa de tantas outras vidas traumatizadas, sofridas e silenciadas, mesmo quando em continuidade com o nosso período democrático. Sabe-se que as estratégias de manutenção do silenciamento do sofrimento, seja individual ou coletivo, são mantidas ao longo da história de um país pela sua negação sistemática. O custo psíquico e social desta manutenção pode ser aproximado em um plano geral ao que Axel Honneth chama de “patologia do social”: “Eu descrevo como patologias sociais as deficiências sociais no seio de uma sociedade, as quais não decorrem de uma violação dos princípios de justiça comumente aceitos, mas de danos às condições sociais de auto-realização individual” (Honneth, 2006, p. 35). É ainda nessa mesma esteira, ainda que com expedientes epistêmicos dessemelhantes, que se pode falar em “sintoma social”: “se a tortura separa corpo e sujeito, cabe a nós assumir o lugar de sujeito em nome daqueles que já não têm direito a uma palavra que os represente” (Kehl, 2010, p. 131). Deve-se pensar assim na dupla função que exerce o trabalho propriamente psicanalítico do testemunhar: a dupla função, entre o público e o privado, de fazer valer o que há de comunitário no trauma singular bem como o que há de singular no trauma comunitário. Serão estas articulações 127
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que justificam a presença da escuta analítica na função do testemunhar: “a aniquilação do testemunho, da palavra em busca de si, que persegue a própria dor quando seria plausível fugir dela, não é a ausência do que dizer, mas não ter quem escute o que se pode dizer” (Endo, 2009, p. 55). Longe de ser um procedimento de enunciação de caráter utilitário, fiel e à ordem dos acontecimentos, o testemunho fratura o chão duro da história estritamente factual, traumatizando-o. O efeito que a palavra testemunhal provoca em termos de aparição da experiência subjetiva subjacente à violência política é de denúncia e de revelação. Contumaz por vocação, articulador de regimes de verdade por definição, o testemunho é capaz de exceder as catástrofes políticas por ser, ele próprio, a resistência ao aniquilamento lá onde estas se determinaram enquanto tal. A potência do dito do testemunho é, nesse sentido, verticalmente (no que se refere à experiência individual) e horizontalmente (os efeitos desta na história longitudinal) desobjetificante. Neste sentido, o testemunho propicia uma forma de combate ao revisionismo. Que ecoem aqui as palavras do filósofo alemão Walter Benjamin: “nunca houve um documento da cultura que não fosse também um documento da barbárie” (Benjamin, 1940/1987, p. 225). Superar os períodos de violência política da história do Brasil é mais do que aplainar as camadas sucessivas do devir temporal em uma ininterrupta retificação do ado até que nos esqueçamos dele ao fim do processo. Pelo contrário, a função do testemunho é, no limite, não itir ser soterrado. Não há como apagar as manchas da violência, e penso que a estratégia não poderia ser essa, pois é a psicanálise mesma que ensina que a catástrofe carrega em si a ameaça de sua repetição. Para reconhecer a barbárie do ado para que ela não se reproduza no presente, é absolutamente imprescindível manter a olhos nus os vestígios do sangue espirrado pelas feridas traumáticas de nossa história, para, enfim, projetar futuros outros desde as nossas cicatrizes.
Discussão: que reparação para a reparação psíquica?
Essa brevíssima incursão nesses autores notáveis para a compreensão da ordem dos conceitos psicanalíticos lidos sob o ângulo da noção de reparação, atravessada pelas diferenças metapsicológicas e clínicas entre a tradição inglesa e a tradição sa da psicanálise (que, verdade seja dita, por si só já dariam 128
uma tese), serve-nos aqui para demonstrar a nobreza dos desdobramentos conceituais aqui envolvidos. Sem o objetivo de tê-los esgotado, mas pensando sobretudo em produções e desenvolvimentos futuros, parece-nos já possível concluir sobre quão ingênuo do ponto de vista do rigor epistemológico poderia ser sobrepor concepções de reparação tão díspares já dentro da própria psicanálise – o que dizer então de incluir, mais ainda, a proposta da reparação psíquica vinda de fora de seu campo conceitual de origem? Para que haja efetivamente uma clínica psicanalítica voltada ao atendimento das vítimas de violência de Estado (de ontem e de hoje), é preciso informar ao Estado a conjuntura da discussão sobre reparação no campo psicanalítico. Nele – espero que a esta altura do texto isso esteja minimamente claro – não há uma posição consensual, nem mesmo entre os autores canônicos mais “semelhantes” entre si, sobre o que é reparação. Não obstante, quisemos demonstrar como, desde Freud, quando se trata de clínica psicanalítica, o método deve ser interpelado pelo objeto. Ou seja, a psicanálise, longe de se encerrar em um mero dispositivo técnico replicável nas mais diversas situações clínicas, tem o mérito de se reinventar a partir da particularidade de uma experiência de escuta. Ela não é imune às demandas que lhe são impostas no campo social; pelo contrário, uma psicanálise que não se afeta por estas demandas, ou que se crê fora delas, não pode ser outra coisa que não a reprodução alienada de um suposto a-historicismo de sua práxis que não se confirma enquanto tal. Ora, penso que isso não se dá por acaso: há uma exigência deste tipo específico de experiência de escuta nas Clínicas do Testemunho que leva aqueles que se mostram disponíveis a pensá-las e problematizá-las à luz desta pauta. Se parece claro que hoje há uma rede complexa de reconhecimento, que se estende do reconhecimento do outro (psicanalista) ao Outro (simbólico, estrutural, social, histórico), é preciso trabalhar para entender como, pela via contrária, tal reconhecimento retorna à psicanálise, com vistas à interpelação de sua práxis. Não caberia repetir o argumento datado de que a clínica da reparação psíquica enquanto clínica do trauma não deve se reduzir a uma clínica da interpretação. Temos ótimos exemplos em nossa literatura psicanalítica vigente sobre a reabilitação da interpretação para a clínica do trauma; Dunker (2006b), por exemplo, diferencia o trauma como desencontro do trauma como reencontro, expondo como uma clínica do trauma
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torna indispensável a tarefa interpretativa. Há nessa mesma literatura vigente uma série de desenvolvimentos a respeito do estabelecimento de diferenças entre uma “clínica do recalcamento” e uma “clínica da dissociação” (Gurfinkel, 2001), que pautaria diferentes programas clínicos na diferença que lhe é correlata, entre “ética do cuidado” e “ética da castração” (Souza, 1998). Ora, sendo devidamente rigoroso, por mais didáticas e interessantes que possam ser, estas últimas distinções entre clínica do recalcamento e clínica da dissociação, ou entre ética do cuidado e ética da castração, costumam recair em caricaturizações profundamente inconvenientes. Parece-nos urgente sair do internalismo psicanalítico para compreender os efeitos de quando a psicanálise deve responder ao chamado do Estado por ser este próprio chamado uma convocação de ordem ética e política, ao o em que também não há porque não pensar que o Estado também não deva ouvir o que a psicanálise tem a dizer sobre a violência de Estado. Isso exigirá uma boa vontade de ambas as partes que, no que tange à história da psicanálise, nem sempre houve.
Conclusão: reparar o irreparável?
Ora, dificilmente qualquer psicanalista, pela experiência de sua clínica, advogaria em favor de uma tese nominalista do conceito de reparação. Não há como não dimensionar o caráter transformacional pelo qual o psiquismo a no processo reparatório. O problema é quando o reconhecimento do processo reparatório a a ser traduzido em termos normativos ou adaptativos, cujo sofrimento individual a a ser generalizado ou dissolvido em uma experiência coletiva, para não dizer do Pior que seria silenciá-lo. Advoga-se aqui que o antídoto contra tal tradução errática é resgatar o aspecto
fundamental de perguntar de que objeto se trata na reparação promovida pelo processo da Justiça de Transição que se serve da psicanálise. Por exemplo, quando se quer implantar a possibilidade de que a violência de Estado não se repita, é preciso reconhecer as diferenças entre os violentados da época da ditadura e os que são hoje violentados pelos agentes do Estado. Quanto à natureza e função do objeto, é preciso ao menos indicar que deve-se ir com mais cautela quanto à ideia de continuidade entre “o Amarildo de hoje” e “o Rubens Paiva de ontem”. Estamos falando do mesmo objeto? Por exemplo, não é comum que de um jovem negro e periférico, alvo primordial da violência de Estado promovida pela nossa Polícia Militar, carregue consigo uma cápsula de cianureto no bolso para não denunciar seus pares, para ter ao menos a opção de pôr fim à própria vida antes de revelar qualquer informação aos seus algozes. A tortura tem finalidade confessional nos dois casos? O desaparecimento cumpre qual finalidade? Que condições para se inscrever simbolicamente em um laço com seus pares tem o jovem negro periférico, de tal modo que consiga contemplar sua vulnerabilidade social? Em que medida a nossa longa história de racismo, de exclusão dos negros da vida social e de criminalização da pobreza atravessa o processo de consolidação e sustentação da democracia hoje? Em termos psicanalíticos, poderíamos perguntar: que objeto aqui permanece sendo denegado? Pois se há algo que possa fazer pender o irreparável em direção ao reparável, é o reconhecimento, aspecto crucial para o tratamento psíquico ou para uma cura social digna deste nome. Neste sentido, há, por fim, uma lição positiva que a noção psicanalítica de reparação oferece à nossa Justiça de Transição: a de sempre lembrar de perguntar, afinal, de que objeto se trata.
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Rafael Alves Lima Psicanalista, graduado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IP-USP. Mestre e doutorando em Psicologia Clínica pelo IP-USP. E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Rua Capote Valente, 1229 apto 73 – Pinheiros. CEP: 05409-003. São Paulo – SP. Brasil. Recebido 30/06/2017 Reformulação 10/09/2017 Aprovado 18/09/2017 Received 06/30/2017 Reformulated 09/10/2017 Approved 09/18/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 10/09/2017 Aceptado 18/09/2017
Como citar: Alves Lima, R. (2017). Análise reparável e irreparável: o conceito psicanalítico de reparação na agenda da transição brasileira. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 116-132. https://doi.org/10.1590/1982-3703090002017 How to cite: Alves Lima, R. (2017). Reparable and irreparable analysis: the psychoanalytic concept of reparation in the agenda of the brazilian transition. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 116-132. https://doi.org/10.1590/1982-3703090002017 Cómo citar: Alves Lima, R. (2017). Análisis reparable e irreparable: el concepto psicoanalítico de reparación en la agenda de la transición brasileña. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 116-132. https://doi.org/10.1590/1982-3703090002017 132
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Reminiscências da Violência Estatal: A Reparação Psíquica Através de uma Clínica Política Natália Centeno Rodrigues Universidade Federal do Rio Grande, RS, Brasil.
Francisco Quintanilha Véras Neto Universidade Federal do Paraná, PR, Brasil.
Rodrigo Fernandes Teixeira Universidade Federal do Rio Grande, RS, Brasil.
Resumo: O artigo se propõe a abordar o caminho escolhido pelo Estado brasileiro ao realizar a transição política da ditadura civil-militar (1964–1985) para uma democracia constitucional, focando nas práticas reparatórias adotadas até constituir o projeto responsável por fornecer a reparação psíquica, o Clínicas do Testemunho. O caminho metodológico escolhido foi o dialético, pois nos permite a compreensão do processo histórico em questão. Para realizarmos a pesquisa, adotamos os seguimentos procedimentos técnicos: a pesquisa de cunho bibliográfico e documental. Nossa abordagem se compõe de quatro momentos: inicialmente traçamos reflexões sobre a repressão ditatorial construindo o cenário. Depois amos a abordar como o governo militar começou o processo transicional e quais foram os caminhos percorridos, as possibilidades e os espaços desenvolvidos para que os afetados e a sociedade tivessem direitos humanos respeitados e efetivados. Enfim, amos a abordar o Clínicas do Testemunho, sede Porto Alegre, como projeto reparatório que visa satisfazer demandas, essas de cunho individual – centradas nas figuras dos afetados, e coletiva, que diz respeito a toda sociedade, que recalcou esse ado autoritário. Aqui abordamos o trauma socioindividual como algo que impacta essa clínica política realizada após um longo lapso temporal, nos propomos pensar como isso afeta e qual a importância desse projeto centrado nos indivíduos, em suas vivências e seus testemunhos. Assim, concluímos que o Clínicas atua como um dispositivo de reparação que problematiza as heranças autoritárias e possibilita para os afetados um paradigma de cuidado, no qual o acolhimento e a escuta, são peças chaves para respeitarmos a alteridade. Palavras-chave: Ditadura Civil-Militar, Testemunho, Memória, Reparação Psíquica, Clínica Política.
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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 133-148.
Reminiscences of State Violence: The Psychological Repair Through a Political Clinic Abstract: The article proposes to approach the path chosen by the Brazilian state when making the transition from the civil - military dictatorship (1964–1985) to a constitutional democracy, focusing on the reparative practices adopted until it constituted the project responsible for providing psychic reparation, the Clínicas do Testemunho. The methodological path chosen was the dialectic, since it allows us to understand the historical process in question. To carry out the research we adopt the following technical procedures: bibliographical and documentary research. Our approach is composed of four moments. Initially we drew reflections on the dictatorial repression constructing the scenario. Then we began to address how the military government began the transitional process and what paths, possibilities and spaces were taken, so those affected and the society have their effective human rights respected. Finally, we went to address the Clínicas do Testemunho, Porto Alegre headquarters, as a reparatory project that seeks to meet individual – centered on the figures of the affected-, and collective – related to the society as a whole, which emphasized this authoritarian past- demands. Here we approach socio-individual trauma as something that impacts this political clinic performed after a long time, and we propose to think how this affects and how important this project that focuses on individuals, their experiences and their testimonies is. Thus, we conclude that Clínicas acts as a device of reparation that problematizes authoritarian inheritances and offers a paradigm of care for those affected, in which the reception and listening are key pieces to respect otherness. Keywords: Civil-Military Dictatorship, Witness, Memory, Psychic Reparation, Political Clinic.
Reminiscencias de la Violencia Estatal: La Reparación Psíquica a Través de una Clínica Política Resumen: El artículo se propone abordar el camino escogido por el estado brasileño al realizar la transición política - de la dictadura civil-militar (1964–1985) hacia una democracia constitucional, enfocándose en las prácticas de reparación adoptadas hasta constituir el proyecto responsable de proporcionar la reparación psíquica, el Clínicas do Testemunho. El camino metodológico escogido fue el dialéctico, pues nos permite la comprensión del proceso histórico en cuestión. Para realizar la investigación adoptamos los siguientes procedimientos técnicos: la investigación de cuño bibliográfico y documental. Nuestro enfoque se compone de cuatro momentos. Inicialmente trazamos reflexiones sobre la represión dictatorial construyendo el escenario. Después pasamos a abordar cómo el gobierno militar comenzó el proceso transicional y cuáles fueron los caminos recorridos, las posibilidades y los espacios desarrollados para que los afectados y la sociedad tuvieran derechos humanos respetados y efectivos. Finalmente, pasamos a abordar las Clínicas do Testemunho, sede Porto Alegre, como proyecto de reparación que busca satisfacer demandas, esas de cuño individual - centrado en las figuras de los afectados, y colectivo, que concierne a toda la sociedad, que recalcó ese pasado autoritario. Aquí abordamos el trauma socio-individual como algo que impacta esa clínica política realizada después de un largo lapso temporal, y nos proponemos pensar cómo afecta y cuál es la importancia de ese proyecto centrado en los individuos, en sus vivencias y sus testimonios. Así, concluimos que el Clínicas actúa como un dispositivo de reparación que problematiza las herencias autoritarias y posibilita para los afectados un paradigma de cuidado, en la que la acogida y la escucha son piezas claves para respectar la alteridad. Palabras clave: Dictadura Civil-Militar, Testimonio, Memoria, Reparación Psíquica, Clínica Política. 134
Rodrigues, N. C., Verás Neto, F. Q., Teixeira, R. (2017). Reminiscências da Violência Estatal.
O ado ditatorial, algumas reflexões introdutórias
A violência aparece como matriz do pensamento autoritário brasileiro, e nos constitui antes mesmo de existirmos como país. Somos sujeitos históricos marcados por processos de assujeitamento e subordinação, um tecido social composto pelo genocídio dos povos originários, pela herança escravocrata, pelos arbítrios da ditadura varguista e por um ado autoritário civil-militar, ado esse ainda recalcado pelo corpo social. Entendemos que é necessário problematizar não só o ado ditatorial, mas principalmente as sequelas, os entulhos e as reminiscências autoritárias que ainda seguem afetando nossa sociedade. Durante a ditadura civil-militar brasileira (1964– 1985), a atuação estatal foi utilizada como um mecanismo articulado com o intuito de dizimar os opositores, os “inimigos internos”, o aparato repressivo foi estruturado de acordo com os princípios da Doutrina de Segurança Nacional (DSN). Em síntese, Enrique Padrós (2005) nos diz que o terrorismo de estado consiste na violência estatal, que viola o direito e extrapola a legalidade constitucional. Além das vias repressivas diretas, marcadas pela violação física, outros mecanismos foram utilizados, como o aparelho propagandístico, o aparato jurídico-legal, o aporte istrativo-estatal e a estrutura psicológica, todos esses foram utilizados para dar e a atividades clandestinas ou não, que visavam conseguir o controle daqueles que o questionaram. Para isso, utilizando-se do “medo como uma das estratégias de dominação política” (Bauer, 2006, p. 122), o terrorismo estatal se estendeu e atingiu toda a sociedade brasileira (Padrós, 2005, p. 122-123). Ao tratarmos da ditadura civil-militar brasileira, é fundamental destacarmos o apoio dos setores civis e de entidades empresariais, estes setores tornaram o terrorismo de Estado, um amplo modo repressivo, similar a um sistema estatal, que não se resumiu a conter corpos, repreender fisicamente seus inimigos, o que já é algo horrível e devastador. As torturas, as perseguições deixam amplas marcas nos corpos dos que foram violados, e foram além, marcaram integralmente o tecido social. O medo da clandestinidade e da violência estatal funcionou como um amortecedor da resistência e auxiliou a neutralizar algumas respostas da sociedade civil. Tais posturas colaboraram para que o efeito psicológico da violência do Estado se tornasse onipresente e anônimo, preservando o governo
das denúncias sobre as violações de direitos humanos que lhe eram atribuídas, que somente na segunda metade da década de 1970 tornaram-se públicas. A tortura foi um método de aniquilação individual que gerou uma pedagogia baseada no medo. O ato de torturar nada mais é do que um exercício de poder. Poder que reflete em toda sociedade em forma de medo, silêncio e indiferença em relação ao outro torturado. Dessa forma, vemos que a tortura é uma prática social que “é encenada a três: o poder que tortura, o torturado e a sociedade” (Keil, 2004, p. 59). No imaginário social é fácil relacionar os dois primeiros elementos com o ato da tortura, pois estão imbricados diretamente, já que vivenciam em loco o ato. Entretanto, a sociedade assumiu um papel – de telespectadora dessas atrocidades, não demonstrando algum tipo de afetação com os sujeitos aniquilados e, muitas vezes, legitimando o governo ilegítimo e dizendo que tal fato ocorrera pois havia um motivo. Cabe uma ressalva ao falarmos do papel da sociedade como conivente: não estamos nos esquecendo dos movimentos que lutaram pelas liberdades e direitos humanos durante a ditadura civil-militar, nos referimos à parcela da população que não se envolveu politicamente. Em vista do exposto, o corpo torturado sofre marcas atrozes, inscritas pela violência, pelo medo e pelos traumas da tortura. Conforme Kehl (2004, p. 11), essa vivência tem a capacidade de separar o corpo e o sujeito (sujeito de vontade e ação), já que a relação entre torturador e torturado é permeada pela linguagem, indissociável do corpo, e que mantém a relação do sujeito com o mundo das representações, logo, o sujeito é aniquilado integralmente perante ao laço social, ou seja, a violência ditatorial deixa uma escritura no sujeito. Assim nos surge a seguinte questão: há necessidade de o governo brasileiro promover um projeto de reparação psíquica destinado aos sujeitos que foram afetados pela violência estatal ditatorial, mesmo ado mais de 20 anos do seu fim? Esse escrito possui como objetivos compreender de que modo um projeto governamental de reparação psíquica pode e serve para atender demandas das pessoas afetadas (direta e indiretamente) e do laço social; analisar o modo como a sede de Porto Alegre do Projeto Clínicas do Testemunho realizou suas atividades e de que forma essas sinalizam ou não a importância da existência de um projeto de reparação psíquica; 135
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rascunhar um traço sobre a herança autoritária que permanece em nossa sociedade e representa muitos silêncios que não foram (re)significados.
O percurso metodológico
Para esse artigo, adotamos o método dialético, pois esse nos permite a compreensão do processo histórico das mudanças e dos conflitos sociais (Gil, 1987, p. 31). Essa abordagem metodológica se mostra como forma pertinente de investigar a realidade e, desse modo, nos possibilita compreender como, adas quase três décadas do fim da ditadura civil-militar, o Estado brasileiro estabelece parceiras com sociedades civis, com o intuito de fornecer a reparação psíquica, através da implementação dos dispositivos de apoio e atenção aos indivíduos, os quais foram afetados pelos efeitos da violência estatal. Nossa escolha teórica justifica-se, na medida em que o referido método nos permite abordar o fenômeno estudado por diversos aspectos, buscando compreender e estudar as suas relações e conexões, mantendo a complexidade do objeto pesquisado (Gil, 1987, p. 32), ou seja, nos permite compreender como as permanências autoritárias ainda afetam a nossa sociedade e como a atuação do Projeto Clínicas do Testemunho. Para desenvolver a pesquisa adotamos os seguintes procedimentos técnicos: de nível exploratório realizamos pesquisa de cunho bibliográfico e documental. A seleção bibliográfica para pensar o processo transicional brasileiro foi multidisciplinar, elencamos referências da área da história, do direito, da ciência política e da psicanálise com o intuito de dialogarmos e respeitarmos a complexidade do processo social abordado. Já a escolha bibliográfica em relação ao Projeto Clínicas do Testemunho, partiu de uma base teórica encontrada nos materiais produzidos pelos núcleos do projeto, consistem esses essencialmente em livros. O aporte psicanalítico foi a opção teórica por nós elencada devido ao fato de compreendermos que o mesmo dá conta das questões relativas a reparação psíquica, o testemunho, o falar, o ato de escutar, a sociedade, o sujeito e o trauma. Além disso, as sedes do Projeto seguem orientação psicanalítica, fator que balizou nossa escolha teórica. A base documental analisada consiste no relatório produzido pela sede de Porto Alegre do Projeto Clínicas do Testemunho, no qual a Sigmund Freud Associação 136
Psicanalítica no qual apresentou os resultados do projeto-piloto (2013–2015). Assim, o caminho percorrido nesse escrito parte de uma breve compreensão do contexto repressivo. Para assim caracterizarmos como a transição política foi negociada, como amos de uma ditadura civil-militar para uma democracia constitucional. Após isso, nos dedicamos a demonstrar como o processo de reparação política ocorreu em nosso país até a criação do projeto Clínicas do Testemunho que estabeleceu uma ruptura dentro de tais práticas, pois possibilita romper com a figura do sujeito silenciado ao abordar as vivências individuais frente ao terrorismo estatal. Ao fim, nos debruçamos a pensar o trauma e como esse impacta nessa clínica política desenvolvida pelo projeto, para assim refletimos como o Projeto Clínicas do Testemunho se apresenta como uma potência significativa.
A transição à brasileira, o papel da lei de anistia
Em nosso escrito, para abordamos a transição política, partimos da lei de anistia, remontamos a sua promulgação no ano 1979, pois a referida lei até hoje segue configurando o cenário transicional brasileiro. Entendemos que a transição política “trata-se, pois, de um processo de negociação que conduz à substituição no poder e à instauração de certas regras pelas quais, tal poder será exercido no futuro” (Carrillo, 2009, p. 32). Desta forma, mesmo sobre o regime democrático, observamos as permanências do legado autoritário, que são configurações institucionais que “sobrevivem à transição democrática e intervêm na qualidade e na prática das democráticas pós-autoritárias” (Pereira, 2010, p. 239). A aparência de legalidade e a institucionalidade serviram para que a ditadura se perdurasse por muitos anos e suas raízes se fazem presentes no contexto atual. Em agosto, dois projetos legislativos foram discutidos no Congresso Nacional sobre a anistia. O projeto defendido pela oposição tinha como bandeira “anistia ampla, geral e irrestrita” a todos que opam o governo e exerceram o direito de resistência. Já o projeto governista propunha uma anistia parcial e restrita, pois não visava conceder liberdade a todos os presos políticos. Ao longo do mês, os projetos foram discutidos e, no dia 28 de agosto de 1979, o General ditador Figueiredo sancionou a lei de
Rodrigues, N. C., Verás Neto, F. Q., Teixeira, R. (2017). Reminiscências da Violência Estatal.
anistia, que correspondia aos interesses governistas, relata Mezzaroba (2006, p. 50). A anistia simbolizou um avanço político, já que mais de cinco mil brasileiros foram beneficiados com a sua aprovação. Também constituiu uma barreira, devido à interpretação judicial cunhada na época atribuiu à lacuna legal o sentido de que aqueles que agiram abarcados pelo manto estatal estavam anistiados por terem cometidos tais violações aos direitos humanos de modo conexo aos crimes políticos. Essa interpretação até hoje veda a instauração de processos judiciais que buscam responsabilizar os perpetradores de direitos humanos. Dessa forma, a anistia ainda hoje representa um impeditivo transicional, ao vedar a responsabilização judicial dos agentes violadores de direitos humanos. Como exposto acima, entendemos que a anistia no Brasil representou uma “conciliação quase (im)posta” (Cunha, 2010, p. 35), tendo em vista que os governantes lograram êxito ao aprovar o seu projeto e conseguiram escapar da responsabilização pelos atos cometidos durante o período ditatorial. Dessa forma, percebemos que a nossa transição política foi caracterizada por (re)configuração, transformação e não ruptura, assenta Abrão (2012).
O que fica da ditadura na transição? As práticas pelo governo brasileiro até implementar o projeto de reparação política
A anistia exerceu centralidade na transição e outros mecanismos transicionais foram instaurados com o intuito de efetivarem direitos transicionais, como o direito à verdade, à memória, à justiça e as instituições democráticas. A primeira medida reparatória proposta pelo governo brasileiro foi o reconhecimento oficial do óbito daqueles que desapareceram em decorrência da participação ou acusação de participação em atividades políticas, concedido através da Lei nº 9.140 de 1995 (Brasil, 1995). Já em 2002, com a promulgação da Lei no 10.559 (Brasil, 2002), foi instaurada a Comissão de Anistia, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, ao qual foi atribuída a função de julgar os pedidos de anistia política e de estabelecer se haverá ou não a concessão de reparação de cunho pecuniária. Tal dispositivo legal, regulamentou o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, assim, estabeleceu qual o procedimento necessário para que alguém seja declarado anistiado político e instituiu os limi-
tes constitucionais de quem pode requerê-la: pode requerer toda e qualquer pessoa que foi afetada pela perseguição estatal, por motivação exclusivamente política. Assim, demarcou que somente as pessoas que foram perseguidas/afetadas pela atuação estatal repressiva do governo ditatorial poderiam requerer. A Comissão de Anistia tornou-se órgão-chave na transição e, em 2008, estabeleceu um procedimento móvel de julgamento dos pedidos de anistia, criando as Caravanas de Anistia com o objetivo tornar público os julgamentos e assim difundir as histórias sobre o nosso ado. Além disso, criou um espaço de fala pública destinado aos sujeitos que foram perseguidos, constituindo o primeiro espaço no qual o papel ativo ao afetado, concedendo voz, e ao fim de tudo, o representante estatal assume o espaço e pede desculpa em nome do estado brasileiro pelas violações que foram cometidas. Ainda no cenário transicional a lei de anistia foi questionada judicialmente, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). A ADPF no 153 buscava que o judiciário realizasse uma nova interpretação legal, pedia que fossem julgados individualmente os pedidos de anistia, a fim de verificarmos se era cabível ou não a concessão da anistia aos agentes violadores, e buscava revestir de materialidade a questão da conexão dos crimes prevista na lei. Os ministros do STF julgaram em abril de 2010 a ação proposta como improcedente, pois entenderam que uma revisão agora era inconcebível e compreenderam a anistia como um pacto de pacificação social. Em novembro de 2010 foi proferida uma sentença condenatória pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) que julgou o Brasil responsável pela violação de direitos humanos ocorridas durante a Guerrilha do Araguaia, no “Caso Gomes Lund e Outros versus Brasil”. A sentença se compôs de inúmeros dispositivos, dois deles foram tornaram-se lei pelo governo brasileiro, a Lei no 12.527 (Brasil, 2011a) e a Lei no 12.528 (Brasil, 2011b), ambas de 2011. A primeira regulamentava o o público aos documentos, modificou o o, a sistematização e a publicação dos documentos e informações públicas. Já a segunda lei criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, que atuou de maio de 2012 até dezembro de 2014, quando publicou o seu 137
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relatório final, composto por três volumes, no qual foram explicitadas as investigações e as apurações feitas sobre o contexto repressivo, as violações de direitos humanos e a investigação dos mortos e desaparecidos políticos. Essas informações foram sistematizadas com a intenção de que fossem conhecidas pela população, evidenciando que o governo ditatorial cometeu crimes lesa humanidade, tais como o desaparecimento forçado, ocultação de cadáveres, torturas e execuções. A sentença condenatória da Corte IDH, em seu o 11 ponto resolutivo, atribui ao Brasil a obrigação de criar mecanismos de atenção médico e psicológica voltados a atender aqueles que foram afetados (direta e indiretamente) pela ditadura civil-militar. Atendendo esse aspecto o país, criou o Projeto Clínicas do Testemunho vinculado à Comissão de Anistia. O edital que visava à criação do projeto-piloto foi publicado em 2012, e sua atuação iniciou no ano seguinte. O referido projeto buscava criar espaços destinados a atenção e apoio psicológico, aos afetados pela violência estatal. Dessa forma, em resposta ao primeiro edital tivemos a criação de quatro sedes, duas situadas em São Paulo, uma no Rio de Janeiro e outra em Porto Alegre. Integrou-se a rede uma clínica que foi criada em Recife, subsidiada pelo governo estadual, e se vinculou ao projeto, para atuar na mesma perspectiva. Fazendo uma análise sintética compreendermos que a nossa justiça de transição assenta-se em mecanismos jurídicos que concedem direitos aos afetados políticos – como a reparação política, econômica e moral. Esse processo parte da lei de anistia, que se constitui como um impeditivo transicional, pois impossibilita a responsabilização penal dos agentes violadores dos direitos humanos. Evidenciando-a como um entulho autoritário, que representa a nossa cultura jurídica “conciliadora” (Baggio, & Miranda, 2010, p. 162) e naturalizadora das violações que a sociedade brasileira foi (e ainda é) submetida. Nos últimos anos, observamos que finalmente o protagonismo começou a ser concedido aos afetados pela ditadura civil-militar. Modificação representativa, pois são os afetados que podem contar o que lhes ocorreu e transmitir suas vivências, tornando-as experiências comunicáveis, evidenciando as marcas que esse ado autoritário deixou em suas vidas. Surgiram espaços como o dispositivo final da Caravana de Anistia, e o espaço instalado para a oitiva 138
dos depoimentos junto a Comissão Nacional da Verdade, tais espaços que modificaram o protagonismo e exercem um papel simbólico, apesar de não estarem em conformidade com o paradigma da recepção, a escuta e o acolhimento. O Projeto Clínicas do Testemunho surge e assume como objetivo para si a criação de espaços públicos alicerçados no acolhimento e na escuta daqueles que se entendem afetados pelas violências estatais e utiliza o testemunho, como seu dispositivo central, para que os mesmos possam rear e escovar a história de suas vidas a contrapelo (Benjamin, 2012, p. 245). Tomamos os testemunhos dessas vivências por parte de quem as sofreu direta ou indiretamente, como base desse trabalho clínico-político. Elegemos os testemunhos e não depoimentos, pois, ao pensarmos na ideia de um depoimento, fechamos as possibilidades de fala e instauramos uma busca por fatos e verdades que necessitam ser comprovadas ou refutadas em seu caráter jurídico. Ao escolhermos os testemunhos se abre uma possibilidade de construção de subjetividade e de descontinuar uma história hermética e criar um lugar para o sujeito, já que para testemunhar, não há apenas a necessidade de fala, mas também tem que haver uma escuta (papel aqui considerado como do terapeuta) para conferir voz aos sentimentos mudos, para assim conseguir compor novas tramas de sentido para as memórias traumáticas (Indursky, & Szuchman, 2014, p. 58). O testemunho se instaura em outro lugar. A linguagem do testemunho cria uma realidade, que vai além da palavra proferida e torna-se um acontecimento, enuncia “uma verdade que só a vítima pode produzir porque pertence à sua experiência da violência” (Ruiz, 2014, p. 64). Assim, o testemunho, “se tornou a forma privilegiada de narrar uma experiência qualificada de in-transmissível justamente por aqueles que tentaram transmiti-la” (Koltai, 2016, p. 24), buscando uma forma de transformar o excesso do real em jogo traumático, tendo sempre em mente uma posição ética, na transmissão daquilo que é indizível. “Os testemunhos realizam a agem de uma memória que era individual para o coletivo, o ato de testemunhar evita o esquecimento histórico e se constitui como elemento de suma importância para aqueles que vivenciaram as experiências traumáticas” (Rodrigues, & Véras Neto, 2016, p. 151). Não só os indivíduos necessitam desse testemunho, mas sim o tecido social carece de tais narrativas porque
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suas vivências são permeadas pela matriz autoritária, sua institucionalidade é marcada por tais processos. As narrativas testemunhais possibilitam a construção de uma memória pública, assentada em valores democráticos e antiautoritários, na medida em que elas abrem fissuras na política de silenciamento, que ainda vige no Brasil. Assim compreendemos que o Projeto Clínicas do Testemunho surge como um quarto eixo de reparação, complementando as reparações econômicas (concessão de reparação financeira), coletiva (marcada pelas iniciativas de memória) e a moral (que é composta pelo pedido de desculpa em nome do Estado brasileiro). A atuação do projeto visa conceder a atenção terapêutica, sua prática consiste em múltiplas frentes, e objetiva capacitar profissionais para lidar com as violências institucionais, a fim de reparar os danos, aqui compreendidos como transicionais, pois se mantêm presentes em nosso tecido social. Os danos sociais são transgeracionais, que peram as gerações, a cultura institucional e também permanecem e se (re)configuram de modo autoritário. O projeto atribui uma potência ao testemunho, como disparador coletivo e por entender que sem uma construção de uma narrativa pública sobre a violência autoritária ditatorial, não conseguiremos alicerçar uma sociedade democrática. E essas narrativas devem ser construídas a partir do paradigma do cuidado, da escuta e da não (re)traumatização.
Como pensar o trauma na realização do projeto Clínicas do Testemunho
Para trabalharmos a noção de trauma, pensaremos a partir da noção que a psicanálise fornece sobre o tema. Breuer e Freud (1995, p. 42) percebem o evento traumático em uma impossibilidade de lembrar, entretanto, com a capacidade de inscrever sintomas físicos que estão em desacordo com a realidade anterior ao trauma. Os autores pensaram que a maneira de tratar a histeria estaria de acordo com um processo, nos qual as pacientes conseguiriam lembrar do evento causador liberar o afeto que acompanha a experiência traumática. Percebemos, então, que essa noção permeia a obra de Freud desde o início como algo que constitui a realidade, que tem poder de modificar e afetar de diversas maneiras o aparelho psíquico “O ‘recalcamento’ da lembrança de uma experiência sexual aflitiva, que ocorre em idade mais madura, só é possí-
vel para aqueles em quem essa experiência consegue ativar o traço mnêmico de um trauma da infância” (Freud, 1997, p. 98). O trauma então é fundamental para o estudo psicanalítico acerca do sujeito e suas vivências no mundo. Após alguns anos essa teoria teve desdobramentos na obra freudiana, porém, estes não são pertinentes ao nosso trabalho. Ferenczi (2011a), um dos psicanalistas da geração de Freud, agrega a experiência de ter vivenciado os horrores da primeira grande guerra (1914–1918) em seus escritos sobre o trauma, o que permitiu lançar um outro olhar as questões relativas ao traumatismo psíquico. O autor propõe que a consequência imediata do trauma é a angústia, que consiste em um sentimento de incapacidade de adaptação a essa situação. O desprazer cresce e exige uma válvula de escape. Tal possibilidade é oferecida é oferecida autodestruição, a qual, enquanto fator que liberta da angústia, será preferida ao sofrimento mudo. O mais fácil de destruir em nós é a consciência, a coesão das formações psíquicas numa entidade: é assim que nasce a desorientação psíquica (Ferenczi, 2011b, p. 127). A partir do tratamento de 200 combatentes, Ferenczi percebeu um quadro sintomatológico inespecífico e tardio e que havia sequelas da guerra que não eram apenas provocadas por lesões físicas no tecido cerebral, no entanto, eram formadas por traumatismos oriundos dessas vivências. Nesse estudo, o autor percebe que um dos sintomas mais comuns eram os pesadelos que remontavam as situações trágicas vividas no fronte de batalha, ideia que modifica um pouco o parâmetro Freudiano dado anteriormente, pois a pessoa, mesmo que por vias inconscientes, se lembra do acontecimento (Ferenczi, 2011a, p. 299). Ainda sobre a Primeira Guerra Mundial, é conveniente lembrar a constatação de Walter Benjamin que percebe que os “combatentes voltavam silenciosos do campo de batalha, mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos” (Benjamin, 2012, p. 124). Tal afirmação ganha mais sentido se relacionarmos com a ideia trazida por Ferenczi sobre o mesmo período: Esses pacientes ainda não se refizeram de seu pavor, mesmo que já não pensem consciente139
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mente no transe por que aram e até se mostrem, por vezes, alegres e de bom humor, como se seu espírito não estivesse torturado, de forma alguma, por tão horríveis lembranças (Ferenczi, 2011a, p. 297). O que impera, ao fim, é o silenciamento, que relega aos sujeitos traumatizados uma espécie de história impossível de ser contada. Após o holocausto, o problema apenas tomou proporções mais complexas, um exemplo clássico, porém ainda pertinente, diz respeito ao sonho de Primo Levi, no qual ele volta do campo de concentração onde esteve preso e, ao começar a narrar as suas experiências em face ao horror, as pessoas ao seu redor am a deixar o recinto, demonstrando o desinteresse em ouvir aquela narrativa (Levi, 1988, p. 60). Todos esses fatores históricos colaboram para entendermos o fenômeno da tortura e das ditaduras civis-militares na América Latina sob a ótica do trauma e sobre os efeitos sociais das mesmas. A tortura, ou demolição do sujeito, ocorre em três etapas para Viñar (1993) que diz que há uma fase de aniquilação do indivíduo, seguido por uma desordem profunda de convicções, a terceira etapa é de reenlace, a reorganização do sujeito com aquela situação indizível. Há, por fim, os caracteres individuais que se colocarão acerca do sujeito que sofreu com a violência. A sintomatologia será um reflexo de um impacto em nível pessoal, aspectos múltiplos partilhados e a situação de repressão mais especificada (Lira, Weinstein, 1984). Normalmente essa situação não tem uma elaboração fácil, ainda mais nos casos onde o estado que deveria proteger o sujeito acaba por destruí-lo. Devemos observar esse sofrimento humano a partir de uma ideia de sociedade. Kehl (2010, p. 125126) propõe que socialmente temos um universo de experiências compartilhadas por todos por intermédio da linguagem. Porém, as pessoas afetadas pelos regimes de exceção, mais diretamente o caso brasileiro da ditadura civil-militar, tem uma gama de experiências violentas não compartilháveis pela fala, fazendo com que vivam em uma espécie de “universo paralelo”. Consequentemente, ainda de acordo com a autora, essas experiências não fazem parte da memória coletiva, memória que institucionalmente serviu para aterrar o terror dos torturados, resultado de um estado que não reconhece que atuou (através de seus agentes) na aniquilação da vida. 140
A história desse período autoritário é muito controversa, pois o silenciamento fez com que a história oficial ocultasse as barbáries promovidas pelo estado durante 21 anos. Porém, sabe-se que todo o aparato institucional disponível foi utilizado para fins de controle e de punição social para os que resistiram, isso não furta o papel das instituições de saúde. É sabido que médicos e psicólogos acompanhavam alguns centros de tortura no Brasil, vide o que denuncia Vianna (1994) que conta os absurdos promovidos pelo psicanalista Amilcar Lobo, que trabalhou junto as forças do exército na tortura de civis. Dessa forma, a atuação da Psicologia junto aos afetados pela ditadura brasileira tem um papel bastante complexo, pois, embora haja alguns caracteres de resistência, sua prática também foi utilizada como aliada do braço do estado. O trabalho de escuta a partir daí necessita de uma construção muito elaborada, pensar não somente as técnicas, mas as condições de escuta e intervenção possíveis para que se possa (re) contar a história brasileira a partir da fala silenciada. Retomando Keil (2004, p. 59), ela lança luz sobre o fato de que toda e qualquer tortura ou violência cometida durante a ditadura foi vista por, no mínimo, três forças, o estado torturador, aqueles que foram vítimas e a sociedade que permitiu que tais episódios acontecessem. Essa consideração coloca esses eventos em outro eixo, no qual a sociedade participa ativamente de todo o processo, tanto de causa como de reparação da violência. Além disso, pensamos, por meio de Maria Rita Kehl, que as sevícias do corpo deixam marcas no sujeito como todo, principalmente pela palavra que o torturador deseja ouvir, que nada tem a ver com a que o outro, subjugado por sua violência, tem a dizer. Como diz a autora: “Resta ao sujeito que se identifica com o corpo que sofre nas mãos do outro o silêncio, como última forma do domínio de si” (Kehl, 2004, p. 10). Como conceituação geral dentro desse escrito entendemos o trauma, assim: A intensidade excessiva do trauma calcina o sentido e a palavra não consegue organizar o relato e nada amarra o elemento temporal, instalando-se uma descontinuidade que a psicanálise chamou de a posteriori. O que se pode dizer, o que se pode lembrar, apresenta-se como falho, tem uma intensidade que não pode ser dita, algo se inscreve e escapa (Perrone, & Moraes, 2014, p. 32).
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A partir da instauração do Clínicas do Testemunho, observamos algumas mudanças no que tange a reparação psíquica em nosso país. Sobre o tempo que levou para essa reparação ser efetivada, observamos um enorme hiato, um espaço geracional que determinou a formação psíquica das futuras gerações (Trachtenberg, 2013 p. 83). No entanto, apesar do longo tempo, isso não configura uma impossibilidade do trabalho. Conforme pontua Altounian (2012, p. 109) sobre o genocídio armeniano, há um trabalho gestacional dessa potência de testemunhar, que implica em um trabalho feito não por quem fala, mas por quem escuta, um trabalho que pode levar gerações para poder existir. Uma atividade que inverte um pouco da demanda, ou seja, a demanda de falar também depende da demanda de escutar, bem como dito anteriormente nas impressões de Primo Levi.
A potência do testemunho e a experiência do Clínicas do Testemunho em Porto Alegre
O Clínicas do Testemunho se instaura como uma medida que faltava no país, dentro do cenário transicional brasileiro, necessitava de um espaço destinado a problematizar os efeitos psíquicos, deixados no tecido social e nos sujeitos que foram afetados. O Clínicas “parte do acolhimento das dores, dos afetos, dos signos, das palavras isoladas, e acompanha as intenções e os movimentos que podem promover a agem daquilo que aparece cravado na carne como um signo, a um saber mais subjetivado” (Vannuchi, 2014, p. 03). Nesse espaço, o acolhimento é a ferramenta fundamental. O papel dos terapeutas “é de testemunha da história familiar” (Ocariz et al., 2014), como um espaço transferencial, se constitui como um espaço de reconhecimento da dor. A equipe do Clínicas, sede Porto Alegre, é composta por profissionais capacitados, que estão preparados para lidar com os traumas oriundos da violência de Estado, esses se destinam a acolher e escutar tais narrativas, evitando a naturalização do “silenciamento – capaz de atravessar gerações – e assim perde-se o elo de responsabilidade entre os acontecimentos fundantes do devir histórico” (Losicer, 2015, p. 32). O projeto permite o deslocamento das histórias que antes eram apenas individuais para o coletivo, para o tecido social, através de alguns de seus dispositivos. E vai além, seu formato potencializa “o ato de testemunhar” (Vital Brasil, 2015, p. 43), pois, ao quebrar o
silêncio, a clínica ganha uma outra dimensão, já que retira o ado da esfera privada individual, e lança para o coletivo a experiência traumática que foi submetido, sendo assim o testemunho se torna “um chamado à responsabilidade do Estado e uma convocação ao reposicionamento ético de quem se torna uma ‘testemunha do testemunhado’” (Kolker, 2015, p. 62). Ao pensar o projeto, nos cabe trazer alguns dos desafios que foram enfrentados pelo projeto Clínicas, sede Porto Alegre. Quando a equipe começou a execução do projeto, não havia um levantamento prévio de demanda, ou seja, criou-se o projeto sem saber se haveria pessoas interessadas no mesmo, assim foi necessário realizar a aproximação e divulgação do projeto para que os primeiros interessados se aproximassem. Outra questão enfrentada foi que no primeiro momento as pessoas compreendiam a proposta do Clínicas como mero dispositivo clínico individual, e não compreendiam como uma potência clínica política. Além disso, houve pessoas que resistiram e não realizaram a aproximação por se tratar de um projeto financiado pelo governo brasileiro, o mesmo agente violador de outros tempos. Se fez necessário pensar “a significância do Estado, ele mesmo ofertar um projeto de reparação psíquica, pois a possibilidade de ocorrer um tratamento, seja individual ou grupal, é investida desde então pelo reconhecimento do Estado de que ele é responsável pelo dano feito” (Sigmund Freud Associação Psicanalítica, 2015). Compreendemos que é necessário que a reparação parta do ente violador para que possamos falar em reparação psíquica. Todas essas questões foram desenvolvidas no intuito que a equipe conseguisse construir uma base para desenvolverem o trabalho, as questões por nós aqui levantadas foram extraídas do Relatório Final Rede Clínicas do Testemunho Sigmund Freud Associação Psicanalítica – Clínicas do Testemunho do Rio Grande do Sul, documento por nós consultado e utilizado como fonte de análise. A equipe que começou a desenvolver o projeto junto ao primeiro edital (2013–2015) estava vinculada a Sigmund Freud Associação Psicanalítica. Porém, no segundo edital, a entidade que foi contemplada a firmar o convênio com a Comissão de Anistia foi o Instituto Appoa – Clínica, Intervenção e Pesquisa em Psicanálise, sede Porto Alegre. Essa modificação de instituição se deu por questões de cunho burocrático. Após a modificação institucional, a equipe do projeto seguiu e novos membros foram agregados ao grupo. 141
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A reparação dentro do Clínicas ocorre através de múltiplos dispositivos. Dentre os dispositivos adotados pelo projeto na sede de Porto Alegre estão os atendimentos individuais, os grupos de testemunhos, os grupos temáticos, as conversas públicas e as capacitações. Cabe ressaltar que tais dispositivos terão suas funções explicitadas quando abordamos a atuação do Clínicas. Conceitualmente entendemos que “todo dispositivo se define pelo que detém em novidade e criatividade, e que ao mesmo tempo marca a sua capacidade de se transformar, ou de desde logo se fender em proveito de um dispositivo futuro” (Deleuze citado em Boettcher, & Pellanda, 2010, p. 98/99). Os dispositivos nos ajudam a pensar as sequelas e as reminiscências deixadas pela violência dos agentes estatais. Este processo objetiva viabilizar que o projeto realize atendimentos individuais e coletivos, nos quais a atenção se centrasse na escuta, em quem narra e no que é narrado, nas histórias que são enunciadas. Os atendimentos individuais se constituem como espaços de psicoterapia. Esse espaço significa potências, pois é através da palavra, do ato de falar que tais possibilidades são construídas, por isso o terapeuta tem um papel fundamental que é o de escutar, de ar aquilo que está sendo dito. Essa escuta contribui para que a pessoa recupere a sua dignidade que havia sido suspensa e possibilita que seja realizada a elaboração psíquica, conforme nos ensina Vital Brasil (2015). Conforme a equipe clínica, a busca de atendimento individual foi motivada principalmente pelos seguintes fatores: o sofrimento direito ocasionado pelo silenciamento e não reconhecimento estatal; a ausência de espaços (sociais e familiares) destinados a receber e escutar as suas narrativas traumáticas sem as colocá-las em cheque; a manifestação de doenças psicossomáticas e repetições compulsórias até não íveis de elaboração; experiências de (re)traumatizações propiciadas junto aos órgãos oficiais que buscavam aferir uma nova verdade sobre o ocorrido durante a ditadura civil-militar e ausência de acompanhamento para depor nesses espaços; a necessidade de reiniciar o acompanhamento terapêutico, tendo em vista a existência de um espaço especializado; procuraram devido aos eventos que abordavam a temática do cinquentenário do golpe civil-militar, fator que desencadeou (re)atualizações e despertou o devir de memória; consequência do trabalho reali142
zado junto ao grupo de testemunho, muitos sentiram necessidade de aprofundar o seu processo de elaboração e alguns sentiram necessidade após seus parentes ingressarem no projeto e se permitiram a pensar sobre as vivências familiares, conforme consta no relatório da Sigmund Freud. Outro dispositivo fundamental dentro do projeto são os grupos de testemunhos, esses se constituem como um espaço misto, essencialmente coletivo e público, mas que possibilita momentos de elaboração individual, para (re)significar suas vivências. No projeto-piloto foram constituídos dois grupos de testemunhos, um com encontros na quarta-feira e o outro se reunia na quinta-feira. O grupo de quarta possuía encontros semanais, e durou de setembro de 2013 e até junho de 2015. Sua constituição era múltipla, ou seja, tinham filhos de afetados e uma pessoa que havia sido afetado diretamente. Teve, ao longo do transcurso, número variado de membros e, ao seu fim, havia oito integrantes. Uma integrante do grupo ficou enferma e, desde então, esteve ausente por um período. Essa situação alterou a dinâmica grupal, fazendo com que os testemunhos se focassem na memória, no “que foi silenciado pelos pais e também por reconhecerem lacunas importantes na história da família” (Sigmund Freud Associação Psicanalítica, 2015). Já o grupo de quinta tinha periodicidade quinzenal. Sua constituição ocorreu em agosto de 2014 e durou até junho 2015 e, em seu encerramento, havia nove membros. Os compam afetados diretos, filhos e parentes de segunda geração. E as principais questões do grupo pontuavam a narrativa, a memória e como essas atuam como um gatilho de compartilhamento de histórias. Ainda das experiências dos grupos de testemunhos foi produzido um insumo, um livro intitulado “Os Arquivos da Vó Alda” composto de narrativas e memórias, o que demonstra um trabalho de composição, caracterizado pela aquisição de voz dos integrantes do projeto. Além do livro, através dos grupos foi gestada a criação do Coletivo de Filhos e Neto do Rio Grande do Sul, por Memória, Verdade e Justiça, criação formalizada através de uma Audiência Pública realizada no dia vinte quatro de abril de 2015, em Porto Alegre. Esse espaço foi marcado pelo compartilhamento de testemunhos, os quais foram previamente confeccionados dentro dos grupos, demonstrando um preparo e um cuidado antes que as vivências fossem coletivizadas, ou seja, devolvidas ao laço social.
Rodrigues, N. C., Verás Neto, F. Q., Teixeira, R. (2017). Reminiscências da Violência Estatal.
Durante a execução do projeto-piloto, foi detectada uma necessidade de interiorização do projeto, devido à dificuldade de o dos residentes no interior do Estado. Nesse sentido, ficou registrada a necessidade de criação de grupo de testemunhos e de realização de conversas públicas no interior, para, assim, levar a cabo a função de interiorizar o projeto. O rumar ao interior surgiu devido ao desconhecimento das histórias da repressão fora da capital e da dificuldade de permanente deslocamento à capital por aqueles que gostariam de ingressar no projeto, tais constam no relatório do projeto. Já a proposta do grupo temático consiste em um espaço para trabalhar sobre questões específicas, a partir de um tema gerador, com o número máximo de dez sessões para abordá-las. Até o fim de 2016, não existia nenhum grupo temático na sede de Porto Alegre. Esse dispositivo surge apenas no segundo edital. Outro dispositivo importante na articulação do projeto são as Conversas Públicas. Elas se constituem como um espaço de troca, compartilhamentos sobre o que ocorreu durante a ditadura civil-militar. Aspecto fundamental é que as conversas articulam a equipe do projeto, a sociedade civil, a comunidade acadêmica e todos os nichos sociais que possuem interesse em participar. As conversas públicas possuem metodologia diversa. Em algumas é utilizada uma fala central para conduzir o espaço, em outras, os gatilhos disparadores são manifestações artísticas, portanto, não há uma rigidez quanto à forma. Há por parte da equipe uma preocupação em descentralizar tais atividades, levando-as para o interior do Rio Grande do Sul. No primeiro edital apenas a cidade de Pelotas foi contemplada com a conversa, já no segundo edital, o dispositivo ocorreu em diversas cidades, tais como Rio Grande, São Leopoldo e Caxias do Sul, conforme consta no site institucional. A descentralização do projeto objetiva que as pessoas conheçam mais sobre o contexto repressivo que ocorreu no interior do estado e busca também ouvir histórias sobre as vivências frente ao terror estatal. Por fim, temos as capacitações que possuem o objetivo de instrumentalizar a maneira de atuação das pessoas que lidam com sujeitos que foram e são vítimas da violência de Estado. Além disso, busca estimular o compartilhamento de experiência entre os elaboradores dos serviços públicos, com a intenção de traçar e elaborar estratégias de intervenção. As capacitações são fundamentais, já que demonstram
para além dos afetados, direta ou indiretamente, que toda sociedade foi impactada pela violência estatal. Ao investirmos esforços no projeto de reparação psíquica através de uma política estatal, investimos também na potência reparatória do testemunho – reparação simbólica e psíquica, isso se justifica por não acreditarmos na possibilidade de conciliação com o ado, acharmos necessário revisitarmos um dos capítulos mais bárbaros da história dos brasileiros, como pontua Kolker (2015). Cabem algumas observações metodológicas sobre o conceito de reparação psíquica: primeiramente, a reparação psíquica não busca a paz através do esquecimento do vivido, o que se busca é recompor individual e coletivamente o episódio traumático. A Clínica do testemunho é “uma clínica do laço social, ao criar condições de possibilidade para que se escutem e se criem novos testemunhos, conectando intergeracionalmente a atualidade do horror que ainda marca nosso tecido social” (Indursky, & Piccinini, 2015, p. 9). Interessa-nos, possibilitar esses espaços públicos de fala e escuta, mantidos pelo Estado brasileiro, onde as narrativas testemunhais se tornam possíveis, são preparadas, sustentadas e escutadas, na perspectiva do cuidado e do acolhimento. A reparação psíquica não é dirigida apenas aos sujeitos que foram afetados, se direciona também a sociedade civil como um todo, pois, ao repensar esse ado autoritário, possibilita (re)significar toda violência estatal, desde a ditatorial até a atual, que nos constitui enquanto sociedade. Para os que foram afetados diretamente, a reparação psíquica não significa curar as sequelas geradas pela violência estatal, significa criar possibilidades de reelaborar, de recompor sua vida. Podemos dizer que a reparação por via do testemunho possibilita recompor aspectos de sua identidade, e diz respeito as estratégias e as possibilidades de resistência. Elaborar a vivência traumática não significa apagá-la, e sim reforçar a coragem, a memória, a resistência, conforme Pereira (2015). Além disso, a reparação psíquica instaura outra lógica na perspectiva reparatória, as demais medidas se configuram como procedimentos pontuais, burocráticos, nas quais há uma previsibilidade racional, pois há requisitos que necessitam ser preenchidos para que a pessoa receba a respectiva reparação. Esses processos não contemplam a subjetividade daqueles que foram afetados pela violência estatal. A reparação 143
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psíquica, através do Clínicas, instaura um espaço onde a fala, a escuta e a alteridade tornam-se centrais, cabendo as verdades subjetivas, as narrativas, as vivências, tudo que não pode ser quantificado, ou racionalizado. Pois, o testemunho é sempre um ato de cocriação, por assim ser, não é estanque, não nos diz uma verdade pontual, já que o testemunho é sempre fabricado “à medida que as condições sociais de recepção de seu relato são possibilitadas” (Indursky, & Szuchman, 2014, p. 51). Aqui o paradigma não é a verdade absoluta, pontual, factual e científica, e sim uma verdade subjetiva e histórica na qual cada vivência seja importante para construirmos uma narrativa pública sobre ado autoritário, para, assim, recompormos o caleidoscópio da história. Dentro da lógica da reparação psíquica e dos testemunhos, o aspecto do cuidado é fundamental, pois não queremos que ocorram reflexos danosos àqueles(as) que foram afetados pelo terrorismo de estado. Esse ado permeado por violência e injustiças foi brutalmente silenciado, conforme assenta Mate (2005). A violência estatal tocou a pele de muitos e impactou o laço social, mas a experiência da violência tem seu lado oculto, que só a testemunha pode narrar, só ela pode revelar. Por isso, a testemunha “tem uma perspectiva da verdade que só ela poderá dizer na forma de testemunho” (Ruiz, 2014, p. 59), já que ela teve a experiência do toque, e o testemunho significa o oposto dessa violência, aquilo que antes era silêncio, torna-se agora “linguagem compartilhada, vivida, sentida diferente, mas não ressentida” (Oliveira, 2012, p.245). Através da escuta, do acolhimento, esse sujeito reescreve a sua história, nesse contexto sua narração não é (e nem será) questionada, pois, a temporalidade do trauma e do testemunho é outra, e não responde as verdades científicas cartesianas, não se inscrevem em uma linearidade temporal. Assim, como o tempo do trauma, o tempo do testemunho não é linear, a testemunha tem a autoridade de narrar a sua experiência. Os testemunhos possibilitam o deslocamento, uma experiência que era dimensionada como privada/individual, após a sua enunciação e recebimento, a a figurar na ordem do coletivo, pois essa vivência partilhada trouxe elementos que compõe a memória social, algo que é importante para a coletividade. Além disso, ao partilhar com o laço social, torna-se público os efeitos da ação estatal, fora que o laço social é responsável por aquilo 144
que o Estado cometeu consigo, pois promoveu tal violência e posteriormente, a silenciou. O testemunho situa-se entre “o dito e o não dito” (Conte, 2014, p. 87). Como já dito anteriormente, a escuta, é o elemento fundamental, ou seja, devolve a palavra e respeita o tempo e respeita aquilo que ainda não pode ser dito, revelado. Dessa forma, a abertura entre o vivenciado e o não dito, estabelece um elo simbólico que possibilita a elaboração psíquica. Como nos afirma Martín-Baró (1997), o psicólogo não deve se omitir frente ao terrorismo do estado, e sim deve colocar seu saber em uma oposição crítica a esses fenômenos de autoritários. É isso que o Clínicas se propõe ao realizar uma clínica política que problematiza as arbitrariedades de ontem e as violências de hoje, a partir dos sujeitos que foram afetados e sem perder de vista o impacto que esses arbítrios causam no tecido social.
Considerações finais
Ao longo desse percurso evidenciamos o trabalho social que é necessário fazer para se narrar o trauma, este como experiência coletiva e não somente individual, algo que afeta o corpo social, desde a maneira de vivenciar até o ato de narrar. Assim firmamos um compromisso ético dentro desse escrito e atribuímos ao testemunho uma potência, pois os testemunhos atuam como relâmpagos, como feixes e realizam uma ruptura com o ado amortecido e marcado pelo silenciamento. O Projeto Clínicas do Testemunho cria uma atmosfera de cuidado, pois propicia o acolhimento e a escuta, visando a não (re)traumatização. Para isso, tece um espaço social destinado a enunciação dos testemunhos, sendo essas construções narrativas que possibilitam múltiplas perspectivas sobre o ado autoritário, suas presentificações e as reminiscências. Os testemunhos possibilitam outras fontes e narrativas para comporem a nossa história, ando a contrapelo a história oficial, que se alicerça nos grandes feitos, nos grandes homens. Ao lançarmos luz ao Clínicas, mostramos que a nossa sociedade ainda não reconhece seu ado e não compreende que as relações estabelecidas na ditadura civil-militar dificultam a efetivação dos direitos humanos, dos limites institucionais e democráticos, e dificulta pensarmos os direitos transicionais – a memória, a verdade e justiça. Conforme demonstrado ao longo do escrito, há prejuízo no afastamento temporal que ocorreu
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dos danos causados pela violência estatal e a implementação do projeto de reparação psíquica bancado pelo estado brasileiro. O principal prejuízo por nós verificado foi o silenciamento social que fez com essas vivências ficassem resguardadas no âmbito individual e quando socializadas eram postas em cheque. Esse lapso temporal em nenhum momento se constitui como um impeditivo para o trabalho de elaboração psíquica, pois o tempo do trauma, a sua atualização e elaboração, não responde a uma linearidade cronológica. A Clínica do Testemunho, por se constituir como uma clínica política, não focaliza na ideia de cura e se estrutura na potência do testemunho e no ato de transmitir, em devolver a experiência traumática (re)elaborada para a coletividade no intuito de compreender que a história individual constitui e se reflete no coletivo. A experiência clínica vivenciada em Porto Alegre se constituiu frutífera, pois dela renderam insumos e uma meta de interiorização do projeto, buscando ampliar os núcleos e as possibilidades de recontar as histórias vivenciadas no interior do estado do Rio
Grande do Sul. Os dispositivos clínicos elencados pela sede de Porto Alegre demonstram as potencialidades do projeto, que atribui a centralidade aos sujeitos que foram afetados pela violência de estado, pois o protagonismo do Clínicas consiste na enunciação das vivências, tornando-as experiências. Enfim, o Projeto Clínicas busca interrogar nosso ado, objetivando que o tecido social o compreenda e (re)signifique, com a intenção de cessar os repliques. A atuação do Clínicas nos permite tensionar as instituições e suas atuações, para repensarmos os limites dessas. Os testemunhos como dispositivos de verdades, propiciam deslocamento dos sujeitos. Antes eram afetados e agora com a mudança discursiva tornam-se sujeitos históricos, pois, através da narração de suas experiências, esses auxiliam a construir uma narrativa pública sobre o ado e suas atualizações. As enunciações testemunhais são atos que gritam por verdade, memória, justiça social e justiça procedimental, para assim permitirmos a construção de uma memória histórica, permeada por múltiplas histórias, que focalizam nos direitos humanos e na alteridade.
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Natália Centeno Rodrigues Mestre em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Rio Grande – RS. Brasil. Bacharel em História e Direito pela FURG. Professora tutora do curso de história modalidade EaD da FURG/UAB. Pesquisadora do Grupo Transdisciplinar de Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade (CNPQ/FURG). Coordenadora da linha de pesquisa Justiça de Transição no Brasil e os processos latino-americanos no pós-ditatoriais. Advogada voluntária junto ao Defensa (projeto de extensão) da Universidade Federal de Pelotas – UFPel. E-mail:
[email protected] 147
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Rodrigo Fernandes Teixeira Acadêmico do curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Rio Grande – RS. Brasil. Bolsista do Centro Regional de Estudos, Prevenção e Tratamento de Dependentes Químicos da FURG. Integrante do Grupo Transdisciplinar de Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade (CNPQ/FURG) vinculado à linha de pesquisa Justiça de Transição no Brasil e os processos latino-americanos no pós-ditatoriais. E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Rio Solimões, 44, Parque Marinha Rio Grande, RS. CEP: 96215610. Recebido 30/06/2017 Reformulação 17/09/2017 Aprovado 20/09/2017 Received 06/30/2017 Reformulated 09/17/2017 Approved 09/20/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 17/09/2017 Aceptado 20/09/2017
Como citar: Rodrigues, N. C., Véras Neto, F. Q., & Teixeira, R. F. (2017). Reminiscências da violência estatal: a reparação psíquica através de uma clínica política. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 133-148. https://doi.org/10.1590/1982-3703100002017 How to cite: Rodrigues, N. C., Véras Neto, F. Q., & Teixeira, R. F. (2017). Reminiscences of state violence: the psychological repair through a political clinic. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 133-148. https://doi.org/10.1590/1982-3703100002017 Cómo citar: Rodrigues, N. C., Véras Neto, F. Q., & Teixeira, R. F. (2017). Reminiscencias de la violencia estatal: la reparación psíquica a través de una clínica política. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 133-148. https://doi.org/10.1590/1982-3703100002017 148
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 149-160. https://doi.org/10.1590/1982-3703110002017
Reparação Psíquica e Testemunho Alexei Conte Indursky Universidade Paris VII, Sorbonne, Denis-Diderot, França.
Bárbara de Souza Conte Universidade Autônoma de Madrid, Espanha.
Resumo: O presente artigo propõe-se a pensar a implementação do Projeto Clínicas do Testemunho, enquanto política pública pioneira no campo da reparação psíquica aos afetados pela ditadura civil-militar brasileira. Inicialmente, procuramos justificar a pertinência da metodologia clínico e política empregada ao longo do projeto, a partir de uma revisão crítica sobre os efeitos sintomáticos da reconciliação extorquida, veiculada através da noção de anistia no Brasil. Para tanto, apostamos que, para além da terapêutica oferecida, uma política de reparação psíquica pressupõe um contexto sociopolítico desde o qual são moduladas as próprias bases normativas e os sentidos do que significa ser vítima da violência de Estado. Desta feita, realizaremos uma revisão de operadores psicanalíticos e seus usos políticos em dois contextos diferentes: a política de reparação alemã da Shoah e dos veteranos norte-americanos da guerra do Vietnã. Por fim, debruçaremo-nos sobre a experiência do dispositivo clínico Grupo do Testemunho, enquanto uma via clínico-política na esfera das políticas de reparação. Palavras-chave: Testemunho, Reparação Psíquica, Trabalho de Luto, Trauma.
Psychic Reparation and Testimony Abstract: This article proposes to think the implementation of the Clinic of Testimony project as a pioneering public policy in the field of psychic reparation to those affected by the Brazilian civil-military dictatorship. Initially, we sought to justify the pertinence of the clinical / political methodology employed throughout the project, based on a critical review of the symptomatic effects of the extorted reconciliation, conveyed through the notion of amnesty in Brazil. To that end, we propose that, in addition to the therapy offered, a policy of psychic reparation presupposes a socio-political context from which the normative bases themselves and the meanings of what it means to be a victim of State violence are modulated. In this sense, we will perform a review of psychoanalytic operators and their political uses in two different contexts: the German reparation policy of the Shoah and the American veterans of the Vietnam War. Finally, we will look at the experience of the clinical device witness group as a clinical-political pathway in the sphere of reparation policies. Keywords: Testimony, Psychic Reparation, Mourning, Trauma.
Disponível em www.scielo.br/p
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 149-160.
Reparación Psíquica y Testimonio Resumen: El presente artículo se propone pensar en la implementación del Proyecto Clínicas del Testimonio, como política pública pionera en el campo de la reparación psíquica a los afectados por la dictadura civil-militar brasileña. Inicialmente, procuramos justificar la pertinencia de la metodología clínica / política empleada a lo largo del proyecto, a partir de una revisión crítica sobre los efectos sintomáticos de la reconciliación extorsionada, transmitida a través de la noción de amnistía en Brasil. Para tanto, apostamos que, además de la terapéutica ofrecida, una política de reparación psíquica presupone un contexto socio-político desde el cual se modulan las propias bases normativas y los sentidos de lo que significa ser víctima de la violencia de Estado. De esta manera, realizaremos una revisión de operadores psicoanalíticos y sus usos políticos en dos contextos diferentes: la política de reparación alemana de la Shoah y de los veteranos norteamericanos de la guerra de Vietnam. Por último, nos referimos a la experiencia del dispositivo clínico Grupo de testimonio, como una vía clínico-política en la esfera de las políticas de reparación. Palabras clave: Testimonio, Reparación Psíquica, Trabajo de Luto, Trauma.
Introdução Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, acamparam no meio de nossas cabeças. Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós. Está-me seguindo completo? Mia Couto (2005) Em sua etimologia grega, anistia (amnestia) é composta por duas expressões, reminiscências (anamnesis) e esquecimento (amnesia), que sugerem a ideia de apaziguar o ado através de seu esquecimento. Enquanto psicanalistas, sabemos que o ado sempre retorna, seja nas dimensões simbólica, imaginária e real ou, segundo Faulkner (2012/1951), “que o ado nem sequer ou”. A noção de anistia é, assim, insuficiente para “fazer algo com” os restos insepultos do arbítrio e da exceção no Brasil. Sua associação deliberada à ideia de “perdão” – ausente em sua etimologia – serviu para realizar uma captura semântica das reivindicações da sociedade civil, cujo apelo por uma anistia Ampla, Geral e Irrestrita – visando atingir os exilados e desaparecidos – foi transformado durante o mandato do ditador general João Figueiredo em anistia Lenta, Gradual e Segura – que garantiu a anistia a agentes do Estado, sob a rubrica dos crimes do conexos (Indursky, 2014). 150
Como lembra Ricœur (1995), “nesse sentido, a anistia é o contrário do perdão, o qual [...] requer a memória” (pp. 205-206). Ou seja, não há perdão sem a identificação de “quem” perdoa “o que” e a “quem”. Ora, se a mais ingênua das tentativas de elaborar o ado pressupõe uma gramática de reconhecimento e identificação dos atores envolvidos nos crimes cometidos, damo-nos conta de que a anistia política no Brasil não serviu senão para uma “reconciliação extorquida” (Gagnebin, 2010) entre os interesses da oligarquia brasileira e a cepa militar que falira em atende-los: não se produziu um remédio democrático à sociedade civil, mas uma gramática de reconhecimento sintomática que falha propositalmente “na possibilidade de dar, de inscrever, de chamar e de lembrar nomes” (Derrida, 2007, p. 140), associando-se a uma ideologia da “página virada”, do esquecimento e da não responsabilização. A partir de 2007, a Comissão de Anistia propõe um conjunto de políticas que visam modificar os sentidos da Anistia no Brasil. São criados três projetos, Caravanas da Anistia, Memorial da Anistia e Marcas da Memória, que ampliam a noção reparação, para além da dimensão pecuniária, tomando-a igualmente em suas dimensões simbólica e psíquica. Nesse sentido, vale destacar que a noção de reparação psíquica que emerge no campo da justiça de transição possui uma equivocidade importante, tanto em suas concepções teóricas, quanto em suas experiências de intervenção.
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No campo da psicanálise a noção de reparação foi inicialmente empregada por Melanie Klein para designar a superação da fase esquizoparanoide de constituição do sujeito psíquico, em que o sujeito consegue integrar (Wiedergutmachung) o objeto outrora cindido entre “mau” e “bom”. A noção de reparação a partir de Klein permanecerá, assim, regida sob a lógica da fase depressiva em que o sujeito defronta-se com os efeitos destruidores do seu próprio sadismo projetados contra o corpo materno, que doravante será tomado como objeto total pela criança (Laplanche, & Pontalis, 2009). O Clínicas do Testemunho, enquanto política pública inédita de reparação psíquica promovida pela Comissão de Anistia/Ministério da Justiça, é composto em sua segunda edição por cinco núcleos de atendimento psicológico, dois em São Paulo (executados pelo Instituto Sedes/Margens Clínicas-ISER), um no Rio de Janeiro (Coletivo Clínico Político-ISER), um em Florianópolis e em Porto Alegre (ambos executados pelo Instituto Appoa e Sigmund Freud Associação Psicanalítica). Sua execução organiza-se em três eixos de atuação: atendimento psicológico aos afetados pela violência de Estado da ditadura (1946–1985); capacitação de servidores públicos; e produção de insumos para políticas públicas. A noção de reparação psíquica com a qual todos os Núcleos de Atendimento do Clínicas do Testemunho se propõem a trabalhar afasta-se da concepção kleiniana, na qual intenta-se integrar os fragmentos de um objeto dispersos por uma ruptura, como se tal ato de restituir-lhes em um mesmo contorno pudesse lhes devolver o seu status quo ante, isto é, sua situação anterior. Assim como a experiência traumática, certamente, não pode ser restringida a um irrevogável evento de ruptura, uma política de reparação deve necessariamente apostar na articulação entre a impossibilidade de tudo representar do horror vivido e a necessidade de criar condições sociais de recepção e transmissão das memórias silenciadas dessa história. Visto que os destinos do trauma projetam-se em nosso horizonte social em uma disputa constante sobre os sentidos de nossa memória individual, coletiva e histórica, o projeto Clínicas do Testemunho impõe-se a nossa prática e pensamento enquanto forma de articular modalidades de narrativas, de recepção e de transmissão destas, no seio das
quais os próprios sentidos de ser vítima de violência do Estado parecem estar em jogo. Desta feita, toda experiência de reparação psíquica a inevitavelmente pela necessidade de nomear e reconhecer o sujeito e o dano sofrido. Uma questão de suma importância e repleta de perigos, visto que articula a agem da experiência individual de sofrimento às condições sociais e políticas de seu reconhecimento e legitimação, nas quais o saber e práticas médicas, psicológicas e jurídicas são convocados a atestar o dano sofrido. O objetivo do presente artigo é discutir a construção da metodologia de intervenção e seus efeitos clínicos e políticos. Sendo esta uma política pioneira no Brasil, procuraremos demonstrar como se deu a criação dos dispositivos clínicos, a partir do encontro entre o projeto, os afetados direta e indiretamente pela violência ditatorial e a sociedade de uma forma geral. Em seguida, procuraremos discutir como as próprias políticas de reparação psíquica, quando investidas de um lugar de especialista, reatualizam o sofrimento causado pela vivência de horror, individualizando o sofrimento e privatizando os danos. Para tanto, realizaremos uma revisão dos usos políticos do conceito de trauma em dois contextos diferentes: a política de reparação alemã da Shoah e dos veteranos norte-americanos da guerra do Vietnam. Por fim, debruçaremo-nos sobre a experiência do dispositivo alcunhado Grupo de Testemunho e seus efeitos na esfera das políticas de reparação.
Ali onde reina o silenciamento, um testemunho há de advir
Apesar dos recentes avanços na agenda da justiça de transição no Brasil, pode-se afirmar que a experiência de reconhecimento dos afetados pela ditadura civil-militar organiza-se ainda hoje majoritariamente em torno da noção de anistia. A Comissão de Anistia, enquanto órgão istrativo de reparação pecuniária, não apenas foi a única política de reparação do Estado até 19951, como também fez recair sobre os requerentes de anistia o ônus da prova, colocando-os na condição paradoxal de serem julgados pelos atos de violência aos quais foram submetidos. Não por acaso, o próprio valor das indenizações e seus critérios viraram terreno de disputa entre os requerentes, ao acu-
Com a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (Lei no 9.140/1995), que, embora tenha a atribuição de investigar as circunstâncias das mortes e desaparecimento, não consideramos aqui que ela provoque uma mudança substancial nos sentidos da reparação no Brasil. A Lei nº 9.140 não é a que cria a comissão.
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sarem a relação direta entre a notoriedade pública dos requerentes e o montante de suas reparações. O que essa querela encobria, para além da mercantilização da anistia, é que a primazia da reparação pecuniária como única política de reparação impingia na própria noção de justiça uma inflexão grave, a saber, não pode haver perdão sem reconhecermos “quem” perdoa o “que” e a “quem”. O resultado disso expressou-se no silenciamento de muitos afetados e na falsa-dicotomia de que a disputa pelos sentidos da anistia no Brasil travava-se entre “militares versus comunistas”, endossando especularmente a teoria dos crimes conexos presente em filigrana na Lei de Anistia de 1979. Em outras palavras, o afetado pela violência ditatorial foi nomeado às avessas em um efeito rebote da política pecuniária, estigmatizando e invisibilizando milhares de outros afetados que, sem provas ou legitimidade social para falarem e serem escutados, aram anos simplesmente ausentes à discussão que se travava nos bastidores dos governos FHC e Lula2. Ao iniciar-se o projeto-piloto do Clínicas do Testemunho em 2013 no Rio Grande do Sul, deparamo-nos com diversas falas que nos interrogavam sobre a pertinência e a ética do projeto a ser desenvolvido: “Para quê falar depois de tanto tempo?”; “Depois que a justiça for feita, poderei falar”. Pronunciadas por ex-presos políticos, familiares de mortos e desaparecidos, dentre eles profissionais de Psicologia, tomávamos essas enunciações como interrogantes coletivos da atualidade dos efeitos da violência de Estado, assim como importantes bússolas sobre como compor as estratégias de implementação do projeto. O filósofo italiano Agamben (2014), ao retomar a noção de dispositivo empregada por Michel Foucault ao longo de suas investigações, convida-nos a pensar a apropriação do capitalismo tardio junto às estratégias disciplinares e de controle analisadas por Foucault. Se para o pensador francês o dispositivo implica um processo de subjetivação, sem o qual não há efeito de governamentalidade, Agamben sugere que os dispositivos em seu conjunto de práticas, discursos, leis e racionalidades am a operar igualmente uma espécie de dessubjetivação do sujeito, a partir do qual a potência do desejo e da política permanecem separadas do sujeito, seu corpo e suas práticas. Desta feita, segundo o filósofo italiano, a única estratégia possível frente a tal efeito biopolítico seria a de desarmar 2
os dispositivos liberando aquilo que foi separado dos sujeitos, e restituí-lo a um possível uso comum (Agamben, 2014, p. 44). Perguntávamo-nos, assim, como acolher os efeitos psíquicos e sociais de ter-se encontrado numa posição de sujeição ao Outro totalitário para, após anos de silenciamento e desmentida estatal, ar a ser investido pelo Estado numa posição ambivalente de sujeito de direitos e alvo de constantes suspeitas? Posição na qual a palavra do sujeito afetado é capturada por uma série de dispositivos que colocam o sujeito ora no lugar do herói da resistência e militância, ora no lugar daquele que precisa provar sua sevícia, a fim de ser julgado pelos crimes que o Estado cometeu. Frente a essas questões, a metodológica de intervenção de todos os núcleos do Clínicas do Testemunho propôs-se a criar estratégias que agenciassem encontros nos quais os próprios sentidos de uma política de reparação pudessem ser explicitados, debatidos e construídos coletivamente. A tais encontros alcunhou-se os nomes de Conversas e Audiências Públicas. Tratavam-se de encontros públicos em que a temática dos efeitos da violência de Estado era debatida e aos quais sempre convidávamos representantes do poder público a ocupar o lugar de debatedores e, sobretudo, receptores das falas ali proferidas. Não por acaso, a criação de um espaço de acolhimento, investido pelo próprio Estado enquanto reconhecimento das marcas de sofrimento, provocou um efeito convocatório de compartilhamento de testemunhos que, não raro, reproduziam em seus discursos os efeitos dos dispositivos de silenciamento e do desaparecimento forçado como políticas de Estado. Por um lado, alguns se perguntavam, “para que vivenciar tudo isso novamente?”, “a minha parte já foi feita, meu depoimento já foi dado” ou, ainda: “Já fiz minha terapia individual e não preciso mais falar disso. Minha questão é política”. Descobríamos, para além do silenciamento outros efeitos, tais como a individualização do dano, a produção de subjetividades amedrontadas e notadamente a despolitização e instrumentalização das práticas de cuidado e saúde (Coimbra, 1995). Tudo se ava como se a intervenção clínica não se prestasse a pensar e articular a dimensão política imbricada num processo de reparação, separando assim a dimensão do cuidado da esfera política em que ela se dá.
Para uma discussão mais detalhada da agenda de justiça de transição no Brasil, ver Mezzaroba (2010).
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Por outro lado, o imperativo de Verdade, Memória e Justiça parecia igualmente modular a forma que alguns sujeitos narravam suas histórias, não se constituindo necessariamente em uma transmissão das experiências, mas na exigência incessante de denunciar o Estado e sua transição democrática incompleta e comprometedora. A essa modulação testemunhal, que chamamos aqui “militante”, apostávamos igualmente que outras formas narrativas ainda poderiam brotar. A postura do “só aceito prestar testemunho, depois que a Justiça seja feita” demonstra a cisão que sofremos em nossa coletividade, na medida em que a construção da Verdade, Memória e Justiça só pode dar-se de forma conjunta, uma dimensão implicada com a outra. Sustentamos que tais efeitos respondem à imbricação entre as dimensões do psíquico e do político, não podendo ser limitados a uma psicopatologia universal, sob os moldes do transtorno do stress pós-traumático (TSPT). Muito antes elas testemunham dos destinos sociais do trauma, no qual cada sujeito apropria-se da vivência de ter sido afetado pelo terror do Estado de exceção. Ademais, tais falas (d)enunciavam heranças dos anos de chumbo presentes nas práticas “psi”, nas quais a patologização, a disciplinaridade e a despolitização são marcas visíveis até hoje. Nessa perspectiva, julgamos ser importante apresentar não somente o campo teórico que orientou nossa prática, mas igualmente a interpenetração deste através do social (Fassin, & Rechtman, 2007).
Gramáticas do reconhecimento social
Na presente sessão procuraremos apresentar alguns interrogantes produzidos por experiências internacionais de reparação e suas consonâncias e dissonâncias no contexto brasileiro. Há aí o campo importante em que a noção de traumatismo foi trabalhada e modificada ao longo do século XX˚, não apenas como operador teórico, mas como formas de legitimação, negociação e disputas do que significa ser vítima de violência de Estado. De forma sucinta, salientamos que a política de reparação alemã aos sobreviventes da Shoah (Wiedergutmachung, literalmente, “fazer o bem de novo”), foi extremamente criticada por seus assistidos (Waintranter, 2003). A necessidade imposta de comprovar,
via certificados médicos/psicológicos, o dano que alegavam ter sofrido, levou com que muitos rejeitassem tal política, inicialmente centrada, tal como no Brasil, na reparação pecuniária (Niederland, 1968). Acontece que a psiquiatria ocidental, assim como sua sociedade civil, não estava pronta para ouvir o relato do inimaginável vindo da boca de pessoas que se sentiam culpadas por terem sobrevivido ao inferno na terra (Fassin, & Rechtman, 2007). A meio caminho entre concidadãos e juízes, a recepção dos testemunhos dos sobreviventes demorou ao menos duas décadas para que asse a ser reconhecida desde um lugar de verdade, sem ser necessariamente patologizada (vide o termo criado, Síndrome do Sobrevivente). Dificuldade que só começou a ser transposta anos mais tarde através do julgamento de Eichmann, no qual os testemunhos das vítimas foram tomados em seu conjunto enquanto prova da promotoria do Estado de Israel (Rousso, 2011). O caráter exemplar do julgamento de Eichmann repousou assim, menos na punição de um dos arquitetos da deportação e da solução final da questão judia, mas na possibilidade de se reconhecer na fala dos sobreviventes um estatuto de verdade. Ainda que não tenha sido o governo de Israel o perpetrador das violências contra os judeus e demais etnias, a dimensão da Justiça e do reconhecimento estatal revela-se inseparável dos efeitos de verdade e transmissão das histórias até então silenciadas, sob o selo da culpa e do inimaginável. ados alguns anos, no contexto das políticas de indenização da guerra do Vietnã, o mesmo problema foi reatualizado sob novas roupagens. Em meio à reformulação que consagraria a disseminação do The diagnostic and statistical manual of mental disorders, third edition (DSM III) enquanto manual de síndromes e transtornos mentais – universal e ateórico, em contraposição ao modelo psicanalítico até então reinante –, a pressão das organizações e hospitais de veteranos de guerra, levou Robert Spitzer e seu grupo de trabalho a dar nascimento à noção do TSPT, que aria a nomear e legitimar socialmente, não somente os veteranos vítimas do horror da guerra, mas igualmente os perpetradores do horror3 (Young, 1995). Doravante, a comprovação dos traumas vividos ficaria em segundo plano e este seria definido a princípio como uma resposta normal a uma situação
3 Referimos sobretudo ao debate engendrado após o massacre de Mai Lay, evento no qual mulheres, crianças e idosos foram friamente assassinados pelo exército norte-americano, ao mesmo tempo que essas cenas eram transmitidas aos lares de milhares de concidadãos. Donde a expressão Self-traumatized perpetrator. Ver Young, (1995).
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anormal, enquadrada dentro dos critérios universais da sintomatologia observada. No entanto, uma anulação da disparidade da dimensão moral entre vítima e perpetrador instaura-se; um mesmo transtorno, socialmente legítimo e ainda não estigmatizante, a a ser empregado, a fim de que estes soldados vitimados por seus próprios atos de violência, em a receber reparação pecuniária. Parêntese importante: dos oito sintomas descritos no TSPT no DSM III, apenas dois fazem menção ao sujeito que participou diretamente, ativa ou ivamente, dos atos de violência; os outros seis referem à dimensão do testemunhar da violência enquanto fator potencialmente estressor e reatualizador de um trauma já experimentado. Fato que justificaria um veterano ser indenizado mesmo não tendo realizado ou sofrido diretamente uma violência. Ora, essa questão nos interessa sobremaneira, na medida em que ela articula a noção do traumatismo com as gramáticas de reconhecimento social do dano sofrido, e ainda, sua legitimidade social. Se na experiência de reparação dos sobreviventes da Shoah são as dimensões do inimaginável/irrepresentável e do sentimento de culpa que marcam o encontro entre os sobreviventes, sociedade e suas instituições, a gramática de reconhecimento que vai ser veiculada então é a de um procedimento que procure reenquadrar essa culpa de sobreviver com as noções correntes da psicanálise de então. A revitimização é grande e repele os assistidos que não estão interessados no rótulo de sindrômicos e nas indenizações do governo alemão. No contexto norte-americano, para que o sofrimento dos veteranos de guerra fosse socialmente legitimado, reconhecido e indenizado foi necessário que a TSPT anulasse a distinção moral e ética entre vítima e agressor, ao reformular a noção do traumático como uma resposta normal a uma situação anormal. Para tanto, as noções de irradiação e de reatualização traumática foram empregadas na grande maioria dos critérios diagnósticos, indicando que o trauma seria transmitido às pessoas testemunhas da barbárie, sem fazer referência alguma às diferentes implicações éticas dos afetados. Se outrora eram a suspeita e a prova do dano que pareciam organizar a porta de entrada à reparação, agora é uma gramática universal de reconhecimento do traumático que nomeará o sofrimento do sujeito, cujo vínculo com o evento potencialmente trauma-
tizante é essa espécie de irradiação que não coloca, em nenhum momento, em questão a dimensão coletiva do trauma e a posição subjetiva do traumatizado. Ainda que a noção do TSPT se ampare na dimensão do testemunho como porta de o à reparação, é a consagração do dano individual e sem distinção entre vítima e algoz que dará legitimidade ao sofrimento. O resultado disso é a privatização do dano que, ainda que calcado numa compreensão exógena e dinâmica do trauma, não é trabalhado pela coletividade na qual se insere, nem na subjetividade de seus atores. Toda e qualquer semelhança com a Anistia de 1979 e a teoria dos dois demônios na Argentina, certamente, não é mera coincidência. A equivalência entre torturador e vítima, enquanto duas faces de uma mesma moeda, carece de contornos clínicos e sociais. A possibilidade de um torturador perder algo de sua humanidade ao seviciar o outro, não o desresponsabiliza de ocupar uma posição de enunciação e de testemunhar seus crimes. Caso contrário, sentir-se-ão os efeitos disso nas gerações posteriores4. Em oposição a essa proposta de um reconhecimento sem sujeito – pois calcado no dano traumático –, o projeto Clínicas do Testemunho trabalha a possibilidade do testemunhar como horizonte clínico e político do processo de reparação. Isto é, diferentemente do reconhecimento agenciado pelos processos de Anistia, para que um sujeito possa ser atendido pelo Clínicas do Testemunho ele não precisa ar por um dispositivo de veridicção istrativo do Estado, a fim de reconhecê-lo. Ou seja, aposta-se numa torção da posição do testemunho enquanto prova do fato narrado, promovendo uma rearticulação deste com uma comunidade disposta a acolher e articular uma malha de testemunhos que devolvam à história sua dimensão coletiva.
Políticas do testemunho
A prática do testemunho emerge ao longo do século XX como uma noção-limite que tenciona as fronteiras entre o individual e o coletivo, o jurídico e o literário, a verdade e a ficção. Essa noção-limite do testemunho abre-nos um limiar ético para pensar como se articulam diferentes narrativas testemunhais, no seio das quais os próprios sentidos da experiência do excesso, da exceção e do reconhecimento parecem
4 Atualmente a figura ambivalente dos veteranos de guerra norte-americanos tornou-se motivo tanto de chacota, quanto de angustiante preocupação, frente às recorrentes e desastrosas agens ao ato destes.
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estar em constante construção. Esse limiar ético é precisamente formulado por Levi (1989) quando nos diz que o sobrevivente endereça-se a suas comunidades imbuído da responsabilidade de fazer falar aqueles que fitaram o “rosto da Górgona”, tocaram o fundo e não retornaram. Enquanto superstes, testemunho da testemunha, o sujeito narra daquilo que lhe escapa à vivência, colocando em causa o seu próprio o ao real do acontecimento. Furo do trauma que se constitui, ao mesmo tempo, como causa e efeito da transmissão. Dada a impossibilidade de narrar integralmente o horror concentracionário ou ditatorial, a emergência do testemunho no século XX irá colocar em xeque a própria capacidade da linguagem de dar conta do horror vivido. O testemunho opera, assim, uma inflexão nos campos jurídicos e historiográficos. No lugar da objetividade e neutralidade do depoimento imutável, a ser repetido à exaustão – em nome da verdade e nada mais que a verdade – impõem-se novas formas de aproximar-se da cena, costeando o irrepresentável do vivido. A narrativa testemunhal trará consigo, portanto, a marca de uma insuficiência de tudo representar: será sempre através de um resto que o testemunho irá se constituir. Donde o apelo ficcional lançado por Antelme (1957): “Ficou claro então que seria apenas por meio da escolha, ou seja, ainda pela imaginação, que poderíamos tentar dizer algo” (p. 9). O espaço ficcional do testemunho revela-se, em nossa experiência, como uma dimensão imprescindível para a elaboração e a transformação psíquica e política do traumático ao “abrir as imagens” da violência totalitária. Imagens fragmentárias, lacunares, mas imagens que, apesar de tudo, sobrevivem à violência que procura desmentir a existência do inimaginável para fazer falar aqueles que sucumbiram, para constituírem-se como resistência ao apagamento (Didi-Huberman, 2012). Daí a importância do outro que esteja disponível a acolher e escutar o testemunho. Segundo Gagnebin (2006): “testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração inável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro” (p. 57). Gesto de restituição a um possível comum, diria Agamben (2014); de profanação do mutismo e desmentido estatal de histórias às quais quisera-se restringir à sacralidade do silêncio e da solicitude. O testemunho enquanto ato público, por excelência, devolve à história sua dimensão coletiva. No entanto,
igualmente, é um gesto que se oferece aos fluxos que tecem o político, em que se tramam as disputas sobre os sentidos da história e da memória coletiva. Nesse sentido, apostamos no efeito de transformação que a recepção social de um testemunho possui sobre o sujeito. O testemunho é sempre uma cocriação, em que a posição do sujeito frente ao vivido é constantemente refabricada na medida em que condições sociais de recepção de seu relato são possibilitadas. Em seu terceiro livro, Os visitantes, Bernardo Kucinski (2016) opera uma virada narrativa curiosa frente a suas primeiras obras testemunhais: K, Relatos de uma busca e Você voltará para mim. Nele não encontramos mais a tentativa kafkiana de descrever o labirinto fabricado pelos agentes da ditadura na procura de um pai por sua filha desaparecida, nem os contos que buscam materializar a memória coletiva de uma época; muito antes, a narrativa versa sobre o isolacionismo do personagem que anseia pelo reconhecimento social de seu primeiro livro. Um por um, os visitantes vêm bater a sua porta, confrontar-lhe com as imprecisões de seus escritos, demandar retratações, esclarecer fatos insólitos e, por fim, proclamar seus vereditos. As reiteradas justificativas de tratar-se de um escrito ficcional, até então utilizadas pelo autor, am gradualmente a dar lugar à disputa, ao confronto, anunciando uma reconciliação impossível entre história e memória, ficção e verdade, entre justiça e responsabilidade. No entanto, a importante virada apresentada na obra não parece repousar na constatação desse diagnóstico, mas se anuncia como um efeito deste: frente à suspeita de seus concidadãos ou mesmo à crença obediente de alguns, o autor vê-se levado não apenas a confessar suas ficções literárias, mas a recontar as histórias sobre sua irmã e pai, e, sobretudo, pensar a sua posição frente ao seu escrito. Isto é, a reposicionar-se na cena que outrora conferia-lhe um lugar indeterminado, senão de espectador, para implicar-se em sua história e sofrimento. A agem do testemunho pela ficcionalização revela-se, por conseguinte, não como um embuste, mas antes como a criação de uma outra cena que, permitirá em um outro tempo a transformação daquilo que não podia ser ainda colocado em palavra. Vale notar igualmente a dimensão transitiva e processual do testemunho: tal como para Primo Levi, Bernardo Kucinski toma para si a tarefa de pensar sobre seu processo testemunhal somente depois de escritos os primeiros relatos de horror. 155
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Grupo de Testemunho: testemunhar de si através do reconhecimento do outro
A partir das Conversas Públicas, constatamos a importância de um outro dispositivo clínico e político, que pudesse engendrar a fabricação de testemunhos. Para tanto, constituíram-se os Grupos de Testemunho como uma espécie de formação intermediária entre o público e o privado, cuja porosidade permitiu que pessoas aproximassem-se, sem necessariamente sentirem-se expostas ou obrigadas a falar publicamente. Composto heterogeneamente por sujeitos de três gerações distintas (afetados diretamente e indiretamente, filhos e netos), o “comum” desses grupos reside no fato de todos serem afetados pela violência de Estado e procurarem espaços de fala e compartilhamento. Este trabalho grupal é concebido inicialmente através do referencial proposto por Pichon-Rivière, de Grupos Operativos. Desta feita, o grupo organiza-se em torno de uma tarefa, que é explicitada pelos coordenadores quando dos encontros iniciais, a saber, cada sujeito ali presente poder constituir seu testemunho ao longo dos encontros. Como ressalta Pichon-Rivière (2000), “[o grupo] centrado na tarefa, que tem como finalidade aprender a pensar em termos da resolução das dificuldades criadas e manifestadas pelo grupo [...] que enuncia um acontecimento como porta-voz de si mesmo e das fantasias inconscientes do grupo” (p. 105). Cabe ressaltar, no entanto, os diferentes enquadres e estratégias de abordar os emergentes que circulam no grupo, notadamente devido ao fator de reatualização traumática ali implicado. Se o objetivo do grupo não é terapêutico, ele não deixa de suscitar efeitos terapêuticos. Isto é, a entrada na tarefa ou as muitas resistências que ela suscita devem sempre ser pensadas sob a ótica da construção de um repertório psíquico e coletivo capaz de dar sustentação à tarefa. Dar figurabilidade e um espaço de representação às cenas despedaçadas – à espera de significação – a muitas vezes pelo retorno de eventos que enclausuram o sujeito em sentimentos de culpa e vergonha frente a vivência do terror. Verificamos em nossa experiência, aquilo que alcunhamos como o “perdido de si”: vazios de sentido que geram dor, medo, silêncio, a destituição da condição de sujeito por efeito da paralisação do processo psíquico de simbolização. Concebemos os momentos de silêncio e tentativas de fala a partir de uma espiral da temporalidade psíquica, na qual cada volta implica a rea156
tualização das cenas vividas. É sempre num segundo tempo que o sujeito pode significar tais cenas, dando-lhe novos contornos e sentidos. Segundo Malabou (1996), é o próprio acontecimento que não adquire a dimensão da negatividade, uma vez que não é recalcado. Trata-se de um “corpo estranho” que nem se introjeta nem se rejeita, ele invade e destrói todo sistema desde dentro. O grupo inicia-se com o silêncio, a ao cochicho, ao grito, ao choro, até alcançar a fala. “Como trabalhar com as memórias?”, tal é a pergunta que marca a pré-tarefa grupal. Supõe-se que todos participantes do projeto têm em comum serem afetados pela violência de Estado, no entanto, suas ancoragens transferenciais no grupo são diferentes. Há inicialmente o participante que é investido na posição do líder, cujo fato de ter sido torturado e ser o mais experiente ali, coloca-o como um ideal frente aos demais participantes de outra geração. O grupo está ali para ouvi-lo. O seu testemunho é o mais importante, pois imaginariamente é o que carrega maior proximidade dos fatos. O grupo só pode tomar para si a tarefa de testemunhar na medida em que esse líder não dê conta – ou se dê conta – desse investimento; que sua palavra não esteja ali para tamponar o medo que os outros sentem em ter de contar suas histórias. Fato que, quando finalmente ocorre, não se dá sem os efeitos mortíferos da reatualização do traumático. Na medida em que se pode compartilhar grupalmente os sentimentos de medo e vergonha que habitam o sujeito de forma clandestina, mas que dizem de algo coletivo que também habita os outros, pode-se romper gradualmente as lógicas de terror que os dispositivos de silenciamento engendram. O que se modifica é a posição subjetiva desde a qual o sujeito se coloca na cena de terror, bem como as condições de recepção do relato que, ao ar pelo campo grupal, oferece uma nova espacialidade para o sujeito traduzir o terror em uma experiência de resistência, ainda que esta possa falar sobre a cena na qual ele não pode resistir. Há aqueles que nunca falaram porque nunca se sentiram afetados ou porque nunca tiveram um receptor que lhes acolhesse em seu sofrimento e verdade; cuja emergência era marca de patologia, de impertinência ou de contágio. É na atribuição de sentido do outro, que se inscreve o espaço da alteridade, que o “perdido de si” a a ser comum ao grupo, que o evento no qual ele é destituído de humanidade
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a a reenquadrá-lo na cena; não mais como excluído, mas testemunha dela. Ao testemunhar ao outro, testemunho a mim mesmo e também minha posição na cena. Ao ressignificar a posição na cena, o sujeito emerge e doravante “as ligações psíquicas se retraduzem em uma temporalidade que não é linear, nem literal” (Conte, 2014). Nunca mais serão as mesmas. Aquilo que fora marcado pela paralisia põe-se agora num movimento cujos destinos não deixam de provocar um sentimento paradoxal de perda. Ocorre que esta não será da mesma ordem do que o “perdido de si” de outrora, visto que traz consigo uma espécie de marca de proveniência: a experiência compartilhada. Ao unir o vivido à palavra e apresentá-la como objeto para a reflexividade de um estar na história do outro, sem destruí-la ou destruir-se, constitui-se o testemunho. Há o evento de um participante que, ainda menino, teve que queimar os livros do pai e não sabia o porquê. Conta que “o meu medo e a minha luta é para não repetir-se”. Repetir não é o mesmo que repetir-se. Seu ato falho revela as duas dimensões implicadas no processo testemunhal: a cena de repetição de que, tal como o pai, ele tenha que queimar seus livros e perder parte de si; mas evidencia igualmente o movimento de fazer circular entre seus pares no grupo o efeito de sua vivência mortífera e reconhecer-se em suas escolhas posteriores, como seu amor pelos livros. Importante sublinhar, no entanto, que o dispositivo grupal a igualmente a reproduzir as tramas e disputas de memória presentes em nosso laço social. Por exemplo, não raro, certos membros am a insistir sobre fatos, datas, nomes quando do testemunho de um participante – assim como relatado no livro de Kucinski (2016). A virtualidade do falso testemunho ou de sentimentos de fracasso am a invadir o grupo que se acaba por fugir e defender-se da tarefa. Desta feita, serão os porta-vozes grupais que anunciam essas formas sintomáticas de escutar o testemunho de cada um. Essas enunciações têm por efeito criar possibilidades para que cada sujeito possa tecer sua narrativa, na qual a indeterminação e a transição são imprescindíveis para a constituição do testemunho. A travessia grupal é constituída por essa agem de uma sobredeterminação das vivências de horror a um processo indeterminado, em que os sentidos e as modulações dos testemunhos são conhecidos somente a partir do efeito de compartilhamento.
A ficção como dispositivo de reparação e transmissão
O Grupo de Testemunho torna-se um processo que, não por acaso, clama por uma materialização. No grupo referido, tal necessidade denominou-se: “caixa de memória”. ou-se a resgatar, ordenar e dar uma continência as histórias que circularam no grupo, mas pareciam sempre destinadas ao esquecimento ao vazio. No entanto, como nos lembra Antelme (1957), frente ao trabalho infindável de representar o vazio de sentido do trauma, a imaginação impõe-se como dimensão incontornável ao testemunhar. Tal qual o escudo de Perseu utilizado para matar a Górgona, cujo real do olhar congela a todos que a olharem diretamente, a dimensão da imaginação entra em cena como abertura de sentidos do trauma. Da literalidade da cena do horror é possível derivarem-se imagens que permitam diluir a sideração. Frente a isso, o grupo decide reunir suas histórias em um relato ficcional intitulado Arquivos da vó Alda. Trata-se de um livro aberto que apresenta uma metáfora do silenciamento e não transmissão: vó Alda sofre subitamente um mal e é diagnosticada com Alzheimer. a a falar de estórias e pessoas até então nunca escutadas pelos filhos e netos. Do alarme à curiosidade, do disparate senil à possibilidade de um tesouro (qual a fábula de Esopo), deixam-se serem levados pelo enigmático da fala da avó. As falas de vó Alda são precisamente as colagens dos vários testemunhos, até então inclassificáveis, produzidos ao longo de mais de um ano de grupo. Sob a pena de Maria Luiza Castilhos Cruz, elas am por um rearranjo, cuja escrita permite novos destinos. O livro apresenta, no suposto momento de revelação, uma escansão. A narrativa finda e o leitor vê-se frente a um convite, cujo poder convocatório não deixa de se fazer presente. Estórias sem final para que outros leitores continuem contando como teria sido a vida da vó Alda. Aquilo que precisou ar pela metaforização para conhecer a luz do dia, somente encontrará um destino na imaginação do receptor. É somente aí que a frase de Mia Couto, empregada como epígrafe deste trabalho, parece ganhar seu sentido pleno. O sol a nascer dentro de nós: a dimensão ficcional que permite que o olhar novamente para a cena do horror não seja de uma cegueira, mas reparação através da criação. A partir dessa experiência grupal, o dispositivo de Conversas Públicas ou a ser reinventado pelos 157
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participantes do projeto. Ao constituírem seus testemunhos a partir da experiência grupal, muitos dos participantes demonstraram seu desejo de prestar pública e coletivamente seu testemunho, de forma inédita. Do silenciamento ao protagonismo, o testemunho desses sujeitos foi marcado pela potência do contágio. Isto é, a medida em que as condições sociais de recepção e reconhecimento dos testemunhos eram possibilitadas, amos a testemunhar a quebra de pactos de silêncio instituídos dentro de famílias, grupos e amigos. Em uma Audiência Pública de Filhos e Netos de afetados, por exemplo, netos puderam contar a história de avós que nunca falaram: “quarenta anos depois sentei com minha avó e pedi que ela me contasse a história de meu tio desaparecido, pela primeira vez eu estava realmente disposta a ouvir e ela finalmente teria alguém que escutasse”. O efeito de contágio de escutar essas histórias narradas de forma inédita junto aos participantes que já haviam prestado seu testemunho anteriormente foi o de dar-se conta de que seus processos testemunhais não haviam terminado. Não apenas pela constatação de que se pode narrar uma mesma história de muitas formas, ou de que há coisas que não se conseguirá nunca narrar, mas que quando endereçados às comunidades, famílias e ao poder público esses testemunhos possuem a potência indestrutível do desejo de restituir a um comum aquilo que havia sido capturado pelo poder.
Considerações finais
A Clínica do Testemunho não possui como horizonte terapêutico o relato de um conteúdo pré-determinado, a partir do qual o sujeito supostamente poderia aspirar ao reconhecimento de seus pares; antes, o testemunho veicula uma travessia do processo de sobredeterminação do sujeito provocado pela violência de Estado que transborda sobre o social. Ao invés da privatização do dano e da ivização política dos sujeitos que só podiam ser reconhecidos individualmente, o processo veiculado pelo Clínicas do Testemunho propõe o resgate da dimensão coletiva da experiência e incide sobre formas sintomáticas de reconhecer-se como vítima da violência de Estado. No âmbito das políticas públicas, sustentamos que, sendo a porta de entrada do Clínicas do Testemunho a possibilidade do testemunho, o processo de reparação psíquica aí operado coaduna-se a uma postura antipredicativa de reconhecimento do 158
sujeito, na qual não é a comprovação do dano ou da prova jurídico/histórica (ou seja, de uma positivação de seus predicados) que garante exclusivamente o reconhecimento. Entendemos o exercício testemunhal como um processo de transição e indeterminação em que o sujeito pode, não somente operar a transmissão das experiências limites de horror e resistência, mas igualmente ressignificar seu sofrimento no seio de uma coletividade, na qual efeitos de reconhecimento são operados vertical (Estado) e horizontalmente (social). Isso implica em desconfiar de um “percurso normatizador”, tanto psicologizante – que desaguaria na suposta “elaboração do trauma” –, quanto macropolítico – em que se supõe que a reparação psíquica produziria uma identificação à militância por verdade, memória e justiça ou uma pré-condição para a luta por direitos. Nesse sentido, o Clínicas do Testemunho mantém suas reservas frente a um ideal de cura terapêutica ou político-ideológico específico, aproximando-se de uma dimensão ética em que o reconhecimento é o efeito do lugar de fala desde o qual a verdade do sujeito pode emergir. A ideia não é despolitizar a reparação psíquica, afirmando que se possa prescindir do Estado enquanto agente da reparação ou abdicar da luta pela responsabilização dos agentes do Estado; mas, antes, não perder de vista os efeitos de reconhecimento, enquanto dimensão de justiça, que são operados no Clínicas do Testemunho aquém e além da esfera estatal. Desta feita, os efeitos dessa clínica podem ser lidos por sua terapêutica, e igualmente pelas transformações que o reconhecimento opera na experiência subjetiva dos afetados. Até hoje, os teóricos da justiça de transição demonstram certa dificuldade em absorver esses efeitos na agenda da transição, sobretudo por ainda manterem um horizonte normativo que toma as políticas de reconhecimento por uma esfera compensatória, isto é, desprovida de um potencial transformador de justiça, memória e verdade – limitando-se à noção afirmativa de suas reivindicações (Fraser, 1995). É necessário ressaltar, outrossim, que esse problema também diz respeito aos psicólogos e aos psicanalistas, que nem sempre logram demonstrar a dimensão política do trabalho clínico. Destacamos, portanto, a potência da esfera do reconhecimento enquanto dimensão de justiça, uma vez que a coletivização da história vivida fortalece às políticas de memória, verdade e justiça.
Indursky, A.; Conte, B. (2017). Reparação Psíquica .
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Alexei Conte Indursky Doutor em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade Paris VII, Sorbonne, Denis-Diderot, França. Coordenador técnico do Projeto Clínicas do Testemunho/ Instituto Appoa-RS/Comissão de Anistia/Ministério da Justiça (2016–2017). E-mail:
[email protected] 159
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Bárbara de Souza Conte Psicanalista. Doutora em Psicologia pela Universidade Autônoma de Madrid, Espanha. Membro pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica. Coordenadora da Clínica do Testemunho/Comissão de Anistia/Ministério da Justiça (2013–2015) e integrante do projeto Clínicas do Testemunho/Instituto Appoa (2016–2017). Membro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (2013–2016). E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Rua Correa Lima, 1421, Casa 02, Santa Tereza. CEP: 90850-250. POA – RS. Brasil. Recebido 18/06/2017 Reformulação 15/09/2017 Aprovado 20/09/2017 Received 06/18/2017 Reformulated 09/15/2017 Approved 09/20/2017 Recebido 18/06/2017 Reformulado 15/09/2017 Aceptado 20/09/2017
Como citar: Indursky, A., & Conte, B. (2017). Reparação psíquica e testemunho. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 149-160. https://doi.org/10.1590/1982-3703110002017 How to cite: Indursky, A., & Conte, B. (2017). Psychic reparation and testimony. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 149-160. https://doi.org/10.1590/1982-3703110002017 Cómo citar: Indursky, A., & Conte, B. (2017). Reparación psíquica y testimonio. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 149-160. https://doi.org/10.1590/1982-3703110002017 160
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O Ensino Testemunhal entre os Restos da Ditadura: uma Metodologia Ético-política Helena Pillar Kessler Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil.
Daniel Boianovsky Kveller Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil.
Marina da Rocha Rodrigues Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil.
Karine Shamash Szuchman Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil.
Resumo: O presente artigo tem por objetivo principal apresentar o exercício testemunhal como um potente método de ensino ético-político, por meio do relato de uma experiência de docência em um curso de graduação de Psicologia do Rio Grande do Sul. Propusemos uma disciplina chamada “O que resta da ditadura: estudos clínico-políticos sobre violência”, que teve como finalidade estudar os efeitos traumáticos da violência, a função testemunhal como possibilidade de transmissão e elaboração e as implicações desses temas para o trabalho de psicólogos(as) no Brasil. Iniciamos nosso relato descrevendo como tornamos as noções de trauma e testemunho ferramentas de ensino. Situamos, assim, a origem e a importância desses conceitos para os campos da psicanálise, da literatura e da história, propondo também uma maneira de utilizá-los como recursos pedagógicos. A seguir, narramos alguns episódios que levaram à emergência de uma “crise” em sala de aula. Discutimos essa crise como uma soma de fatores, destacando-a como um processo próprio da experiência de ensino e justificando, desta feita, que todo ensino testemunhal deve ar por uma crise. Por fim, resumimos os principais aspectos que caracterizam o ensino testemunhal, tal como o entendemos, e analisamos por que ele é uma ferramenta potente na formação de psicólogos(as) na atual conjuntura social e política. Palavras-chave: Testemunho, Educação, Ditadura Civil-militar, Psicanálise.
Testimonial Teaching among the Remains of the Dictatorship: An Ethical-political Methodology Abstract: The main purpose of this article is to present testimonial exercise as a powerful method of ethico-political teaching, by reporting of a teaching experience in a psychology undergraduate course in Rio Grande do Sul. We proposed a course called “What remains of dictatorship: clinical-political studies of violence” to study the traumatic effects of violence, the role of testimony as a possibility of transmission and working-through, and the implications of these themes for the work of psychologists in Brazil. We begin our by describing made the notions of trauma and testimony can be incorporated as teaching tools. We thus locate the origin and importance of these concepts for the fields of psychoanalysis, literature and history; also proposing a way of using them as pedagogical tools. After that, we narrate some episodes that led to the emergence of a “crisis” in the classroom. We discuss this crisis as a sum of factors, highlighting it as an inherent process of the teaching experience and justifying, therefore, that all testimonial education must go through a crisis. Finally, we summarize the main aspects that characterize testimonial teaching, as we understand it, and analyze why it is a powerful tool in the education of psychologists in the current social and political conjuncture. Keywords: Testimony, Education, Civil-military Dictatorship, Psychoanalysis.
Disponível em www.scielo.br/p
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La Enseñanza Testimonial entre los Restos de la Dictadura: una Metodología Ético-política Resumen: El presente artículo tiene por objetivo principal presentar el ejercicio testimonial como un potente método de enseñanza ético-político, a través del relato de una experiencia de docencia en un curso de pregrado de psicología de Rio Grande do Sul. Propusimos una disciplina llamada “Lo que queda de la dictadura: estudios clínico-políticos sobre la violencia”, que tuvo como finalidad estudiar los efectos traumáticos de la violencia, la función testimonial como posibilidad de transmisión y elaboración, y las implicaciones de esos temas para el trabajo de psicólogos(as) en Brasil. Iniciamos nuestro relato describiendo cómo hicimos las nociones de trauma y testimonio herramientas de enseñanza. Situamos así el origen y la importancia de estos conceptos para los campos del psicoanálisis, de la literatura y de la historia; proponiendo también una manera de utilizarlos como recursos pedagógicos. A continuación, relatamos algunos episodios que llevaron a la emergencia de una “crisis” en el aula. Discutimos esa crisis como una suma de factores, destacándola como un proceso propio de la experiencia de enseñanza y justificando, así, que toda educación testimonial debe pasar por una crisis. Finalmente, resumimos los principales aspectos que caracterizan la enseñanza testimonial, tal como la entendemos, y analizamos por qué es una herramienta potente en la formación de psicólogos(as) en la actual coyuntura social y política. Palabras claves: Testimonio, Educación, Dictadura Civil-militar, Psicoanálisis. Engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer o inventário dos achados, e não for capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exato em que guarda as coisas do ado. Walter Benjamin (2014)
Introdução
Ao longo do século XX, a Psicologia não apenas consolidou-se como um campo específico de conhecimento, mas, também, simultaneamente, ajudou a construir o mundo em que vivemos e os sujeitos que nos tornamos. De acordo com Rose (2008), convém situarmos tal processo como resposta a uma crescente demanda por regulação institucional: nas fábricas, escolas e prisões, por exemplo, a Psicologia foi cada vez mais convocada a constituir saberes científicos que permitissem istrar, regular e classificar pessoas com maior eficiência, produtividade e menor custo. É atendendo a esses pedidos, disfarçada sob as vestes da neutralidade e da objetividade, que a Psicologia ganha espaço e se constitui majoritaria-
mente como uma técnica disciplinar, dedicada vigilante das fronteiras biopolíticas a dividir o normal do patológico, o adequado do impróprio e o promissor do intratável (Nardi, & Silva, 2004). Não é de se espantar, portanto, que a Psicologia tenha sido também uma confiável aliada de alguns dos regimes totalitários que marcaram os últimos cem anos. No caso brasileiro, como afirma Coimbra (2009), é notória a cumplicidade de psicólogas e psicólogos com práticas de violência de Estado durante a ditadura civil-militar (1964–1985), sendo um dos exemplos paradigmáticos da colaboração da categoria a elaboração de um “perfil psicológico do terrorista brasileiro”. A própria regulamentação da profissão1 e a abertura dos primeiros cursos de graduação se deu nesse período, fatos que de forma alguma podem ser tratados como mera coincidência. É igualmente oportuno notar que foi justamente a Psicologia dita “oficial” – aquela que se arroga a prerrogativa de enunciar a última verdade, uma vez que se diz “mais científica”, “mais neutra” e “mais objetiva” – a corrente que mais intensamente se submeteu ao aparelho repressivo do
1 O Conselho Federal de Psicologia e os Conselhos Regionais foram criados pela Lei nº 5.766, de 20 de dezembro de 1971, regulamentada pelo Decreto no 79.822, de 17 de junho de 1977 (Brasil, 1977).
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Kessler, H. P.; Kveller, D. B.; Rodrigues, M. R.; Szuchman, K. S. (2017). O Ensino Testemunhal entre os Restos da Ditadura.
Estado, oferecendo-se como ferramenta de normalização social (Scarparo, Torres, & Ecker, 2014, p. 73). Nesse sentido, levando em consideração os acontecimentos políticos que têm novamente colocado em xeque o estatuto democrático de nossa república nos últimos anos, bem como a importância das universidades na formação de psicólogas e psicólogos, perguntamo-nos: como pensar uma formação acadêmica crítica do fazer psi? Como pensar uma formação que se contraponha à primazia da técnica e da pretensa “neutralidade” para valorizar também a análise de implicação com a conjuntura social de nosso país? Como formar psicólogas e psicólogos capazes de trabalhar a memória das décadas vividas sob Estado de exceção a partir de um outro referencial ético-político? Partindo de tais questionamentos, o presente artigo indica uma possível direção de trabalho ao apontar o testemunho como uma potente metodologia de ensino. Para tanto, realizaremos um relato de nossa experiência como docentes em um curso de graduação em Psicologia do Rio Grande do Sul. A docência em questão aconteceu durante o primeiro semestre do ano de 2016. Propusemos uma disciplina chamada “O que resta da ditadura: estudos clínico-políticos sobre violência”, que teria como objetivo estudar as lógicas de reprodução da violência estatal, seus efeitos traumáticos e suas implicações para a formação de psicólogas e psicólogos no Brasil. Como será detalhado nas próximas seções, dividimos o cronograma em módulos temáticos, destacamos alguns conceitos centrais a serem trabalhados e definimos nossa metodologia como um “ensino testemunhal”, tomando de empréstimo a expressão cunhada por Felman (2000, p. 68). Propusemos olhar para os “restos” de um ado pouco elaborado para pensar os desafios do tempo presente e, assim, refletir sobre as implicações profissionais e éticas do nosso trabalho como psicólogas e psicólogos frente às diversas violências de Estado. Não poderíamos ter imaginado, entretanto, que a nossa proposta, os acontecimentos políticos que tomavam conta das ruas do país na época e as próprias vivências das alunas e dos alunos fariam emergir uma inusitada “crise” em sala de aula; e que essa crise, por sua vez, se revelaria a própria condição de um ensino testemunhal tal como o pensamos. Iniciaremos nosso relato descrevendo como tornamos as noções de trauma e testemunho ferramentas de ensino. Situaremos, assim, a origem e a importância desses conceitos para os campos da psi-
canálise, da literatura e da história, propondo também uma maneira de utilizá-los como recursos pedagógicos. A seguir, narraremos alguns episódios que levaram à emergência do que chamamos de uma crise em sala de aula, um momento em que a nossa proposta de ensino foi posta em questão pela dinâmica que nós mesmos havíamos sugerido. Discutiremos como essa crise foi, na verdade, um processo necessário nessa experiência, e arriscaremos afirmar que todo ensino testemunhal deve, por sua própria singularidade, ar por uma crise. Por fim, resumiremos os principais aspectos que caracterizam o ensino testemunhal, tal como o entendemos, e analisaremos por que ele é uma ferramenta potente na formação de psicólogas e psicólogos na atual conjuntura social brasileira.
O testemunho como metodologia
A disciplina “O que resta da ditadura: estudos clínico-políticos sobre violência” foi oferecida como eletiva no currículo do curso de graduação em Psicologia e fez parte do estágio de docência de três mestrandas e um mestrando. Destacamos os “restos” como questão central por entender que a transição brasileira para a nossa nova democracia foi, acima de tudo, um acordo entre as elites – “uma reconciliação extorquida” (Gagnebin, 2010, p. 177) – que privilegiou a manutenção do poder e negligenciou diversas obrigações institucionais próprias à justiça de transição, à construção da memória e à reparação dos danos causados pela violência de Estado. Sublinhamos a importância de levar essas discussões para a universidade e para a formação em Psicologia dentro de um permanente exercício ético e crítico diante da posição que ocupamos. Assim, o objetivo principal da disciplina foi estudar o impacto daquilo que permaneceu, os efeitos traumáticos da violência, a função testemunhal como possibilidade de transmissão e elaboração e a implicação desses temas para o trabalho de psicólogas e psicólogos no Brasil. Para compor esse diálogo, pareceu-nos interessante lançar mão das noções de “trauma” e “testemunho” como guias conceituais no percurso de ensino ao longo do semestre. A noção de trauma ganhou importância inicialmente no campo da psicanálise, relacionada à vivência de um ou mais acontecimentos aterrorizantes, inesperados e incontroláveis que adquirem um caráter de excesso para o sujeito. De acordo com Freud (1920/2010), a intempestividade e a violência da situação traumática impedem que o 163
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aparelho psíquico organize suas defesas, o que gera uma “invasão” de estímulos desconectados. A tentativa de “ligação” desse excesso ao sistema de representações psíquico se daria mediante ações repetitivas que se apresentam na forma de compulsão, tais como pesadelos, flashbacks, e outros tipos de revivências. Levando o sujeito a reviver a situação traumática, essas seriam formas de tentar apreender aquilo que ficou sem significação, de tramar sentidos possíveis a posteriori (nachträglich) ou, como diria Endo (2005), de “refazer o caminho desconhecido do trauma [...], agora com o ego de prontidão” (p. 146). Vale lembrar que a raiz indo-europeia do termo indica que a palavra trauma pode significar “friccionar”, “triturar”, “perfurar”, mas também “suplantar”, “ar através”. Essa proposição acentua o caráter paradoxal da experiência traumática, que pode se referir tanto ao evento “perfurante” e inesperado que se torna inassimilável ou incompreensível para o sujeito que o vivencia, quanto para delinear a forma através da qual esta “incompreensão” segue acompanhando-o ao longo de sua história, reproduzindo-se enigmaticamente (Nestrovski, & Seligmann-Silva, 2000). Nesse sentido, mais do que as especificidades do evento em si, quando se fala em trauma, a ênfase está colocada nas possibilidades singulares de cada sujeito habitar um limiar oblíquo entre o representável e o irrepresentável, entre a tentativa da lembrança e a necessidade do esquecimento, entre a colocação em palavras e a agem ao ato. A noção de trauma também tem sido utilizada para refletir sobre o legado dos grandes episódios violentos que se abateram sobre grupos, povos ou nações inteiras, especialmente aqueles que marcaram o século XX e o início do século XXI, episódios muitas vezes denominados “catástrofes” (Ortega, 2011). Especialmente após Auschwitz, intensificou-se um enigma para a escrita da história: como narrar episódios que desafiam as possibilidades conceituais de representação por seu próprio caráter traumático? Como transmitir a história desses eventos que excedem o que conseguimos dizer deles? Ao mesmo tempo, como não silenciar diante disso que é impossível de dizer, e como impedir o esquecimento do que se ou? A partir dessa necessidade e de sua simultânea impossibilidade, a noção de testemunho, como a narração possível de um evento traumático, ganha especial relevância nos estudos interdisciplinares sobre história, memória e literatura (Seligmann-Silva, 2000). 164
Desde essa perspectiva, o exercício testemunhal distancia-se da esfera jurídica, em que é utilizado como ferramenta para a obtenção de uma verdade que precisaria ser verificada através de provas, e de um modelo positivista de historiografia, que deve basear-se exclusivamente em documentos e fatos cientificamente verificáveis. O entendimento que resgatamos sublinha a importância de situar o testemunho em sua estrutura processual (Laub, 1995), lacunar (Agamben, 2008) e ficcional (Gagnebin, 2006), visto que, desde sua inerente incompletude, apresenta-se como uma versão sempre singular, subjetiva e limitada que tenta dar conta do que ficou sem sentido. No caso dos países latino-americanos que viveram sob ditaduras no contexto da guerra fria, é preciso considerar ainda a recusa deliberada dos regimes ditatoriais em reconhecer as suas próprias práticas de violência, como a tortura e os desaparecimentos forçados. Nesses casos, evidencia-se o teor eminentemente político do exercício testemunhal, que se configura como a própria possibilidade de narração da história das vítimas (Seligmann-Silva, 2005). Apoiados em Felman (2000), podemos dizer que há uma dimensão de crise inerente ao ato testemunhal. Por uma via, o traumático desafia a linearidade da história, a capacidade representativa da linguagem e confere ao testemunho, portanto, uma potência desestabilizadora. Ao mesmo tempo, como possibilidade de narração de uma “história dos vencidos” (Benjamin, 1996), o testemunho desvela a história como um campo de disputas hermenêuticas onde a verdade oficial sobre o ado deve estar permanentemente em suspensão. Segundo a autora (Felman, 2000), “o testemunho não é autêntico sem essa ‘crise’, que tem de, precisamente, quebrar e reavaliar categorias e pontos de referência precedentes” (p. 68, grifo nosso). Desde essa perspectiva, pensamos que todo testemunho implica uma surpresa, uma vez que perturba o que até então entendia-se univocamente como o “ado” e faz emergir o impensado e o imprevisto. Destacamos que estão em jogo as condições de recepção de testemunhos, visto que se tratam de narrativas que não possuem reconhecimento oficial e que, por conseguinte, não raro acabam encapsuladas em zonas de silêncio e compartilhamentos impossíveis (Kupferberg, 2009). Distanciando-nos novamente da esfera jurídica, compreendemos essas condições não mais como uma técnica para extrair provas, e sim como princípios que norteiam uma construção conjunta,
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simbólica e desafiadora entre aquele que fala e aquele que escuta. Afinal, se por um lado o testemunho diz dos limites do que se consegue narrar, por outro aponta para os limites do que amos escutar. Sublinhamos, portanto, a necessidade de acolher o relato do outro, tomando a escuta como aposta no exercício da palavra em seu esforço pela transmissão simbólica. Podemos dizer, em resumo, que o exercício do testemunho compreende sustentar a importância de que histórias de violência sejam recordadas, tanto pelo indivíduo que as viveu como por aqueles a sua volta, e que não sejam simplesmente esquecidas ou negadas. Trata-se de uma recusa do emudecimento, do esforço da enunciação de algo que pode não estar ainda recoberto de sentido. O exercício narrativo inscreve-se, assim, como possibilidade de construção do presente ao romper ciclos de repetição, silenciamento e violência e insistir na tessitura de uma história sobre o que se ou. Uma necessidade que diz menos de uma tarefa técnica e mais de um dever ético-político: escutar aquilo que sobreviveu à violência, implicar-se na história e apropriar-se dela. Aproximando os conceitos de trauma e testemunho da história brasileira, encontramos no campo de discussões sobre os restos da ditadura civil-militar um terreno fértil para reflexões e desdobramentos, considerando que esse episódio se inscreve como um dos mais recentes de uma série de brutais repetições. Por restos entendemos não apenas as sequelas da violência daquele período, mas sobretudo os corpos estranhos que resistem à agem do tempo, as lacunas que distanciam a linguagem historiográfica tradicional da linguagem testemunhal estilhaçada pelo trauma, a tensão que habita a construção da memória no contrafluxo da negação e da obliteração (Teles, & Safatle, 2010). Ainda hoje, em nossa formação e atuação profissional, quando nos dispomos a escutar sujeitos que são continuamente violentados e violados pelo Estado, testemunhamos a presença desses restos, fragmentos de barbárie que resistem à agem do tempo. Em se tratando de nosso exercício ético-profissional, apostamos no ensino como espaço para reflexões críticas que possam gerar novos posicionamentos frente a esse contexto. Nasceu assim a proposta de uma disciplina de graduação que visou à construção de contornos possíveis frente aos desafios que o campo nos coloca. Para estruturar a disciplina, propusemos dividi-la em alguns módulos temáticos. O primeiro teria como
objetivo introduzir as questões que orientariam os trabalhos durante o semestre, ou seja, “o que são os restos da ditadura?” e, mais especificamente, “quais as relações desses restos com a formação em Psicologia?”. O segundo módulo seria focado nas aproximações entre clínica, trauma e testemunho e o terceiro, por sua vez, na díade clínica e memória. Ao final de cada um, alunas e alunos deveriam entregar uma narrativa sobre as relações que percebiam entre suas práticas de estágio, pesquisa ou extensão e o que vínhamos estudando sobre os restos da ditadura. A ideia era que as narrativas estabelecessem entre si uma sequência, de modo que pudessem, ao longo do semestre, compor um testemunho próprio do percurso. Tais narrativas poderiam ser feitas de modo livre, utilizando texto escrito, gravação de filmes, canções ou até mesmo a construção de objetos. Tentamos ao máximo não restringir a criatividade das alunas e dos alunos conquanto permanecessem fiéis a uma única condição: a narrativa deveria explicitar, além de reflexões teóricas sobre os conteúdos estudados, suas próprias percepções e afetos. Para disparar as discussões, contamos com a presença de convidados que compartilharam com o grupo suas vivências ligadas a movimentos sociais; em outros momentos, utilizamos recursos audiovisuais, como curtas-metragens e filmes, ou ainda testemunhos literários. Além disso, as alunas e os alunos foram convidados a falar, participando ativamente dos debates, dando seus próprios testemunhos sobre o processo, trazendo questões e discutindo suas implicações com o tema de aula, compartilhando-os com a turma e docentes. Assim, ao longo do semestre, por meio da metodologia adotada para os seminários e para as avaliações – o ensino testemunhal –, a turma foi convocada a se colocar na posição de quem fala e de quem escuta. Ao propor um alargamento da noção de testemunho, Felman (2000) sugere que, para além dos tradicionais campos da clínica, ou até mesmo do direito e da história, possa-se pensar a prática do testemunho como parte também dos processos de ensino. No campo da educação, quando se trata da transmissão de questões ligadas a traumas coletivos, a catástrofes históricas ou a tudo aquilo que resiste à representação, o ensino deve ser pensado dentro dos mesmos operadores de possibilidades e impossibilidades inerentes à transmissão dessas questões. A disciplina aconteceu, então, por meio do diálogo e da contínua reinvenção, 165
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levando em conta os efeitos e reverberações que as questões trabalhadas em aula foram produzindo nos estudantes e em nós, docentes.
A crise em sala de aula
Para entendermos a crise que veio a tomar conta da sala de aula é preciso situarmos, antes de mais nada, o modo como o próprio planejamento do semestre foi pensado. Ao optarmos por privilegiar referências bibliográficas e artísticas de cunho testemunhal, acabamos construindo um cronograma denso, tanto no sentido teórico quanto emocional. Decidimos, por exemplo, ar o documentário “15 Filhos”, de Maria Oliveira e Marta Nehring (1996), e alguns capítulos do livro “K.”, de Bernardo Kucinski (2014), obras que lidam diretamente com as feridas ainda abertas da época da ditadura. Sabíamos, até certo ponto, que a forma como havíamos planejado a disciplina traria desafios. Contávamos que as discussões sobre os restos da ditadura civil-militar e suas marcas clínicas e políticas poderiam afetar as alunas e os alunos de diferentes maneiras. Não poderíamos ter imaginado, contudo, que o processo se desenrolaria com tanta intensidade e, acima de tudo, que o momento de turbulência política vivido no país faria disparar em sala de aula um processo testemunhal intenso dos próprios estudantes. No domingo que antecedeu o nosso terceiro encontro com a turma, aconteceu o primeiro dos grandes protestos civis que tomaram conta das ruas nas principais capitais brasileiras durante o ano de 2016. Acompanhados pelos grandes veículos de comunicação do país, manifestantes exigiam, entre outras coisas, a saída imediata da Presidenta Dilma Rousseff. Alguns chegavam a pedir por uma intervenção militar para solucionar os conflitos políticos do país. Na aula seguinte, que tinha como tema justamente “os restos da ditadura entre os esforços democráticos”, a discussão sobre o protesto envolveu o tempo e o espaço. Diante de um discurso que afirmava que o processo de impeachment seria um novo “golpe em curso”, a discussão da disciplina inevitavelmente transitava pela relação entre o que estávamos vivendo e os conceitos trabalhados; isto é, como uma possível repetição de algo que ainda não foi elaborado, algo especificamente relacionado aos escuros porões onde boa parte da memória da ditadura civil-militar ainda se encontra silenciada. As alunas e os alunos, no entanto, pareciam desconfiar da ligação tão simples que estava se costu166
rando entre um período do ado e o presente; propondo, em contrapartida, que levássemos em conta uma série de outros fatores para pensar a violência estatal incrustada entre os frágeis alicerces de nossa atual democracia. “Não haveria outros momentos pouco elaborados de nossa história igualmente importantes para pensarmos as violências dos dias atuais?”, interrogavam; “deveríamos olhar para os restos da ditadura ou para os efeitos de uma violência de origens ainda mais remotas?”. Entendemos que, ao levantarem tais questões, não colocavam em jogo a relevância de nos debruçarmos sobre esse período específico do nosso ado, mas sugeriam que essa discussão ofuscava outros eventos que também são silenciados e, por sua vez, menos visibilizados. Dessa forma, começava a se desenhar o que mais tarde viemos a nomear como uma crise em nosso processo de ensino. Algo emergiu nessas interrogações dos estudantes e permaneceu durante o semestre, ecoando questionamentos que ressoaram de maneira intensa entre nós, professores. Em busca de hipóteses para compreender os desafios do tempo presente, começamos a nos perguntar sobre as escolhas de textos para conduzir as discussões, pondo em xeque, gradualmente, as próprias direções do nosso olhar. Em meio a tais indagações, chegamos ao fim do segundo módulo e algumas alunas pediram para compartilhar suas produções narrativas com a turma. Uma delas havia feito um trabalho de colagens sobre um cartaz. Ela deixou-o no meio da sala e convidou o grupo a observar. De um lado haviam sido coladas fotografias que mostravam a repressão e a violência de Estado na época da ditadura. O outro lado estava completamente coberto com imagens de diversos acontecimentos anteriores, também violentos, da história brasileira: repressões, revoltas, revoluções, massacres. Cada uma dessas imagens vinha acompanhada de uma legenda indicando a situação, o local e a data onde ocorreu. Porém, devido à grande quantidade de material retratado, as legendas eram pequenas, o que demandava que o grupo chegasse bem perto do cartaz para poder ler as informações. Quem se aproximava sentia um forte odor que o cartaz exalava devido ao sangue seco que atravessava as imagens. O compartilhamento do trabalho gerou um tumulto. Como foi apresentado no fim de uma aula, o horário de saída foi ultraado e muitos já estavam se retirando. Seguiu-se uma discussão enérgica na classe, já que a saída de alguns foi interpretada por
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outros como um desrespeito ao trabalho da colega, bem como às vidas que estavam sendo retratadas no cartaz. Supostamente, assim se estaria ratificando o esquecimento e a violência aos quais essas vidas estiveram submetidas. O clima tenso durou alguns minutos. Aos poucos, a turma conseguiu debater sobre como o incômodo relacionado à imposição de um olhar se relacionava aos próprios paradoxos do exercício testemunhal. Na aula seguinte, saindo do roteiro inicialmente previsto, propusemos à turma fazer uso dos conceitos que vínhamos estudando para refletir sobre o recente acontecimento, baseando-nos na hipótese de que o cartaz teria trazido à tona a aporia intrínseca à memória traumática. Por um lado, sua forma não permitia entender o conteúdo escrito em pequenas letras, a menos que nos aproximássemos. Por outro, o sangue seco exalava um odor desagradável que incomodava muito quando chegávamos perto. O trabalho produzia um efeito angustiante ao sugerir que o sangue vinha dos próprios cadáveres insepultos, dos tantos mortos atravessados pela história de desigualdade e injustiça que nos havia trazido até o Brasil de 2016. Também atualizava o próprio paradoxo que vínhamos tentando pensar: como se aproximar das histórias de violência? Como estudar o horror que carrega cada uma dessas imagens? Como escutar aquilo que desafia os limites do ável? Parecia que estávamos vivendo em ato, nas nossas relações enquanto turma, as contradições inerentes ao testemunhar: entre a necessidade de falar e a impossibilidade de dizer, entre precisar lembrar e querer esquecer, entre tudo calar e algo falar, entre se aproximar e se distanciar. Outrossim, uma vez que entendemos que a própria dinâmica da sala de aula poderia tornar-se palco de uma revivência da experiência traumática, tornou-se importante considerar o teor testemunhal do conflito instaurado. Entendemos que, em seus diversos questionamentos, as alunas e os alunos tentavam endereçar algo a nós professores. Na nossa leitura, estaria se formando aí também, entre os infinitos obstáculos do traumático, uma narrativa sobre suas próprias vivências. Em resposta a nossa sugestão de lançar o olhar sobre os restos da ditadura em seus estágios, projetos de pesquisa e extensão, os estudantes pareciam convocar nossa atenção para outras diversas violências às quais eles próprios estavam submetidos no dia-a-dia. Com seus testemunhos, levaram-nos a enxergar os restos dos demais episódios violentos retratados no
outro lado do cartaz: genocídio da população jovem e negra, dificuldades dos estudantes cotistas dentro da universidade, criminalização dos movimentos sociais, entre outros. Não seriam esses também os restos que tínhamos nos proposto a estudar? Reminiscências do nosso ado pouco democrático? Instalou-se em nosso processo de ensino uma crise que nos fez questionar nossas próprias escolhas como docentes. Entendemos que a modalidade de ensino testemunhal – que justamente se dispõe a acolher o que os alunos pensam e sentem – acabou oferecendo um lugar para que todas essas outras interrogações, atravessadas por narrativas traumáticas, emergissem no debate em sala de aula e viessem a perturbar a experiência de ensino. Podemos dizer que o choque, a soma e as sobreposições entre os textos, as questões trazidas pelos estudantes e os acontecimentos políticos do país, não poderiam senão produzir uma crise em nossa proposta inicial, tornando as aulas e discussões efervescentes, imprevisíveis e intensas. Diante do que se desenhou em sala de aula, nossa intervenção como docentes foi de sustentar e acolher a crise ao invés de suprimi-la. Tal como a própria clínica psicanalítica se orienta em relação ao trauma, nossa intervenção se deu por meio da tentativa de escuta do que a turma enunciava; garantimos, assim, um tempo que desse e à iminente não resolução do que surgiu em aula, produzindo pausas no cronograma previsto e emprestando palavras e significações para os acontecimentos que pareciam sem sentido. Ao nos depararmos com críticas e problematizações, resolvemos viver o processo junto com os estudantes, percorrê-lo em seus movimentos, rupturas e imprevisibilidades. A importância de sustentar esse momento de inquietação, tensão, dúvidas e contestação de saberes pôde ser melhor observada à medida que percebemos que foi precisamente a crise o que recheou de sentidos nossos encontros seguintes. Ao propor à turma e a nós, docentes, que tentássemos traduzir em palavras o que havia aparecido em ato, críticas e apontamentos, acabamos produzindo uma mudança nas relações ali postas, a partir da qual a turma ou a se relacionar de outra forma com as questões estudadas. Os trabalhos seguintes escritos pela classe, referentes aos últimos módulos, adquiriram outro tom: os estudantes aram a falar sobre as temáticas das aulas desde sua própria posição, de um modo mais implicado. Os conteúdos teóricos e testemunhos 167
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estudados foram relacionados com suas vivências pessoais e profissionais, ora buscando estabelecer relações com experiências atuais, ora ressignificando episódios anteriores, articulando, de toda forma, as discussões de aula com seus percursos de formação. De certo modo, podemos dizer que esses escritos finais foram produzidos na forma de testemunhos dos percursos singulares de cada estudante, no encontro com os desafios e adversidades inerentes à formação.
Considerações finais: a crise como ensino
O presente relato teve por objetivo apresentar o exercício testemunhal como um método de ensino que tem na experiência vivida e compartilhada seu principal alicerce. A partir desse entendimento, ensinar e estudar não implicam somente ler teorias, mas sobretudo colocá-las em exercício, seja escutando e acolhendo o outro, seja construindo uma narrativa de sua própria história. Examinando a nossa experiência em retrospecto, podemos destacar três outras particularidades fundamentais e indissociáveis dessa proposta: seu caráter processual, sua dimensão clínica e seu estatuto ético-político. Dizemos que é processual, pois o ensino testemunhal não está centrado em conteúdos pré-determinados a serem conduzidos de maneira unidirecional dos professores aos alunos, mas, acima de tudo, em discutir os próprios paradoxos inerentes ao exercício de transmissão. A ênfase não está no cumprimento do cronograma ou em metas a serem alcançadas, mas no próprio caminho percorrido, nos incômodos, percalços e incertezas atinentes às tarefas de narrar e escutar. Assim, por mais que se possa estruturar aulas, um quadro de referências bibliográficas e temas específicos a serem discutidos, acidentes e imprevistos fazem parte do percurso. Essa metodologia se propõe a acolher os efeitos gerados a partir dos encontros, fortuitos e intempestivos, promovidos pela dinâmica da sala de aula. Em resumo, podemos dizer que o ensino na dependência de um processo testemunhal exige que se esteja aberto a encarar o imprevisível. No nosso caso, não contávamos com o que se apresentou como um choque entre a densidade emocional dos testemunhos estudados, as vivências dos alunos e um momento de turbulência política que explicitava as frágeis fundações de nossa democracia. Uma crise, conforme a denominamos, que no início apresentou-se como um questionamento à proposta de ensino, aos poucos foi 168
compreendida como a emergência do traumático em sala de aula e, portanto, como a forma pela qual essa metodologia pôde, de fato, se desenrolar. Nesse sentido, compreendemos que, muitas vezes, não há possibilidade de estudo que não seja a própria “vivência” dos conteúdos, uma vivência que extrapola planejamentos e preparações acadêmicas. Concordamos com Felman (2000): “se o ensinar não se depara com uma espécie de crise, se ele não encontra nem a vulnerabilidade nem a explosividade de uma dimensão crítica e imprevisível […] , ele provavelmente não ensinou verdadeiramente” (p. 67). A tarefa do professor em um ensino na dependência do processo testemunhal não é, portanto, simplesmente ar adiante informações preconcebidas; mas, ao ensinar, fazer algo acontecer. De acordo com a autora, trata-se de um ensino que é performativo, e não apenas cognitivo, na medida em que convoca seus receptores a se transformarem em função da novidade da informação transmitida. A segunda particularidade a ser destacada sobre o ensino testemunhal é sua dimensão clínica. Se entendermos que, em muitas experiências de violência há uma impossibilidade de narrar – tanto pelo caráter traumático quanto pela ausência de reconhecimento e legitimidade –, a criação de um espaço que garanta a circulação da palavra e o endereçamento a um outro permite que seja possível a construção de alguma história sobre o que se ou. No testemunho há sempre uma aposta: de que olhar para o ado, em uma postura crítica, pode instaurar um outro porvir. Uma aposta não necessariamente na capacidade do sujeito de representar aquilo que foi vivido como excesso, mas na transformação da relação que os sujeitos e que a própria sociedade estabelece com aquilo que nunca poderá ser totalmente recoberto de sentido. O ensino testemunhal compromete-se, assim, com uma tentativa de interrupção de uma cadeia de repetições de violência e com a definição de alguns princípios que possam nortear a tarefa de recepção do testemunho e de costuras possíveis, mesmo que imperfeitas, com o laço social. Chegamos ao terceiro aspecto fundamental do ensino testemunhal: seu estatuto ético-político. Devido ao caráter subjetivo e fragmentário, o testemunho ocupa um espaço marginal na escrita oficial da história, que é baseada em documentos, provas verificáveis e métodos científicos. Como diria Benjamin (1996), a história oficial, no entanto, reflete invariavelmente a duvidosa versão dos vencedores.
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E a história oficial brasileira, ainda falha em reconhecer e dar a devida importância aos abusos cometidos pelo Estado durante a ditadura civil-militar, opta reiteradamente por condenar ao esquecimento os efeitos dessas violências em favor da manutenção do poder de uma mesma elite, que antigamente patrocinava a ditadura e que ainda hoje colhe frutos às custas do silêncio (Endo, 2015). A modalidade do ensino testemunhal possibilita uma formação crítica, pois desconstrói a ideia de uma história neutra e torna visível que ela é, sobretudo, uma construção feita no presente e imanente a disputas políticas. Uma formação crítica do fazer psi – que se contraponha à primazia da técnica e da pretensa “neutralidade” e que forme profissionais capazes de trabalhar memórias de violências e de desigualdades de nosso país – talvez só possa acontecer por meio de um exercício ético em que coloquemos em análise nossas implicações. Por fim, sublinhamos que essas três particularidades do ensino testemunhal se relacionam fortemente aos próprios desafios da construção da
memória da ditadura civil-militar no Brasil e, como apontado pelos estudantes, de toda nossa história de violência. A tessitura de uma narrativa sobre esses períodos – uma que nos permita recordar, elaborar e não apenas repetir – demanda mais do que apenas “informações históricas”. Precisamos, é claro, que se tenha o a um sem número de documentos de cujo paradeiro até hoje não se tem notícia; assim como é necessário que haja um reconhecimento oficial das atrocidades cometidas durante os anos vividos sob Estado de exceção e a responsabilização dos agentes perpetradores dessas violências. Mas existe algo além da “história objetiva” e da “justiça oficial”, algo do traumático que se repete e que apenas o testemunho, sob a aporia de sua própria impossibilidade e imprevisibilidade, tem condições de fazer emergir. Para que a sociedade brasileira possa realmente se ocupar dos “restos da ditadura”, portanto, deve também escutar a si mesma ainda que isso implique uma crise, pois é apenas a partir desse ato ético e político que algo realmente pode se transformar. Ao menos essa foi a lição que aprendemos com nossos alunos.
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Helena Pillar Kessler Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS. Brasil. E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Rua Anita Garibaldi, 1199/701. Bairro Mont’ Serrat. CEP: 90450-001. Porto Alegre – RS. Brasil. 170
Kessler, H. P.; Kveller, D. B.; Rodrigues, M. R.; Szuchman, K. S. (2017). O Ensino Testemunhal entre os Restos da Ditadura.
Recebido 30/06/2017 Reformulação 30/09/2017. Aprovado 02/10/2017. Received 06/30/2017 Reformulated 30/09/2017 Approved 10/02/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 30/09/2017 Aceptado 02/10/2017
Como citar: Kessler, H. P., Kveller, D. B., Rodrigues, M. R., Szuchman, K. S. (2017). O ensino testemunhal entre os restos da ditadura: uma metodologia ético-política. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 161-171. https://doi.org/10.1590/1982-3703120002017 How to cite: Kessler, H. P., Kveller, D. B., Rodrigues, M. R., Szuchman, K. S. (2017). Testimonial teaching among the remains of the dictatorship: an ethical-political methodology. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 161-171. https://doi.org/10.1590/1982-3703120002017 Cómo citar: Kessler, H. P., Kveller, D. B., Rodrigues, M. R., Szuchman, K. S. (2017). La enseñanza testimonial entre los restos de la dictadura: una metodología ético-política. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 161-171. https://doi.org/10.1590/1982-3703120002017 171
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A Psicologia e o Discurso Racial sobre o Negro: do “Objeto da Ciência” ao Sujeito Político
Lia Vainer Schucman Universidade de São Paulo, SP, Brasil.
Hildeberto Vieira Martins Universidade Federal Fluminense, RJ, Brasil.
Resumo: O presente artigo descreve os principais elementos que constituíram o pensamento, a história e os posicionamentos éticos e políticos da Psicologia brasileira no que se refere às relações raciais. Estes elementos são alinhados e comentados da seguinte maneira: a) um primeiro debate que se inicia no fim do século XIX, no qual o pensamento psicológico sobre o problema racial descreve o negro como “objeto da ciência”; a ideia de raça é, neste ponto da história, determinada biologicamente; b) o período compreendido entre 1930 e 1960, caracterizado pelo impacto da obra de Gilberto Freyre, em que o conceito de raça aparece como determinante cultural e posteriormente foi marcado pela crítica ao mito da “democracia racial”; c) um momento que se inicia no fim da década de 1970, sob influência de estudos de desigualdades raciais, da abertura política e do processo de redemocratização do país, quando os movimentos sociais negros, através de seus atores, ativistas e intelectuais, produzem a ideia de raça como constructo social e pautam uma agenda política redefinindo o debate racial, e na qual a Psicologia a a discutir o negro não mais como “objeto da ciência”, mas sim como agente produtor de sua própria história. Palavras-chave: Psicologia, História da Psicologia, Raça, Racismo.
Psychology and Racial Discourse on Black People: from “Object of Science” to Political Subject Abstract: This article describes the main elements that constituted the thought, history, and ethical and political positions in Brazilian psychology in relation to race relations. These elements are aligned and commented as follows: a) a first debate that begins in the late nineteenth century, in which psychological thought about the racial problem describes black people as an “object of science”; the idea of race is, at this point in history, determined biologically b) the period between 1930 and 1960, characterized by the impact of the work of Gilberto Freyre, in which the concept of race appears as a cultural determinant and was later marked by criticism of the myth of “racial democracy”; c) a moment that began in the late 1970s under the influence of studies of racial inequalities, political opening, and the process of re-democratization of the country where black social movements through their actors, activists, and intellectuals produce the idea of race as a social construct and guide a political agenda redefining the racial debate, and in which psychology begins to discuss black people no longer as “objects of science” but as agents of their own history. Keywords: Psychology, History of Psychology, Race, Racism.
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Psicología y Discurso Racial acerca del Negro: de “Objeto de la Ciencia” a Sujeto Político Resumen: En este artículo se describen los principales elementos que constituyen el pensamiento, la historia y las posiciones éticas y políticas de la psicología brasileña con respecto a las relaciones raciales. Tales elementos están alineados y comentados de la siguiente forma: a) un primer debate que se inicia a finales del siglo XIX, en que el pensamiento psicológico sobre el problema racial describe el negro como “objeto de la ciencia”; la idea de raza es, en este momento de la historia, determinada biológicamente; b) el período entre 1930 y 1960, caracterizado por el impacto de la obra de Gilberto Freyre, donde el concepto de raza aparece como un determinante cultural y que más tarde se caracterizó por la crítica del mito de la “democracia racial”; c) un momento que comienza a finales de la década de 1970, bajo la influencia de los estudios de desigualdades raciales, la apertura política y el proceso de redemocratización del país en que los movimientos sociales negros, a través de sus actores, activistas e intelectuales, producen la idea de raza como una construcción social y engendran una agenda política redefiniendo el debate racial, en la que la psicología va a discutir el negro ya no como “objeto de la ciencia”, sino más bien como agente productor de su propia historia. Palabras claves: Psicología, Historia de la Psicología, Raza, Racismo.
Introdução Para se discutir a questão da igualdade social e política nas sociedades modernas, é preciso correlacioná-la obrigatoriamente à questão da cidadania e às conquistas de certos direitos jurídico-políticos, já que o modelo de cidadania e a ideia de democracia moderna são pensados como resultantes da estreita articulação entre a liberdade política, que é a capacidade de exercer tais direitos, e a igualdade social, que é a capacidade de gozar de tais direitos. Se nossa análise partir dessa perspectiva, podemos considerar que a cidadania – e o consequente processo democrático advindo de tal norte ideológico – foi estabelecida como uma resposta desenvolvida em decorrência da formação e consolidação de uma visão liberal da/na sociedade, presente já em finais do século XVIII. Esse fenômeno é o resultado mais evidente dos embates políticos produzidos como consequência das reconfigurações do espaço social que, a partir daquele momento, seria visto também como campo de conflito e cenário de evidenciação das dicotomizações de classe, que teve como consequência principal a separação produzida entre o Estado e a sociedade, entre o público e o privado (Sennet, 1988). Quando pensamos na sociedade brasileira, o que nos interessa são as ligações/relações pessoais, que acabam servindo como filtro para o o a direitos. As relações pessoais são
tão importantes para esse livre trânsito social, que não ter relações pode implicar em um maior risco pessoal ou mesmo a produção de uma nulidade identitária enquanto agente portador de direitos, já que o que importa é saber “quem está falando” (DaMatta, 1997). E como a lógica hierárquica brasileira parece estar baseada na “intimidade social”, ela acaba se tornando um dos fatores que têm maior peso na construção das relações sociais (DaMatta, 1997). O que pretendemos, a rigor, com esta presente reflexão, é discutir algumas dessas questões no campo das relações raciais no Brasil e destacar, neste cenário, o papel da Psicologia na tentativa de compreender como são produzidas formas de inclusão ou exclusão sociais garantidores (ou não) de direitos considerados balizadores de um certo ideário democrático (individual, social e político). Nas últimas décadas, a produção científica da Psicologia despertou um novo interesse sobre a questão do racismo e das práticas ligadas ao preconceito e discriminação. Sem entrar no mérito ou na pertinência da retomada deste debate, é possível constatar que os psicólogos estão interessados na questão racial, em seus efeitos subjetivos e em seus respectivos impactos na produção do sofrimento psíquico (Costa, 2015; Martins, 2014; Nunes, 2006; Schucman, 2012; Tavares, Oliveira, & Lages, 2013). O objetivo desse artigo é discutir como um conjunto de ideias e práticas acadêmicas, institucionais e 173
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sociais foram elaboradas na imbricação entre a temática racial brasileira e a constituição de investigações e explicações psicológicas1 sobre a sociedade brasileira e seu funcionamento racializado. Essa tarefa começa com uma revisão da literatura que consideramos histórica e tematicamente relevantes para esse debate e finaliza com entrevistas e relatos de ações de atores sociais envolvidos nesta produção. Aqui não pretendemos uma revisão exaustiva, mas uma revisão da produção bibliográfica que indique a eclosão de “viradas analíticas” ou de novas maneiras de discutir a questão racial brasileira e de como essas rupturas alcançaram resultados importantes no debate nacional e internacional. O recurso metodológico que propomos nesse artigo fundamentar-se-á em um levantamento histórico, bibliográfico e documental de material relevante para o seu desenvolvimento e elaboração teórico-crítico. Analisaremos certos textos e documentos e as respostas apresentadas por determinados autores e aparelhos institucionais que versam sobre o campo dos discursos psicológicos (fontes primárias e secundárias). A seleção desse material documental foi definida a partir de marcos cronológicos que serão mais bem explicitados abaixo. Tal escolha levou em consideração a relevância histórica que essa documentação teve para a produção de estudos étnico-raciais no campo dos saberes psicológicos e sua imbricação com a sociedade brasileira. Contudo, a tarefa de arrolar toda a produção bibliográfica em Psicologia sobre o fenômeno racial e suas manifestações correlatas, vale dizer, não seria alcançada no escopo de um artigo. Não deixa de ser relevante afirmar também que tal inventário referencial venha sendo buscado cada vez mais nos últimos anos no âmbito da Psicologia (Bento, Silveira, & Nogueira, 2014; Carone, & Bento, 2002; Ferreira, 2000; Martins, & Silva, 2013, 2014; Schucman, 2010, 2012; Santos, & Schucman, 2015), e que esses trabalhos tenham revelado o quanto é importante o estudo da questão racial pela Psicologia para a compreensão do processo de democratização do nosso país e das concepções de cidadania desenvolvidos na consolidação da sociedade brasileira.
Elegendo três momentos nodais como emblemáticos e aglutinadores na elaboração de modos de pensar e dizer sobre “raça”, a partir da retomada da Psicologia acima descrita, que serão mais bem aprofundados ao longo desse texto, o nosso propósito principal é contribuir para a ampliação de uma reflexão histórica, crítica e política para possíveis e bem-vindas articulações entre os saberes psi e o conceito de raça. No campo das ciências sociais, biológicas e humanas, o conceito de raça é visto hoje como um constructo, ou seja: a raça não é considerada como uma existência concreta, mas sim o resultado de certos modelos e práticas vigentes em um determinado momento histórico. O mesmo ocorre com o conceito de “cor”, que, apesar de ter uma forte conotação física (características fenotípicas), está sujeito a usos e definições ambíguas e subjetivas. Segundo Guimarães, isso ocorre por “falta de uma regra precisa de descendência racial” no Brasil, tal como ocorre nos Estados Unidos (Guimarães, 2005). Ainda segundo este mesmo autor, a “cor” é “mais que pigmentação da pele”, vinculada fortemente ao processo de hierarquização social (Guimarães, 2005). O conceito de “raça” usado nesse trabalho, portanto, é o de “raça social”, conforme teorizou Guimarães (1999), isto é, não se trata de um dado biológico, mas de “construtos sociais, formas de identidade baseadas numa ideia biológica errônea, mas eficaz socialmente, para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios” (p. 153). Para esse autor, se a existência de raças humanas não encontra qualquer comprovação no bojo das ciências biológicas, elas são, contudo, “plenamente existentes no mundo social, produtos de formas de classificar e de identificar que orientam as ações dos seres humanos” (p. 153). Nessa perspectiva, consideramos a raça como resultante de uma série de práticas discursivas produtoras de um “solo fértil” de significações – como o discurso racializado – e que resultam na produção de campos não-discursivos – ações, comportamentos explícitos ou implícitos – geradoras de sua permanência e insistência como definidora de um sujeito e de uma história.
A utilização dessa expressão segue o entendimento já realizado por uma série de trabalhos em história da Psicologia. Esse termo tem sido utilizado para definir o campo discursivo que abarca as práticas produzidas pela psiquiatria, Psicologia e psicanálise no que tange ao entendimento e funcionamento daquilo que se convencionou chamar de “alma”, comportamento, mente, “espírito”, ou seja, o polo de oposição do que se convencionou chamar de uma “corporalidade estrita” (cf. Duarte, 1997; Duarte, Russo, & Venâncio, 2005; Jacó-Vilela, Jabur, & Rodrigues, 1999). Considera-se, portanto, os saberes psicológicos o conjunto de disciplinas que estudam os fatores psíquicos, à luz de uma concepção científica ou de caráter cientificizante, assim como suas relações estreitas com a descrição das categorias de normal e patológico.
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O propósito desse artigo é apresentar, em linhas gerais, três diferentes etapas históricas nas quais tentaremos demonstrar um enfoque psicologizante em torno da questão racial. Os critérios dessas escolhas se basearam na relevância e impacto histórico-social de personagens e de fatos para a constituição de um debate psicológico sobre a temática racial e para o engendramento de formas de inclusão/exclusão do lugar político e social de determinada parcela da nossa sociedade (exercícios de cidadania). Definimos como estratégia de análise a demarcação de fronteiras operativas, que seguem delimitações histórico-cronológicas, capazes de nos auxiliar nessa discussão. Consideramos que as questões levantadas e as respostas produzidas em torno da interface entre os saberes psicológicos e a questão racial, que vão produzir uma mudança na forma de pensar o papel e o lugar social de determinados agentes sociais, podem ser divididas da seguinte maneira: a) um primeiro debate que se inicia entre o fim do século XIX e o início do século XX (1890–1920) no qual o pensamento médico-psicológico sobre o problema racial descreve o “negro”2 como “objeto da ciência”, ao mesmo tempo em que a ideia de raça é compreendida como conceito biológico e o racismo é naturalizado. Esse período foi marcado pelos estudos médico-psicológicos iniciados pela “Escola Baiana de Antropologia” (Raimundo Nina Rodrigues e seus discípulos); b) o período de 1930 até 1960, caracterizado pelo impacto da obra de Gilberto Freyre, em que o conceito de raça aparece como determinante cultural onde o racismo se justifica através da falsa ideia de hierarquias culturais que posteriormente foi marcado pela crítica ao mito da “democracia racial”, e por último, c) um momento que se inicia na década de 1970, sob influência de estudos de desigualdades raciais, quando a raça é compreendida como constructo social que determina as desigualdades simbólicas e materiais da população negra. Esse é o momento em que trabalhos em torno do conceito de branqueamento/branquitude, de debates voltados para a criação de ações de promoção da igualdade étnico-racial no Brasil e também sobre a questão da identidade, começam a ocupar espaço nas pesquisas em Psicologia. A partir desse momento, o papel da Psicologia de seu compromisso social é revisado através da “crise” pela qual ará enquanto área de conhecimento. Não por
acaso esse momento histórico foi caracterizado pelos primeiros movimentos sociais de redemocratização em nossa sociedade. Ao que parece, a revisão científica no campo da Psicologia, em especial o da Psicologia Social, e a luta democrática pela ampliação dos direitos sociais e políticos ganham força ao mesmo tempo em nossa sociedade. Essa “crise” científica favoreceu a ampliação dos seus campos de estudo, incluindo aí o tema do racismo. Definidos os marcos cronológicos, emos para a elaboração de um quadro de análise dessas etapas.
O debate inicial sobre o problema racial: o negro como “objeto da ciência”
Na literatura sobre a questão racial brasileira (Antunes, 1999; Corrêa, 1982; 1998; Engel, 2001; Leite, 2002; Oda, 2003; Schwarcz, 1993; Skidmore, 1976), é bastante comum definir como marco inicial os trabalhos médico-psicológicos de Raimundo Nina Rodrigues (1862–1906). Seus estudos tomavam como questão principal uma maior compreensão do papel da população negra, africana ou afro-brasileira, na constituição da sociedade brasileira a partir do conceito-chave de “degeneração da raça”. Os trabalhos de Rodrigues (1894, 1935, 1939, 2006) foram fundamentais para a consolidação de um modelo psicofísico capaz de nomear e descrever as “deficiências” do negro brasileiro, tendo como efeito mais imediato o reconhecimento das consequências sociais “perversas” que a manutenção do convívio com essa raça poderia acarretar para a sociedade brasileira. Tal chave interpretativa teve continuidade no início do século XX a partir da retomada de suas ideias feita por alguns dos seus “discípulos”, como Ramos (1934, 1937, 1939) e Peixoto (1898, 1938a, 1938b), por exemplo, e que consolidaram o que ou a ser chamada de “Escola Baiana”. Arthur Ramos foi um autor bastante atento e interessado nas questões raciais e nos problemas que supostamente seriam gerados pela cultura negra (Ramos, 1934, 1937). Segundo Fernando Sales, responsável pelas notas bibliográficas de Nina Rodrigues em seu livro Os africanos no Brasil, essa “Escola” teve ainda como discípulos ilustres Heitor Carrilho, Diógenes Sampaio, Oscar Freire, Alcântara Machado, Flamínio Fávero, Estácio de Lima, Ulysses Pernambucano,
No período aqui comentado, a questão racial relacionada à população negra e ao seu papel social era circunscrita de maneira genérica pela expressão “problema negro”, como presente em Rodrigues (1935) e outros autores da época. Nesse sentido, a questão de gênero não era enfatizada e, portanto, as particularidades relacionadas a essa questão não ocupava significativo espaço nesse debate.
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entre outros (Sales, 1988). As pesquisas e ações institucionais realizadas por esses atores foram de grande importância para a formação de um saber e de uma prática médico-psicológica sobre a questão racial no Brasil nas primeiras décadas republicanas. O “negro” seria “capturado” nessa rede de significações como elemento portador de certas características patologizáveis e, portanto, ível de ser “objeto da ciência”. Nina Rodrigues e a sua “Escola”, portanto, contribuíram significativamente para a incrementação de determinadas áreas de saber, como a psiquiatria e a medicina legal (Antunes, 1999; Oda, 2003; Schwarcz, 1993), a psicanálise (Costa, 2007) e a antropologia brasileiras (Corrêa, 1982, 1998). Além disso, esses intelectuais contribuíram para a difusão de certas temáticas ligadas ao racismo científico (Leite, 2002; Skidmore, 1976) ou do estudo das manifestações culturais africanas (Fry, & Maggie, 2006; Ramos, 2007). O discurso racial presente na obra de Nina Rodrigues, definidor de um padrão de normalização da sociedade – a manutenção das hierarquias –, seria substituído por um modelo de mestiçagem menos pessimista e mais viável para um país ainda em construção, cujo propósito era produzir um discurso mais eficaz, de controle, sobre esse “elemento negro”. O que vai se produzir é uma espécie de transliteração: a agem de um modelo racial para um modelo culturalista. Isso marca, no entanto, menos a mudança do “objeto” de análise que a continuidade de práticas de controle social, isto é, a determinação das positividades e/ou negatividades desse “objeto”. Um exemplo desse exercício foi a tentativa empreendida por Arthur Ramos em “atualizar” o discurso de Nina Rodrigues a partir de seu projeto culturalista, tomado emprestado do campo da antropologia.
Uma mudança de perspectiva? Pensando a cultura como salvação
Podemos afirmar que a década de 1930 e as seguintes foram caracterizadas pela difusão do modelo sociocultural de cunho freyriano – e posteriormente por sua revisão crítica. Esse período também foi determinado pelas tentativas iniciais de formalização da Psicologia como disciplina independente no ensino superior (Lourenço Filho, 1994; Brozek, & Massimi, 1998) e da produção concomitante do que poderíamos chamar de uma ainda incipiente “Psicologia Social”, como afirmam alguns autores (Bonfim, 2003; 2004; Sá, 2007). Percebe-se que os nos176
sos intelectuais (cientistas, literatos etc.) começam a criticar o modelo do determinismo racial e pensar uma alternativa para se pensar o Brasil e seus imes. As décadas iniciais do século XX foram marcadas pelo projeto político-social de um Brasil moderno, projeto construído na confluência de várias disputas e embates e que culminariam naquilo que ficou conhecido como a “Revolução de 1930”, processo histórico gerador do período denominado posteriormente de Estado Novo. A partir dessa nova ordem republicana, foi sendo fomentada a tentativa de um novo modelo de Brasil (Herschmann, & Pereira, 1994). Vemos surgir um outro olhar que gira em torno da questão da miscigenação racial brasileira, mas agora com uma roupagem positiva. Nesse período, certos autores am a discutir como essa “positividade” afetava a nossa identidade nacional e o nosso futuro enquanto nação. Gilberto Freyre (1900–1987) é considerado o principal representante desse modelo (1933; 2000). Contudo, outras análises surgiram com o mesmo propósito de sinalizar para a nossa mistura racial e seu impacto em nossa identidade nacional. Os trabalhos de Arthur Ramos de Araújo Pereira (1903–1949) seguem essa perspectiva (Ramos, 1934; 1937; 1939). Nas primeiras décadas do século ado, Arthur Ramos analisou e observou a reconfiguração das tradições africanas que, em contato com o elemento português e com os nossos grupos autóctones, influenciaram os hábitos de vida, instituições e folclore da sociedade brasileira (1934, 1937, 2007). Nos seus trabalhos voltados para essa temática, percebe-se que o autor ainda seguia os os do “mestre” Nina Rodrigues. Esse período também é o cenário da realização dos primeiros cursos universitários em que a Psicologia Social é discutida, como os ministrados pelo próprio Arthur Ramos, por Raul Briquet (1887–1953) e Donald Pierson (1900–1995). Os trabalhos de Elisabeth Bomfim (2003, 2004) afirmam que Raul Briquet ministrou o primeiro curso superior de Psicologia Social na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, ligada à Universidade de São Paulo (USP), no segundo semestre de 1933. Já o segundo curso foi de autoria de Arthur Ramos, este acontecido na Escola de Economia e Direito, na Universidade do Distrito Federal (UDF), em 1935. Segundo o próprio autor, a sua extinção deu-se no mesmo momento do fechamento dessa Universidade, em 1937 (Ramos, 1939). O projeto de divulgação e de tentativa de consolidação de um debate psicológico no Brasil avançou
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com a publicação de livros com títulos que fazem alusão ao campo. Foram publicados, respectivamente, o livro Psicologia Social, de autoria de Briquet, editado em 1935, e o livro de Ramos de Araújo, Introdução à Psicologia Social, editado em 1936. Esse livro contou com uma reedição organizada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) em 2003 (Ramos, 2003). E o terceiro curso de Psicologia Social foi realizado por Donald Pierson na década de 1940, na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Esse autor considerava que o principal fator que impedia o processo de integração do negro à sociedade brasileira era o preconceito racial (Guimarães, 2005). A década de 1950 foi marcada pelos estudos sobre relações raciais patrocinados pelo ciclo de pesquisas comparativas organizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em diferentes regiões brasileiras, ocorridos nos anos de 1951 e 1952. O objetivo de tais pesquisas era demonstrar a existência de experiências exitosas de cooperação racial no mundo. O projeto da Unesco marcou a ruptura de uma visão idílica sobre as relações raciais no Brasil e colocou em xeque a ideia de democracia racial brasileira. Os estudos iniciados a partir do projeto Unesco são aqui pensados como fatores definidores de uma nova maneira de discutir a questão racial brasileira. Não por acaso, para alguns autores, esses estudos determinaram uma outra forma de entender a questão das relações raciais, permitindo uma outra nomeação para essa problemática, ou seja, já não mais tratar-se-ia de “democracia racial” mas sim de “racismo à brasileira” (Telles, 2003) ou o “mito da democracia racial” (Guimarães, 2002). A pesquisa financiada pela Unesco, realizada na Bahia, Pernambuco, Amazonas, Rio de Janeiro e São Paulo deslocou a discussão racial brasileira do paradigma cultural freyriano para o paradigma sociológico construído por Florestan Fernandes (Maio, 2000). A etapa realizada em São Paulo foi coordenada por Roger Bastide e Florestan Fernandes, tinha o intuito investigar como se constituíam as relações raciais entre brancos e negros (Bastide, & Fernandes, 1955) e contou com a participação de três profissionais ligados ao campo psicológico: Virgínia Leone Bicudo (1915–2003), Aniela Meyer Ginsberg (1902–1986) e Otto Klineberg (1899–1992). Virginia Leone Bicudo, sob a orientação de Donald Pierson, defendeu sua dissertação de mestrado também voltada para o estudo das relações raciais (Estudo de atitudes raciais de pre-
tos e mulatos em São Paulo), recentemente publicada (Bicudo, 2010). Ginsberg (1955) realizou a investigação que teve como título Pesquisa sobre as atitudes de um grupo de escolares em São Paulo em relação com as crianças de cor. Já Otto Klineberg foi um pioneiro no campo da Psicologia Social nos Estados Unidos, inclusive participando de pesquisas sobre relações raciais nesse país na década de 1940. Logo depois de seus primeiros trabalhos nesse campo ele foi convidado a lecionar na USP como professor da disciplina de Psicologia nessa Universidade entre os anos de 1945 e 1947, publicando livros sobre Psicologia Social e relações raciais. Herdeiro e seguidor dessa tradição crítica dos estudos raciais e importante personagem do campo da Psicologia Social, Dante Moreira Leite (1927–1976) – que foi assistente de Annita Cabral na cadeira dessa área na USP – publicou livros que tratavam do problema racial (Leite, 2002; 2008). O seu principal trabalho, intitulado O caráter nacional brasileiro, foi escrito em 1954 e contou com algumas reedições em decorrência do impacto e da abrangência de sua influência (Paiva, 2000). O livro é importante porque sua questão principal é demonstrar o quanto o projeto nacional brasileiro foi marcado por uma ideologia racial. A década de 1950 marcou o declínio do que chamamos anteriormente de uma perspectiva positiva sobre a questão racial, produto de uma revisão pensada por certos intelectuais sobre as possíveis saídas para os imes que a questão racial brasileira tinha gerado em nossa sociedade. Contudo, as pesquisas realizadas pelo projeto Unesco romperam com essa perspectiva ao formularem outra leitura (mais crítica) sobre o mesmo problema (Maio, 2000). Para esses novos atores, é a desigualdade social brasileira que fomenta uma desigualdade racial, e produz o preconceito racial em nosso país. Essa década ainda seria marcada pelo surgimento dos primeiros cursos de Psicologia – ainda um misto de sociologia, Psicologia, educação e outros ingredientes misturados a esse processo alquímico –, e de um debate ora positivo, ora negativo sobre as relações raciais no Brasil.
Nem sangue, nem cultura: redemocratização política e raça como construção social
A década de 1970 começa com a conquista brasileira de mais uma Copa do Mundo e a certeza de que um “milagre” econômico brasileiro (1968–1973) estava em curso. O final dessa mesma década já aponta para 177
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o desgaste e a fragilidade de suas garantias e ideias, verificado pelo aumento da participação popular e política que buscava construir um verdadeiro projeto democrático no Brasil. Isso pode ser constatado pela ação dos movimentos sindicais do ABC paulista e pelo movimento pela anistia dos presos e exilados políticos que conseguiu aprovação da Lei de Anistia - Lei no 6.683/1979 (Brasil, 1979). Não parece ser por acaso que, em 1979, os estudos de raça e racismo no Brasil mudam radicalmente a forma de compreender as relações sociais entre negros e brancos. O trabalho do sociólogo Hasenbalg (1979) aparece como um marco dentro dos estudos sobre relações raciais no país. Assim como os trabalhos da Unesco, o autor desvela a ideia falaciosa de democracia racial e aponta para as desigualdades raciais não apenas como produto do sistema escravocrata, mas sim produto de uma sociedade racista e discriminatória naquele momento. Ou seja, Hasenbalg foi o primeiro teórico dentro da tradição dos estudos raciais brasileiros que apontou o racismo para além da função de estruturas e privilégios de classe. A tese central do autor, e que é também oposta à tese da escola paulista de sociologia, é que a raça é componente importante nas estruturas sociais, ou seja, a exploração de classe e a opressão racial se articularam como mecanismos de exploração do povo negro, e este processo resulta nas desigualdades de bens materiais e simbólicos da população negra. Hasenbalg demonstra como, através de mecanismos racistas, negros nascidos na mesma condição social que brancos tem menores possibilidades de ascensão social, além de sofrerem uma desvantagem competitiva em todas as fases da sequência de transmissão de status. Hasenbalg demonstra como a opressão racial beneficia não só capitalistas brancos como também brancos não capitalistas. Desta forma, a maioria dos brancos tem vantagens tanto com a opressão racial, quanto com o racismo, pois são os mecanismos racistas que fazem com que a população branca tenha vantagem no preenchimento das posições da estrutura de classes que comportam privilégios matérias e simbólicos mais desejados. Além disso, os brancos têm privilégios menos concretos, mas que, no entanto, são fundamentais no que se refere ao sentimento e a constituição da identidade dos indivíduos, tais como honra, status, dignidade e direito à autodeterminação (Hasenbalg, 1979). A partir deste estudo, a categoria raça a a ser compreendida pelos estudiosos do tema como constructo social, retirando qualquer caráter de cunho 178
cultural e biológico, ou seja, essencialista, das populações racializadas. Neste sentido, os estudos do campo da Psicologia também am a compreender a raça como categoria social, que constitui, diferencia, hierarquiza e localiza os sujeitos em nossa sociedade. Portanto, a partir daí as produções da Psicologia e principalmente da Psicologia Social, am a pensar o fenômeno do racismo do ponto de vista psicossocial e não psicologizante, pois não localizam no sujeito discriminado a responsabilidade pela discriminação racial que vive cotidianamente, e sim nas relações de poder entre diferentes grupos, evidenciando a força dessa categoria como fator de diferenciação e de hierarquização social. Nesse momento a Psicologia Social brasileira é chamada a responder a esse problema, principalmente por agentes dos movimentos sociais negros, e a prestar contas da lacuna em sua produção no que se refere aos estudos das relações raciais. A partir da década de 80 do século ado, surge um movimento em que o enfoque dos trabalhos tanto teóricos como de intervenção do psicólogo é concentrado nos efeitos psicossociais do racismo. Marco desta nova geração para a Psicologia é o livro Tornar-se negro: As vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social da psicóloga e psicanalista Neusa Santos Souza, publicado em 1983 e prefaciado pelo psicanalista Jurandir Freire Costa. Tornar-se negro traz um olhar analítico para os efeitos da ideologia do embranquecimento e do racismo na construção da subjetividade do negro brasileiro. E através de análises minuciosas o racismo é compreendido como uma violência no corpo e na subjetividade negra, já que nossa sociedade construiu a noção de belo, harmônico, e por fim de humano a partir dos parâmetros brancos. Ainda, este é o momento em que temos no Brasil a chamada “crise da Psicologia Social”, em que os psicólogos, que podem ser aqui representados pela figura de Silvia Lane, denunciam os usos ideológicos da Psicologia Social (de orientação norte-americana), essencialmente de base experimental, e que foi reproduzida no Brasil como uma ciência alinhada com os interesses adaptativos, alinhados ao modelo liberal e capitalista, uma ciência individualizante e sem compromisso social com a realidade brasileira e latino-americana. Um dos resultados dessa crise foi o surgimento da Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso), que procurou integrar as demandas oriundas dos movimentos sociais e de certos setores da própria Psicologia para construir uma Psicologia
Schucman, L. V.; Martins H. V. (2017).Psicologia e o Discurso Racial.
comprometida com as comunidades locais. Aqui a Psicologia é convocada a pensar nas desigualdades sociais, políticas e raciais de nosso país e com isso promover sua desnaturalização. Para nós, não parece ser por acaso que as discussões sobre uma “virada” na Psicologia ocorram no momento em que no Brasil estávamos reivindicando uma sociedade mais justa e democrática, que lutávamos pelo reestabelecimento dos direitos democráticos e pelo fim de uma ditadura militar, ou seja, os debates que ocorriam na Psicologia podem ser vistos como reverberações de questões que estavam na “ordem do dia”. Nesta mesma perspectiva, já adas algumas décadas e consolidado o processo de retomada democrática no país, com o intuito de retirar o olhar das pesquisas do negro e recolocar o problema nas relações de poder é publicado no ano de 2002 o livro Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Os capítulos são de autoria de diversos pesquisadores, e o trabalho foi organizado pelas psicólogas Iray Carone e Maria Aparecida Silva Bento. É neste livro que Maria Aparecida Silva Bento traz pela primeira vez o conceito de branquitude para a compreensão das desigualdades raciais brasileiras e demonstra os privilégios simbólicos e materiais que os brancos obtêm na sociedade brasileira, por sua vez estruturada pelo racismo. Nesta mesma obra Fúlvia Rosenberg e Edith Piza publicam o artigo Cor nos censos brasileiros, trabalho fundamental para a compreensão da dimensão histórica e social das classificações raciais e seus efeitos nas construções das identidades raciais brasileiras. A partir de então, diferentes pesquisas na área da Psicologia são produzidas com o intuito de denunciar as desigualdades raciais, compreender os modos de subjetivação do racismo nos brancos e nos negros e, por último, propor intervenções possíveis em diferentes áreas de atuação dos psicólogos (Schucman, Nunes, & Costa 2017). Dentro deste espectro de pensar a atuação do psicólogo no combate ao racismo, as diferentes produções acadêmicas surgidas a partir da década de 80 do século ado apontaram que a Psicologia tem um papel fundamental no combate ao racismo, já que o psicólogo está presente em diferentes campos da vida social onde as desigualdades raciais se ancoram, tais como: trabalho, setor organizacional, 3
educação, assistência social, justiça, clínica, entre
outros. Desse modo, com o propósito de atuar diretamente na interface da Psicologia com as vítimas do racismo, surge em São Paulo na década de 1990 duas
organizações não governamentais (ONG) que são até hoje referências para o campo da Psicologia no combate ao racismo. O Centro de Estudos das Rela-
ções de Trabalho e Desigualdades (Ceert) foi criado
em fevereiro de 1990. Uma de suas fundadoras e hoje atual diretora executiva é a psicóloga social Maria
Aparecida Silva Bento. A importância deste centro no âmbito da Psicologia social e sua interface com
a promoção de igualdade racial é ampla, pois o cen-
tro, na figura das psicólogas Maria Aparecida Silva
Bento e Edna Muniz foi fundamental para interpelar e apoiar diferentes ações no combate ao racismo nas
relações de trabalho e saúde, e principalmente articular junto a categoria de psicólogos publicações,
seminários, congressos, mesas redondas e projetos
sociais referentes à Psicologia das relações raciais. Dentre estas diferentes ações podemos destacar a publicação do Ceert no ano de 2014 em parceria com
a Casa do Psicólogo do livro Identidade, branquitude
e negritude – contribuições para a Psicologia Social no Brasil: novos ensaios, relatos de experiência e de pesquisa. Logo após, foi fundado em 1995 por um
grupo de quatro psicólogas negras, Silvia de Souza,
Marilsa de Souza Martins, Ana Maria Silva e Maria
Lucia da Silva, o Instituto AMMA Psique e Negritude.
A criação do instituto partiu do pressuposto de que, para além da via política, era necessário, para desmantelar o racismo, também desconstruir os efeitos psicossociais gerados por ele. Neste momento, as
produções da Psicologia como o trabalho de Neusa Souza Santos Tornar-se Negro e o clássico livro de Frantz Fanon Peles Negras, Máscaras Brancas já haviam demonstrado que o racismo prejudica a
saúde psíquica dos indivíduos, podendo fazê-los desenvolver sintomas psicossomáticos, inibições, impedimentos (de o, de participação), especialmente na experiência de negritude e/ ou desenvolver uma autoimagem distorcida, descolada da própria realidade e racialidades (Silva, 2016)3.
Citação da fala da atual diretora presidente da ONG Maria Lucia Silva no dia 11 de maio em conversa com autor do texto.
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Desde então, o instituto tem buscado, por meio de formação e práticas clínicas, identificar, elaborar e desconstruir o racismo e seus efeitos psicossociais4. O instituto AMMA Psique e Negritude ao lado do Ceert tem sido, nos últimos 20 anos, um dos maiores interlocutores entre movimento social organizado e a categoria de psicólogos e, desde então, tem promovido intervenções através de debate, ciclos formativos, e uma clínica psicológica com atendimentos individuais e grupais. É quando, com a articulação destas duas organizações representadas por Maria Lucia da Silva e Maria Aparecida Silva Bento juntamente com a psicóloga recifense Maria de Jesus Moura do Observatório Negro, a categoria de psicólogos, a partir dos sistemas conselhos, é pressionada a se posicionar politicamente com a luta antirracista, fruto desta articulação entre movimentos sociais e categoria – através das comissões de direitos humanos do CFP coordenada na época pelo psicólogo social Marcus Vinícius de Oliveira Silva. Em janeiro de 2002, o Sistema Conselhos lança uma campanha nacional com o slogan “preconceito racial humilha, a humilhação faz sofrer”5 divulgada em todas as sedes regionais. No mesmo ano, a psicóloga Maria de Jesus Moura, também integrante da Comissão de Direitos Humanos do CFP, propõe a elaboração de algumas normas de atuação para orientar os psicólogos relativas ao preconceito e à discriminação racial. Essas normas deram origem à Resolução nº 018/2002 (Conselho Federal de Psicologia, 2002), assinada pelo então presidente Odair Furtado. Os principais artigos desta resolução são: (i) os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a discriminação ou preconceito de raça ou etnia; (ii) os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes e nem se omitirão perante o crime do racismo; (iii) os psicólogos não se utilizarão de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminação racial e (iv) os psicólogos não se pronunciarão nem participarão de pronunciamentos públicos nos meios de comunicação de massa de modo a reforçar o preconceito racial. Estas duas ações foram o pontapé inicial para uma série de eventos, criações de grupos de trabalho e atividades de formação e sensibilização para o tema das
relações raciais e racismo dentro da categoria. E, desta forma e aos poucos, uma maior adesão de estudantes e profissionais de Psicologia em sua maioria negros e negras começam a estudar, escrever, pesquisar e intervir na e para a promoção de igualdade racial na saúde, educação, mundo do trabalho, assistência social, entre outros. Pode-se dizer que estas articulações entre movimentos sociais, categoria e universidade foram os fatores que culminaram na realização do I Encontro Nacional de Psicólogos(as) Negros(as) e Pesquisadores sobre Relações Raciais e Subjetividade no Brasil – I Psinep, ocorrido durante três dias, em outubro de 2010, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e que contou com aproximadamente 200 participantes presentes, nacionais e internacionais, e mais de 500 ouvintes a distância que aram a transmissão ao vivo. Aqui é importante ressaltar que apesar de ter sido um evento científico-acadêmico, com apoio do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da USP e do Sistemas Conselhos, a Comissão Organizadora foi composta pelas próprias organizações negras em conjunto com um instituto de Psicologia; são elas: Ceert, São Paulo – SP; Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), Belém – PA; Instituto AMMA Psique e Negritude, São Paulo – SP; Instituto Silvia Lane de Psicologia e Compromisso Social, Salvador – BA; Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras, Porto Alegre – RS; Observatório Negro (ONEG), Recife – PE; Rede de Mulheres Negras do Paraná, Curitiba – PR. Dentre os diversos resultados do I Psineo destacamos primeiramente a criação da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) (ANPSINEP) – que tem como principal objetivo garantir que o tema das relações raciais apareça de fato na agenda da Psicologia brasileira – e a redação de um documento final do encontro intitulado Carta de São Paulo (2011), assinado por todos os presentes que apontou caminhos teóricos, metodológicos e ético-políticos para os psicólogos. Citamos um trecho: [...] O racismo à moda brasileira constitui um dos mais sofisticados e enigmáticos mecanismos que operando por meio da violência sistemática e silenciada, produz e torna cada vez mais agudas as desigualdades sociais, que no Brasil, tem também um viés eminentemente racial [...].
4 Informações obtidas em conversa com a atual diretora presidente da ONG Maria Lucia Silva no dia 11 de maio de 2016 e no site http://www.ammapsique.org.br/. 5
Para maiores informações, ver em http://site.cfp.org.br/campanhas/preconceito-racial/.
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Schucman, L. V.; Martins H. V. (2017).Psicologia e o Discurso Racial.
Dessa forma, as propostas aqui elencadas [...] apontam decisivamente para um compromisso de todas(os) as(os) presentes com a construção de uma psicologia efetivamente comprometida com a superação do racismo brasileiro apontando as especificidades da contribuição da psicologia em relação a este tema (Carta de São Paulo, 2011). É, portanto, através da pressão e articulação das organizações negras e de diferentes psicólogas, mulheres negras, como Neusa Santos Souza, Edna Roland, Edna Muniz, Maria Jesus Moura, Maria Aparecida Silva Bento, Isildinha Baptista Nogueira, entre outras, que a temática das relações raciais e do racismo começa desde a década de 1980 até os dias atuais a tomar corpo na produção de conhecimento dentro da área da Psicologia, nos debates com a categoria e também na atuação dos psicólogos. E nesse sentido, vale dizer que os temas do racismo, do preconceito, dos estereótipos e da discriminação, como já demonstrado neste texto, sempre fizeram parte das grades curriculares dos cursos de Psicologia social (Santos, Schucman, & Martins, 2012). No entanto, é somente depois da década de 1980 que o tema a a ser compreendido dentro da Psicologia não apenas como um fenômeno social a ser estudado, mas sim como um fenômeno ligado às relações de poder estruturais de nossa sociedade e, portanto, uma temática que demanda comprometimento ético-político ligado aos direitos humanos e a luta antirracista. Podemos, assim, dizer que é a partir do olhar do negro para a Psicologia, e não mais da Psicologia em relação ao negro como objeto, que a Psicologia Social brasileira a a se comprometer de fato com o combate ao racismo.
Considerações finais
Pudemos ver aqui, em linhas gerais, como a questão racial esteve presente na construção histórica dos saberes psicológicos no Brasil e, consequentemente, do brasileiro ao longo de sua história. Também vimos como os saberes psicológicos se somaram a esse debate desde muito cedo, propondo maneiras de pensar e intervir sobre a questão do negro já a partir de finais do século XIX. Como afirmado anteriormente, nosso objetivo não foi produzir um estudo definitivo sobre o assunto. O foco aqui é apresentar o que consideramos como pontos capitais que podem auxiliar
em uma discussão introdutória sobre as relações entre determinada produção em Psicologia Social e a questão racial. Retratou-se, portanto, os principais eventos, ideias e atores que possibilitam a compreensão de como se deu a construção de projeto da sociedade brasileira marcado por um “credo racial”. E se nós apontamos como início desse processo os estudos de Raimundo Nina Rodrigues sobre a população africana e afro-brasileira já em finais do século XIX, fechamos esse périplo afirmando que os estudos de branquitude e branqueamento (Carone, & Bento, 2002), juntamente com a participação e pressão dos movimentos sociais negros, foram respectivamente fundamentais para a mudança de olhar da Psicologia sobre as relações raciais. Expor como o racismo constrói as identidades raciais brancas a partir de privilégios simbólicos e materiais demonstrou que estes privilégios, intencionalmente ou não, têm um papel importante na manutenção e legitimação das desigualdades raciais (Schucman, 2012). Apontamos ainda que a Psicologia se torna cada vez mais comprometida com a formação de uma sociedade mais justa e igualitária por conta de uma maior aproximação com os movimentos sociais, inclusive o movimento negro. Aqui é importante realçar que não consideramos mera coincidência que perspectivas mais progressistas na Psicologia relacionadas às questões raciais surjam no fim da década de 1970 e início de 1980, no período da luta pela anistia, das comunidades eclesiais de base, do movimento trabalhista do ABC, e, no caso da Psicologia, como já apontado anteriormente, o surgimento da Abrapso e gestões no Sistema Conselhos de Psicologia que incorporam paulatinamente as demandas levantadas e reivindicadas pelos movimentos sociais e intelectuais negros. Para isso, a Psicologia construiu novos espaços na academia e em nossa categoria profissional para que o tema do racismo seja debatido como um dos fenômenos estruturais da nossa sociedade e para a compreensão das desigualdades sociais produzidas. Apesar de a Psicologia hoje já ter construído uma variedade de trabalhos sobre esse assunto e, portanto, de conhecimento sobre a temática aqui discutida, encontramos ainda pouca atenção da categoria como um todo – principalmente no que diz respeito aos cursos de formação de psicólogos – para a compreensão e engajamento na temática e também para a produção de respostas adequadas ao que tange à redução do racismo e seus efeitos. 181
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Lia Vainer Schucman Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis – SC. Brasil. Mestrado em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutorado e pós-doutorado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, São Paulo – SP. Brasil. E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Rua: Ernesto Meyer Filho 368. Porto da Lagoa. Florianópolis – SC. Brasil. Rua Conde De Baependi, 124/604 - Flamengo. CEP: 22231-140. Rio de Janeiro – RJ. Brasil. 184
Schucman, L. V.; Martins H. V. (2017).Psicologia e o Discurso Racial.
Recebido 29/06/2017 Reformulação 29/09/2017 Aprovado 02/102017 Received 06/29/2017 Reformulated 09/29/2017 Approved 10/02/2017 Recebido 29/06/2017 Reformulado 29/09/2017 Aceptado 02/10/2017
Como citar: Schucman, L. V., Martins H. V. (2017). A Psicologia e o discurso racial sobre o negro: do “objeto da ciência” ao sujeito político. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 172-185. https://doi.org/10.1590/1982-3703130002017 How to cite: Schucman, L. V., Martins H. V. (2017). Psychology and racial discourse on black people: from “object of science” to political subject. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 172-185. https://doi.org/10.1590/1982-3703130002017 Cómo citar: Schucman, L. V., Martins H. V. (2017). Psicología y discurso racial acerca del negro: de “objeto de la ciencia” a sujeto político. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 172-185. https://doi.org/10.1590/1982-3703130002017 185
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Parecer Psicossocial da Violência contra os Povos Indígenas Brasileiros: o Caso Reformatório Krenak
Bruno Simões Gonçalves Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Resumo: A violência política contra diferentes populações indígenas durante o período da ditadura militar brasileira ainda é muito desconhecida e pouco difundida. O caso conhecido como Reformatório Krenak é um marco no processo de superação dessa invisibilidade. O presente artigo é a apresentação e análise do parecer técnico psicológico realizado para averiguar os efeitos psicossociais da violência política contra a população Krenak nesse episódio. Ele foi parte constituinte da ação do Ministério Público de Minas Gerais que pede que o Estado Brasileiro reconheça as graves violações de direito coletivo desse povo indígena e adote ações de reparação histórica. Construída dentro da terra indígena entre os anos de 1969 e 1973, o reformatório Krenak foi um centro de detenção direcionado exclusivamente para as indígenas em confronto com a lei. A partir do conjunto de entrevistas, observações de campo e pesquisa bibliográfica foi realizado o parecer que evidenciou tanto os impactos da violência política em nível individual como em nível coletivo na população Krenak. Conclui-se que esse conjunto de impactos produziu uma traumatização psicossocial coletiva nessa população. A constatação de que há um processo continuado de violência contra os Krenak enseja não só o exame de desses efeitos como abre para possibilidade de uma reparação psicossocial coletiva nessa população. Palavras-chave: Violência, Ditadura, Indígenas, Direitos Humanos, Parecer Psicossocial.
The Psychosocial Report of Violence against the Indigenous Brazilian People: The Case of the Krenak Correctional Facility Abstract: The political violence against different indigenous populations during the Brazilian dictatorship is still very unknown and little publicized. The well-known case of the Krenak Correctional Facility is a milestone in the process of overcoming this invisibility. The present article is a presentation and analysis of the psychological technical input carried out to ascertain the psychosocial effects of the political violence against the Krenak population in this episode. It was an integral part of the action of the Public Ministry from Minas Gerais, which requires that the Brazilian State recognize the extreme violations of the collective rights of these indigenous people and also the adoption of actions of historical amends. Built within indigenous land from 1969 to 1973, the Krenak Correctional Facility was a detention center intended exclusively to indigenous people who did not abide by the law. Based on the collection of interviews, field observations and bibliographical research, a report that highlighted the impacts of the political violence in individual levels as well as in collective levels in the Krenak population was carried out. Findings that suggest that there is an ongoing process of violence against the Krenak demand not only the examination of these effects but also the possibility of psychosocial collective amendments for this population. Keywords: Violence, Dictatorship, Indigenous, Human Rights, Psychosocial Reports.
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Gonçalves, B. S. (2017). Parecer Psicossocial: Caso Reformatório Krenak.
Informe Psicosocial de la Violencia contra los Pueblos Indígenas Brasileños: el Caso Reformatorio Krenak Resumen: La violencia política contra diferentes poblaciones indígenas durante el periodo de la dictadura militar brasileña es aún muy desconocida y poco difundida. El caso conocido como Reformatorio Krenak es un hito en el proceso de superación de esa invisibilidad. El presente artículo es la presentación y análisis del informe técnico psicológico realizado para averiguar los efectos psicosociales de la violencia política contra la población Krenak en este episodio. Él fue parte constituyente de la acción del Ministerio Público de Minas Gerais que pide que el Estado Brasileño reconozca las graves violaciones del derecho colectivo de este pueblo indígena y adopte acciones de reparación histórica. Construido dentro de tierra indígena entre los años 1969 y 1973, el reformatorio Krenak fue un centro de detención dirigido exclusivamente a indígenas en conflicto con la ley. A partir del conjunto de entrevistas, observaciones de campo e investigación bibliográfica, fue realizado el informe que evidenció tanto el impacto de la violencia política a nivel individual como a nivel colectivo en la población Krenak. Se concluye que este conjunto de impactos produjo un trauma psicosocial colectivo en dicha población. La constatación de que hay un proceso continuado de violencia contra los Krenak implica no solo el examen de estos efectos sino que abre la posibilidad de una reparación psicosocial colectiva en esta población. Palabras claves: Violencia, Dictadura, Indígenas, Derechos Humanos, Informe Psicosocial.
Introdução
A violência de Estado contra diferentes populações indígenas durante o período da ditadura militar brasileira ainda é muito desconhecida e pouco difundida. No capítulo dedicado às populações indígenas do relatório final da Comissão Nacional da Verdade são relatados dezenas de casos em que houve violação dos direitos humanos desses povos. Sobre a violência do Estado Brasileiro contra os indígenas, o Ministério Público Federal (MPF) escreve: Dois importantes desafios a serem enfrentados pelo Estado Brasileiro são o reconhecimento e a reparação das graves violações de direitos humanos dos povos indígenas ocorridas durante a ditadura militar (1964-1985), que por décadas permaneceram ocultas e que ainda não foram suficientemente reveladas. O pouco que já se sabe não deixa margem a dúvidas: o período autoritário foi marcado pelo extermínio, trabalho, tortura, remoções forçadas e intensa desagregação social de várias etnias, provocadas pela omissão e pela ação direta do Estado (MPF, 2015, p. 3). O caso conhecido como Reformatório Krenak é um desses episódios. Construído dentro da terra indí-
gena desse povo entre os anos de 1969 e 1973, o Reformatório foi um centro de detenção direcionado exclusivamente para os indígenas em confronto com a lei. Ao longo de quatro anos de funcionamento, recebeu indígenas de mais de 15 etnias e vindos de mais de 11 estados. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade em seu capítulo sobre os indígenas, as violações de direitos humanos coletivos dos indígenas se dividem em duas ordens de ação: usurpação do trabalho indígena, confinamento e abuso de poder; expulsão, remoção e intrusão de terra indígenas; desagregação social e extermínio. Além dessa descrição mais geral das modalidades de violação, o documento de detém mais pormenorizadamente em nove casos considerados emblemáticos: Kaiowá, Krenak, Nambikwara, Aikewara, Avá-Canoeiro, Sateré-Mawé, Xavante, Xokleng e Cinta Larga. São citados ainda mais 21 povos e é indicado que “muitos outros” aram por semelhantes processos (MPF, 2015, p. 16). O presente artigo é a apresentação e análise do parecer técnico psicológico realizado para averiguar os efeitos psicossociais da violência política contra a população Krenak nesse episódio. Ele foi parte constituinte da ação do Ministério Público Federal em Minas Gerais que pede que o Estado Brasileiro reco187
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nheça as graves violações de direito coletivo desse povo. Dado importante a ser ressaltado, segundo o Ministério Público Federal, o caso Reformatório Krenak se caracteriza por ser um crime “contra toda a humanidade” Afirma o MPF: Embora a presente ação seja estritamente de natureza cível, é relevante destacar que os atos ilícitos aqui analisados constituem crime contra a humanidade. Daí porque merecem o máximo repúdio pela Justiça Federal como forma não só de reparação de vítimas, mas acima de tudo para impedir que episódios tais se repitam no futuro. Outra consequência dessa qualificação é a de que os crimes contra a humanidade não estão sujeitos ao instituto da prescrição [...]A expressa punição dos crimes contra a humanidade foi prevista, pela primeira vez no artigo 6.c do Estatuto do Tribunal de Nuremberg. Foram qualificados como crimes dessa gravidade o extermínio, a escravização, a perseguição por motivos raciais e a deportação, entre outros (MPF, 2015 p. 80). Com base nos estudos realizados pela Psicologia Social sobre os impactos psicossociais da violência política, em suas diferentes expressões, nas populações e nos indivíduos atingidos, foi desenvolvida a noção de traumatização psicossocial coletiva. Para o desenvolvimento dessa categoria, utilizamos os seguintes estudos: impactos psicossociais da violência política em suas diferentes expressões: impactos psicossociais da violência política em comunidades rurais tradicionais, camponesas e indígenas (Arantes, 2006; Dias, 2015; Oliveira 1998; Paraíso, 1989; Reis, 2011; Silva, 1992); impactos psicossociais das práticas políticas próprias das ditaduras latino-americanas, em especial trabalhos do psicólogo Martín-Baró (Beristain, 2007; Dobles, 2009; Madriaga, 2002; Martín-Baró, 1984a; Pedersen, 2006;). A traumatização psicossocial coletiva é um conjunto de sintomas psicossociais gerados em uma coletividade a partir de um processo histórico caracterizado por intensa violência política. A manifestação desses sintomas pode ser de ordem individual e coletiva. No caso dos sintomas individuais, é importante ressaltar que o psiquismo individual é personalização do sujeito social. São demonstrados casos nos quais a traumatização psicossocial coletiva se cristalizou em sintomas e pato188
logias psíquicas individuais. Ou seja, são os casos em que o impacto psicossocial da violência política se singulariza e se manifesta através de adoecimento psíquico individual. Já no caso dos efeitos psicossociais coletivos se expressam através do impacto causado na vida do grupo. Para tal análise, dividiu-se essa dimensão em dois momentos. O primeiro refere-se a fatos, personagens ou sentimentos coletivos oriundos da vida social recente do Krenak. O segundo, refere-se aos efeitos sobre conjunto de práticas socioculturais e nos valores ético-espirituais Krenak, sua cultura tradicional. A traumatização psicossocial coletiva é um processo que se estrutura a partir de alguns marcos:
Trauma psicossocial
Partindo do pressuposto de saúde mental como um problema de relações sociais, Martín-Baró (1984b) apresenta a categoria de trauma psicossocial. Para esse autor, a prática da violência política gera um conjunto de prejuízos individuais e coletivos em diferentes dimensões, que se caracterizam como sintomas psicossociais, que são a “cristalização traumática nas pessoas e nos grupos das relações desumanizadas” (Martín-Baró, 1984b, p. 123).
Heterogeneidade
Outro aspecto importante para a caracterização do trauma psicossocial levantada por Martín-Baró (1984b) é seu caráter heterogêneo. Segundo o autor, o trauma psicossocial não pode ser compreendido como uma expressão mecânica e uniforme. Dado seu caráter histórico e multideterminado, ele se manifesta de maneira diversa no universo das relações sociais, tornando também diversa a intensidade de suas expressões e de seus efeitos.
Sequencialidade do trauma
Juntamente com a noção de trauma psicossocial levantada por Martín-Baró (1984b), uma importante contribuição para a compreensão de processos traumáticos é seu caráter sequencial (Keilson, 1992). Isso significa que ele pode se realizar como um processo histórico no qual diferentes experiências traumáticas podem ir se acumulando em sequência, intensificando e tornando mais complexo o mesmo processo de traumatização psicossocial coletiva. No caso em tela, há uma remoção da população Krenak para a
Gonçalves, B. S. (2017). Parecer Psicossocial: Caso Reformatório Krenak.
Fazenda Guarani em Carmésia (MG), que ocorre como consequência da criação do reformatório. O retorno e permanência em situação extremamente precárias até a devolução oficial de suas terras também são considerados momentos sequenciais da traumatização.
Transgeneracionalidade
Um último aspecto a ser levantado para a caracterização do processo de traumatização psicossocial coletiva é sua transgeneracionalidade, ou seja, a expressão dos efeitos do trauma psicossocial nas gerações seguintes àquelas que sofreram diretamente com a violência política (Brinkman, 2009; Espinoza, & Rodriguez, 2006; Faúndez, & Cornejo, 2010, Iosa et al., 2013; Scapuzio, 2002). Essas diferentes características dos processos traumáticos até aqui elencadas formam, em seu conjunto, a estrutura da traumatização psicossocial coletiva.
Método
Para obter informações e dados necessários ao presente trabalho, realizamos as seguintes atividades: a) Exame do processo judicial como um todo, identificando a presença de elementos que apontem para os impactos psicossociais nos indivíduos e no conjunto do povo Krenak. b) Levantamento de literatura científica: estudos sobre impactos psicossociais da violência política em suas diferentes expressões, com ênfase em comunidades rurais tradicionais, camponesas e indígenas e nos efeitos da violência própria das ditaduras latino-americanas. c) Duas viagens de campo à Terra Indígena Krenak, local onde funcionou o Reformatório. No total, as viagens somaram dez dias em campo. Nas viagens foram utilizadas técnicas de base etnográfica (Souza, 2014). Foram realizadas 23 entrevistas ao longo das duas viagens de campo. O conjunto de entrevistas realizadas nas duas viagens de campo soma aproximadamente 20 horas. Também foi examinado o conjunto de entrevistas realizadas pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em Minas Gerais como parte do processo. O conjunto das entrevistas soma aproximadamente 8 horas. As entrevistas seguiram duas modalidades: entrevistas individuais e entrevistas em grupo. Em ambas
as modalidades foi utilizada a forma de entrevistas semiestruturada. No total, foram entrevistadas 21 pessoas, sendo 15 homens e seis mulheres. As idades variaram de 20 a 105 anos. O critério para a escolha dos entrevistados foi: proximidade com o Reformatório, notório saber e idade. As entrevistas seguiram os seguintes marcos temáticos: enfoque biográfico com ênfase em acontecimentos relativos ao Reformatório; narração de acontecimentos relevantes; descrição do cotidiano e de atividades de trabalho. As entrevistas foram realizadas em sua quase totalidade na casa dos entrevistados.
Contexto socioafetivo das entrevistas
Um aspecto importante a ser destacado foi a afetividade presente no momento das entrevistas. Pode-se afirmar que houve um contexto socioafetivo comum que envolveu as entrevistas. As características gerais apresentadas foram:
Grande intensidade emocional
De maneira geral, a atmosfera das entrevistas sempre esteve envolvida por grande intensidade emocional. Expressões como choro, voz embargada, expressões corporais de retraimento, olhar vago ou assustado e quebra na continuidade do discurso foram algumas expressões de afetividade intensa que apareceram com frequência. Em alguns momentos, essas expressões se tornaram ainda mais intensas.
Tensionamento socioafetivo
Outra característica que se evidenciou foi a contradição no posicionamento dos entrevistados no momento das entrevistas. Por um lado, os entrevistados pareciam estar cientes da importância de contribuir para o trabalho, por outro havia uma resistência persistente ao longo dos depoimentos. Ou seja, havia um tensionamento entre a vontade e a dificuldade de falar dessas memórias.
Resultados
Com base na consulta à literatura científica, nas observações de campo e na análise das entrevistas realizadas, é possível afirmar que a violência política do Reformatório Krenak e sua sequencialidade produziram um intenso impacto psicossocial na população Krenak. 189
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Esse impacto desencadeou um conjunto de efeitos psicossociais, que se expressam tanto na dimensão individual como na dimensão coletiva do modo de vida Krenak. Na dimensão individual, quatro casos emblemáticos explicitaram os danos psicológicos da violência sofrida. São casos de grave desintegração psicofísica, que explicitam a singularização dos efeitos da violência. Na dimensão coletiva, foram encontrados efeitos em duas dimensões: vida social recente e cultura tradicional. No caso da vida social recente, foram elencados marcos sociais que evidenciam o efeito psicossocial da violência. Esses marcos sociais são fatos, dinâmicas e histórias pessoais que estão presentes na memória do grupo como um todo e que remetem diretamente à experiência da violência sofrida. No caso da cultura, foi possível identificar o impacto psicossocial do Reformatório no conjunto de práticas socioculturais e nos valores ético-espirituais – cosmovisão – Krenak, elementos fundamentais para esse povo se reproduzir socialmente e se afirmar como povo diferenciado. Esse conjunto de efeitos encontrados é responsável por humilhação social, rebaixamento na sociabilidade comunitária e diminuição aguda de práticas da cultura tradicional. Tais sintomas são responsáveis por graves prejuízos psicológicos ao povo Krenak, constituindo um processo de traumatização psicossocial coletiva extrema que afeta todos os âmbitos da vida social dessa população.
Discussão Impactos na dimensão individual
A partir das entrevistas e da observação de campo, foi possível recolher informações que apontaram para prejuízos psicológicos individuais na vida e na estrutura socioafetiva familiar de pessoas pertencentes ao grupo Krenak. Foram relatados quatro casos que evidenciam o impacto psicossocial da violência política. O primeiro caso se refere a José1, importante liderança dos Krenak na época do Reformatório. Segundo depoimentos que contam o trajeto de vida de José, é evidente a manifestação de uma gradativa desintegração psíquica devido à presença de militares em sua terra, em um primeiro momento, e ao deslocamento compulsório dos Krenak para a fazenda Guarani, em um segundo momento. A essa constante inferiori1
Os nomes são fictícios.
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zação – que se estendeu por anos – e à subtração de elementos centrais da cultura Krenak, somou-se a ausência de perspectiva de retorno à terra tradicional após a expulsão. Ao que tudo indica, esse conjunto de determinações foi responsável pelo gradativo prejuízo psicoafetivo de José, desencadeando um possível quadro de depressão, que culminou no aparecimento de distúrbios orgânicos que o levaram à morte´ Como explica um depoente: Tem parente nosso que morreu aí em outras aldeias sem ter problema de saúde, sem nada, morreu depressivo mesmo. Vocês usam falar depressão, né? Morreu assim, apaixonado mesmo, por causa de uma coisa que atrapalhou toda a vida. Nos Guarani [Fazenda Guarani], por exemplo, tem o José que morreu assim. O segundo caso – construído a partir de depoimentos – é o de João, liderança Krenak que se opunha fortemente às forças militares-policiais responsáveis pela extrema diminuição populacional dos Krenak ao longo de todo o século ado. Esse enfrentamento ocasionou intensa violência militar-policial contra João durante os anos do Reformatório. Como elemento agravante, João teve três filhas que serviram no Reformatório, trabalhando em serviços gerais, principalmente na cozinha. São lembradas constantemente como importantes testemunhas da vida no interior do Reformatório. Vivendo na Fazenda Guarani, em Carmésia, João a a apresentar severo delírio paranoico de perseguição. Assim sendo, é evidente o grave impacto psicossocial da violência política na saúde mental de João, deflagrado na forma de um transtorno psíquico que comprometeu gravemente sua vida. João – muita gente falava que era louco. Isso foi uma doença da polícia que ou pra ele [...]. O Joaquim Grande dormia às quatro hora da manhã. Isso eu vi. Eu vi isso. Depois que os arinho começava aquele canto do dia amanhecendo. Ele ficava na beira do fogão desse jeito aqui [coloca a mão entre as pernas, arregala os olhos e começa a balançar], ficava sentado. Em toda casa que ele ia morar, ele reforçava as fechadura. Ele não dormia e ficava com a lança do lado.
Gonçalves, B. S. (2017). Parecer Psicossocial: Caso Reformatório Krenak.
O terceiro caso é o de Luís, indígena que apresenta elementos evidentes de adoecimento psíquico relacionado à violência sofrida na infância e na adolescência, como consequência da presença militar no território Krenak e na Fazenda Guarani. Os diferentes relatos de castigos, trabalho forçado, “treinamento” forçado, proibições e tortura psicológica durante a infância levaram ao gradativo agravo da saúde mental de Luís. Os episódios de agressividade com as mulheres e com os filhos, além de episódios isolados de violência contra crianças da aldeia, evidenciaram seu sofrimento psicoafetivo agudo. Com base no conteúdo dos delírios persecutórios de Luís – soldados e elementos relacionados à guerra como movimentos estratégicos, gritos de ordem e armas –, é possível afirmar que a perda da integridade mental está diretamente ligada ao episódio do Reformatório e sua sequencialidade. O caso de Luis foi recolhido através de depoimentos. Contava que um batia assim [faz sinal de agressão na área lateral do abdome] e outro assim [mostra o rosto]. Ele [Nadil] pequeno e Zezinho Eles eram os dois que levavam a turma, tipo lideranças, toda comunidade tem, né? Até em comunidade de brancos tem, né, pessoas que se sobressaem das outras também, né, então isso de levar eles pra ver bater [nos presos]. Ele tinha oito anos nessa época [...] Além de bater, eles levavam no outro dia pra ver como que fica. Diz ele que o homem tava com o olho todo esbogaiado pra fora. Diz que esse homem sumiu. Esse índio sumiu depois. O Zezinho também viu tudo isso, que eram os dois que eles botavam pra ver. Todos eles viram, todos eles foram perseguido. O quarto caso é o de Paulo e Ana e demonstra de maneira evidente o grave impacto psicossocial na saúde mental e na estrutura socioafetiva familiar de ambos. Desencadeado como consequência direta da expulsão do território tradicional, o surto psicótico de Ana manifestou-se claramente a partir de sintomas como delírios e alucinações, assim como episódios de intensa agressividade (tentativa de suicídio e ameaça à vida de outros), até culminar com o assassinato do próprio filho. Após esse episódio inicia-se um período de muita violência intrafamiliar, culminando na morte de mais um filho por assassinato, dessa vez praticado por outro irmão.
O sofrimento extremo de Paulo com essa situação também é evidente. Paulo foi internado devido ao desgaste mental ocasionado pela morte dos filhos. O conjunto de ocorrências de violência extrema entre os filhos do casal, evidencia a transgeneracionalidade da traumatização psicossocial coletiva. O caso de Paula e Ana contou com o depoimento do próprio Paulo – e outros – assim como observação de campo. Ela ficou ruim da cabeça. Ela chegou [na Fazenda Guarani] vendo peixe, vendo marimbondo assim no corpo. Perdeu até o resguardo dela. Via pena agarrado na roupa, marimbondo mordendo nela. Isso já está com muitos anos que ela ficou assim. Ela é ruim até hoje. [...] Fica falando que quer morrer no rio. Meus três filhos mais velho faleceram aqui mesmo. Eu fiquei muito tempo em tratamento, me tratei muito tempo na Funai. Eu fiquei fora do juízo. Me levaram até Valadares, eu fui sem saber.
Impactos na dimensão coletiva Impacto psicossocial na vida social recente dos Krenak
Com base nas entrevistas e na observação de campo, foi possível identificar alguns marcos sociais da vida social recente do grupo que remetem à época da violência política do Reformatório. Seu Antônio Seu Antônio é o Krenak mais velho da aldeia e relata em suas memórias a violência política ainda anterior ao período do Reformatório. Já nesse momento, Antônio relata episódios de tortura, humilhação e expulsão da terra. Os relatos de Seu Antônio durante a entrevista realizada desencadearam uma série de reações emocionais em seus parentes: choro, silêncio compenetrado e algumas reações psicofísicas, como intensas dores de cabeça e relatos de adormecimento de mãos e pés. A trajetória dele é uma experiência que toca fundo na experiência coletiva dos Krenak e é claramente vivenciada pelas pessoas como uma violência que atingiu a todos os Krenak. A vida de Seu Antônio é lembrada como um símbolo desse conjunto de variadas vivências de humilhação 191
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social, dor física e dor psicoafetiva extrema a que foi sujeitado todo povo, sendo um marco da memória coletiva Krenak. Segundo Gonçalves Filho (1998) a humilhação social é “a humilhação crônica, longamente sofrida pelos pobres e seus ancestrais, é efeito da desigualdade política, [...]. Como tal, trata-se de um fenômeno ao mesmo tempo psicológico e político. O humilhado atravessa uma situação de impedimento para sua humanidade”. Seu José A trajetória de vida de José, por sua experiência de liderança e pela relação intensa com a cultura e a religiosidade Krenak, é outro marco social importante na memória coletiva desse povo. A história de vida de José é apontada com frequência como um exemplo da singularização da humilhação social produzida pela violência política a todo o povo Krenak. A trajetória de José é lembrada como um símbolo da gradativa violência contra o povo, desde suas prisões por motivos banais, ando por sua expulsão algemado e culminando em sua morte e no sepultamento longe de sua terra de origem. Conhecido pela sua capacidade guerreira e altiva, pode-se afirmar que José é um marco que simboliza a humilhação social dos Krenak, concretizando um impacto psicossocial que está presente nas relações interpessoais até hoje e que modula a relação dos Krenak com a sociedade não indígena. A violência contra a infância Um fato emblemático muito importante em relação à violência militar-policial sofrida é a história do menino que foi amarrado ao cavalo para ser arrastado. Segundo variados relatos, após descumprir uma das regras estabelecidas sobre os horários escolares, amarraram uma criança a um cavalo que foi estimulado a sair correndo. Lembrada inúmeras vezes nas entrevistas, essa história é uma das marcas sociais mais presentes na memória coletiva recente do povo Krenak: Esse meu primo, até hoje eu lembro dele e fico muito triste. O menino ficava jogando aquela coisinha, pelota, aí ele foi pescar. Ele [o militar] queria porque queria que ele fosse pra escola. Mas ele foi pescar pra fazer mistura, né. Essa polícia foi lá atrás dele, buscar ele. Ele vinha correndo na frente do cavalo. Não foi só uma vez não. 192
Pode-se afirmar que é essa história que se cristalizou na memória coletiva dos Krenak, operando como símbolo maior dessa modalidade de violência. O fato evidencia o alto nível de brutalidade e tortura contra a infância na memória coletiva dessa população O trabalho análogo à escravidão, a proibição de brincar no rio e o constrangimento de testemunhar espancamentos também são lembrados como momentos de violência dirigida contra as crianças. Nesse sentido, a história do menino amarrado ao cavalo se estabelece como um marco que representa o conjunto dos atos de violência contra a infância Krenak. Capitão Pinheiro e violência policial A presença da violência policial é, sem dúvida, o fenômeno que mais fortemente aparece como marco da memória coletiva do povo Krenak. Uma das formas em que se cristaliza a imagem dessa violência é na figura do capitão Pinheiro (Manoel dos Santos Pinheiro, capitão da Polícia Militar do estado de Minas Gerais), lembrado como o comandante oficial, o mandante das ações de controle e ordem que regiam o funcionamento do Reformatório. A figura do capitão Pinheiro torna-se, assim, um emblema que simboliza a totalidade da humilhação social que atingiu o povo Krenak. Ele representa a síntese tanto da violência cotidiana imposta à população na época do Reformatório como da violência em seu sentido mais amplo, ou seja, das forças do Estado impondo-se sobre os Krenak, expulsando-os de seu território, apoiando os fazendeiros que invadiam a terra e organizando uma instituição de repressão política no interior de seu território tradicional. Pode-se afirmar que a violência policial não é uma marca presente apenas em algum aspecto específico da memória coletiva do povo Krenak. Pelo contrário, é um fenômeno que está presente em toda a memória recente do povo Krenak, podendo-se afirmar que, após o episódio do Reformatório, Krenak ou a ser indissociável do período de violência que marca de forma central a existência social desse povo.
Impacto psicossocial na cultura tradicional
A partir da realização de entrevistas e da observação de campo, foi possível identificar os impactos psicossociais da violência política na cultura tradicional Krenak. Identificada pelos entrevistados como “cultura Krenak”, a cultura tradicional refere-se ao
Gonçalves, B. S. (2017). Parecer Psicossocial: Caso Reformatório Krenak.
conjunto de práticas sociais e valores ético-espirituais – sua cosmovisão e concepção de humanidade – que se formaram ao longo da história do povo Krenak. Língua As ações violentas com o objetivo de extinguir a língua Krenak e a tentativa de que os indígenas assem a falar exclusivamente português apresentam as características próprias da estratégia de violência de Estado com objetivo de integração de uma determinada população etnicamente diferenciada. Estratégias como proibição do uso cotidiano da língua-mãe, aulas forçadas da língua nacional, castigos de diversas ordens para forçar o abandono da língua-mãe e repressão de práticas da cultura tradicional nas quais a língua é um elemento importante evidenciam esse objetivo de integração. A língua é um elemento fundamental da cultura tradicional Krenak, sendo o veículo privilegiado, quando não o único, de uma fração importante de sua cultura tradicional. Ao proibir a língua, as forças militares-policiais causaram um enfraquecimento agudo de práticas socioculturais centrais, sua cosmovisão e concepção de humanidade. Sem a língua, principal elemento mediador das práticas tradicionais, há uma redução na frequência dessas práticas, que já não podem ser realizadas pela ausência desse elemento constituinte e fundamental. Dessa forma, a perda forçada das práticas e dos valores tradicionais pode ser considerada como resultado do impacto psicossocial da violência política no período do Reformatório e sua sequencialidade, contribuindo significativamente para a traumatização psicossocial coletiva. Território Outro aspecto central da cultura tradicional Krenak é a relação dos indígenas com seu território tradicional. Considerado como espaço formado por processos sociais que incluem a natureza em suas dinâmicas, o território e formado por processos históricos. A cultura tradicional Krenak se expressa através de saberes e práticas que estão guardadas na memória ancestral do grupo. Essa memória, produto da trama histórica, está expressa nos diferentes elementos da biodiversidade do território: as matas, as grutas, os rios, o peixe, a caça. É facilmente notada a relação dos Krenak com a mata, com o rio e com os demais elementos que formam o território. A cultura tradicional Krenak em seus
principais fundamentos – artesanato, língua, espiritualidade – está intimamente ligada ao território tradicional e ao uso de seus recursos. Com a invasão de suas terras tradicionais por fazendeiros, há uma devastação acentuada do ecossistema local com a retirada de boa parte da cobertura vegetal para criação de pastos para gado. Além disso, a ausência de árvores diminuiu drasticamente o volume do rio e de animais silvestres. Essa transformação no ecossistema da terra indígena acarreta, uma diminuição no universo que ancora o repertório cultural e psicossocial dos Krenak. Isso implica em graves consequências para a reprodução de seus valores e costumes tradicionais. Dessa forma, é possível afirmar que a impossibilidade de dar continuidade à cultura tradicional – expressa no território – está diretamente relacionada ao sofrimento psicossocial coletivo dessa população. Religião Outro aspecto fundamental da cultura tradicional Krenak é a religião tradicional. Pode-se afirmar que a cosmovisão Krenak e seus valores ético-espirituais são os princípios que estão no centro da identidade Krenak e de sua concepção de humanidade. A partir da prática religiosa central de comunicação com os maret – espíritos protetores –, são realizados os casamentos, os rituais fúnebres e os momentos de celebração próprios do modo de vida Krenak. A espiritualidade centrada na existência dos maret é tão forte para os Krenak que a própria noção de humanidade é concebida a partir da existência deles. Segundo relatos ouvidos, a humanidade Krenak se iniciou quando um grupo de indígenas, ao caminhar pela mata de maneira desordenada e sem encontrar nenhuma comida, parou na beira do rio e pediu ajuda aos espíritos dos maret, que ensinaram os indígenas a plantar e pescar. Desde então, desse primeiro contato com os maret, os Krenak se tornam humanos. Os relatos deixam evidente a proibição de qualquer expressão que remetesse à religiosidade tradicional. Os Krenak foram impedidos de realizar seus rituais na beira do rio e do fogo, realizar suas incursões pela mata com objetivos religiosos e de transmitir seus valores ético-espirituais para os mais novos. Com base nesses elementos, é possível afirmar que o impedimento das práticas religiosas atinge o epicentro da cultura tradicional Krenak, sua concepção de ser humano. Para os Krenak, a própria con193
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dição humana, a própria cultura humana depende dessa relação entre homens e maret.
Conclusão
A realização do parecer psicossocial sobre o Reformatório Krenak é um trabalho que concretiza a participação da ciência psicológica no campo dos direitos humanos coletivos. O Ministério Público Federal, ao solicitar a averiguação dos impactos psicossociais da violência de Estado contra as populações Krenak, reconhece a importância da dimensão psicossocial coletiva para o campo dos direitos humanos. O reconhecimento da dimensão psicossocial do caso Reformatório Krenak abre a possibilidade para o reconhecimento dessa dimensão em outros casos de violência do Estado brasileiro contra as populações indígenas. Dados da Comissão Nacional da Verdade (Brasil, 2014) indicam que a violência do estado atingiu inúmeros povos em todo o país. Ou seja, há muitos casos de violação de direitos em que a Psicologia pode contribuir apontando os efeitos psicossociais sobre as populações atingidas. Outra possibilidade aberta a partir da realização do parecer são estudos sobre o impacto psicossocial de ações do Estado em distintas populações. Camponeses, povos tradicionais e populações atingidas por barragens e por desastres ambientais também foram vítimas de violência de Estado. Um aspecto importante a ser ressaltado como desdobramento da realização desse documento é a possibilidade de construção de uma ação profissional da Psicologia que aponte caminhos de superação e reparação
dos efeitos oriundos da violência política. Nesse sentido, com base na realização do parecer psicossocial, é possível apontar algumas diretrizes fundamentais em um processo de reparação psicossocial coletiva: • O conjunto de ações deve ser estabelecido a partir do reconhecimento dos diferentes níveis que os efeitos psicossociais podem tomar: individual, familiar, intergrupal e da comunidade como um todo. As ações devem ser realizadas tendo como foco as distintas dimensões dos efeitos coletivos. • As ações devem levar em consideração o conjunto de saberes da população atingida. O repertório de práticas terapêuticas – individuais e coletivas – mantidas e desenvolvidas pela comunidade para sua coesão socioafetiva e saúde coletiva deve ser incorporado e articulado às ações da Psicologia. • As ações da Psicologia devem buscar interlocução com outras áreas de conhecimento que estão presentes em trabalhos com a população que teve seus direitos violados. • A traumatização psicossocial coletiva das populações por violência de Estado é um fenômeno que produz efeitos que ainda não foram reconhecidos. À medida que a dimensão coletiva dos direitos humanos a a ser identificada, os aspectos psicossociais desses processos traumáticos também ganham maior visibilidade. A Psicologia pode contribuir apontando como esses fenômenos se constituem e indicando como, para além da dimensão individual, se desenvolvem processos coletivos de traumatização.
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Bruno Simões Gonçalves Pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica – RJ. Brasil. E-mail:
[email protected] Recebido 30/06/2017 Reformulação 30/09/2017 Aprovado 02/10/2017 Received 06/30/2017 Reformulated 09/30/2017 Approved 10/02/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 30/09/2017 Aceptado 02/10/2017
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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 186-196.
Como citar: Gonçalves, B. S. (2017). Parecer Psicossocial da Violência contra os Povos Indígenas Brasileiros: o Caso Reformatório Krenak. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 186-196. https://doi.org/10.1590/1982-3703140002017 How to cite: Gonçalves, B. S. (2017). The Psychosocial Report of Violence against the Indigenous Brazilian People: The Case of the Krenak Correctional Facility. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 186-196. https://doi.org/10.1590/1982-3703140002017 Cómo citar: Gonçalves, B. S. (2017). Informe Psicosocial de la Violencia contra los Pueblos Indígenas Brasileños: el Caso Reformatorio Krenak. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 186-196. https://doi.org/10.1590/1982-3703140002017 196
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 197-207. https://doi.org/10.1590/1982-3703150002017
Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra na Transição Democrática Brasileira Jáder Ferreira Leite Universidade Federal do Rio Grande do Norte, RN, Brasil.
Magda Dimenstein Universidade Federal do Rio Grande do Norte, RN, Brasil.
Candida Maria Bezerra Dantas Universidade Federal do Rio Grande do Norte, RN, Brasil.
Resumo: Dois agentes de mediação na luta pela terra se destacaram no período de democratização da sociedade brasileira: a Comissão Pastoral da Terra (T) e o Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). O presente texto discute a atuação do MST, tomando como base de diálogo o Construcionismo Social, a fim de reconhecer como as práticas discursivas veiculadas por ele foram capazes de se converter em práticas sociais geradoras de sentidos junto aos trabalhadores e trabalhadoras do campo. As reflexões apontam que o MST investiu na unidade identitária de sua base social, produzindo a figura discursiva do sem-terra e avançando politicamente enquanto destacado movimento social no processo de democratização. Palavras-chave: Construcionismo Social, Práticas Discursivas, Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra.
Discursive Practices in the Struggle for Land in the Transition to Democracy in Brazil Abstract: Two mediating agents in the struggle for land during the democratization of Brazilian society stand out as particularly relevant: the Pastoral Land Commission (T) and the Landless Rural Workers’ Movement (MST). This article discusses the actions taken by the MST, dialoguing with a Social Constructionist view, aiming to recognize how the discursive practices presented were converted into social practices that generated meanings among the workers in general and rural workers in particular. These reflections suggest that the MST invested in the unified identity of its social base, producing the Landless subject as a discursive figure, and advancing politically as a noteworthy social movement in the process of democratization. Keywords: Social Constructionism, Discursive Practices, Landless Rural Worker’s Movement.
Disponível em www.scielo.br/p
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 197-207.
Prácticas Discursivas sobre la Lucha por la Tierra en la Transición Democrática Brasileña Resumen: Dos agentes de mediación en la lucha por la tierra se destacaron en el período de democratización de la sociedad brasileña: la Comisión Pastoral de la Tierra (T) y el Movimiento de Trabajadores y Trabajadoras Rurales Sin Tierra (MST). El presente texto discute la actuación del MST, tomando como base de diálogo el Construccionismo Social, a fin de reconocer cómo las prácticas discursivas vehiculadas por él fueron capaces de convertirse en prácticas sociales generadoras de sentidos junto a trabajadores y trabajadoras del campo. Las reflexiones apuntan que el MST invirtió en la unidad identitaria de su base social, produciendo la figura discursiva del Sin Tierra y avanzando políticamente como destacado movimiento social en el proceso de democratización. Palabras claves: Construccionismo Social, Prácticas Discursivas, Movimiento de Trabajadores y Trabajadoras Rurales Sin Tierra.
Introdução
O projeto de desenvolvimento adotado pelos governos militares brasileiros (1964–1985) teve um profundo impacto no meio rural. Tal projeto, que objetivava promover a abertura ao capital estrangeiro, diminuir a ação do Estado e desencadear crescimento econômico, aliava-se a uma política de arrocho salarial, quebra de alguns direitos trabalhistas e profunda repressão a entidades sindicais (Schawarcz, & Starling, 2015) no campo e na cidade. Nesse sentido, os projetos desenvolvimentistas governamentais e particulares de empresas agropecuárias a fim de atender o mercado externo, a construção de grandes obras, a exemplo da rodovia Transamazônica e de hidrelétricas, bem como as práticas de grilagem de terras de áreas devolutas geraram a expulsão de inúmeros habitantes de seus territórios de vida e trabalho: áreas de posseiros, reservas indígenas, comunidades ribeirinhas, áreas rurais em que os trabalhadores mantinham acordo com seus proprietários para morar e trabalhar (Silva, 1997). Tal fato agravou ainda mais a situação de inúmeros trabalhadores do campo, levando-os a processos de mobilização e de luta por terra. No entanto, se os inúmeros atores envolvidos nas ações de luta no campo brasileiro encontravam
dificuldades em tornar a reforma agrária um projeto político a ser efetivado, com a ditadura civil-militar de 1964, tal pleito mergulhou num desmonte das entidades de luta, perseguição, prisões e assassinato de suas lideranças e levou os militares a conduzir, sob seus termos, um plano de desenvolvimento para o meio rural que combinava uma maior concentração fundiária ao investir na aliança terra e capital (Martins, 2000), bem como em projetos de colonização que visavam minimizar os conflitos no campo e promover a ocupação do território nacional1. Das investidas iniciais do regime militar que produziram o “milagre econômico”, com os fortes investimentos de capital estrangeiro, seguiram-se difíceis momentos de recessão, oriunda do cenário de crise internacional por conta do preço de petróleo, atingindo fortemente os segmentos médios brasileiros e grande parcela da população assalariada, fatores que aram a tornar o regime bastante impopular (Schwarcz, & Starling, 2015). Aliado a isso, a impopularidade dos militares avançava em meio aos inúmeros casos de assassinato cometidos contra jornalistas, estudantes e lideranças, de modo a se produzir uma mobilização pelo fim do regime e pressão em favor da abertura política.
1 Outra iniciativa relativa à questão agrária do período militar foi a edição, em novembro de 1964, do Estatuto da Terra, mas que, segundo Martins (2000), não chegou a ser efetivado.
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Leite, J. F.; Dimenstein, M.; Dantas, C. M. B. (2017). Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra.
Dois agentes de mediação na luta pela terra se destacaram no período de democratização da sociedade brasileira: a Comissão Pastoral da Terra (T) e o Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). A primeira surge ainda em meio ao regime ditatorial, no ano de 1975, no âmbito de uma linha marcadamente progressista da Igreja Católica e o segundo, a partir da T, se organiza em torno da busca de uma unidade de luta marcadamente política em torno do clima gerado pelas mobilizações em torno da democratização do país (Leite, & Dimenstein, 2011). Desse modo, o presente texto objetiva discutir a atuação do MST no período de democratização, tomando como base de diálogo o Construcionismo Social, a fim de reconhecer como as práticas discursivas veiculadas por esse agente foram capazes de se converter em práticas sociais geradoras de sentidos junto aos seus integrantes: trabalhadores e trabalhadoras em luta no campo. Inicialmente, apresentamos algumas observações acerca do Construcionismo Social enquanto importante movimento que impactou o campo da Psicologia Social, especialmente por sua dimensão crítica no processo de produção de conhecimento, bem como do lugar de destaque dado à linguagem enquanto prática social capaz de promover novos sentidos e efeitos de subjetivação. Nessa seção, apresentamos ainda os aspectos metodológicos do presente trabalho pela eleição de um documento público (Spink, 2013), qual seja, o Jornal dos Trabalhadores Sem Terra, de fevereiro de 1985, que trata de uma edição especial sobre o I Congresso Nacional dos Trabalhadores Sem Terra, ocorrido na cidade de Curitiba-PR, de 29 a 31 de janeiro de 1985, e que nos permite uma aproximação aos contextos discursivos em voga no tocante à questão da terra. Num segundo momento, tratamos de situar o MST como um movimento que, oriundo da T, ampliou sua forma de luta política, incrementou sua estratégia discursiva para além das singularidades dos atores do meio rural com vistas à produção de uma unidade no tocante ao enfrentamento da questão agrária.
O Construcionismo Social como perspectiva crítica no campo da Psicologia Social
Embora o Construcionismo Social se refira a um movimento de algumas áreas do conhecimento, a saber, a filosofia, a sociologia do conhecimento e a
política (Spink, & Frezza, 2013), foi no campo da Psicologia Social que deixou uma importante marca, talvez por sua força de questionamento a esse campo, na medida em que elaborando uma crítica contundente ao mito da interioridade psicológica, “rompe com a naturalização das taxonomias estáticas que caracterizaram a produção do conhecimento psicológico e que o influenciam até hoje” (Rey, 2004, p. 114). Há, com o projeto construcionista, um deslocamento da mente para a interação como marco para a construção de formas de ação social (Oliveira Filho, 2011), de modo que as categorias psicológicas são criadas como ações sociais conjuntas em contextos relacionais (Gergen, 2009). Para este autor: “A pesquisa construcionista social ocupa-se principalmente de explicar os processos pelos quais as pessoas descrevem, explicam, ou, de alguma forma, dão conta do mundo em que vivem (incluindo-se a si mesmas)” (Gergen, 2009, p. 301). Nessa proposição, os sujeitos am a ser reconhecidos enquanto parte de uma trama discursiva, uma vez que a linguagem é entendida como uma prática social com poder de constituição de objetos, deixando de ocupar um lugar de representação à ação no mundo (Ibáñez, 2005). Com isso, os discursos produzidos em meio às interações sociais se constituem em poderosas formas de geração de sentidos sobre o mundo e de posicionamento das pessoas e coletivos em relações sociais contextualizadas e culturalmente localizadas (Spink, & Medrado, 2013). Nesses termos, a a ser importante fonte de análise para a pesquisa construcionista a linguagem em uso, ou seja, as práticas discursivas (Spink, & Medrado, 2013) geradas nas interações cotidianas em que tanto se pode reconhecer a presença de repertórios cristalizados como também da emergência de novos repertórios. Spink (2013, p. 102) chama a atenção para o fato de que, uma vez sendo linguagem em ação, as práticas discursivas podem ser identificadas “[...] tanto nas imagens e artefatos quanto nas palavras”. Assim, o autor destaca os documentos de domínio público como importantes práticas discursivas que podem ser tomadas como possibilidade de material de análise. Para o autor: Os documentos de domínio público, enquanto registros, são documentos tornados públicos, sua intersubjetividade é produto da interação com um outro desconhecido, porém significativo 199
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e frequentemente coletivo. São documentos que estão à disposição, simultaneamente traços de ação social e a própria ação social (Spink, 2013, p. 102-103). Assim entendidos como capazes de gerar ação social, tais documentos podem concorrer na elaboração de sentidos sobre os variados fenômenos em nossa volta, inaugurar justificativas e explicações sobre a realidade, bem como instaurar por meio de interanimações dialógicas (Spink, & Medrado, 2013), efeitos de subjetivação e posicionamentos em torno dessa mesma realidade. De acordo com Spink (2013, p. 112) tais documentos Podem refletir as transformações lentas em posições e posturas institucionais assumidas pelos aparelhos simbólicos que permeiam o dia a dia ou, no âmbito das redes sociais, pelos agrupamentos e coletivos que dão forma ao informal, refletindo o ir e vir de versões circulantes assumidas ou advogadas. Desse modo, o presente trabalho tomou como fonte geradora de sentidos em torno da luta pela terra no espaço de abertura política, as práticas discursivas constituídas no documento Jornal dos Trabalhadores Sem Terra, número especial de fevereiro de 1985, que relata os principais aspectos discutidos e registrados no I Congresso Nacional dos Trabalhadores Sem Terra, marco para o que posteriormente foi se configurando o movimento e suas ações no âmbito do processo de democratização brasileira. No que se refere aos procedimentos metodológicos adotados, seguimos alguns apontamentos de Borges e Ribeiro (2014) em relação à pesquisa socioconstrucionista com mídia escrita: escolha da fonte, temporalidade, criação do corpus de análise e análise. A escolha do jornal em questão2 deu-se no intuito de evidenciar os repertórios interpretativos circulantes a partir do próprio MST como ator central do presente estudo e de modo a conhecer como este se posicionava no tocante à luta pela terra no contexto de democratização. A definição do número do jornal em termos temporais visou circunscrever um documento público lançado após o primeiro congresso do MST, pouco depois de sua criação, de modo a resumir, a partir do 2
que foi abordado no evento, as principais diretrizes do movimento naquele contexto. A criação do corpus seguiu uma leitura cuidadosa do documento, de modo a conhecer sua estrutura, identificar as seções e as permanências e mudanças em torno dos temas abordados nessas seções. A análise, seguindo a etapa anterior, buscou conhecer as práticas discursivas em torno da luta pela terra a partir de uma categorização que permitiu mapear três linhas discursivas dominantes: diversidade de participantes do evento, participação das mulheres trabalhadoras rurais no MST e enfrentamento às instâncias governamentais.
O MST e a inauguração de práticas discursivas em torno da luta pela terra
Ao retomar o debate em torno da abertura política brasileira, Silva (2014) destaca haver uma visão relativamente forte de que tal abertura ocorreu principalmente pelas mãos dos próprios militares na tentativa de resolver tensões oriundas das disputas internas enquanto governo que, de um lado, conduzia as decisões políticas e, de outro, marchava com suas fortes ações de repressão, abrindo espaço para disputas entre grupos militares e perda do princípio de hierarquia. A ideia pensada pelos militares para a abertura política, segundo a autora, cumpria dois objetivos: retomar o papel de corporação unificada e de detentora do comando da soberania nacional para as Forças Armadas e de garantir a manutenção dos privilégios de uma elite civil que agia com vistas a não alterar os padrões de dominação capitalista implantados pelo regime. O que Silva (2014) alerta é que em muitos desses argumentos de compreensão da abertura política como iniciativa dos próprios militares, corre-se o risco de negligenciar o papel dado aos movimentos sociais que se insurgiram contra o regime: É fato que embora seja inegável que a crise interna na composição do governo autoritário impactou decisivamente na abertura política, também não podemos desconsiderar a pressão social de setores populares e dos manifestantes de esquerda, incluindo a guerrilha armada urbana e rural, pela retomada da democracia no Brasil (Silva, 2014, p. 252).
O referido jornal encontra-se disponível em versão digital no sítio do MST: http://www.mstemdados.org/biblioteca/jornal.
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Leite, J. F.; Dimenstein, M.; Dantas, C. M. B. (2017). Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra.
De fato, o clima gestado pela pressão popular dirigida à abertura política impulsionou uma variedade de atores políticos a entrarem em cena e estabelecer nova relação com o Estado. Entidades sindicais, partidos políticos, movimentos sociais nas cidades e no meio rural, movimentos de bairros de periferia aram a ter visibilidade ou mesmo se formarem diante da possibilidade de redemocratização e o espaço das ruas ou a conviver com intensas mobilizações, greves de trabalhadores e a campanha pelas eleições diretas para presidência da república (Schwarcz, & Starling, 2015). Foi nesse contexto que deu o surgimento do MST. Em um dos trabalhados mais completos sobre a formação do movimento, Fernandes (2000) situa o período de 1979 a 1985 como sendo a gestação e nascimento do MST, por meio de um conjunto de lutas e movimentos de resistência de trabalhadores rurais que aram a ocupar latifúndios improdutivos e áreas devolutas, especialmente no Sul do país, prática inspirada no Movimento de Agricultores Sem Terra (Master). Na mesma linha, Silva (2004) destaca um elemento fundamental para o surgimento do MST: o modelo de internacionalização agrícola e pecuário que ou a ser adotado no país pelo regime militar, intensificando a exploração dos trabalhadores do campo que, por sua vez, aram a se organizar no enfrentamento dos efeitos desse modelo, levando à criação de um movimento social que se coloca “[...] no conflito político com o Estado e latifundiários, em que o modelo agrário dos militares, que exacerbava a problemática social do campo, foi questionado pelos sem-terra” (p. 32). As lutas dos trabalhadores sem-terra se espalharam por várias regiões do Brasil, na medida em que os efeitos perversos da aliança terra-capital se materializavam no cotidiano de suas relações de trabalho, moradia e de vida. O Sul do país conheceu importantes e efetivas mobilizações de trabalhadores sem-terra que enfrentaram o governo ditatorial ao se negaram participar da política de transferência de agricultores familiares para projetos de colonização, estabelecendo a prática de ocupação de latifúndios ou terras devolutas a fim de serem desapropriadas para reforma agrária. Fernandes (2000) e Silva (2004) argumentam que esses processos de mobilização e constituição de acampamentos, bem como de enfrentamento das forças repressivas do governo militar, ao final dos anos 1970, foram decisivos para o delineamento do MST, pois já se ensaiavam nesses espaços princípios
auto-organizativos e de fortalecimento de um modo de luta via ocupação de terras que conseguia provocar o Estado no sentido de dar uma resposta às demandas dos trabalhadores sem-terra. Dentre os apoiadores e mediadores dessas lutas, estavam integrantes do trabalho pastoral da Igreja católica o que a identifica como um importante ator na gênese do MST. A referida instituição, mesmo antes do regime autoritário, já participava ativamente na disputa ideológica no campo da reforma agrária, notadamente com o Partido Comunista Brasileiro, no receio de perder seus fiéis para o ideário comunista defendido pelo partido. No entanto, seguindo uma linha progressista que se desenhava na América Latina nos anos 1960 – a Teologia da Libertação –, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) fundou em 1975 a T. Sua criação teve por finalidade a luta contra a violência e perseguição de posseiros e indígenas, principalmente das regiões Norte e Centro-oeste do país (Fernandes, 2000). O trabalho pastoral da T imprimiu elementos de reflexão pautados em “[...] uma igreja que fazia sua escolha pelos pobres e explorados, pelos injustiçados e, por meio dessa escolha, a palavra de Deus – o Evangelho – ou a ser lido, escutado e aproximado aos dilemas das pessoas simples” (Leite, & Dimenstein, 2011, p. 33). Dentre as ações da Igreja católica que tiveram grande penetração nos grupos populares do campo, estavam as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que se configuravam em espaços de reflexão junto aos trabalhadores rurais sobre a importância de se organizarem para a conquista da terra e para a aquisição de uma consciência coletiva. Para Silva (2004): No trabalho de base realizado com os sem-terra pelos agentes de pastoral, era chamada a atenção para dois conceitos, até então estranhos à realidade do camponês brasileiro: democracia e participação. Em geral, nos encontros, os sem-terra discutiam coletivamente e decidiam quais encaminhamentos a serem tomados pelo grupo. Assim, era rompida, nas CEBs, a lógica de dependência política do camponês à medida que conquistavam sua cidadania, ou seja, exercitavam a democracia direta e a ampla participação, fato que determinou o surgimento de uma organização sem-terra imbuída do compromisso de resistir à conjuntura desfavorável (p. 49-50). 201
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Nesses termos, é perceptível o legado do trabalho pastoral junto aos militantes do MST, por meio dos princípios advindos da Teologia da libertação e de outras correntes de pensamento, a exemplo da Educação popular, como importantes matrizes orientadoras da ação do MST junto à sua base social num contexto ainda de ditadura e de como a tentativa de materialização dessas matrizes gerou não só conquistas para os trabalhadores sem-terra (áreas desapropriadas para reforma agrária), como ensejou experiências de resistência democrática em meio a um governo repressor, tornando-o seu principal opositor no período de formação do movimento. Como o trabalho pastoral tinha uma característica descentralizada, já que as decisões seguiam as especificidades das dioceses locais (Martins, 2000) e tinha um profundo diálogo com as diversidades de atores do campo, segmentos da esquerda aram a ver dificuldades no seguimento de uma luta política que necessitava avançar na sua relação com as forças dominantes (latifundiários, capitalistas do campo e seus representantes que se realinhavam no campo da política institucional). A vinculação religiosa da T ou a ser vista como um limite para a ação política. Nesse sentido, é defendida a ideia de criação de um movimento social que atuasse com mais autonomia e com um caráter político mais circunscrito, unificador das lutas do campo e de amplitude nacional (Fernandes, 2000). A ideia em voga dizia, portanto, da superação do caráter regional e local das lutas e suas especificidades sociais, culturais para a aquisição de uma unificação nacional que agregaria mais vigor em suas ações (Silva, 2004). Em outros termos, adentrando num novo momento de luta em função do processo de abertura política em curso, o MST assumiu uma narrativa com vistas à produção de um sujeito coletivo (o sem-terra), capaz de unificar atores com variadas formas de relação com a terra e se colocar como uma classe do campo que, em articulação como a classe operária urbana, poderia promover a transformação social prevista em seu ideário. Desse modo, no ano de 1984 e com o apoio de setores da esquerda, de alguns movimentos de luta por terra do campo e da T, foi realizado o I Encontro Nacional do MST, no Paraná. O o seguinte seria o avanço do movimento para outras regiões do país, feito relativamente alcançado no início de 1985 a partir do I Congresso Nacional dos Trabalhadores 202
Sem Terra, ocorrido entre 29 e 31 de janeiro desse ano em Curitiba. Nele, o MST lança um conjunto de elementos norteadores para sua ação unificada e incorpora uma dimensão política no enfrentamento com o Estado. O Jornal dos Trabalhadores Sem Terra, em sua edição alusiva ao congresso (fevereiro de 1985), traz alguns desses aspectos importantes para situar e posicionar discursivamente o MST no processo de abertura política.
Jornal dos Trabalhadores Sem Terra: práticas discursivas em jogo
O documento, com 19 páginas, apresenta um conjunto de registros do I Congresso Nacional dos Trabalhadores Sem Terra (ver figura 1) que reuniu 1.500 pessoas vindas de 23 estados do país: momento de chegada de trabalhadores e trabalhadoras rurais ao evento, abertura do congresso, imagens, entrevistas, artigo de opinião, relatos de luta pela terra nas cinco regiões do país, encerramento do evento, documento de registro da violência no campo, participação de
Figura 1 Capa da edição especial do Jornal Sem Terra (fevereiro de 1985).
Leite, J. F.; Dimenstein, M.; Dantas, C. M. B. (2017). Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra.
mulheres sem-terra no congresso, atividades culturais, documento final e homenagem especial. Dos elementos apresentados no documento, três linhas discursivas merecem destaque:
Apresentação da diversidade de participantes do evento
No conjunto de matérias apresentadas no jornal, há uma indicação da variedade de atores sociais do campo e seus modos de relação com a terra, como é o caso dos relatos de lutas das regiões brasileiras: Nordeste (luta contra as grilagens de terras, latifúndios e o dilema da seca), Sudeste (as condições precárias vividas pelos boias-frias e assalariados rurais), Sul (a necessidade de organização da luta sindical entre os trabalhadores rurais e os conflitos com as grandes empresas rurais), Centro-oeste e Norte (violência no campo, invasão da floresta por multinacionais). Há outra seção em que se apresenta a situação e as lutas dos índios por terra e condições dignas de vida e trabalho. Na leitura dessas matérias que destacam as singularidades desses atores em luta no campo, podemos vislumbrar uma marca importante acolhida pelo MST em sua metodologia de ação: as experiências da T na lida com as particularidades socioculturais desses atores. Por outro lado, as matérias também vão construindo em meio a essa diversidade os pontos de união e de produção discursiva em torno de uma unidade entre esses atores, no sentido de uma articulação para fortalecer o movimento. Veja-se, a exemplo, o trecho sobre a participação de um grupo de índios no congresso: Por defender sua gente e sua terra, o índio sofre as mesmas consequências que sofrem os agricultores sem terra [...] Um grupo de índios participou do nosso Congresso levando a seguinte proposta: a união de índios e sem terra para a conquista da reforma agrária (Jornal Sem Terra, 1985, p. 15). Também no artigo de opinião, ao elencar os objetivos do congresso, dois se destacam no sentido de promoção de práticas discursivas geradoras de um sentido de unidade identitária que conformará, de acordo com Leite e Dimenstein (2011), numa modalidade subjetiva Sem-terra: “unificar e ampliar o Movimento em todos os estados” e “estimular articu-
lação da luta pela terra”. Lembremos que essa busca de unificação das lutas no país configurou-se como um importante argumento para a criação do MST como aglutinador das demandas sociais do campo em meio ao cenário de abertura política.
A participação das mulheres trabalhadoras rurais no MST
Em três partes distintas do jornal aparece referência às mulheres em luta pela terra. A primeira, com o título “Ao lado dos homens, sem medo da luta” (Jornal Sem Terra, 1985, p. 5), faz alusão à participação das mulheres no congresso, destacando um debate com a imprensa, discussões em grupos de trabalho e uma reunião exclusiva de trabalhadoras que culminou na elaboração de um documento indicando maior participação e articulação das mulheres em âmbito local, regional e nacional de modo a garantir mais espaços de participação política na luta pela terra. Na seção “As mulheres vão à luta” (Jornal Sem Terra, 1985, p. 12), está registrado um debate promovido por alguns jornais que faziam cobertura do evento com cinco mulheres lideranças em seus estados. No debate, são narradas as experiências de luta, assassinatos de seus companheiros e perseguições. Nos depoimentos, as mulheres fazem uma convocação para que as trabalhadoras se unam aos seus companheiros para realizar conjuntamente a luta pela reforma agrária, formalizando assim junto ao movimento a urgência de sua inserção nas instâncias de decisão política. É o que pontua Lina, uma das lideranças: Chegamos aqui no congresso e constatamos que não havia nenhuma mulher na mesa. Achamos que era injusto. Discutimos bastante e acabamos com duas mulheres ocupando a mesa e a Coordenação Nacional do Movimento. É assim que deve ser feito. Porque nós, mulheres, acreditamos que qualquer vitória no campo, seja a conquista de um pedaço de terra, seja a Reforma Agrária, só será alcançada quando a mulher e o homem estiverem juntos na luta, em igualdade de condições (Jornal Sem Terra, 1985, p. 12) A seção “Vale a pena a mulher buscar a libertação” (p. 18) discorre sobre a entrevista realizada com uma das mulheres integrantes da Coordenação 203
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Nacional do Movimento de Trabalhadores Sem Terra, Santina Gracielle, dando depoimento sobre sua trajetória de luta. O compartilhamento das experiências de luta, a narração dos episódios limites, os enfrentamentos, as adversidades e as conquistas são marcas recorrentes e exploradas nos eventos do movimento a fim de se resgatar a memória de suas lideranças, como também parece apresentar um importante efeito discursivo que convoca os demais integrantes a tomarem tais depoimentos como exemplos a seguir. O depoimento, portanto, como uma prática discursiva que convoca os sujeitos a um posicionamento dentro de um contexto argumentativo, ou como assinala Spink e Medrado (2013), é identidade em negociação, atravessada por efeitos de poder. Nesse contexto de negociação, a participação de mulheres junto ao MST configurou-se um elemento já em sua gestação, como apontam Oliveira e Leite (2016, p. 182): “O tema das relações de gênero no interior do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) marca significativa presença no conjunto dos seus discursos e práticas cotidianas”. Na estruturação interna do movimento por meio de setores, o de gênero foi um dos primeiros com vistas a garantir a inserção das mulheres nas ações do MST e, com isso, fortalecer suas ações (Fernandes, 2000). Não à toa que o jornal faz alusão recorrente à necessidade de engajamento das mulheres do campo nas ações do movimento, criando uma discursividade em torno do seu protagonismo e da necessidade de se buscar condições de igualdade com os homens.
O enfrentamento às instâncias governamentais
Já em sua primeira página, no editorial, o jornal traz uma articulação entre terra e democracia a partir do lema do congresso: “Sem terra não há democracia”. A palavra democracia aparece contextualizada do processo de abertura política em curso, na medida em que, para o movimento, uma efetivação dessa abertura ava também pela democratização do o à terra por meio de realização da reforma agrária, tema recorrente no jornal. No entanto, a efetivação da reforma não viria por decisão política do governo, mas por pressão dirigida a este pelos movimentos sociais em articulação. Esse posicionamento de enfrentamento e de forte oposição ao Estado, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, foi uma marca de muitos movimentos sociais do campo, con204
forme Scherer-Warren (2014), uma vez que o caráter repressivo se fazia presente no combate a essas lutas. Uma provocação repetida no jornal diz respeito à ausência do então presidente eleito por voto indireto, mas não empossado, Tancredo Neves, que teria sido convidado e confirmou sua participação no evento. Na seção do jornal que relata o encerramento do congresso, o texto se intitula: “Só faltou o presidente” (Jornal Sem Terra, 1985, p. 08) e comenta sobre cadeira vazia a ele reservada para a mesa de encerramento: “Os sem terra esperam que Tancredo, quando assumir em 15 de março, leve mais a sério suas promessas. Afinal, não se pode brincar com problemas tão sérios como estes que enfrentam os trabalhadores rurais brasileiros” (p. 08). Finalizando o evento com uma convocatória aos presentes, o jornal sintetiza: “na volta aos nossos locais de luta, vamos ampliar nossa organização, tendo como ideal a certeza de que a Reforma Agrária será obra dos próprios trabalhadores e sairá na lei ou na marra” (p. 08). Os momentos posteriores de ação do MST serão bastante conhecidos no país justamente por uma descrença antecipada de que os governos teriam interesse em assumir a reforma agrária. Suas ações de confronto, como ocupações de latifúndios improdutivos e prédios públicos dariam, adiante, o tom na relação do movimento com o Estado. O documento final elaborado pelo MST (ver figura 2) aponta as suas reivindicações, resumindo os principais problemas vividos pelos trabalhadores sem-terra em seis pontos: distribuição e uso da terra, colonização, os órgãos governamentais responsáveis pela política fundiária, violência no campo, as multinacionais, Estatuto da Terra. O conjunto de reivindicações para cada ponto coloca a esfera governamental como principal interlocutor, posicionando o movimento numa relação de confronto possível, em certa medida, pela abertura política, mas não sem a reiterada força repressiva agindo para fazer o movimento recuar. Desse posicionamento político, emerge uma versão de luta pela terra unificada com presença em quase todos os estados brasileiros, uma relação de autonomia diante dos aparatos partidários e estatais, diferentemente das instâncias sindicais em grande medida cooptadas, e a emergência de um ator coletivo, capaz de empreender importantes modalidades de luta e de ação coletiva em nome da reforma agrária.
Leite, J. F.; Dimenstein, M.; Dantas, C. M. B. (2017). Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra.
Figura 2 Documento final do I Congresso Nacional dos Trabalhadores Sem Terra.
Considerações finais
Não resta dúvidas do importante papel lançado pelo MST no processo de democratização da
nossa sociedade. Seu projeto político alinhado a um ideário de esquerda reuniu aliados, parceiros, entidades e partidos que visualizaram na abertura política, a chance de construção de uma sociedade mais justa, democrática e mais igualitária expressa, em certa medida, nos princípios defendidos para a Constituição de 1988. As análises discursivas propostas mostraram que o MST inaugura ou atualiza práticas discursivas em torno da luta pela terra que terão um importante impacto em sua sustentação e o consagra como um dos mais importantes movimentos sociais da atualidade. Tais práticas em torno da construção de uma unidade em meio à diversidade, da participação de mulheres como importantes agentes de luta e das ações de confronto, desencadearão importantes e efetivos sentidos entre seus integrantes que, não raro, são capazes de uma profunda mobilização em torno de ações com grande envergadura, como tem sido as ocupações de terras, as marchas, a implantação de projetos educacionais e de produção vinculados à realidade dos contextos rurais. O cenário de crise política que gerou o recente golpe contra o mandato da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, alerta-nos para a fragilidade com que se deu o processo de construção democrática no país após a ditadura civil-militar. Mais uma vez, o MST se faz presente articulando e participando da Frende Brasil Popular, com vistas a reunir força política e social para restabelecer os elementos que possam figurar uma sociedade emancipada e socialmente justa.
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Jáder Ferreira Leite Doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal – RN. Brasil. É Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFRN, atuando na graduação e na pós-graduação. E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Jáder Ferreira Leite Alameda das Mansões, 218 – Torre São Paulo, apto. 802. Bairro Candelária. CEP: 59064-740. Natal – RN. Brasil. Recebido 30/06/2017 Reformulação 01/10/2017 Aprovado 04/10/2017 206
Leite, J. F.; Dimenstein, M.; Dantas, C. M. B. (2017). Práticas Discursivas sobre a Luta pela Terra.
Received 06/30/2017 Reformulated 10/01/2017 Approved 10/04/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 01/10/2017 Aceptado 04/10/2017
Como citar: Leite, J. F., Dimenstein, M., & Dantas, C. M. B. (2017). (2017). Práticas discursivas sobre a luta pela terra na transição democrática brasileira. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 197-207. https://doi.org/10.1590/1982-3703150002017 How to cite: Leite, J. F., Dimenstein, M., & Dantas, C. M. B. (2017). Discursive practices in the struggle for land in the transition to democracy in Brazil. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 197-207. https://doi.org/10.1590/1982-3703150002017 Cómo citar: Leite, J. F., Dimenstein, M., & Dantas, C. M. B. (2017). Prácticas discursivas sobre la lucha por la tierra en la transición democrática brasileña. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 197-207. https://doi.org/10.1590/1982-3703150002017 207
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 208-223. https://doi.org/10.1590/1982-3703160002017
Psicologia, Democracia e Laicidade em Tempos de Fundamentalismo Religioso no Brasil
Tatiana Lionço Universidade de Brasília, DF, Brasil.
Resumo: A laicidade é um princípio fundamental para a garantia da ética democrática, pois promove o reconhecimento e proteção da diversidade social, moral, cultural e religiosa de uma sociedade. As liberdades individuais são direitos modernos relativos à dissociação entre poder estatal e dogma religioso, de modo a garantir liberdade de consciência e de expressão, fundamentais à dignidade humana. A Psicologia afirmou historicamente compromisso com a ética democrática e com os direitos humanos, sendo um importante ator político e social pois participa do processo de redemocratização brasileiro por meio de sua inserção em diversas políticas públicas de garantia de direitos sociais. Diante da incidência do discurso religioso de viés fundamentalista e antidemocrático no atual cenário político brasileiro, a Psicologia se encontra na posição de alvo de ofensivas fundamentalistas contemporâneas contra normativas éticas da profissão, em tempo em que também sofre tensionamentos internos na lógica da reivindicação de uma “Psicologia cristã”. Em meio a este cenário complexo, o sistema conselhos de Psicologia tem produzido marcos de referência para a defesa da laicidade e recusa de fundamentalismos, sendo atualmente um ator estratégico na defesa da democracia brasileira. Palavras-chave: Laicidade, Fundamentalismo Religioso, Ética Democrática, Psicologia Política.
Psychology, Democracy and Laicity in Times of Religious Fundamentalism in Brazil Abstract: Laicity is a fundamental principle for the guarantee of democratic ethics, since it promotes the recognition and protection of the social, moral, cultural and religious diversity of a society. Individual freedoms are modern rights concerning the dissociation between state power and religious dogma, in order to guarantee freedom of conscience and expression, fundamental to human dignity. Psychology has historically affirmed a commitment to democratic ethics and human rights, being an important political and social actor because it participates in the Brazilian redemocratization process through its insertion in several public policies guaranteeing social rights. Confronted by the incidence of religious discourse of fundamentalist and antidemocratic bias in the current Brazilian political scene, Psychology is a target of contemporary fundamentalist offensives against the ethical norms of the profession, and it also suffers internal tensions in the logic of claiming a “Christian psychology “. Challenged by this complex scenario, the system of Psychology Councils has produced benchmarks for the defense of secularism and the rejection of fundamentalisms, and is currently a strategic actor in the defense of Brazilian democracy. Keywords: Religious Fundamentalism, Laicity, Democracy, Political Psychology.
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Lionço, T. (2017). Psicologia, Democracia e Laicidade.
Psicología, Democracia y Laicidad en Tiempos de Fundamentalismo Religioso en Brasil Resumen: La laicidad es un principio fundamental para la garantía de la ética democrática, pues promueve el reconocimiento y protección de la diversidad social, moral, cultural y religiosa de una sociedad. Las libertades individuales son derechos modernos relativos a la disociación entre poder estatal y dogma religioso, para garantizar la libertad de conciencia y de expresión, fundamentales a la dignidad humana. La Psicología afirmó históricamente compromiso con la ética democrática y con los derechos humanos, siendo un importante actor político y social pues participa del proceso de redemocratización brasileño por medio de su inserción en diversas políticas públicas de garantía de derechos sociales. Ante la incidencia del discurso religioso de sesgo fundamentalista y antidemocrático en el actual escenario político brasileño, la Psicología es blanco de ofensivas fundamentalistas contemporáneas contra normativas éticas de la profesión, al tiempo que también sufre tensiones internas en la lógica de la reivindicación de una “Psicología cristiana”. Ante este escenario complejo, el sistema de Consejos de Psicología ha producido marcos de referencia para la defensa de la laicidad y rechazo de fundamentalismos, siendo actualmente un actor estratégico en la defensa de la democracia brasileña. Palabras clave: Laicidad, Fundamentalismo Religioso, Ética Democrática, Psicología Política.
Introdução
O processo de secularização característico da Modernidade, em consonância com a laicização das repúblicas democráticas, trouxe a emergência de novos direitos decorrentes da ascensão do liberalismo, entre os quais a liberdade de consciência e de expressão. A proteção às liberdades individuais e o princípio democrático e consonante aos direitos humanos da inviolabilidade da dignidade humana implica, necessariamente, o direito à livre expressão da consciência e das crenças. Os sujeitos na era secular am a dispor da prerrogativa de enunciar, em seus próprios termos, o sentido que conferem a si próprios, à vida social e às proposições para a vida em coletividade (Nussbaum, 2008; Schlegel, 2009). Uma das forças de oposição contemporânea aos ideais democráticos é o fundamentalismo religioso, que alega que os ideais iluministas e a consequente secularização da sociedade decorreram em prejuízos morais e afrontas a preceitos de fé que organizavam a vida social. Entre os prejuízos elencados, afirma-se a necessidade de defender valores tradicionais relativos à família heteronormativa e monogâmica presumida sagrada, à concepção do papel social de homens e mulheres e à suposta decência das práticas sexuais restrita a ideais familistas de procriação. Neste sen-
tido, o fundamentalismo religioso em suas variadas nuances contingenciais encontra como eixo estruturante a ofensiva contra direitos adquiridos pela luta política das mulheres e de minorias sexuais tais como homossexuais, travestis, transexuais e profissionais do sexo (Boff, 2002; Santos, 2013a). O fundamentalismo religioso é uma ofensiva contemporânea a preceitos da modernidade. Recusa princípios democráticos seculares em uma era de instabilidade e dispersão das representações, reivindicando o retorno de tradições como preceitos basilares da vida social. O fundamentalismo religioso é uma reação às novas contingências históricas e políticas que prevêem o reconhecimento da diversidade moral, cultural e das possibilidades diversas de subjetivação da humanidade. “Os fundamentalismos acreditam que estão combatendo forças que ameaçam seus valores mais sagrados” (Armstrong, 2009, p. 18). É um movimento que se consolida no século XX contra a hegemonia secular e uma “forma de reconduzir Deus ao campo da política, do qual fora banido” (Armstrong, 2009, p. 491). No contexto brasileiro, a incidência do discurso religioso de viés fundamentalista na agenda política tem sido debatida por vários autores (Cunha, Lopes e Lui, 2017; Lionço, 2015; Natividade, 2016; Natividade, 209
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& Oliveira, 2013; Vital, & Lopes, 2013), com ênfase para o caráter antidemocrático da incidência dos discursos religiosos na política, e mais especificamente decorrendo em retrocessos na agenda de direitos humanos. Neste contexto histórico e político, vale considerar a relação entre a laicidade, o fundamentalismo religioso e a Psicologia. Considera-se aqui a Psicologia como ator político no atual cenário contemporâneo para refletir sobre sua posição diante da laicidade bem como diante da incidência do fundamentalismo religioso como ofensiva contemporânea antidemocrática. O objetivo do artigo é evidenciar as contradições nas relações estabelecidas pela Psicologia com a defesa da laicidade e também com o fundamentalismo religioso. Para tanto será considerada a Psicologia em sua dimensão de profissão regulamentada e referida a um sistema conselhos que tem como atribuição a fiscalização e a orientação do exercício profissional. A Psicologia como ciência é reconhecida em sua diversidade epistemológica, cabendo considerações críticas sobre o processo histórico de revisão de pressupostos éticos e epistemológicos das teorias psicológicas para o cumprimento do compromisso social da Psicologia com a ética democrática e a defesa e proteção dos direitos humanos e sociais. Vale ressaltar que aqui se está contrapondo a um modelo de Psicologia que serviu como ferramenta de normalização em contextos de autoritarismo e violação de direitos tais como durante a ditadura civil militar brasileira (Scarparo, Torres, & Ecker, 2014). Espera-se, portanto, contribuir para a sedimentação de uma Psicologia crítica e aliada à defesa da democracia brasileira diante de novo contexto histórico e político de ascensão conservadora e de abuso de autoridade na política nacional. Para tanto, serão realizadas reflexões sobre a atual posição da Psicologia como profissão comprometida com o marco constitucional democrático e sua participação na defesa da laicidade, por meio da consideração dos marcos normativos e posicionamentos institucionais dos conselhos de Psicologia. Este estudo teve como eixo condutor a participação no Grupo de Trabalho de Laicidade e Psicologia vinculado à Assembleia de Políticas, da istração e Finanças do Sistema Conselhos de Psicologia (APAF) entre dezembro de 2013 e dezembro de 2016. Os caminhos de teorização sobre laicidade, democracia e Psicologia sistematizados no presente artigo refletem o esforço em produzir conhecimento sobre as relações 210
entre Psicologia e laicidade ao longo deste período. O levantamento preliminar de referências bibliográficas sobre o tema foi atualizado anualmente por meio das plataformas SciELO e Periódicos Eletrônicos em Psicologia, não existindo nenhum artigo sobre laicidade e Psicologia indexado nas referidas bases de dados até a finalização da participação no grupo de trabalho. Apenas em 2017 surge o primeiro artigo científico a partir do cruzamento das palavras-chave “psicologia” e “laicidade”, localizado por meio da plataforma SciELO. O cruzamento dos termos de busca “psicologia” e “religião”, “religiosidade” e “espiritualidade”, no entanto, permitiram a localização de artigos acadêmicos que discutem a relação entre saúde mental e religiosidade e/ou espiritualidade, a relação entre religiosidade e subjetividade, percepções de acadêmicos de Psicologia sobre o fenômeno religioso e a história da Psicologia no Brasil, temas afeitos ao campo da Psicologia da Religião, não sendo coincidente com o recorte do presente estudo. A insipiência da produção de conhecimento sobre as relações entre laicidade e Psicologia moveu o atual esforço de teorização e pesquisa. O desafio enfrentado foi o da sistematização de um discurso teórico que permitisse articular a laicidade à Psicologia. Partindo de uma matriz interdisciplinar de referências, buscou-se articular a emergência histórica da laicidade a princípios expressos no Código de Ética Profissional do Psicólogo, a saber, a defesa da dignidade, da liberdade de consciência e/ou de crença, a defesa dos direitos humanos e o compromisso com a ética democrática. Tais reflexões se apoiaram em narrativas do campo da filosofia política e de análises sociológicas sobre o fenômeno contemporâneo do fundamentalismo religioso no Brasil, sem a pretensão de esgotar o levantamento e a revisão de bibliografia de referência. A fim de apresentar a complexidade da imersão da Psicologia no embate entre a defesa da laicidade e a incidência do fundamentalismo religioso no contexto político brasileiro contemporâneo, serão realizadas a seguir reflexões teóricas. Primeiramente, será discutida a emergência da laicidade na Modernidade e sua relação com a ética democrática, considerando a emergência do direito à dignidade humana fundamental para a consideração contemporânea dos direitos humanos em sociedades marcadas pela diversidade. Em seguida, serão discutidas teoricamente as relações entre Psicologia, democracia e direitos humanos. As proposi-
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ções legislativas e polêmicas em torno da Resolução CFP no 01/1999 (Conselho Federal de Psicologia, 1999) serão então analisadas como amostra de conveniência para a reflexão sobre as relações entre Psicologia, laicidade e fundamentalismo religioso.
Laicidade, democracia e dignidade humana
A laicidade é um princípio de organização das práticas do Estado e instituições que interfere na organização social, defendendo incondicionalmente a liberdade de consciência e a liberdade de expressão (Nussbaum, 2008), ressalvados os interditos penais. O ponto cego da democracia laica é a possibilidade de proteção da existência de discursos avessos à própria laicidade e à ética democrática. No interior das democracias laicas também podem surgir expressões de crenças de que a lógica democrática e laica deve ser alterada, opondo-se à democracia e à laicidade. Este é o caso do fundamentalismo religioso (Schlegel, 2009). O princípio da laicidade emerge historicamente com a secularização e com o surgimento dos direitos relativos à individualidade no liberalismo, tais como liberdade de consciência, liberdade de expressão e consequentemente liberdade religiosa, política e de associação (Nussbaum, 2008; Schlegel, 2009). A secularização é um processo característico da transição para a era moderna em que a sociedade deixa de se pautar em verdades unívocas transcendentais para considerar a multiplicidade discursiva como fundamento das práticas sociais. Seu desdobramento, nas práticas de governo, é a emergência do princípio da laicidade que se funda no reconhecimento da diversidade moral como fato social. O Estado laico na era secular, portanto, deixa de fundar suas práticas, atos normativos e retóricas orientadoras à verdade transcendental da religião (Armstrong, 2009; Schlegel, 2009), organizando suas práticas na lógica da proteção da diversidade social. Durante longos períodos históricos, os Estados, a autoridade de seus governantes e suas formas de governar populações tinham como fundamento a verdade religiosa, não cabendo o dissenso ou oposição sob pena de exclusão ou mesmo extermínio. As guerras entre os povos pautadas na religiosidade se basearam, e ainda se baseiam, na afirmação de verdades que não se propõe objeto de questionamento ou crítica em processos de negociação entre grupos sociais distintos. Muitos extermínios foram desencadeados sem que houvesse processo de diálogo e considera-
ção mútua de interesses e necessidades. Ganhar uma guerra significava então adquirir o direito de impor a uma dada região e sua população de referência um conjunto de crenças e práticas sociais não íveis de questionamento (Armstrong, 2016). Isso mudou na transição para a Modernidade, sendo uma das características da emergência da era moderna o surgimento de outra forma de produzir conhecimento válido. A racionalidade científica propõe outra lógica de validade para os discursos, não consentindo mais com o absolutismo da verdade transcendental. Na Modernidade secular, portanto, os discursos válidos aram a se multiplicar, não cabendo mais a destituição do dissenso com base na presunção de inquestionabilidade de um discurso que estivesse imune ao escrutínio da avaliação pública e coletiva, a partir de variados pontos de vista e paradigmas diversos (Schwartzman, 2008). Isso muda a forma como o Estado a a organizar suas práticas, tendo como fundamento a produção discursiva que o próprio debate público legitima. Todo e qualquer discurso se torna assim ível de questionamento, incluindo a retórica religiosa. O processo incessante de questionar as próprias normas é característico da sociedade democrática. Para Schlegel (2009), a democracia moderna significa o fim do regime teológico-político e do poder de autoridade sagrada e surgimento do poder de base popular. Com a emergência da laicidade como operador das práticas de dissociação entre o poder do Estado e poder religioso, o dissenso a a ser incontornável a partir da emergência histórica da liberdade de consciência e de expressão. Para que este processo de revisão permanente ocorra, as pessoas e grupos sociais devem poder discordar. Se não há possibilidade de dissenso também já não há possibilidade de crítica e revisão de normas. Emerge então historicamente o direito à oposição, sendo o direito ao protesto uma conquista constitucional fundamental para a manutenção da democracia. Por meio do debate público e do acolhimento de proposições discordantes se busca qualificar os processos por meio dos quais o próprio conjunto da sociedade delibera o modo de regular a vida social. A justiça social não é um princípio autoevidente: é por meio dos processos de participação social e de multiplicação das vozes dissonantes que podemos avaliar a eficácia das práticas de governo e buscar alterá-las por meio da crítica. Para alcançar modos mais justos 211
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de organização das práticas de governo e de organização da vida em sociedade devemos levar em consideração a multiplicidade de interesses e o respeito às liberdades de outrem (Sen, 2011). Na Modernidade surge historicamente o discurso razoável – e, portanto, sempre ível de questionamento – como novo fundamento de organização das instituições de poder. A razão do Estado é o que orienta a agência dos governos e instituições na proposição, implementação e avaliação de estratégias práticas de garantia de direitos para a população. A laicidade é um dispositivo de proteção da diferença, sendo, assim, um princípio de promoção da valorização da diversidade social. A democracia pode ser entendida como o compromisso com o reconhecimento, consideração e respeito às diferenças entre indivíduos e grupos sociais. Esta diferença pode remeter a diversos marcadores sociais, entre os quais a condição étnico-racial, de sexo, de religiosidade, de cultura, de regionalidade, de orientação sexual, de identidade de gênero etc. É importante salientar que, na origem da emergência histórica da laicidade como princípio de governabilidade que protegeria os direitos individuais à liberdade de consciência e de expressão, os oponentes de tais propostas alegavam, no século XVIII, que a perseguição moral e religiosa poderia se justificar eticamente diante da necessidade de defender a ordem civil (Nussbaum, 2008). Da mesma forma, na contemporaneidade brasileira os discursos conservadores alegam que o processo de democratização decorreria em risco social, requerendo coibição de direitos políticos e sociais (Demier, 2016; Lionço, 2015) e de políticas de promoção da equidade tais como a educação democrática comprometida com o debate sobre gênero e sexualidade nas escolas (Barbara, Cunha, & Bicalho, 2017; Frigotto, 2017). É neste sentido que se pode associar o fundamentalismo religioso ao nacionalismo (Nussbaum, 2012; Schlegel, 2009). O fundamentalismo religioso não necessariamente se associa ao nacionalismo, mas, considerando o fundamentalismo cristão e a emergência da nova direita na América do Norte e mais recentemente no Brasil contemporâneo – ambos Estados marcados por ampla diversidade étnica e cultural –, o argumento da moralização da política associado à lógica salvacionista da nação por meio de valores religiosos tem sido uma das estratégias de tomada de poder que deve ser considerada. O fundamentalismo religioso é expressão de forças políticas conservadoras extremistas que uti212
lizam as polarizações morais para fins de demarcação de nichos eleitorais. Primando por projetos políticos de enfraquecimento do Estado de direitos, legitimam a exclusão e/ou precarização de direitos a determinados segmentos populacionais em prol da manutenção de privilégios para grupos em situação de poder hegemônico em um contexto social desigual. Para Facchini e Sívori (2017), Organizados como bancada no Congresso Nacional, na sua atuação pública, parte importante desses parlamentares evoca uma visão idealizada de unidade do “povo de Deus” como suposta maioria nacional para agitar ansiedades morais com um relato apocalíptico no qual os direitos e políticas para as mulheres e LGBT, além de cercear a liberdade religiosa, ameaçariam a integridade moral das crianças e da família brasileira (s.p.). Está em curso no Brasil a proliferação de polêmicas que levam ao pânico moral associado à agenda de direitos humanos e especialmente dos direitos sexuais e reprodutivos (Natividade, & Oliveira, 2009; Vital, & Lopes, 2013), tendendo à criminalização dos movimentos sociais e incitação do ódio contra ativistas feministas e LGBT (Lionço, 2015). Nussbaum (2008) sugere que a dignidade como direito emerge da premissa moderna de que todo ser humano tem faculdade moral e espiritual, sendo um direito associado aos direitos individuais à livre consciência e à livre expressão. Com a ascensão do liberalismo na era secular não caberia mais a tomada de parâmetro moral unívoco a partir do qual sujeitos ariam a ser medidos ou avaliados moralmente, mas cada pessoa aria a dispor do direito à dignidade ao enunciar em seus próprios termos morais e culturais o sentido que conferiria a si mesmo e à vida social. Todas as pessoas em uma dada sociedade, ainda que vinculadas a diferentes religiões e tradições culturais, podem compartilhar perguntas sobre o sentido da vida. Não é legítima a desqualificação a determinados grupos que, não estando necessariamente vinculados a determinada religião, também buscam em seus pertencimentos comunitários responder questões sobre o que seria o justo e sobre como agir da melhor forma na vida e nas relações sociais. Estas são questões que as religiões se colocam, assim como outras instituições da sociedade secular voltadas para o cumprimento da justiça e das boas condições de
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vida. O direito à dignidade é fundamento primeiro da secularização e emergência da laicidade, expressa materialmente no direito consequente da liberdade de consciência e da liberdade de expressão. A laicidade como dispositivo de proteção da liberdade de consciência e de expressão surge garantindo que numa dada sociedade as pessoas não precisam pensar e ser iguais. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi uma tentativa histórica de afirmação da inviolabilidade do direito à dignidade humana, após uma Segunda Guerra Mundial que se desdobrou no esforço de um conjunto de nações à oposição ao projeto político de extermínio. O horror ao extermínio da diferença foi o que orientou a proposição histórica da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O direito à dignidade humana, apesar de parecer um conceito autoevidente e básico, se mostra extremamente complexo. É um direito afirmado após longos períodos em que nem sempre se concebeu todas as pessoas como humanas. A era das trevas ou Idade Média foi um momento histórico de legitimação de intensa violência genocida por meio do processo inquisitorial. Operacionalizada por meio de tribunais de julgamento da heresia com base em verdades transcendentais inquestionáveis, não se dispunha do direito a ser reconhecido como sujeito que pudesse dizer em seus próprios termos quem é e o sentido do que faz. Muitas pessoas foram não apenas mortas, mas agredidas com requintes de crueldade, impondo uma marca bastante dramática de violência a períodos históricos em que a verdade religiosa cerceou a liberdade de crença das pessoas. Na mesma forma, o nacionalismo autoritário na forma de regime de governo ditatorial ecoa tais mecanismos sombrios em tempos históricos modernos, tais como os vividos pela sociedade brasileira durante a ditadura civil-militar que decorreu em perseguições políticas, detenções arbitrárias e práticas de crueldade na forma de tortura, mesmo em uma era secular. O direito à dignidade implica que toda pessoa possa dizer, em seus próprios termos, quem entende que é e como entende que leva a vida. Por isso, devemos recusar discursos de determinados grupos sociais que se referem a outros grupos sociais como não humanos ou menos humanos, garantindo a palavra a esses próprios grupos para que digam por si mesmos como se reconhecem e como entendem o modo de levar a vida e a ideia do justo. Tanto mais justa será a justiça quanto mais e melhor atender às diferenças
entre as pessoas e grupos sociais em uma vida social compartilhada. Cada grupo pode ajudar a todo o conjunto da sociedade entender o que haveria de ser justo. Tanto mais justa será uma norma quanto mais estiver atenta às diferenças que integram o conjunto da sociedade. Se a norma for pensada a partir do que apenas uma parte da sociedade pensa, esta norma não será justa para outros grupos sociais que não tiveram suas próprias representações consideradas. É por isso que as leis e outras normas não devem impor exatamente como as pessoas devem levar a vida, mas apresentar interditos sobre o que não seria legítimo fazer por acarretar danos a outrem, reservando às pessoas e grupos liberdade no modo como conduzem as próprias vidas em responsabilidade junto ao conjunto sempre mais amplo da sociedade (Sen, 2011).
Psicologia, direitos humanos, democracia
A Psicologia, tendo surgido historicamente como ciência, também desde sua origem se coloca na posição laica de ser ível de questionamento em seus discursos e práticas, de modo que, ao longo de pouco mais de um século de existência, a própria Psicologia em suas variadas vertentes epistemológicas vem se debruçando sobre a própria história para transformar seus discursos e práticas a partir de críticas internas e externas a ela mesma. Este é também o exercício próprio das ciências, pois a ciência pretende legitimar discursos válidos e não discursos pretensamente verdadeiros e inquestionáveis. O método próprio de validação do conhecimento científico é colocar em dúvida por meio do acolhimento e consideração de proposições argumentativas contrárias, visando a ética da justificação como horizonte de sua validade num dado momento histórico e contingencial. Rose (2011) propõe o revisionismo histórico da Psicologia em sua intencionalidade tecnológica, ou seja, considera a Psicologia como campo de conhecimento que agencia práticas e, portanto, promove determinadas formas de representar a vida social, a humanidade e um dado projeto de sociedade. É necessário recuperar as críticas sobre o caráter normalizador da ciência psicológica, bem como da tecnologia individualizante que diversos saberes psicológicos agenciaram historicamente, dificultando a reflexão crítica sobre condicionantes sociais, econômicos, históricos e culturais dos processos de subjetivação e de promoção/violação de direitos por 213
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meio das práticas psicológicas. Parte-se aqui da premissa de que a Psicologia pode afirmar seu compromisso com um projeto democrático de sociedade, por meio da consideração crítica do viés individualizante rumo ao reconhecimento e consideração dos fatores sociais, históricos e políticos em diversos contextos de desenvolvimento humano e de agenciamento de subjetividades e práticas institucionais. Considerar o princípio da laicidade na Psicologia remete ao nosso desafio ético de respeito e proteção às diferenças entre sujeitos e grupos sociais. Por mais que determinadas diferenças subjetivas e sociais se afastem das moralidades hegemônicas em uma dada sociedade, ainda assim integram uma lógica abrangente de pertencimento social. Rorty (2010) nos provoca a pensar sobre o necessário alargamento do círculo que delineia uma dada representação de coletividade, de modo a abranger tanto quanto possível o dissenso e a diferença insuperável entre indivíduos e grupos sociais. Faz-se necessário afirmar o caráter datado do compromisso da Psicologia com os direitos humanos, sendo no Brasil decorrente sobretudo do alinhamento entre os princípios do Código de Ética Profissional do Psicólogo ao marco constitucional de redemocratização (CFP, 2005). A reflexão sobre direitos humanos implica necessariamente a consideração sobre direitos sociais, econômicos e políticos (Santos, 2013b; Sen, 2010), caso contrário corre o risco de não decorrer em garantia material de boas condições de vida para as pessoas. É neste sentido que Gesser (2013) propõe pensar o desafio contemporâneo da Psicologia pós compromisso com a constituição democrática e com os direitos humanos tais como expressos no código de ética profissional e outras normativas de não discriminação. Fundamentalmente a regulamentação da profissão implica na adesão da categoria profissional a marcos regulatórios estatais, o que se desdobrou na construção, por exemplo, de amplos esforços da Psicologia na proposição de marcos éticos e técnicos para o exercício profissional em contextos de políticas públicas, com especial ênfase para a criação em 2006 do Centro de Referência em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop)1, que tem desenvolvido marcos de referência técnica para a atuação profissional em variadas estratégias de garantia de direitos humanos e sociais por meio de
políticas públicas nas quais profissionais de Psicologia se inserem. Em linhas gerais, a proposta de Gesser (2013) é a de que a Psicologia precisa consolidar o revisionismo histórico sobre sua identidade profissional e seus discursos teóricos na lógica do enfrentamento ao essencialismo de padrões normativos que legitimam opressões contra determinados indivíduos e/ou grupos sociais, garantindo-lhes direito à participação e proposição de caminhos de cuidado de acordo com suas reais necessidades e demandas. Vale destacar dois marcos normativos que revelam a direção revisionista da Psicologia em compromissos historicamente datados contra formas de opressão íveis de agenciamento pelos próprios discursos e práticas psicológicas. A Resolução CFP no 01/1999 (CFP, 1999) veda a patologização e tratamentos de reversão da orientação sexual, bem como a Resolução CFP no 018/2002 (CFP, 2002), que correlativamente afirma a proibição do racismo no exercício profissional, incluindo práticas de conivência com a veiculação de representações de patologização e inferiorização de pessoas negras, suas tradições e práticas culturais e/ou religiosas. Quando alguém é desumanizado ou desqualificado em sua humanidade, seja em função da orientação sexual ou de expressão da fé, tais como homossexuais e adeptos de religiões de matriz africanas, se está destituindo estas pessoas de dignidade por meio de desumanização e de atribuição de desvalor. Outro marco relevante foi a proposição de Código de Ética Profissional alinhado ao compromisso da Psicologia com um Estado democrático de direitos sociais e afirmando o compromisso com direitos humanos (CFP, 2005). Compromisso com a democracia e com os direitos humanos, implicando respeito à autonomia das pessoas, a proteção à inviolabilidade da dignidade de pessoa humana, à consideração crítica do contexto sócio-histórico e institucional no qual as práticas psicológicas se inserem, à não discriminação e ao veto ao uso do exercício profissional para “induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito” (CFP, 2005). Rosato (2011) nos ajuda a refletir sobre a conivência histórica da Psicologia com interesses hegemônicos e, portanto, avessos à lógica democrática e de garantia dos direitos humanos e sociais, ao explicitar que nas
1 Diversos materiais de referência têm sido desenvolvidos pelo Crepop e podem ser ados por meio de sítio específico: http://crepop.pol.org.br/novo/cat/publicacoes/referencias-tecnicas. Tais esforços denotam o compromisso concreto do sistema conselhos de Psicologia com a proposição de serviços psicológicos voltados para a garantia de direitos sociais.
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próprias legislações de regulamentação da profissão (em 1962) e regulamentação da formação de habilitação para o título de psicólogo (em 1964), estavam explicitados os objetivos de adaptação e de adequação de indivíduos a diversos contextos institucionais, como educação e mercado de trabalho, reservando também à clínica psicoterapêutica intencionalidade normalizadora e portanto cerceadora do reconhecimento da diversidade subjetiva, moral e cultural. Para Rosato (2011), a partir da (re) democratização do país, o campo psicológico se ampliou e houve uma ruptura com o que inicialmente foi a proposta da profissão. Já não era mais possível manter uma Psicologia individualizante, descontextualizada e a-histórica. Esse momento político vivenciado no país apresenta-se como momento de ruptura para a Psicologia, ou pelo menos, permite à profissão o começo de uma longa e fértil revisão de suas propostas de intervenção. Pode-se dizer, inclusive, que esse novo contexto reforçou a necessidade de uma avaliação da profissão e seus objetivos, enfim, de sua função pública perante a sociedade brasileira (p. 16). Os marcos éticos e técnicos da profissão resguardam a autonomia de profissionais de Psicologia no uso de diferentes bases teóricas e técnicas, orientando a profissão a partir de posicionamentos que abrangem um conjunto amplo de discursos e práticas em Psicologia. Requer, no entanto, a consideração do caráter datado de vários discursos teóricos da Psicologia, posto que, em momentos históricos anteriores ao compromisso com a ética democrática e com os direitos humanos, a Psicologia produziu narrativas coniventes com a naturalização das desigualdades sociais e atribuição de anormalidade a grupos sociais historicamente estigmatizados e/ou minoritários diante de um contexto de hegemonia moral. Reconhecendo que a Psicologia, seus discursos e práticas podem tanto agenciar tecnologias de promoção ou de violação de direitos humanos, torna-se relevante considerar a importância da construção de marcos normativos de referência que afirmem o compromisso em construir “uma sociedade menos injusta e que tenha como princípio norteador o respeito à dignidade humana” (Rosato, 2011, p. 26).
Método
Esta é uma pesquisa exploratória qualitativa, organizada em torno de uma amostra de conveniência. Optou-se pela realização de uma análise qualitativa de documentos públicos que aproximam a Psicologia do fenômeno contemporâneo do fundamentalismo religioso e/ou da defesa da laicidade do Estado. Foi realizada análise de documentos na lógica da metodologia de pesquisa qualitativa da Teoria Fundamentada (Strauss, & Corbin, 2008), que tem como horizonte a produção de teorização sobre determinado objeto fundamentada em evidências empíricas. A Resolução do CFP no 01/1999 (CFP, 1999) orientou a amostra de conveniência para análise das relações entre Psicologia e fundamentalismo religioso por consistir em uma normativa da categoria de classe profissional que sofre ofensiva direta de parlamentares de bancadas religiosas. Para tanto se levantou no Portal da Câmara dos Deputados proposições legislativas a partir dos termos de busca “Resolução no 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia” e “tratamento de homossexuais”, tendo alcançado três proposições apresentadas entre os anos 2011 e 2016. No que se refere à construção de normativas do sistema conselhos de Psicologia sobre laicidade e fundamentalismo religioso, aproveitou-se a compilação realizada pelo Conselho Regional de Psicologia (CRP) de São Paulo publicada em seu sítio virtual na seção Áreas Temáticas, cujo tema é Diversidade Epistemológica não Hegemônica em Psicologia, Laicidade e Diálogo com Saberes Tradicionais (Diverpsi)2. A atualização dos dados foi realizada ao se verificar diretamente o sítio virtual do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o Relatório Preliminar do IX Congresso Nacional da Psicologia, documento de referência para conhecer as deliberações democráticas da categoria sobre atuação do sistema conselhos de Psicologia. A partir dos documentos de referência levantados tanto por meio do Portal da Câmara dos Deputados quanto aqueles concernentes ao Sistema Conselhos de Psicologia, foram estabelecidas três categorias analíticas a partir das quais é possível discutir a complexidade das relações entre Psicologia, laicidade e fundamentalismo religioso: (1) ofensivas fundamentalistas contra a Psicologia; (2) uso da Psicologia por fundamentalistas religiosos; e (3) compromisso da Psicologia na defesa da laicidade.
2 O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP/SP) vem organizando Cadernos Temáticos que podem ser ados na seção “Áreas Temáticas” do sítio virtual. O Caderno Temático “Diversidade Epistemológica não-hegemônica em Psicologia, Laicidade e Diálogo com Saberes Tradicionais” pode ser recuperado por meio do link http://www.crpsp.org.br/diverpsi/.
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Resultados
O fundamentalismo religioso no contexto brasileiro se relaciona com a Psicologia em pelos menos três dimensões. A primeira é a da ofensiva fundamentalista contra normativas éticas da profissão no cenário parlamentar, na lógica de proposições legislativas que incidem sobre normativa ética da profissão, a saber a Resolução no CFP 01/1999 (CFP, 1999). A segunda é a do uso da Psicologia para os propósitos do fundamentalismo religioso. A incidência do viés religioso no seio da própria Psicologia também partilha de premissas fundamentalistas ao propor a anterioridade da convicção de fé sobre discursos científicos e práticas psicológicas, subalternizando os consensos democráticos construídos pela categoria de classe profissional em prol da imposição de irrevogabilidade de preceitos de fé em todas as dimensões da vida social, incluso o exercício profissional. É o caso da pretensa adjetivação cristã para a Psicologia, desvirtuando a identidade profissional. A terceira é a da construção de marcos de referência para a categoria profissional na afirmação da laicidade e do necessário enfrentamento do fundamentalismo religioso no cenário brasileiro contemporâneo.
Ofensivas fundamentalistas contra a Psicologia
A principal ofensiva contra a Psicologia se refere ao tratamento das homossexualidades, na forma de proposições legislativas que incidem sobre a própria autonomia da categoria de classe profissional na regulação ética da profissão. O Projeto de Decreto Legislativo (PDC) no 234/2011, de autoria do Deputado Federal João Campos decorreu em variadas audiências públicas antes de seu arquivamento, em 2013. A proposição visava sustar o parágrafo único do artigo segundo da resolução, bem como o seu artigo terceiro, que tratam respectivamente do veto às terapias de reversão da orientação sexual e do impedimento do pronunciamento público por parte de profissionais que tendessem à patologização da homossexualidade. O deputado alega, na justificação da proposição, que “o Conselho Federal de Psicologia, ao restringir o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de receber orientação profissional, por intermédio do questionado ato normativo, extrapolou o seu poder regulamentar”. Note-se que o teor argumentativo da proposição é o de que liberdades de profissionais teriam sido cerceadas pela resolução do conselho de 216
classe, não recorrendo à argumentação religiosa, mas sim à retórica legalista. Em 2016 a ofensiva foi atualizada por meio da proposição do Projeto de Decreto Legislativo no 539/2016, de autoria do Deputado Federal Pastor Eurico. Enquanto o PDC no no 234/2011 se propunha a sustar dois parágrafos da Resolução, a saber, a destinada a vedar a manifestação pública de profissionais de Psicologia no sentido de patologizar a homossexualidade e o veto aos tratamentos de reversão da orientação sexual, o PDC no 539/2016 se propõe a sustar o inteiro teor da Resolução, propondo que não haja mais normativa ética e técnica da profissão específica sobre a homossexualidade. O argumento adotado pelo deputado pastor é o do ultraamento das competências do conselho de classe, que teria incidido em censura de profissionais por meio da resolução, alegando que “não pode o Estado estabelecer, a priori, o que pode e o que não pode ser dito pelos indivíduos, muito menos um Conselho de entidade profissional regulamentar” (s.p.). As proposições foram apelidadas pela opinião pública como projetos de “cura gay”, e o teor da argumentação adotada já foi objeto de análise por parte de Rios, Silva, Resadori e Vidor (2017), que reafirmaram a autonomia do CFP como autarquia federal na proposição de marcos normativos para o exercício profissional em consonância com o marco constitucional democrático brasileiro. Ainda, o deputado pastor argumenta que não bastasse tal censura violar o direito fundamental da proteção ao desenvolvimento da ciência, também violou o seu direito de regular a profissão, como já demonstrado acima, pois ultraou sua margem em desrespeito a mais um direito fundamental do artigo 5º, II, da CF, que dispositiva “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (Pastor Eurico, 2016, s.p.) Ambas as proposições de decretos legislativos adotam a argumentação legalista, remetendo a argumentação para o direito constitucional. Curiosamente a ofensiva contra normativa da Psicologia propõe que interesses científicos estariam sendo cerceados por um mecanismo de censura contra profissionais de Psicologia que viessem a desenvolver pesquisas sobre métodos de tratamento de pessoas homossexuais que
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estivessem em conflito moral com a própria orientação sexual, a chamada egodistonia na terminologia médico psiquiátrica. Apesar da relação direta de ambos os deputados com a Bancada Evangélica, não se adota retórica religiosa nas proposições legislativas, o que leva à consideração do manto cientificista e legalista como estratégia argumentativa dos fundamentalistas religiosos na política. Ainda, foi apresentado o Projeto de Lei (PL) no 4931/2016 pelo Deputado Federal Ezequiel Teixeira, também integrante da Bancada Evangélica, que propõe “assegurar o direito à modificação da orientação sexual em atenção à dignidade humana”. O PL no 4931/2016 propõesugere suspender quaisquer sanções relativas a profissionais que praticassem tratamentos “visando auxiliar a mudança da orientação sexual, deixando o paciente de ser homossexual para ser heterossexual” (s.p.). De acordo com a proposição legislativa, Art. 1º Fica facultado ao profissional de saúde mental, atender e aplicar terapias e tratamentos científicos ao paciente diagnosticado com os transtornos psicológicos da orientação sexual egodistônica, transtorno da maturação sexual, transtorno do relacionamento sexual e transtorno do desenvolvimento sexual, visando auxiliar a mudança da orientação sexual, deixando o paciente de ser homossexual para ser heterossexual, desde que corresponda ao seu desejo. Art. 2º O profissional que atuar em atenção ao artigo anterior, não poderá sofrer qualquer sanção pelos órgãos de classe. O argumento do Deputado Ezequiel Teixeira vem confirmar a hipótese do manto de cientificismo como estratégia fundamentalista, ao afirmar que “no entanto, visando não entrar, apenas, no campo religioso e para manter o debate no aspecto científico” (s.p.), recupera algumas classificações disponíveis nos manuais diagnósticos da psiquiatria para se referir ao caráter doentio da homossexualidade, que não deixa de explicitar como a concepção que fundamenta o Projeto de Lei: “penso que a homossexualidade causa diversos transtornos psicológicos” (s.p.).
Tais ofensivas fundamentalistas contra a Psicologia adotam manto legalista e cientificista para forjar interesse científico para a garantia da liberdade de mudar a orientação do desejo sexual. Desconsideram que a normativa da Psicologia se fundamenta não apenas no marco político de compromisso da Psicologia com direitos humanos, mas também em consensos científicos sobre a ineficácia das terapias de reversão da orientação sexual, tais como sistematizados no documento produzido pela American Psychological Association denominado Appropriate Therapeutic Responses to Sexual Orientation (American Psychological Association, 2009). Tal documento de referência apresenta como principais resultados da revisão de estudos empíricos de reversão da orientação sexual: a não garantia de mudança da orientação sexual por meio de técnicas psicoterapêuticas; o agravamento do sofrimento psíquico decorrente de tais práticas; e a ideação religiosa como principal justificativa para as demandas por terapias de reversão. Sinaliza, ainda, para a importância do manejo clínico psicoterapêutico entre as convicções de fé e a necessidade de manutenção de posição ética pela não patologização da homossexualidade. Isso leva à consideração da importância do reconhecimento e respeito às convicções de fé das pessoas, o que não se confunde com ser conivente com a patologização e orientação dos esforços terapêuticos na lógica da reversão.
O uso da Psicologia por fundamentalistas religiosos
A problemática se complexifica quando se pode evidenciar que durante as audiências públicas relacionadas à matéria, especificamente em relação ao PDC no 234/2011, a Psicologia tem sido acionada para defender as proposições legislativas oriundas da incidência do discurso religioso de viés fundamentalista na política nacional. Isso leva à necessidade de consideração da segunda forma de associar a Psicologia à violação da laicidade: o uso da Psicologia para os propósitos fundamentalistas. Durante as audiências públicas realizadas para debater o PDC no 234/2011, uma profissional de Psicologia que se auto-intitulaautointitula “psicóloga cristã”3 participou na defesa do projeto, assim como o pastor Silas Malafaia fez questão de explicitar que tem formação em Psicologia em
Trata-se do caso da missionária Marisa Lobo, amplamente difundido na mídia nacional. A mesma tem participado de debates públicos sobre drogas e gênero, com ênfase em narrativas moralistas e familistas e patologização das homossexualidades e usuários de drogas.
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suas argumentações favoráveis à proposição legislativa. Isso significa que mesmo nas ofensivas contra a Psicologia que tem sido desencadeadas por meio de projetos legislativos fundamentalistas, a Psicologia tem sido usada como argumento de autoridade para questionar a própria autonomia da Psicologia como profissão. Pode-se compreender que o manto de cientificidade é a principal estratégia argumentativa adotada por fundamentalistas religiosos nas disputas políticas, inclusive na ofensiva contra a Psicologia, de modo a requerer compreensão do fundamentalismo religioso como projeto político antidemocrático que não se assenta na afirmação literal do texto sagrado, mas na autoatribuição de superioridade moral à posição religiosa. No entanto, a posição moral religiosa se apresenta pretensamente em linguagem científica a fim de conquistar credibilidade nas disputas políticas em uma era secular. Vale destacar a inoperância do sistema conselhos de Psicologia na coibição de tais práticas, pois a representação ética contra profissional de Psicologia que explicitamente viola preceitos do código de ética profissional e da Resolução CFP no 01/99 por meio de site e comunicações públicas não decorreu na alteração do teor público de seus pronunciamentos. . Além de narrativas publicadas na internet e/ou materiais impressos, Marisa Lobo inclusive usou a polêmica pública em torno da representação ética sofrida como motor de campanha política para candidatura à câmara legislativa do seu estado de referência, em 20144. O CRP do Paraná emitiu Nota Técnica sobre a confissão da fé e o exercício profissional em 2015, afirmando que A(O) Psicóloga(o), assim como todo ser humano, pode ou não ter uma identificação religiosa, mística e/ou espiritual. Entretanto, trata-se aqui de esclarecer a relação da expressão da identidade religiosa, sobre a qual não há restrições, com a atividade profissional, essa sim regulamentada pelo código de ética da profissão, e evitar possí-
veis conflitos com este. De tal forma que reafirma: a nomenclatura na identificação da(o) profissional deve referir-se à atuação deste e não a aspectos de foro íntimo, como sua confissão de fé (s.p.).5 Tal associação entre a fé e o exercício profissional não deve ser entendida como caso isolado. Em 2017, o CRP do Rio de Janeiro e o CFP emitiram posicionamentos públicos sobre as ofertas de formação em “Psicologia Cristã” que tem se apresentado no país. Ambos os conselhos afirmam que a “Psicologia Cristã” não é uma das doze especialidades reconhecidas pela categoria de classe, remetendo a formação em Psicologia para parâmetros normativos estabelecidos por legislação específica e afirmando a laicidade da profissão6.
A Psicologia na defesa da laicidade
A terceira forma de compreender o modo como a Psicologia estabelece relação com o fundamentalismo religioso no Brasil é a proposição de marcos de referência, no âmbito do sistema conselhos de Psicologia, para afirmação da defesa da laicidade e necessidade de recusar o fundamentalismo religioso. A este respeito, além de compreender que o Código de Ética Profissional e as Resoluções CFP no 01/1999 (CFP, 1999) e Resolução CFP no 018/2002 (CFP, 2002), que respectivamente versam sobre coibição de discriminação por orientação sexual e cor, são marcos relevantes de afirmação da laicidade por meio do reconhecimento e valorização da diversidade moral, cultural, social e subjetiva, o sistema conselhos de Psicologia tem produzido outras referências mais explicitamente afirmativas na defesa da laicidade. É importante notar que a emergência histórica de marcos éticos na profissão que explicitam a defesa da laicidade e a recusa do fundamentalismo religioso am a integrar documentos de referência para a categoria profissional em 2013, o que leva à constatação de
Marisa Lobo foi candidata a Deputada Federal pelo Partido Social Cristão no Paraná em 2014, tendo registrado candidatura como “Psicóloga Cristã Marisa Lobo”, de acordo com as informações públicas disponíveis em https://www.eleicoes2014.com.br/psicologa-crista-marisa-lobo/ . 5 Conselho Regional de Psicologia do Paraná, 2015, emite Nota Técnica sobre confissão de fé e exercício profissional. Recuperado de http://portal.crppr.org.br/noticia/nota-tecnica-sobre-a-confissao-de-fe-e-a-atuacao-profissional. 6 Nota de posicionamento do Conselho Regional de PsicologiaCRP sobre titulação em “Psicologia Cristã”. Recuperado de https://www. facebook.com/crprj/photos/a.237085729713281.60582.236430 666445454/1259904200764757/?type=3&theater. Nota de posicionamento do CFP sobre formação em “Psicologia Cristã”. Recuperado de http://site.cfp.org.br/formacao-em-psicologia-crista-comunicado-do-cfp/ 4
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que decorrem dos ataques sofridos pela Psicologia no Congresso Nacional por parte da Bancada Evangélica. Diante de tais ofensivas à própria autonomia da classe profissional, em 2013 foram deliberadas quatro moções durante o VIII Congresso Nacional de Psicologia (CNP, 2013), que consiste na instância deliberativa de consensos democráticos da categoria profissional. A 11a Moção repudia as terapias de reversão da orientação sexual, assim como a 12a Moção repudia explicitamente o PDC no 234/2011. A 14a Moção consiste em apoio à inclusão do diálogo com epistemologias não hegemônicas e os saberes tradicionais nos ambientes de formação e pesquisa, complexificando a reflexão da categoria profissional sobre a necessidade de reconhecimento de epistemologias não científicas que tangenciam valores tradicionais, na perspectiva da integralidade da atenção à saúde e das práticas integrativas e complementares no âmbito do Sistema Único de Saúde. Esta moção é relevante pois denota a abertura da Psicologia ao reconhecimento e valorização de práticas sociais e culturais que tangenciam crenças religiosas ou práticas de espiritualidade, sem discriminação a tais formas de compreender e intervir sobre os processos de sofrimento, adoecimento e cuidado em saúde, afirmando o caráter democrático do compromisso social da Psicologia. No entanto, no mesmo VIII Congresso Nacional da Psicologia, foi também aprovada a 15a Moção, que repudia ações reducionistas que atentem contra a liberdade de crença e de consciência, afirmando a laicidade como valor a ser defendido contra qualquer tentativa fundamentalista de quaisquer grupos, sejam eles religiosos, científicos ou de quaisquer naturezas que procurem cooptar consciências, naturalizar as desigualdades, recusar-se ao diálogo que desconsidere a construção histórica da realidade e que, portanto, queiram impor sobre a sociedade quaisquer formas de reducionismo dogmático proposto por projetos, sejam de lei ou de outra natureza, regulamentações ou quaisquer formas de imposição totalitárias que atentem sobre as liberdades instituídas e o Estado de Direito. (Congresso Nacional de Psicologia, 2013, pag. 65-66). Vale destacar que em 2013, ainda, o Grupo de Trabalho Laicidade e Psicologia, que envolve conselheiros de diferentes Conselhos Regionais e CFP, teve
aprovada na APAF do sistema conselhos de Psicologia a Nota Técnica Laicidade e Psicologia – Posicionamento do Sistema Conselhos de Psicologia para a questão da Psicologia, religião e espiritualidade (GT Nacional Laicidade e Psicologia, 2013 apud Conselho Regional de Psicologia/SP, 2014). Tal documento de referência afirma que a Psicologia não se funda em verdade dogmática religiosa, o que não significa que profissionais de Psicologia não possam ter religião. A Psicologia reconhece que no conjunto da sociedade as pessoas apresentam diferentes vinculações a doutrinas e instituições religiosas, e também reconhece que há pessoas que não expressam fé em nenhuma religião ou mesmo afirmam que não acreditam na existência de Deus, o que não significa que estas últimas não estejam comprometidas com o justo e com a busca por melhores condições de vida em sociedade. A Psicologia reconhece que a espiritualidade é uma experiência subjetiva fundamental à condição humana, se referindo à busca de sentido sobre as origens e o destino da humanidade, condição básica de produção de sentido sobre aquilo para o qual não temos respostas íveis de verificação. Toda religião tem uma dimensão de espiritualidade, mas a espiritualidade como condição humana não requer vinculação às religiões, sendo a espiritualidade também uma dimensão subjetiva de pessoas que não tem religiosidade. Afirma, ainda, que a Psicologia como ciência não se baseia em verdades transcendentais, mas reconhece que nem todo o conjunto da sociedade organiza suas práticas com base na ciência. Afirma a importância dos saberes tradicionais, que podem inclusive associar práticas de cura a verdades religiosas. Saberes tradicionais são práticas de cura pré-científicas que inclusive parte da ciência se dedica a compreender os fundamentos de sua eficácia pois mesmo antes da emergência das ciências na Modernidade os grupos sociais organizaram seus conhecimentos e práticas de modo a cuidar de seus povos. Por fim, afirma a recusa “qualquer tentativa fundamentalista de imposição de dogma religioso, seja ele qual for, sobre o Estado, a Ciência e a profissão” (GT Nacional Laicidade e Psicologia, 2013 apud CRP/SP, 2014). Em 2014, ano eleitoral, foi apresentada a “Carta dos Conselhos Regionais de Psicologia à População Brasileira: Psicologia, laicidade e discurso religioso nas eleições” (CRP/SP, 2014). O documento afirma que para a manutenção democrática do debate eleito219
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ral partidos deveriam apresentar propostas sem apelo a argumentos que promovem ideologias fundamentalistas, comprometendo a dignidade de diversos grupos sociais a partir de polarizações morais em torno da agenda de direitos humanos. O IX CNP, realizado em 2016, aprovou ainda proposta de construção de Política Nacional de Psicologia e Laicidade, priorizando o compromisso da atuação do (a) psicólogo (a) com base na laicidade, reconhecendo e respeitando a pluralidade de manifestações religiosas e repudiando as construções ideológicas que ferem o Código de Ética Profissional e à Resolução CFP nº 001/1999, que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual, e Resolução CFP nº 018/2002, que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação a preconceito e discriminação racial (CNP, 2016, pag. 27). A argumentação que segue a proposição de uma Política Nacional de Psicologia e Laicidade orienta parâmetros a partir dos quais se deveriam guiar as reflexões e deliberações a serem construídas pela categoria de classe. A menção às Resoluções CFP no 01/1999 (CFP, 1999) e no 018/2002 (CFP, 2002), que tratam da homossexualidade e do racismo, levam ao entendimento de que a consideração das interfaces entre Psicologia e religiosidade não deveriam, por um lado, decorrer em patologização ou violação da dignidade de homossexuais, e por outro, deveriam reconhecer especificidades culturais da população negra, possivelmente incluindo a questão das religiosidades de matriz africanas sem discriminação. Ainda, pode-se compreender que o repúdio a construções ideológicas que feririam o código de ética profissional remete ao posicionamento da categoria de classe pela reafirmação do reconhecimento da diversidade moral, cultural e religiosa da sociedade brasileira e contra o fundamentalismo religioso.
Concluindo um esforço de sistematização: a Psicologia ontem, hoje e amanhã.
É importante considerar que a incidência do discurso religioso na política nacional tem se revelado uma ofensiva fundamentalista antidemocrática e usurpadora da agenda de direitos humanos para fins 220
de polarização moral e acirramento das desigualdades com prejuízo para grupos sociais historicamente marginalizados, tais como mulheres, minorias sexuais e população negra. A Psicologia como ciência e como profissão conta em sua história com marco necessário de afirmação de compromisso com a ética democrática e com a defesa e promoção dos direitos humanos, tendo em momento histórico anterior se demonstrado conivente com forças conservadoras hegemônicas de manutenção de desigualdades sociais e mesmo de autoritarismo estatal. Torna-se extremamente importante primar pela construção de uma identidade profissional consciente de sua história de modo a implicar o compromisso da categoria profissional com a defesa do Estado de Direito democrático. A laicidade da Psicologia deve ser afirmada como pilar de sua legitimidade científica, bem como de seu compromisso histórico com a democracia e participação nas políticas públicas e estratégias de garantia de direitos sociais, econômicos, políticos e culturais. Dado o caráter paradoxal da relação entre Psicologia, laicidade e fundamentalismo religioso na contemporaneidade, faz-se necessário ampliar os debates sobre ética profissional, primando pelo reconhecimento da diversidade subjetiva, moral, social e cultural como valor na sociedade brasileira. Os esforços para aproximação entre o sistema conselhos de Psicologia, por um lado, e a Psicologia acadêmica, por outro, é fundamental para que a formação em Psicologia esteja comprometida com a função histórica e social da Psicologia como ciência e como profissão na luta pela construção de uma sociedade democrática. Faz-se necessário acompanhar reflexões críticas sobre o atual cenário político brasileiro a partir da consideração do lugar da Psicologia neste processo, de modo a promover mudança em representações e discursos teóricos datados que não necessariamente correspondem aos desafios éticos para o exercício profissional na contemporaneidade. Espera-se que profissionais de Psicologia inseridos nos mais variados campos de atuação profissional atentem para a importância da defesa da laicidade, da ética democrática e da recusa a toda forma de discriminação e intolerância, de modo a revisar historicamente a função da Psicologia no agenciamento de práticas e discursos de normalização, primando pelo reconhecimento dos direitos humanos e garantia de direitos sociais, econômicos e políticos fundamentais à democracia.
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Este estudo exploratório permite sinalizar algumas direções de reflexões que podem ser importantes para o processo de construção de uma Política Nacional de Laicidade e Psicologia. Um dos caminhos a serem trilhados é o da revisão sistemática e crítica do campo da Psicologia da Religião, a fim de verificar se há tendenciosidade religiosa na produção de conhecimento em Psicologia. A inexistência de estudos que tematizem a laicidade como conceito estruturante da reflexão sobre as relações entre Psicologia e religiosidade e/ou espiritualidade pode ser um sinal de não garantia deste princípio tão caro à proteção das diversidades. Outro caminho a ser percorrido é o da reflexão crítica sobre como reconhecer saberes tradicionais e epistemologias não hegemônicas mantendo a neutralidade laica da Psicologia. Pode parecer simples a reivindicação da aproximação da Psicologia aos saberes tradicionais tais como oriundos de comunidades indígenas e quilombolas
ou dos povos de santo, mas a questão ética deve ser a de como não estabelecer laços de associação da fé ao exercício profissional, assim como deve ser vedado em relação à fé cristã afirmada majoritária em nosso país. Uma das direções interessantes para avançar no compromisso da Psicologia com a ética democrática, a laicidade e contra fundamentalismos religiosos seria a retomada do Movimento Estratégico do Estado Laico7. Tal iniciativa decorreu de articulação do próprio Conselho Federal de Psicologia com a sociedade civil organizada para a defesa da laicidade do Estado diante das ameaças do fundamentalismo religioso à democracia. O diálogo com diferentes movimentos sociais de defesa dos direitos humanos e também com comunidades de fé de diferentes matizes religiosos é um caminho interessante para tecer diretrizes éticas e técnicas condizentes com a complexidade e diversidade moral, cultural e religiosa da sociedade brasileira.
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Tatiana Lionço Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, Brasília –DF. Brasil. E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, Campus Darcy Ribeiro – ICC Sul, Instituto de Psicologia. CEP: 72.910-000. Brasília – DF. Brasil. Recebido 30/06/2017 Reformulação 01/10/2017 Aprovado 02/10/2017 Received 06/30/2017 Reformulated 10/01/2017 Approved 10/02/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 01/10/2017 Aceptado 02/10/2017
Como citar: Lionço, T. (2017 ). Psicologia, democracia e laicidade em tempos de fundamentalismo religioso no Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 208-223. https://doi.org/10.1590/1982-3703160002017 How to cite: Lionço, T. (2017). Psychology, democracy and laicity in times of religious fundamentalism in Brazil. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 208-223. https://doi.org/10.1590/1982-3703160002017 Cómo citar: Lionço, T. (2017). Psicologia, democracia y laicidad en los tiempos de fundamentalismo religioso no Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 37((n. spe), 208-223. https://doi.org/10.1590/1982-3703160002017 223
Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 224-238. https://doi.org/10.1590/1982-3703170002017
Psicologia e Democracia em um Cenário de Cidade como Campo em Disputa
Elisa Martins Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Fhillipe Pereira Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Gabriela Salem Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Lucas Gabriel de Matos Santos Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Roberta Brasilino Barbosa Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Resumo: No Rio de Janeiro, o planejamento urbano e o direito à cidade vêm sofrendo contundentes interferências do modelo neoliberal, colocando em conflito os interesses de quem habita o território e os das grandes corporações do capital financeiro. Tais interferências agravam problemas já conhecidos dos cariocas, como negação de direitos básicos, criminalização da pobreza e aumento do custo de vida. No presente texto, trabalhou-se com a ideia de cidade não como palco de uma disputa sócio-histórica de classes ou como objeto dessa disputa, mas como o emergir da própria disputa. Interessa-nos analisar e discutir os efeitos desse confronto, além de elaborar formas de resistência e de superação das desigualdades que marcam a experiência humana na realidade social brasileira. Nesse cenário, faz-se necessária a construção de outro modo de fazer Psicologia, comprometido em reunir elementos de ação capazes de intervir na realidade que vem sendo imposta a partir da perspectiva de cidade-negócio. Uma Psicologia que tenha a luta e participação política como metas para uma experiência democrática de sociedade, consolidando dessa forma o compromisso social como norteador da profissão. Palavras-chave: Direito à Cidade, Psicologia, Participação Social.
Psychology and Democracy in a Scenario of the City as a Disputed Field Abstract: In Rio de Janeiro, urban planning and the right to the city have been suffering neoliberal model’s strong interference, putting into conflict the interests of those who dwell the territory and the large corporations of the financial capital. That interference exacerbates problems already known by cariocas, such as the denial of basic rights, the criminalization of poverty and an increase in the cost of living. In the present text, we worked with the idea of city not as the stage of a historical social class dispute or as the object of this dispute, but as the emergence of the dispute itself. We are interested in analyzing and discussing the effects of this dispute, as well as in elaborating ways of resistance and overcoming the inequalities that mark human experience in the Brazilian social reality. In this scenario, it is necessary to construct another way of doing Psychology, committed to gathering elements of action capable of intervening in the reality that has been imposed from the perspective of the entrepreneurial city. A Psychology that has struggle and political participation as goals for a democratic experience of society, thus consolidating social commitment as a guide to the profession. Keywords: Right to City, Psychology, Social Participation.
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Martins, E.; Pereira, F.; Salem, G.; Santos, L. G. M.; Barbosa, R. B. (2017). Psicologia, Democracia e Cidade em Disputa.
Psicología y Democracia en un Escenario de Ciudad como Campo en Disputa Resumen: En Río de Janeiro, la planificación urbana y el derecho a la ciudad vienen sufriendo contundentes interferencias del modelo neoliberal, poniendo en conflicto los intereses de quienes habitan el territorio y los de grandes corporaciones del capital financiero. Tales interferencias agravan problemas ya conocidos por los cariocas, como negación de derechos básicos, criminalización de la pobreza y aumento del costo de vida. En el presente texto, vamos a trabajar con la idea de ciudad no como escenario de una disputa socio-histórica de clases o como objeto de esa disputa, sino como el emerger de la propia disputa. Nos interesa analizar y discutir los efectos de esa confrontación, además de elaborar formas de resistencia y de superación de las desigualdades que marcan la experiencia humana en la realidad social brasileña. En ese escenario se hace necesaria la construcción de otro modo de hacer Psicología, comprometido con reunir elementos de acción capaces de intervenir en la realidad que viene siendo impuesta desde la perspectiva de ciudad-negocio. Una Psicología que tenga la lucha y participación política como metas para una experiencia democrática de sociedad, consolidando de esa forma el compromiso social como orientador de la profesión. Palabras clabe: Derecho a la Ciudad, Psicología, Participación Social.
Introdução
Os trabalhadores subalternizados (Silva, & Barbosa, 2005) da cidade do Rio de Janeiro sofreram diversas vezes com os despejos forçados ao longo da história. Apesar de não ser novidade, recentemente, em razão de megaeventos esportivos e das transformações urbanísticas que impam à cidade, esse processo se intensificou, ao negar o direito à moradia de milhares de famílias cariocas. De acordo com dados do Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro (2015), até novembro de 2015, 22.059 famílias haviam sido removidas na cidade do Rio de Janeiro. Moradores de diversas comunidades da cidade foram e continuam sendo forçados a sair de suas casas, seja pela intervenção direta do Estado, para o desenvolvimento dos megaeventos ou por estarem em “áreas de risco”, seja devido às forças da especulação imobiliária e da gentrificação. Entendemos que moradia está para muito além de quatro paredes. Ao negar esse direito, se está negando também os direitos à saúde, à educação, ao trabalho e ao lazer. As remoções obrigam os moradores a mudarem-se para áreas periféricas, onde a terra vale menos. Novas favelas são formadas e conjuntos residenciais de reassentamento são construídos. Esse processo se dá de forma antidemocrática, sem participação da população, nem ao menos da comunidade que sofrerá diretamente essas transformações. O modelo neoliberal, ao transformar moradia em negó-
cio, nega políticas que entendam a dimensão social da moradia e a compreensão dela mesma como um direito humano. Na lógica do mercado imobiliário, o lucro importa mais que a vida das pessoas e o valor da terra é medido em dólares ou reais, em vez de memória e história. Como já propôs Santos (1999), o espaço é um importante elemento para a constituição do sujeito e para a compreensão da dinâmica social, pois é no espaço da cidade que homens e mulheres imprimem sua marca, desenvolvem relações e sobrevivem. A história não se escreve fora do espaço. Neste sentido, entendemos a grande importância de fazer uma reflexão sobre a relação espaço-subjetividade e pensar sobre os impactos subjetivos da segregação espacial. É impossível dissociar a cidade do sujeito que nela habita, da mesma forma que, para uma apreensão da cidade, é preciso pensar em seus moradores. A Psicologia que tem como norte o compromisso social precisa considerar o espaço urbano como elemento imprescindível para a compreensão da dimensão subjetiva, pois, ao o que o sujeito transforma a cidade, ele também é transformado por ela. Dessa maneira, é papel da Psicologia contribuir com práticas que afirmam uma visão de cidade que não privilegie o espaço urbano para especulação e obtenção de lucro, mas que considere, primeiramente, o bem-estar daqueles que a habitam. É preciso elaborar outro modo de fazer Psicologia, que tenha na luta e participa225
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ção política metas para uma experiência democrática de sociedade, o que necessariamente a pela experiência de cidade. Nesse intuito desenvolvemos um projeto de trânsito pela cidade, mencionado na segunda parte do texto, com jovens moradoras e moradores da região da Comunidade Indiana Tijuca e do Complexo do Borel. Uma tentativa de problematizar questões que os afetam diretamente, no que se refere ao direito à cidade. Apostamos na própria mobilização social do grupo como estratégia metodológica de trabalho, entendendo que a articulação do coletivo pode ser um instrumento promotor de autonomia, capaz de estimular uma participação política, social e democrática, e contribuindo para a resistência às transformações que aquele espaço urbano tem sofrido e que afetam as interações sociais das pessoas que ali habitam.
Cidade como campo em disputa
Pensemos inicialmente na cidade enquanto uma sobreposição de lugares que acontecem, de hábitos, de movimentos, de existências, de sistemas, ou, o que sugere Santos (2006), um eixo de sucessões de acontecimentos e um eixo de coexistências em um lugar, o que faz com este lugar seja instável e não homogêneo. As diversas linhas sobrepostas que existem na cidade nos ajudam a enxergá-la como um lugar de diversos eventos, como o espaço do acontecer, e que, a partir das rupturas e linhas que se chocam, dão lugar a outros eventos (Santos, 2006). Cada acontecer é, ao mesmo tempo, causa e efeito de outros eventos e essa influência, com a globalização, alcança uma universalidade cada vez maior. O que acontece a nível global pode fazer surgir ou alterar eventos locais, e um evento local pode criar desvios a níveis globais. Temos então o local enquanto o lugar da interação da vizinhança, da intimidade, do que é marcado na medida em que marca o território, do morador, e que responde, do seu modo, à racionalidade global; e o global, que busca impor uma única racionalidade, e que se apresenta como normas, métodos e padrões. Esses entendimentos de Santos (2006) se aproximam do que Lefebvre (2001, p. 52) traz como a ordem distante (global) e a ordem próxima (local): A ordem distante, se institui em um nível superior, isto é, neste nível dotado de poderes. Ela se impõe, abstrata, formal, supra-sensível, e trans226
cendente na aparência, não é concebida fora das ideologias (religiosas, políticas). Comporta princípios morais e jurídicos. Esta ordem distante se projeta na realidade prático-sensível. Torna-se visível ao se inscrever nela. Na ordem próxima, e através dessa ordem, ela persuade, o que completa seu poder coator. Ela se torna evidente através e na imediatez. Santos (2006) traz estas duas razões, global e local, de uma maneira dialética, que não só se associam, mas se contradizem, se complementam, mas também se confrontam. Interessa-nos analisar o que é produzido e produz um desses confrontos, dessas contradições, trazendo o que chamamos de “disputa pela cidade”. Em tempos de globalização e neoliberalismo, no qual a intervenção estatal em regimes de bem-estar social se apequena frente às exigências de um mercado especulativo em constante movimento, a discussão sobre cidade enquanto um campo em disputa é fundamental. É preciso entender os efeitos e desdobramentos do sentido contemporâneo dado ao espaço urbano, não mais como um lugar de condições necessárias para acumulação do capital, mas que reproduz diretamente o capital enquanto se é produzido como espaço (Carlos, Volochko, & Alvarez, 2015). Portanto, não traremos a cidade como palco de uma disputa social e histórica entre classes, e nem como objeto dessa disputa, por entendermos que a cidade deixa de ser apenas o local onde ocorre acumulação de capital e a a ser o próprio objeto/produto dessa transação. A cidade é produzida a partir da lógica do mercado, sendo produto e ao mesmo tempo espaço de produção. A cidade em si emerge da disputa. Para ilustrar a “disputa pela cidade”, colocaremos em análise um dos critérios apresentados pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos para garantia de moradia adequada: a segurança de posse (Brasil, 2013). O tema foi recentemente discutido na Organização das Nações Unidas (ONU) em meio à crise mundial de insegurança de posse, segundo a relatora especial da ONU sobre direito à moradia adequada, Raquel Rolnik (ONUBR, 2013). Avila e Ferreira (2016) situam o tema na falta de precisão do domínio do solo, no entanto Rolnik (2015) traz como a impossibilidade de se permanecer no local onde mora. Segundo o caderno Direito à Moradia Adequada emitido pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, “a moradia não é adequada se os seus ocupantes não têm um
Martins, E.; Pereira, F.; Salem, G.; Santos, L. G. M.; Barbosa, R. B. (2017). Psicologia, Democracia e Cidade em Disputa.
grau de segurança de posse que garanta a proteção legal contra despejos forçados, perseguição e outras ameaças” (Brasil, 2013, p. 14). São inúmeros os motivos por trás da insegurança de posse, sejam conflitos armados, desastres naturais, projetos de infraestrutura ou de exploração econômica. Uma inundação, o avanço de uma hidroelétrica ou um grande projeto de instalações esportivas sobre um território habitado, tem impactos mais agudos quando ocorre sobre territórios cuja situação de posse pode ser contestada a qualquer momento por autoridades ou agentes privados (Rolnik, 2015, p. 150). Esses impactos podem ser vistos na fragilização ao direito constitucional de moradia1, nos riscos de despejos forçados e a invasões de terceiros, no desinteresse na melhoria das condições de habitação e em problemas de ordem social e econômica (Avila, & Ferreira, 2016). As estruturas de poder que servem a uma racionalidade (global) de espaço incidem sobre os moradores da cidade e podem culminar, por fim, em mecanismos de inclusão/exclusão (Rolnik, 2015). Ao sugerir este processo, estamos tomando a especulação imobiliária, o planejamento urbano e o uso da terra como estratégias dessas estruturas de poder para possibilitar ou não o o a certos locais por determinado grupo de pessoas. Não estamos descrevendo ainda os processos de remoções forçadas, mas um processo mais sutil, que nega o direito à cidade e à moradia quando, ao invés de suprir necessidades básicas sociais, econômicas e de saneamento, investe em novas estruturas, em um planejamento urbano que não contempla os interesses locais, o que faz com que o valor imobiliário aumente, assim como o custo de vida. Famílias que, sem condições de se manterem com a nova configuração do local, precisam procurar lugares mais íveis economicamente para morar, o que pode significar também lugares sem infraestrutura e rede de serviços adequados, distante dos locais de trabalho e com transporte precarizado, com pouca segurança e sem nenhuma ligação afetiva com o espaço. Esse é o processo de gentrificação do espaço. A cidade, habitada e habitável, com características históricas, sociais e culturais próprias do espaço, é sumariamente transformada em seu espaço
urbano pelas exigências de um ideal de cidade e com um “bom visual”, que sirva de marketing, ou um bom lugar para receber investimentos do capital estrangeiro. Leis são alteradas e criadas, agências e conselhos com poderes de decisão (sem representatividade), políticas higienistas e de remoção, violadoras de direitos (Rolnik, 2015). A autora pontua a emergência do que é chamado de “empreendedorismo municipal”: o governo deixa a visão istrativista e a a empreender a cidade, a envolvê-la na especulação financeira, nas estratégias globais de localização de multinacionais e transforma as políticas urbanas em promoção econômica e megaprojetos globais. Um reflexo disso é o crescimento de parcerias públicos-privadas (PPP), associação vasta entre dois setores da economia distintos das concessões e das privatizações. As PPPs surgem sob o pretexto do avanço de competências exigidas pelo mercado e não alcançadas pelos aparelhos estatais. Elas são em sua maioria relacionadas a megaprojetos de desenvolvimento urbano conduzidas e financiadas pelo Estado que assume também os riscos de possíveis déficits. Como se deu na zona portuária do Rio de Janeiro, por exemplo, que virou um complexo imobiliário-financeiro, em execução por meio de uma PPP encarregada de gerir os serviços por 15 anos e implementar as obras, as quais foram realizadas sem diálogo com os moradores do local e dos arredores e que geraram remoções de diversas famílias (Rolnik, 2015). Em “SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico”, Faulhaber e Azevedo (2015) evidenciam os processos de exclusão na cidade do Rio de Janeiro compreendidos em um projeto de cidade para recepção dos megaeventos. Segundo esses autores, inicialmente a população carioca apoiou uma imagem valorizada de cidade, capaz de atrair público e capital estrangeiro, pois seriam beneficiários dos avanços da cidade. No entanto, deparam-se com o alto custo para a construção de equipamentos esportivos subutilizados, o aumento expressivo no custo de vida que atinge não somente as faixas mais pobres, mas também a classe média, e com processos de remoções e desapropriações em favelas já consolidadas. Processos incentivados pelos interesses do Estado e das grandes construtoras em locais ocupados e que são alvos da especulação imobiliária, como os arredores
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 1988).
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do estádio Maracanã, com as remoções de favelas como a Metrô Mangueira (Williamson, 2012), como o Parque Olímpico na Barra da Tijuca, com o caso da Vila Autódromo (Talbot, 2016), e como da Região Portuária (Robertson, 2016), no centro do Rio de Janeiro. Foram mais de 20 mil casas removidas em cinco anos de governo. E ao que parece, o processo de reestruturação em curso deve reforçar o padrão centro-periferia com acentuação de uma descentralização que se expressa no processo de segregação, sem garantia de manutenção das estruturas ocupacionais para os moradores removidos, como resultado de uma série de políticas, programas e intervenções (Faulhaber, & Azevedo, 2015. p. 77). O dossiê sobre megaeventos e violações de direitos humanos, lançado pelo Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas no Rio de Janeiro em 2015, sintetiza a atual política como uma política de exclusão, a partir da subordinação da cidade ao capital e não às pessoas. De acordo com o documento, as violações de direitos se intensificaram com os megaeventos, como o direito à moradia, à mobilidade, ao meio ambiente e o direito das cidadãs e cidadãos de terem o à informação e participar da tomada de decisões. O relatório diz dos processos de elitização e mercantilização da cidade e dos novos padrões de relação entre o Estado e os agentes econômicos e sociais, marcados pela negação das esferas públicas democráticas de processos decisórios, falta de transparência e intervenções autoritárias. De forma semelhante, a ONG Internacional Justiça Global produziu um relatório acusando o desrespeito aos direitos das moradoras e moradores das favelas e periferias da cidade do Rio de Janeiro, durante a preparação para os Jogos Olímpicos, na tentativa de tornar público o lado que não é visto na televisão, como a violência policial, o extermínio da população negra e pobre, o aprofundamento da segregação socioespacial e o controle e privatização do espaço público.
O pluralismo jurídico pode nos ajudar a entender como se dá essa negação de direitos, como o direito à moradia, por exemplo. Ao se tratar de territórios, lugares, espaços, Rolnik (2015) aponta o pluralismo jurídico como “o encontro, coexistência e, muitas vezes, conflitos entre diferentes ordens judiciais que operam sobre o mesmo território” (p. 176). Interessa-nos discutir como esse pluralismo jurídico reflete e reproduz desigualdades sociais. “Vivemos em um mundo no qual os direitos de propriedade privada e a taxa de lucro se sobrepõe a todas as outras noções de direitos em que se possa pensar” (Harvey, 2014, p. 27). Não é diferente tratando-se do direito à cidade. Harvey (2014) traz, enquanto direito à cidade, algo muito maior do que um direito de o individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora, mas é principalmente um direito de mudar e reinventar a cidade de acordo com os nossos interesses. Dessa forma, quando o lucro e a especulação colocam-se como prioridade e o poder público não possibilita uma democracia participativa, a reinvenção e mudança são extremamente desafiadoras. Segundo Rolnik (2015), o sistema jurídico-burocrático não é capaz de lidar com a transitoriedade legal/ilegal permanente2 marcada pela constituição do espaço contemporâneo, pois quando se trata de pluralismo jurídico, não consideramos apenas uma plural legislação territorial ou ordens urbanísticas distintas que coexistem, mas também “das relações de ordem, autoridade e poder presentes nos bairros populares autoproduzidos” (Rolnik, 2015, p. 177). Com isso, as soluções extrajudiciais aparecem como resoluções possíveis, seja pela mediação, arbitragem ou pela discricionariedade3. No entanto, essas resoluções geralmente estão situadas no âmbito político, tendo o Estado como mediador. Rolnik (2015) chama a atenção para a necessidade de afastar a ideia de que a consolidação de bairros populares ou favelas são lugares em que o Estado não está presente, assim como Magalhães (2013) que reafirma a necessidade em não entender a favela como espaço composto por um vácuo jurídico, uma terra sem lei. Marginalizada em sua estrutura, sis-
2 No contexto deste artigo, ao falarmos transitoriedade permanente estamos nos referindo transição legal/não-legal que envolve um território e sua constituição. Um exemplo de como isso está presente: quando se ocupa uma terra vazia, se possuir proprietário, a ocupação é ilegal, no entanto se não possuir um proprietário formal, ou ser objeto de disputa, a ocupação pode não ser contestada de maneira imediata e, por fim, consolidada (Rolnik, 2015). 3 Qualidade do poder conferido à istração pública; “A essência do poder discricionário está na liberdade de proceder, por meio de apreciações subjetivas, à adoção de uma ou mais soluções possíveis, tomando decisões com valor igual à que teria podido dar o legislador” (Grotti, 2000, p. 71). Este poder assegura a supremacia da istração pública sobre a particular.
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tematicamente considerada ilegal, tendo em vista as constantes tentativas de regulação dos espaços ocupados e consequentemente afastada da ideia de “cidade formal”, a favela acaba por ser desconsiderada quando se trata de investimentos públicos ou em possíveis planejamentos de atendimento às populações que moram nesses espaços. A não atuação do Estado nos espaços das favelas não pode ser entendida como uma ausência, mas sim como uma política específica, uma determinada forma de agir, com um fim outro que não é a emancipação e a garantia de direitos. “As idas e vindas de processos de formação, consolidação e remoção desses assentamentos têm sido fortemente constituídas e permanentemente mediadas pelo Estado” (Rolnik, 2015, p. 180). O mesmo Estado possui interesses eleitoreiros e econômicos. Possibilita por meios legais a existência/permanência de assentamentos em troca de uma moeda político-eleitoral (Rolnik, 2015), e também atua segundo os interesses do mercado, influenciado pelas grandes empresas que figuram nos quadros de maiores financiadores de campanhas eleitorais. Neste sentido, o Estado neoliberal diminui suas atuações apenas em políticas sociais, pois, enquanto políticas econômicas, ele somente se adequou às exigências do mercado (Maricato, 2009). Rolnik (2015, p. 181) completa: “este mecanismo tem sido fundamental para manter a desigualdade e o controle da cidade pelas elites, ao mesmo tempo que reproduz mandatos políticos, constituindo vastas bases eleitorais para os partidos”.
Compromisso social da Psicologia frente ao cenário
No ano de 2013, a equipe do Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EMAU-UFRJ), Abricó, deu início à execução de um projeto de extensão numa favela carioca chamada Indiana (que possui 887 habitantes,
segundo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE de 2010, fica localizada no bairro da Tijuca e é integrante do Complexo do Borel), somando esforços a outras iniciativas que visavam barrar o processo de remoção que ameaçava as famílias que lá residiam4. A partir de 2016, os arquitetos urbanistas em formação entenderam que seria importante nessa empreitada a construção de um plano participativo de urbanização, para o qual convidaram a equipe de Psicologia do Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania da mesma universidade (NIAC-UFRJ)5 a contribuir. Um plano de urbanização participativo, que pudesse servir de instrumento técnico de luta política para a comunidade, enquanto uma ação de enfrentamento aos recorrentes processos de remoções e outras violações que vem acompanhadas. Das ações interdisciplinares entre as áreas de Psicologia e Arquitetura e Urbanismo em parceria com instituições e moradores da supracitada comunidade surgiu um projeto de intervenção, cuja atividade principal amos agora a descrever. Trata-se da realização de experiências recreativas de trânsito pela cidade do Rio de Janeiro, com jovens da comunidade, seguidas de rodas de conversa sobre temas relacionados ao direito à cidade, tendo como impulsionador a construção de subsídios para o plano participativo de urbanização. As políticas públicas de planejamento urbano têm promovido intensas transformações no espaço da cidade do Rio de Janeiro, considerando majoritariamente os interesses econômicos e políticos que favorecem grupos mais abastados da sociedade, tal qual discutiu-se em seção anterior. Tais mudanças atingem, na maioria das vezes de maneira violadora, comunidades de determinadas áreas da cidade. As mesmas ocasionam remoções e desapropriações que resultam em transferências das famílias para áreas distantes de onde são originárias, ferindo o direito básico à moradia (Faulhaber, & Azevedo, 2015). Para
Em 2010, a Prefeitura do Rio anunciou a remoção de 119 comunidades, incluindo Indiana até o final de 2012 (Bastos, & Schmidt, 2011). A partir de então, sobretudo em janeiro de 2012, a comunidade foi alvo de uma campanha de expulsão. Sob o argumento de que algumas famílias moravam em áreas de risco, o então secretário de habitação, Jorge Bittar (PT-RJ), informou aos moradores que aqueles que residiam às margens do rio Maracanã seriam removidos para Triagem, onde estava sendo construído o Bairro Carioca, com recursos do programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal. Em resposta, os moradores se organizaram em uma comissão e procuraram a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro para questionar a legalidade das ações da Prefeitura e montar um projeto judicial. Enquanto isso, entre março e outubro de 2012, 110 famílias foram removidas. Em dezembro desse mesmo ano, ocorreu uma audiência pública na qual a prefeitura não conseguiu justificar as remoções e uma ordem judicial foi emitida considerando as ações da prefeitura violadoras e proibindo mais demolições (Clarke, 2014). 5 O NIAC, programa de extensão da UFRJ, foi criado em 2006 e integra projetos de pesquisa e extensão orientados para promoção do o à justiça e à cidadania. Atuam nesse programa equipes formadas por integrantes dos cursos de Psicologia, Serviço Social e Direito da UFRJ. 4
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além disso, é importante ressaltar que essas políticas frequentemente dificultam a mobilidade da população, bem como o o a equipamentos de saúde, cultura, de esporte e de lazer. Elas se preocupam de maneira diferenciada com os territórios urbanos, não considerando em seus planejamentos determinadas regiões da cidade. Isso ocasiona um desenvolvimento desigual e perpetua lógicas de exclusão e estigmatização com impactos diretos na produção de subjetividades, especialmente na criminalização de formas contra hegemônicas de apropriação do espaço. Assim, a atividade surgiu como tentativa de problematizar essas questões que afetam diretamente também os jovens da região da Comunidade Indiana e do Complexo do Borel, bem como possibilitar momentos de reflexão e lazer ao grupo. Entendemos que a experiência que essa atividade proporcionou a seus participantes também auxiliou em um processo de desindividualização de muitos dos sofrimentos que já experimentaram por serem moradores de favelas. Sofrimentos com impactos amplos em várias dimensões de suas existências: pessoal, familiar, escolar, profissional. Tomamos como duplo objetivo proporcionar ao grupo um espaço de troca de ideias e experiências aliadas à possibilidade de o àquilo que a cidade oferece, bem como fomentar a reflexão e participação desses jovens no que diz respeito às questões da comunidade, assim como da cidade como um todo, no âmbito do direito à cidade. Para tal, a metodologia consistiu em excursões semanais a diferentes lugares da cidade do Rio de Janeiro, seguidas de rodas de conversa sobre alguma temática cara à questão da cidade e que estivesse sendo visualizada nos espaços visitados. Dessa forma, circulamos por cinco diferentes pontos – o estádio de futebol Jornalista Mário Filho, internacionalmente conhecido como Maracanã; o campus Fundão da Universidade Federal do Rio de Janeiro; o museu da Maré, um dos poucos localizados dentro de uma favela e que traz as lutas histórica e diária de moradores da região; a região portuária da cidade, um local por onde desembarcaram milhares de africanos escravizados e que recentemente foi “revitalizado”; e o Aterro do Flamengo, às margens da baía de Guanabara, um dos maiores símbolos dos problemas de saneamento básico enfrentados na cidade – abordando e, em alguma medida, experimentando, temas importantes sobre cidade, como 230
o ao lazer, direito à educação e à moradia, remoções, saúde, saneamento básico e mobilidade urbana. Foi feito uso do dispositivo grupal (Barros, 2007), no qual utilizou-se outros dispositivos (como vídeos, jogos e brincadeiras), a fim de dar voz às multiplicidades e possibilitar a desindividualização das questões que surgiram no decorrer dos encontros. Também apostou-se na própria mobilização social do grupo como estratégia metodológica do trabalho, entendendo que a articulação do coletivo pode ser um instrumento promotor de autonomia, capaz de estimular uma participação política e social, portanto democrática. “Lutar por novos projetos democráticos implica buscar espaços para intervir, potencializando no cotidiano as relações diferenciadas” (Scheinvar, 2009, p. 171). Sendo assim, compreendem-se democracia e participação não enquanto produções genéricas, mas enquanto produções concretas quando discutidos os direitos em espaços de exercícios de cidadania em que a sociedade civil pode (ou deveria poder) atuar na gestão pública (Scheinvar, 2009). A Psicologia enquanto ciência e profissão tem se questionado bastante nas últimas décadas sobre seu compromisso social, o que envolve também problematizar os espaços nos quais a(o) profissional pode e deve atuar para além das inserções clássicas na clínica, na escola, no hospital. Não existem, muitas vezes, nesse campo profissional, nem práticas, nem espaços de atuação absolutamente engessados, cabendo constantemente à(ao) psicóloga(o) construí-los, sempre visando, como orienta um dos princípios fundamentais do código de ética profissional, a promoção de saúde e qualidade de vida e a eliminação de possíveis formas de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão. As dificuldades encontradas por profissionais de Psicologia na busca de exercer uma práxis que seja norteada por tal compromisso, principalmente nos campos de atuação que expandiram a gama de inserções psi (comunidade, organizações sociais, políticas públicas etc.), mobilizou profissionais e programas de pesquisas universitárias a desenvolver novas teorias que superassem o viés intimista/biologicista que historicamente constituiu a Psicologia. Assim, especialmente após a década de 1970, vão surgindo trabalhos abordando temáticas relacionadas à exclusão social, consciência/alienação, identidade, contexto comunitário, afetividade, compromisso ético em Psicologia etc. Questões que precisavam ser consideradas nas análises e intervenções psicológicas na América Latina.
Martins, E.; Pereira, F.; Salem, G.; Santos, L. G. M.; Barbosa, R. B. (2017). Psicologia, Democracia e Cidade em Disputa.
Ao reforçar a importância do rompimento com a tradição elitista e da construção de uma nova concepção de homem na Psicologia, Silvia Lane, professora pesquisadora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo desde os anos 1960 até os anos 2000, foi uma das pioneiras a apontar as condições para um novo projeto profissional. Bock, Ferreira, Gonçalves e Furtado (2007) afirmam que havia uma grande preocupação por parte de Silvia para que pudesse ser extirpado o hábito de fazer da realidade um exemplo dos conceitos teóricos. Em contraposição, seu “objetivo era produzir conhecimento que possibilitasse uma compreensão da realidade que implicasse, necessariamente, sua transformação” (p. 48). Em outras palavras, as construções teóricas somente fazem sentido diante de um comprometimento social, que mais do que afirmar uma unidade entre saber e fazer (não havendo, portanto, espaço para que a realidade pudesse ser tomada enquanto mero exemplo de conceitos), tem como principal propósito o engajamento na transformação daquilo que se apresenta. Afinal, os fenômenos sociais não são inatos. Conforme vai se desenvolvendo, esse já não tão novo projeto profissional da Psicologia, a transformação adquire cada vez mais o sentido de superação da desigualdade social (produzida, e não inata, e manifestada sob as formas de renda, mas também educacionais, urbanísticas, de mobilidade urbana) e das situações de opressão que nos constituem enquanto sujeitos brasileiros, latino-americanos. E nesse intuito, a produção teórica de Silvia Lane acerca do psiquismo, como indissociado de um conteúdo histórico e social, é indispensável para situar a Psicologia enquanto um saber responsável por “compreender o indivíduo em sua relação dialética com a sociedade; a constituição histórica e social do indivíduo e os elementos que explicam os processos de consciência e alienação; e as possibilidades de ação do homem frente às determinações sociais” (Bock et al., 2007, p. 50). Nada se pode afirmar sobre o sujeito sem considerar a realidade social da qual participa, o que impõe a nós, psicólogas(os), um lugar no processo de transformação social em qualquer área na qual nos propomos a atuar. Bock et al. (2007) lembram que, para Lane, o mais importante não era o tema da pesquisa de seus orientandos, mas a resposta para “qual a realidade que queriam contribuir para mudar” (p. 55). Caminhando na mesma direção, Martín-Baró (1996) afirma que para assumirmos o papel que deve-
mos desempenhar em nossas sociedades enquanto psicólogas(os) é importante examinar as circunstâncias concretas da população a que vamos atender, sua situação histórica e suas necessidades. Muitas das críticas feitas às(aos) profissionais de Psicologia residem no fato de que a dedicação da sua atenção é dirigida aos setores mais abastados da sociedade e a centralidade da sua atenção às raízes pessoais dos problemas, esquecendo-se ou menosprezando os fatores sociais. Com esse enfoque e essa clientela, acabam por servir aos interesses da ordem social estabelecida, convertendo-se em instrumento útil para a manutenção e reprodução do sistema, à medida que “continuam sonhando com o exercício liberal de uma profissão que atende aos privilegiados e que considera os excluídos como fontes de contaminação e violência patológica” (Osorio, 2011, p. 69). Osorio (2011) pontua que, no contexto da filosofia neoliberal, as(os) profissionais de Psicologia encontram-se em conflito na sua prática: juraram que o fundamento principal é o interesse de quem demanda sua atenção, mas seu saber está “a serviço do capital, sob as premissas dogmáticas de que a ciência deve ser neutra, asséptica e pragmática” (p. 66). Martín-Baró (1986) ressalta que nesse cenário tem influência a colonização do saber psi latino-americano – cujo nascimento e desenvolvimento se deu a partir do lugar de imitadores e difusores da Psicologia estadunidense e europeia – evidenciada a partir de três fatores: desejo de adquirir um reconhecimento científico; carência de uma epistemologia adequada, que parta dos povos latino-americanos; e preocupação com falsos problemas, especificamente no que se referem a um alijamento quanto à realidade da América Latina. Contudo, concordamos com Osorio (2011) quando afirma que estão aí igualmente em atuação as forças que sustentam o processo de globalização centrada no mercado, o qual necessita de indivíduos para se sustentar. Sob o pretexto da “democratização” advinda com a formação de uma sociedade mundial única, “a Psicologia converte-se em instrumento que mantém vivo o paradoxo da inclusão, por meio de modelos de ‘integração’ que excluem” (Osorio, 2011, p. 71). O ser humano é destituído de sentido frente a necessidade do melhor interesse do mercado; a ciência é reduzida à tecnocracia. O desenvolvimento do processo globalizador acarreta numa pressão sobre os governos para que criem espaços sociais a favor das empresas transnacionais e multinacionais. Eis o real 231
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significado da imposição democrática na América Latina, que “visava” a redução de sua pobreza. Em contrapartida a essa realidade de exercício profissional, Martín-Baró (1986) e outros praticantes da Psicologia da Libertação, cansados de explicações individualizantes e psicologizantes para as causas do subdesenvolvimento da América Latina, atentaram-se para as relações de dependência e de exploração aí vigentes, as quais deveriam ser suprimidas ou transformadas para que de fato se pudesse ocorrer o desenvolvimento regional. Eles assumiram a obrigação ética de trabalhar a favor dos excluídos, o que implica negar o processo globalizador, tanto em virtude das condições de desigualdade e exclusão que ele é responsável por acirrar, quanto pela necessidade que essa obrigação impõe no sentido de afirmar as tradições e práticas dos oprimidos (Osorio, 2011). Nesse contexto, é preciso lembrar que, para praticar uma Psicologia da Libertação, faz-se importante uma libertação da própria Psicologia (Martín-Baró, 1986) e, de acordo com Martín-Baró (1996), a conscientização deve constituir o horizonte do fazer psicológico liberto e libertador. Esse processo busca a desalienação das pessoas e grupos e ajuda a chegar a um saber crítico sobre si mesmas e sobre sua realidade, através da eliminação e controle dos mecanismos que bloqueiam a consciência da identidade pessoal e social. Tal papel somente é possível porque, para Martin-Baró (1996, p. 14), “a consciência [...] é [...] sobretudo, aquele âmbito onde cada pessoa encontra o impacto refletido de seu ser e de seu fazer na sociedade, onde assume e elabora um saber sobre si mesmo e sobre a realidade que lhe permite ter uma identidade pessoal e social”. Ele ressalta que não só o saber, mas também o não saber (práxico, mais que mental), sobre si, os demais e o próprio mundo, é que constituem a consciência, defendendo o processo conscientizador como aquele voltado primeiramente a devolver a palavra às pessoas, não somente como indivíduos, mas como parte de um coletivo. “O saber mais importante do ponto de vista psicológico não é o conhecimento explícito e formalizado, mas esse saber inserido na práxis cotidiana, [...] enquanto permite ou impede os grupos e povos de manter a sua própria existência” (Martin-Baró, 1996, p. 15). Conscientização, como bem lembra Guareschi (2011), no sentido de palavração, ou seja, algo que demonstra a impossibilidade da dicotomia entre consciência e ação, o que por sua vez implica para a 232
Psicologia um compromisso com a práxis, “teoria que cria prática transformadora, prática que produz teoria, ambas refletidas” (Montero, 2011, p. 98). Teoria, até mesmo em sua etimologia, é o que ajuda a ver de cima, como uma luz sobre um monte. Agora no momento em que fico apenas na teoria e não tenho uma prática, jamais poderei entender a realidade, porque não se pode ver a luz em si mesmo: o que se vê é sempre algo iluminado (Guareschi, 2011, p. 57). E dessa forma, uma tarefa importante que cabe à(ao) psicóloga(o), ao buscar os meios para assumir nossa responsabilidade social, diz respeito ao reconhecimento objetivo dos problemas que afligem os povos latino-americanos e a definição da contribuição específica da Psicologia na resolução desses problemas. É colocar o nosso saber a serviço de uma sociedade mais justa e igualitária, em que o bem-estar de uma minoria favorecida não se faça sobre o mal-estar da maioria desfavorecida, e que o interesse de poucos não exija a desumanização dos demais (Martín-Baró, 1996). De que forma as provocações de Silvia Lane, Martin-Baró e os outros praticantes da Psicologia da Libertação acerca do papel que cabe ao saber psi diante da realidade social brasileira e latino-americana podem nos auxiliar a problematizar o cenário das cidades desses países? A partir de que intervenções a prática das(os) psicólogas(os) latino-americanas(os) pode contribuir na superação das profundas desigualdades sociais que marcam a experiência humana nos centros urbanos dessa região do mundo? Tomando as reflexões de Montero (2011) acerca dos questionamentos que fazem uma prática psicológica crítica, constitui interesse de análise/intervenção, diante da realidade das cidades, ponderar alternativas, causas e efeitos; reconhecer a diversidade de atores sociais envolvidos, sua pluralidade de formas de ação, assim como sua capacidade de produzir transformações; além de relacionar o fenômeno da “cidade enquanto campo em disputa” com seu contexto cultural, histórico e social. A maneira como o espaço urbano de uma cidade se estrutura e se modifica está intimamente relacionada com a forma como se dão as interações sociais da população que nele vive. Tais interações, por sua vez, refletem a maneira como, ao longo do tempo, diferentes segmentos sociais se apropriam desse território. Apropriação cujos modos derivam de questões
Martins, E.; Pereira, F.; Salem, G.; Santos, L. G. M.; Barbosa, R. B. (2017). Psicologia, Democracia e Cidade em Disputa.
relacionadas à historicidade com o local, ao pertencimento, aos vínculos entre indivíduos e grupos, às manifestações culturais, aos processos de desenvolvimento econômico, às políticas de planejamento urbano e outros (Lefebvre, 2001). Ou seja, de acordo com Lefebvre, o espaço se configura como um dos elementos instigantes das interações da sociedade, observando que, nas cidades, as misturas culturais e sociais se fazem obrigatórias, possibilitando diferentes formas de subjetivação. No Rio de Janeiro e em outras metrópoles latino-americanas, o planejamento urbano e o direito à cidade vêm sofrendo contundentes interferências do modelo neoliberal, colocando em conflito os interesses de quem habita o território e os de grandes corporações do capital financeiro (Faulhaber, & Azevedo, 2015). E tais interferências agravam problemas já conhecidos. O direito à moradia, saneamento básico, mobilidade urbana, o o a equipamentos culturais, esportivos e de lazer ainda são negados a boa parte de moradoras e moradores da cidade. Isso por vezes acarreta uma multiplicidade de formas contra hegemônicas de apropriação/construção do espaço urbano, algumas delas criminalizadas (e, portanto, íveis de diferentes tipos de sanções) por serem desviantes de uma ordem instituída como padrão. E aí tem forte influência certo uso de uma garantia de segurança na gestão da cidade-negócio (Barbosa, 2017). Por trás dessas transformações, surgem novos significados e possibilidades de relações que alteram dinâmicas da cidade, que se inscreve em muros simbólicos e reais, em trajetos, os, fronteiras e olhares. Como aponta Santos (1987), percebemos que, na cidade, “cada homem vale pelo lugar onde está” (p. 81), demonstrando que a luta pela apropriação do espaço é também uma disputa pelo estabelecimento de poder. O tecido urbano é história que se produz continuamente, revelando contradições produzidas pelo desenvolvimento desigual das relações sociais. Quem sofre com o processo de desqualificação social vê sua condição de sujeito esvaziada, enquanto que aqueles, em posições favoráveis, se valem disso para reforçar seus lugares sociais, valorizando sua identidade de pertencimento em contraponto àquela desqualificada. Nesse cenário, faz-se necessária uma Psicologia comprometida em intervir na realidade que vem sendo imposta a partir de uma perspectiva de cida-
de-negócio por meio de práticas que afirmam uma visão de cidade que não privilegie este espaço para especulação e obtenção de lucro. Uma Psicologia que tenha a luta e participação política como metas para uma experiência democrática de sociedade, consolidando dessa forma o compromisso social como norteador da profissão. Uma Psicologia comprometida com a democratização do país a partir da democratização de suas cidades; que luta por direitos e contra a exploração e as opressões que se atualizam a partir da imposição de um modelo de cidade-negócio; e que contribua nos enfrentamentos emancipatórios pela democracia no Brasil e na América Latina, especialmente considerando os efeitos da disputa pela cidade. Contudo, concordamos que a discussão sobre modelos de cidade (e seus efeitos sobre as pessoas) que se encontram em vigência ou pelos quais se lutam para que possam ser modificados pode, a princípio, parecer muito distante a área de abrangência do saber psi. Todavia, esmiuçar as forças em operação que constituem as lógicas imperativas nas cidades, e entre elas na cidade-negócio, constitui-se campo fértil para compreensão das produções de subjetividade em andamento. A constatação de que a relação entre subjetividade e objetividade não se trata de uma polarização, mas sim de uma dialética, foi uma contribuição importante que Lane (2004), embasada nos pressupostos marxistas do materialismo histórico dialético, forneceu como ferramenta de análise psi. Através dela é possível afirmar que toda ação humana, inclusive aquelas que dizem respeito a elaboração e implementação de políticas para a cidade, não está isenta daquilo que nos constitui enquanto sujeitos situados num contexto que necessariamente é atravessado por uma história e materialidade. Não há, portanto, a possibilidade de se sustentar qualquer ideia ou ação que se pretende neutra, conceito tão comumente associado à objetividade e defendido pelo positivismo. A aprovação de leis e políticas que visam estabelecer marcos regulatórios relacionadas à habitação (como um plano diretor), apesar de aparente objetividade, estão permeadas pelos processos de subjetivação que atravessam determinado grupo, o que se constitui necessariamente como campo para Psicologia. Subjetivamos, ao objetivar e vice-versa, uma espiral constituída no decorrer do tempo, refutando dicotomias para dar lugar à dialética sujeito-sociedade! 233
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Quando o poder público se coloca no papel de limitar a circulação da população pobre nos espaços abastados da cidade, a partir de extinção de linhas de ônibus, alta nos preços de agens ou mesmo pelas violações perpetradas pelos agentes de segurança pública, isso produz também subjetividade em todo o tecido social. O estigma evidenciado pelos policiais que impedem a circulação de jovens negros para as praias da zona sul do Rio de Janeiro (Heringer, & Barros, 2015) marca de forma potente esses sujeitos pela desvalorização que sentem pelo Estado, principalmente quando se encontram em determinados territórios. As políticas de cidade, portanto, geram afetos, fazendo emergir a necessidade de conhecimentos e intervenções que possam considerar a dimensão da afetividade para a preservação de direitos. As relações aqui problematizadas entre cidade e subjetividade podem ser evidenciadas na disputa que ocorre hoje no Rio de Janeiro e, no espaço geográfico, apresentam-se as marcas dessa disputa. Baptista (2001) ilustra e analisa, com o caso das Mães da Praça de Maio6, fenômeno semelhante. Conta o autor que “as mulheres argentinas, renunciando a missão do conformismo a elas delegado pelo torpor do sofrimento, fazem da praça o lugar atravessado por desejos e revoltas promotoras de criação” (p. 195). Tal como as Mães da Praça de Maio, moradores da Indiana canalizaram medo e sofrimento para resistir à possibilidade de remoção desejada pela Secretaria Municipal de Habitação da prefeitura. Outros exemplos se fazem notar, como nos emblemáticos casos de disputas na Comunidade da Vila Autódromo, Aldeia Maracanã, dentre outros, onde nem mesmo a racionalidade neoliberal, travestida com um discurso supostamente desenvolvimentista para a cidade, foi capaz de silenciar os moradores atingidos. A afetividade foi outra categoria de análise desenvolvida por essa Psicologia Social Crítica a que temos nos referido. Sawaia (2009), a partir das contribuições de Espinosa, esclarece o papel que os afetos têm em aumentar nossa potência de agir. A autora desenvolve importantes pressupostos sobre a dialética inclusão-exclusão através dessa categoria. Para ela: Perguntar por sofrimento e por felicidade no estudo da exclusão é superar a concepção de que
a preocupação do pobre é unicamente a sobrevivência e que não tem justificativa trabalhar a emoção quando se a fome. Epistemologicamente, significa colocar no centro das reflexões sobre exclusão, a idéia de humanidade e como temática o sujeito e a maneira como se relaciona com o social (família, trabalho, lazer e sociedade), de forma que, ao falar de exclusão, fala-se de desejo, temporalidade e de afetividade, ao mesmo tempo que de poder, de economia e de direitos sociais (Sawaia, 2001, p. 98). Supera-se o imaginário de que a afetividade apenas deturpava o rigor científico para compreendê-la dentro da complexidade que constitui os fenômenos sociais. Busca-se, assim, entender a produção subjetiva-objetiva mediada pelas emoções na dinâmica sujeito-sociedade. Vilhena (2002) vai ao encontro dessa mesma discussão ao ressaltar a dimensão simbólica do lugar na dimensão psíquica, lembrando que os sujeitos frequentemente remetem-se aos lugares que os marcaram ao longo de suas vidas. Ela destaca que “é a partir dele que é possível pensar o viver, trabalhar, formar laços sociais e identificar-se com os semelhantes. Pois é a partir de um lugar [...] que falamos e somos ouvidos, respeitamos e somos respeitados, sentimo-nos incluídos ou à margem” (p. 50). Dessa maneira, a autora nos convida a pensar sobre os efeitos provocados pela desconfiança e temor ao outro, que marcam a convivência entre diferentes segmentos sociais em nossa cidade. Ela alerta para o sofrimento experimentado por certos segmentos que não fazem parte daqueles modelos identificatórios ideais e considera que “a imagem construída pelo seu meio social, nas relações com seus próximos, com a cultura na qual o sujeito se insere, é fator privilegiado da constituição do sujeito” (p. 52). Autores como Silva e Barbosa (2005, p. 100) afirmam outra dimensão dessa relação entre subjetividade e territorialidade ao definirem a cidade como “obra humana territorialmente impressa”. Para eles, falar em sociedade é o mesmo que tratar de uma relação sujeito-território, afinal, as categorias de compreensão do modo de vida humano são, necessariamente, atravessadas pela dimensão espacial. Lefebvre (2001)
6 No dia 30 de abril de 2017 completou-se 40 anos do movimento das Mães da Praça de Maio, coletivo que se iniciou em resposta à ditadura militar argentina frente aos inúmeros casos de desaparecimento de crianças filhas de mães ativistas (Andrade, 2017).
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Martins, E.; Pereira, F.; Salem, G.; Santos, L. G. M.; Barbosa, R. B. (2017). Psicologia, Democracia e Cidade em Disputa.
traz outros elementos para essa perspectiva de explicação para a cidade, ressaltando que ela está entre as relações dos indivíduos em grupos e a ordem determinada por grandes e poderosas instituições, por um código jurídico, formalizado ou não. No entanto, mais do que demonstrar, a partir de suas concepções, uma relação entre diferentes constituições de ser e estar no mundo (ou seja, subjetivação) e a experiência urbana, os autores citados apontam para o modelo de cidade por cujo direito se reclama: aquele em que está garantido o direito à produção do espaço (Harvey, 2014), que também é produção de si. E nessas discussões é fundamental que outro aspecto da experiência humana em sociedade possa ser considerado: a democracia. Pautar a lógica que rege as cidades, sua organização e gestão, é também colocar em evidência o exercício ou não de instrumentos democráticos. E, nesse sentido, “pensar o Rio hoje é central não só por sua importância histórica, mas porque ele é o laboratório de um modelo de cidade voltada para o capital, a cidade-negócio, em que a gestão pública é controlada por empresas sócias da prefeitura”. Isso significa que, na sustentação desse modelo de cidade, o Estado exerce papel fundamental, na medida em que permite a gestão das políticas públicas pela iniciativa privada, afastando assim ao máximo a participação da população nas decisões de interesse público e consequentemente a soberania popular e a “dimensão pública da cidade enquanto espaço de fazer político”.
Últimas considerações
O espaço urbano atua em processos de produção de subjetividades e enquanto psicólogas(os), ao nos debruçarmos sobre o ser humano, objeto de nosso estudo, devemos levar em consideração a construção do espaço urbano – a qual ocorre segundo mecanismos mais, menos ou quase nada democráticos – e as implicações desse contexto nos processos de subjetivação. A categoria espaço é elemento imprescindível para a realização de uma análise da vida social, reforçando o nosso compromisso político de não desconhecer a complexidade do humano, tomando,
para tanto, a produção da subjetividade em relação à produção do espaço urbano. Só se pode compreender a relação cidade/subjetividade a partir de um movimento dialético. Para a compreensão da experiência de vida de seus habitantes, é necessário pensar sobre a cidade, assim como para pensar a subjetividade é preciso pensar o espaço. Sendo assim, temos um imenso compromisso a assumir. Enquanto área de saber, a Psicologia deve contribuir nas discussões sobre cidade. Em especial diante desse cenário de cidade que se apresenta: cidade enquanto campo em disputa, no qual ocorrem graves ameaças a um desenvolvimento democrático da gestão de bens e existências coletivas. Mas sobre que fundamentos devem ser construídas as contribuições dessa área do saber? Acredita-se naqueles defendidos por Martín-Baró (1996), e outros praticantes da Psicologia da Libertação, que aposta no processo conscientizador, tendo em vista que a modificação da realidade impõe modificações ao ser humano; que a decodificação do mundo permite o conhecimento sobre mecanismos de opressão e desumanização; e que um novo saber sobre a realidade leva a um novo saber sobre si e sobre seu coletivo. Dessa forma, conclui-se que se está diante de mais do que um campo para atuação da Psicologia. Trata-se de um compromisso, que é social, ético e político, o qual, portanto, não pode ser assumido de maneira neutra. Como critica Martín-Baró (1996), não se convoca a Psicologia para intervir em mecanismos socioeconômicos, mas sim a atuar frente aos processos subjetivos que sustentam e viabilizam estruturas injustas que decorrem desses mecanismos. É preciso romper com esse lugar. O casamento entre Psicologia e democracia somente ocorre quando o saber psi contribui com a formação de uma identidade pessoal e coletiva advinda das necessidades reais dos grupos subalternizados. A intervenção aqui descrita, cujos objetivos contemplam a luta e a participação política e que é disparadora dessas reflexões sobre Psicologia e democracia, abarca implicações ético-políticas de um fazer num momento histórico-social em que a luta pela democratização do país abrange uma interferência na disputa pela cidade.
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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 224-238.
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Elisa Martins Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Extensionista no Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC-UFRJ). Bolsista Profaex. E-mail:
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Lucas Gabriel de Matos Santos Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista de iniciação científica no Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC-UFRJ). Bolsista CNPq. E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Av. Pasteur 250 - Pavilhão Nilton Campos, 2º andar, Urca, Rio de Janeiro/RJ. CEP nº 22290-902 Recebido 30/06/2017 Reformulação 07/09/2017 Aprovado 13/09/2017 Received 06/30/2017 Reformulated 09/07/2017 Approved 09/13/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 07/09/2017 Aceptado 13/09/2017
Como citar: Martins, E., Pereira, F., Salem, G., Santos, L. G. M., Barbosa, R. B.(2017). Psicologia e Democracia em um Cenário de Cidade como Campo em Disputa. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 224-238. https://doi.org/10.1590/1982-3703170002017 How to cite: Martins, E., Pereira, F., Salem, G., Santos, L. G. M., Barbosa, R. B (2017). Psychology and Democracy in a Scenario of the City as a Disputed Field. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 224-238. https://doi.org/10.1590/1982-3703170002017 Cómo citar: Martins, E., Pereira, F., Salem, G., Santos, L. G. M., Barbosa, R. B (2017). Psicología y Democracia en un Escenario de Ciudad como Campo en Disputa. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 224-238. https://doi.org/10.1590/1982-3703170002017 238
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A Ditadura que se Perpetua: Direitos Humanos e a Militarização da Questão Social Ana Vládia Holanda Cruz Faculdade DeVry Fanor, CE, Brasil.
Tatiana Minchoni Universidade Federal de Santa Catarina, SC, Brasil.
Adriana Eiko Matsumoto Universidade Federal Fluminense, RJ, Brasil.
Soraya Souza de Andrade Universidade Federal do Pará, PA, Brasil.
Resumo: O presente artigo contempla um estudo teórico sobre os processos de permanência e de alastramento no corpo social, no tocante às políticas de segurança, dos elementos que se forjaram na história longa de nosso território brasileiro, desde a época da invasão colonial, dando ênfase ao acirramento de suas contradições na ditadura empresarial-militar e à contradição posta entre a militarização da questão social e a luta pela garantia dos direitos humanos na atualidade. A partir das reflexões da criminologia crítica ou radical e da análise do papel das ciências numa perspectiva materialista-histórico e dialética, buscou-se evidenciar os processos de construção da figura do inimigo interno hoje qualificado como “delinquente”, bem como os desdobramentos da constituição de processos de criminalização em determinados modos de sociabilidade e de subjetividades. Nesse sentido, compreende-se que à Psicologia, como ciência e profissão, cabe a tarefa de posicionar-se frente às expressões da desigualdade social buscando desvelar as determinações históricas e a relação com a totalidade da qual emergem tais contextos. Palavras-chave: Ditadura, Direitos Humanos, Militarização da Questão Social.
The Dictatorship that Remains: Human Rights and the Militarization of the Social Issue Abstract: The present article is a theoretical study about the permanence and spread processes in the social body, regarding the security policies, of the elements that were forged in the long history of our Brazilian territory, from the time of the colonial invasion, emphasizing the contradictions in the military-business dictatorship, and the contradiction between the militarization of the social question and the struggle for the guarantee of human rights today. From the reflections of critical or radical criminology and the analysis of the role of sciences in a materialist-historical and dialectical perspective, this study sought to highlight the processes of construction of the figure of the internal enemy today qualified as “delinquent”, as well as the unfolding of the constitution of processes of criminalization in certain modes of sociability and subjectivities. In this sense, it is understood that psychology, as a science and profession, has the task of positioning itself before the expressions of social inequality, seeking to unveil the historical determinations and the relation with the totality from which emerge such contexts. Keywords: Dictatorship, Human Rights, Militarization of the Social Issue.
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Psicologia: Ciência e Profissão 2017 v. 37 (núm. esp.), 239-252.
La Dictadura que se Perpetúa: Derechos Humanos y la Militarización de la Cuestión Social Resumen: El presente artículo contempla un estudio teórico sobre los procesos de permanencia y de extensión en el cuerpo social, en lo que se refiere a las políticas de seguridad, de los elementos que se forjaron en la larga historia de nuestro territorio brasileño, desde la época de la invasión colonial, dando énfasis al crecimiento de sus contradicciones en la dictadura empresarial-militar, y la contradicción entre la militarización de la cuestión social y la lucha por la garantía de los derechos humanos en la actualidad. A partir de las reflexiones de la criminología crítica o radical y del análisis del papel de las ciencias bajo una mirada materialista-histórica y dialéctica, se buscó evidenciar los procesos de construcción de la figura del enemigo interno hoy calificado como “delincuente”, así como los desdoblamientos de la constitución de procesos de criminalización en determinados modos de sociabilidad y de subjetividades. En ese sentido, se comprende que a la psicología, como ciencia y profesión, cabe la tarea de posicionarse frente a las expresiones de la desigualdad social buscando desvelar las determinaciones históricas y la relación con la totalidad de la cual emergen tales contextos. Palabras clave: Dictadura, Derechos Humanos, Militarización de la Cuestión Social. Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não tem medo da fome, tem medo da comida. Os motoristas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de ser atropelados. A democracia tem medo de lembrar e a linguagem tem medo de dizer. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras. Eduardo Galeano (1940/2013, p. 83)
E há quem tenha medo que o medo acabe. Mia Couto1 A vida de um adolescente negro, no Brasil atual, encarna séculos de História. Sua vida se constitui, em pleno século XXI, a partir de uma formação social hierárquica e mantenedora de privilégios, fundada na concentração de poder e riquezas pela força. Traz as marcas do escravismo, da clandestinidade da cultura (d)e resistência e da repressão; da eugenia e do higie-
nismo, como políticas reproduzidas em larga escala; do racismo autoproclamado científico com o acolhimento de Lombroso e Ferri em terreno tropical; da abordagem manicomial e das políticas de controle e hiperencarceramento. A República, em sua democracia de baixíssima intensidade, não foi capaz de oferecer-lhe senão um lugar social subalternizado e uma inclusão perversa, limitada ao que é mais adequado e necessário a mais eficiente reprodução do capital e do funcionamento da ordem política em favor dos que dominam (Martins, 1997). Ele ocupa, de forma precária, as funções de menor renda e status no mundo do trabalho, mora em ocupações arriscadas e afastadas pela gentrificação; tem menos o à educação e à saúde; pouca representação na política institucional e morre mais cedo. Sua trajetória também pode ser contada por meio das manifestações históricas das instituições privativas de liberdade. Desde o contexto fundacional do Brasil com a invasão estrangeira, os “moinhos de gastar gente” (Ribeiro, 1995) se alteraram como consequência das opções político-econômicas das elites. As técnicas de tortura se modificaram: dos açoites aos choques, do pau de arara ao asfixiamento com sacos plásticos, mas a prática continua. A história dos atuais Centros Educacionais – em um contexto no qual
Despertai Consciência (Difusor). (2013). Murar o Medo - Fala de Mia Couto na Conferência de Estoril de 2011. Recuperado de https:// www.youtube.com/watch?v=5xtgUxggt_4
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Cruz, A. V. H.; Minchoni, T.; Matsumoto, A. E.; Andrade, S. S. (2017). Direitos Humanos e Militarização da Questão Social.
o aparato legal da Proteção Integral não foi capaz de modificar arraigadas concepções menoristas – é a mesma da Fundação Estadual para o Bem-estar do Menor (Febem), do Serviço de Assistência ao Menor (SAM), das Casas de Correção e dos Calabouços: é a história do encarceramento no Brasil, com os mesmos corpos enclausurados – jovens, negros, pouco ou nada escolarizados e ocupando com instabilidade as mais baixas posições no mundo do trabalho, para o qual têm obrigação de entrar muito cedo. “Mudou a letra da lei porém não o espírito da coisa. (...) Em suma: [são os] punidos e mal pagos” (Batista, 1990, p. 36), os mesmos a ganharem o estigma mais letal já produzido: o de “delinquentes”. Essa é uma das facetas mais cruéis da materialização de um direito – e de todo o aparato que o acompanha – desigual, no qual uns são tidos como descartáveis ou, para colocar de forma mais explícita, “matáveis”, e outros como sujeitos dotados de plenas garantias e foro privilegiado. Para uns a prática secular do vigilantismo, da repressão e do controle penal; para outros a leniência com as infrações e a proteção que estimula o elitismo intolerante. Tal divisão não se restringe ao mundo do trabalho ou ao o à justiça e aos mecanismos formais e informais de punição. Ela é notória na divisão espacial das cidades e na intensificação de sua guetização. As ocupações militares, colocando populações e territórios inteiros sob gestão policial, tem provocado inúmeras mortes e acirrado debates com pouco diálogo institucional. As perguntas permanecem (“Onde está Amarildo?”, “Porque o senhor atirou em mim?”) e a resposta muitas vezes tem sido a presença militar a controlar enterros para evitar que comoções virem revolta massiva. Assim, sem compreendermos que a relação entre o hoje e o ontem é eminentemente dialética e de permanências, não conseguiremos operar rupturas significativas no presente. Em tempos de “pós-verdade”, vale ressaltar que o fio de sua ligação se encontra na luta de classes – classes de carne e osso, que possuem gênero, raça/etnia, geração, orientação sexual. Walter Benjamin, nas suas teses Sobre o Conceito de História, apresenta a ideia de que só à humanidade redimida cabe o ado em sua inteireza. Isso significa que, sem a rememoração e a reparação, a emancipação não é possível e sequer os mortos estarão seguros. Profana-se sua luta, distorce-se sua causa e banaliza-se a sua permanência. Esta leitura
nos coloca a tarefa de “escovar a história a contrapelo”, uma vez que, deixado à própria sorte, o capitalismo apenas intensificará opressões e explorações, acossando os direitos humanos até a sua desfiguração. A ordem pós-1989, lembra Douzinas (2011), combina com maior intensidade um sistema econômico que gera enormes desigualdades estruturais com uma ideologia jurídico-política que promete dignidade e equidade. Ao percebemos historicamente a realidade entendemos, portanto, que a segurança, erigida como prioridade política para a manutenção da ordem, mudou constantemente seu pretexto no decorrer do tempo (a insurreição, a subversão, a proteção da propriedade, a “ameaça comunista”, o terrorismo, o vandalismo etc.), sem nunca alterar o seu propósito: governar as populações (Agamben, 2014). Em seu nome, uma carta branca é dada para a suspensão de direitos e de liberdades individuais e coletivas, inscrevendo o Estado no paradigma da Exceção – não como forma de lidar com problemas e ameaças pontuais dentro de um determinado período, mas, ao contrário, como técnica permanente de governo (Agamben, 2004). “Articular o ado historicamente significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo”, afirma a sexta tese de Benjamin (Löwy, 2005). É esta a faísca que nos move na escrita deste artigo. A atualidade de uma rarefeita democracia reflete nossa trajetória político-econômica, concentradora de poder e riquezas, e é mantida por um aparato repressivo que se intensifica, mais recentemente, pela militarização da “questão social”, evidenciando a típica produção de precarização de condições de vida imposta pelo modo de produção capitalista à classe trabalhadora. Portanto, cabe também a nós, psicólogas(os), a tarefa de recuperar o indivíduo na intersecção de sua história com a história de sua sociedade (Lane, 1984), reescrevendo a trajetória coletiva pela recusa em se juntar ao cortejo do falso progresso democrático.
O estado de Exceção permanente e a militarização da “questão social”
A política criminal, como parte estruturante da lei e da ordem na sociabilidade do capital, é uma chave fundamental para a interpretação dos conflitos de classe e raça no Brasil. Por política criminal entende-se o conjunto de princípios e recomendações para a reforma ou a manutenção da legislação penal e dos 241
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órgãos encarregados de sua aplicação (Batista, 2011), sendo os sistemas judiciário, de segurança pública e penitenciário seus principais elementos constitutivos. Dentre os conhecimentos que mais influenciaram tais modificações, a criminologia, sobretudo em sua versão tradicional positivista, merece destaque por cumprir um importante papel de redefinição dos “criminosos”, dos crimes e das penas, alterando a legislação e os objetivos institucionais do aparelho penal e legitimando a ordem política e econômica estabelecida. Olhemos, portanto, mais detalhadamente sobre cada um dos sistemas componentes da Política Criminal e seus desdobramentos para a democracia no Brasil. O sistema judiciário, sobre o qual, desde Cesare Beccaria e sua obra Dos Delitos e das Penas (1764/2006), recai a concepção de neutralidade, precisa antes de tudo ser desmistificado. Em geral, a história do direito é apresentada de forma quase autônoma e descolada com respeito ao contexto histórico de suas formulações e aos interesses econômicos e políticos que fundamentam a criação das normas. Segundo o professor Nilo Batista (2011), a missão do direito, na perspectiva adotada hegemonicamente, seria identificada com a própria garantia das condições de vida em sociedade, tendo como finalidade a defesa e a preservação dos interesses do corpo social. No caso do direito penal, refletido em ampla medida na justiça juvenil, seu intento seria a proteção legítima e eficaz dos bens jurídicos fundamentais do indivíduo e da coletividade. Mas deve-se perguntar: o que significarão os “interesses do corpo social” em uma sociedade de classes, na qual os interesses em jogo são estruturalmente antagônicos? Se o crime é um constructo social e não um ente natural ou ontológico, “aparecido na natureza como os peixes, os abacates e as esmeraldas”, como provoca Vera M. Batista (2012), quais são os determinantes para a sua definição e, sobretudo, para a seleção dentre o imenso quadro da “criminalidade” daqueles que devem ser registrados, apurados, julgados e, por fim, punidos? O direito é, portanto, político, assim como a definição de crime e de “criminoso”. Damos três exemplos reveladores sobre a opção política das leis: a criminalização do aborto, permitido na França e nos Estados Unidos, por exemplo, desde a década de 1970 (tutela sobre direitos sexuais e reprodutivos, a partir de determinada moral); a abordagem penal sobre a produção, o consumo e o comércio de algumas drogas (interesses econômicos); e a frouxa legislação ambiental,
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privilegiando os interesses do agronegócio em detrimento da preservação dos ecossistemas (contradição bens tutelados versus interesses comuns). Os aparentes objetivos do direito penal, expressos através da formulação de proteção dos “interesses”, “necessidades”, “valores” ou “bens jurídicos” essenciais para a existência da vida em sociedade, possuem certos pressupostos ideológicos para sua aceitação, como as noções de unidade social (e não de divisão), de identidade de classes (e não de contradição), de igualdade entre os componentes do corpo social (e não de desigualdades reais, inclusive no seu o à justiça) e de liberdade individual (e não de exploração e opressão) (Batista, 2011). Neste estudo defende-se que, em uma sociedade de classes, o sistema criminal protege prioritariamente relações sociais, interesses e valores da classe dominante, ainda que aparente universalidade. É do campo da Criminologia Crítica ou Radical que partem as análises mais contundentes sobre o funcionamento seletivo do sistema de justiça e da política criminal. Em sua vertente positivista tradicional, nascida na segunda metade do século XIX, a criminologia reforçou a idealização de um saber jurídico neutro, puramente técnico (para não dizer científico) e alheio às tensões da realidade social, limitando-se ao exame causal-explicativo do crime e de seus autores. Embora a Escola Positivista tenha sofrido diversas modificações e acumulado críticas relacionadas, sobretudo, ao determinismo de suas proposições, seu modelo permanece ativo nas diversas instâncias da política, de modo que mesmo a produção jurídica continua furtando-se ao exame de sua própria legitimidade, dos determinantes de sua formulação conceitual e do desempenho concreto das agências encarregadas de sua aplicação. No Brasil, mais do que uma escola de pensamento, o positivismo criminológico constituiu-se como uma cultura que sofreu continuamente atualizações e sofisticações em seus esquemas classificatórios e hierarquizantes – a Psicologia lhe sabe bem – e que continua sendo apropriado pelo campo jurídico e pelo senso comum, por exemplo, na noção de “má índole” ou de “índole criminosa”, indicando a percepção de que alguém possa ter uma propensão natural ao crime. Tal como afirma Vera M. Batista (2012), O positivismo não foi apenas uma maneira de pensar, profundamente enraizada na intelligentsia e nas práticas sociais e políticas
Cruz, A. V. H.; Minchoni, T.; Matsumoto, A. E.; Andrade, S. S. (2017). Direitos Humanos e Militarização da Questão Social.
brasileiras; ele foi principalmente uma maneira de sentir o povo, sempre inferiorizado, patologizado, discriminado e, por fim, criminalizado. Funcionou, e funciona, como grande catalisador da violência e da desigualdade características do processo de incorporação da nossa margem ao capitalismo central (Batista, 2012, p. 48). Assim, sem questionar a construção política do direito – “como, por que e para que se ameaçam penalmente determinadas condutas e não outras, que atingem determinados interesses e não outros, com o resultado prático de atingir quase exclusivamente pessoas de determinada classe e não de outra” –, ao conceber os “comportamentos desviantes” a partir de um prisma individualizante e ao naturalizar as funções sociais desempenhadas pela pena, a criminologia positivista cumpriu um importante papel político de conservação e legitimação da ordem estabelecida (Batista, 2011, p. 29). Por legitimação, com base na criminóloga venezuelana Lola Aniyar de Castro, entendemos “toda forma de convalidar, autorizando, principalmente através da promoção do consenso social, um determinado sistema de dominação” (Castro, 2005, p. 43). Por seu turno, a função conservadora ou de controle social corresponde à produção e utilização de conhecimentos, táticas e estratégias para a construção da hegemonia e, em sua ameaça, para a submissão forçada daqueles que não se integram à ideologia dominante. Essa função legitimadora, historicamente, começa a ganhar um corpo teórico coeso e de peso com a Escola Liberal Clássica sobre o crime, o direito e a pena, ressaltada por muitos apenas por seu aspecto filosófico, “humanista” e limitador do direito punitivo em face dos excessos do Ancien Regime. Embora correta, tal caracterização é insuficiente com relação à formulação e, sobretudo, às aplicações e utilidades da teoria Iluminista incorporada aos sistemas jurídico-penais. Ademais, ela deixa oculta a noção de tempo forjada na concepção burguesa de sociabilidade que acompanhou a ideologia do trabalho, tornando possível o princípio fundamental de proporcionalidade da pena, conforme proposto por Beccaria, e a própria instituição da Prisão – forma especificamente burguesa de punição, na agem ao capitalismo. Se a pena não consiste em mera consequência do delito, mas compõe um sistema punitivo concreto com práticas penais específicas que variam de acordo
com o momento histórico, olhar para seu desenvolvimento pode nos auxiliar a compreender as variações da política criminal, uma vez que esta mesma não se concretiza tendo em vista apenas a melhor forma de combater o crime e a violência. O uso e a rejeição de certas punições, assim como a origem e a intensidade dos sistemas punitivos – nos ensinam Rusche e Kirchheimer (2004), Foucault (1987) e Melossi e Pavarini (2006) em seus diferentes enfoques –, são determinados por forças sociais que correspondem a um dado estágio de desenvolvimento econômico: todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem ao estágio de suas forças produtivas, resumem os autores. Do mesmo modo, o aspecto institucional – assim como seu funcionamento, seja ele oficial ou não – da reação ao comportamento desviante e do correspondente controle social não deve ser considerado como menos relevante em relação à formação de um sistema penal dado. É ele elemento fundamental da própria sociologia jurídico-penal, consistindo em sua materialização na vida social e cotidiana, ou seja, na forma como atinge a vida concreta de sua clientela preferencial (Castro, 2005). Efetivamente, apenas analisando esta unidade pode-se alcançar a função prática do direito (Baratta, 2002). No terreno da segurança, a superlotação dos presídios e o crescimento de mortes por ações policiais no campo e na cidade são manifestações do mesmo fenômeno: a militarização da “questão social”. Conforme já salientou Netto (2012), “[...] a articulação orgânica de repressão às “classes perigosas” e assistencialização minimalista das políticas sociais dirigidas ao enfrentamento da ‘questão social’ constitui uma face contemporânea da barbárie” (p. 429). Compreendemos, assim, a “questão social” como um conceito que expressa na aparência as condições de pauperismo a que está submetida a classe trabalhadora a partir das condições concretas da exploração da força de trabalho, as quais vão se modificando no fio da história (Netto, 2001). Trata-se, pois, de um processo de naturalização que torna a “questão social” traço a priori da realidade social, tornando-se alvo de intervenções que visam minimizar seus efeitos, a partir de uma ação tutelada do Estado para com a população tomada como em situação de vulnerabilidade. Nesse sentido, nos afastamos das concepções eivadas de ideologias reformistas e conservadoras, que visam dissertar sobre a manifestação fenomênica da produ-
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ção de desigualdades, reproduzindo multiplicidades (questões de segurança, de violência, de “criminalidade”, entre outros) como elementos isolados e com especificidades próprias, sem qualquer relação com a totalidade de onde emergiram. Multifacetada, a militarização da “questão social” também se expressa no “caveirão” que tudo arrasta na Maré; na abordagem criminalizante de jovens negros/as; no aumento de tiroteios em áreas com Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) na ordem de 13.746%, ando de 13 em 2011 para 1.555 em 2016; no canto de guerra da Polícia Militar (PM) do Paraná (Eu miro na cabeça, atiro sem errar / Se munição eu já não tiver, pancadaria vai rolar / Bate na cara, espanca até matar / Arranca a cabeça e explode ela no ar / Arranca a pele e esmaga os seus ossos / Joga ele na vala e reza um Pai Nosso); na Chacina de Messejana, com 11 mortos, em Fortaleza; na condenação de Rafael Braga; na perseguição a Mirian França; no Velório sem corpo de Amarildo; na política higienista e manicomial da Cracolândia, em São Paulo. Eis o Estado-Centauro (Wacquant, 2001), guiado por uma cabeça (neo)liberal e um corpo autoritário, que destitui direitos e aplica a doutrina do laissez-faire em relação às desigualdades sociais e aos mecanismos que as geram, mas mostra-se brutalmente punitivo quando se trata de istrar suas consequências no nível cotidiano. Essa violência inscreve-se em uma tradição multissecular de controle pela força, tradição oriunda do colonialismo, fortalecida por conflitos agrários e por duas décadas de ditadura empresarial-militar. Mais recentemente, ganha força no trampolim político da bancada da bala em programas policialescos, na reedição das medidas de Tolerância Zero, apresentadas como inovação em um verdadeiro Museu das Grandes Novidades, e com a pressão de ruralistas e do agronegócio. Retornando ao autor francês, para Wacquant (2003), o Estado keynesiano, cuja missão seria contrapor-se aos ciclos recessivos da economia de mercado, proteger as populações mais vulneráveis e reduzir as desigualdades mais gritantes do modo de produção e da sociabilidade capitalista, foi sucedido por um Estado que se pode chamar de neo-darwinista, que se baseia na competição, celebra a responsabilidade individual irrestrita e tem como contrapartida a irresponsabilidade coletiva e, deste modo, política. Conclusão semelhante chega o teórico Agamben (2014) ao destacar a conexão entre a crescente mul-
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tiplicação dos mecanismos de segurança (inclui-se, aí, as balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo etc.) e as reduzidas possibilidades de participação política, a ponto de devermos nos perguntar se vivemos em sociedades que ainda podem ser qualificadas de democráticas ou se reduzimos nossa participação política a um estatuto jurídico, burocratizado, que praticamente se limita à potência pífia de um voto. Vale ressaltar que o militarismo constitui um vasto conjunto de hábitos, interesses, ações e pensamentos associados com o uso de armas e com a guerra, mas que transcende aos objetivos puramente militares (Bobbio, 1998). O militarismo também não se restringe ao estatuto de determinada polícia ou ao espelhamento institucional do exército, mas é um fenômeno que se espraia por toda a sociedade. No Brasil, antes do regime ditatorial, as PMs encerravam um papel secundário no trato das questões de segurança interna. Embora já existisse a atual separação entre as Polícias Civil e Militar, foi sobretudo a partir de 1969, portanto no auge da repressão política, que houve uma reversão nas funções das corporações, de modo que as polícias militares saíram de seu aquartelamento e foram lançadas nas ruas com o objetivo de fazer o papel do policiamento ostensivo e de manutenção da ordem pública (Zaverucha, 2010). O treinamento e a atuação das PMs, no entanto, não está focado na garantia de direitos. Muito pelo contrário, a cultura institucional é guiada por uma lógica de guerra que transforma as ruas em campos de batalha, criminaliza a condição de pobreza e os movimentos sociais e transforma questões de saúde, como o consumo e a dependência de drogas, em declarada Guerra. A chamada Constituição Cidadã manteve a estrutura de militarização da segurança – ou seja, de adoção e uso de modelos, conceitos, doutrinas e procedimentos militares em atividades de natureza civil (Cerqueira, 1998) – além de garantir a supremacia em número de homens e poder de fogo (igualmente alcançada durante o período autocrático burguês) da Polícia Militar sobre a Polícia Civil. Nesse sentido, o processo de desmilitarização das polícias – bandeira popular que ganhou maior fôlego desde as chamadas “Jornadas de Junho”, em 2013 – a, inicial e essencialmente, por um corajoso enfrentamento das heranças da ditadura, presentes inclusive em termos legais – tarefa nada fácil, vide as amplas e sintomáticas dificuldades na constituição e atuação de uma efetiva Comissão da Verdade. Ademais, os legados
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do autoritarismo nas instituições policiais e nas políticas de segurança precisam ser encarados não somente na esfera prática (através da expansão dos mecanismos de controle e participação social, elaboração de uma nova abordagem que reconheça a diversidade do fenômeno da violência e não criminalize a situação de destituição, revitalização dos espaços públicos ao revés da ameaça ostensiva e do domínio territorial etc.) mas, igualmente, nos campos cultural e simbólico. Até hoje, para citar apenas um exemplo, a polícia militar de São Paulo presta homenagem aos golpes militares do Estado Novo e de 1964 em seu brasão de armas, além das repressões ao levante de 1935 e à greve dos operários de 1917, dentre outras ocorrências de contenção a manifestações populares. A atuação excessivamente violenta das PMs guarda íntima relação com a formação dos policiais e a composição interna da instituição, e também deve ser incorporada a esse debate. Fincada nos valores da disciplina e da hierarquia, a estrutura organizacional militarizada não permite aos que nela ingressam o mínimo questionamento sobre suas funções e responsabilidades. Ordens não podem ser discutidas e tradições, por vezes com fortes matizes genocidas e preconceituosas ao ponto de incitar pública e impunemente os crimes de tortura e homicídio, tendem a ser perpetuadas. As queixas sobre as condições de trabalho e os dilemas éticos que porventura seus operadores enfrentem, como poderia ser o caso diante dos protestos e reivindicações populares – “Manter a ordem pode ser uma missão eticamente sustentável se a ordem real está alicerçada em uma injustiça flagrante?” (Rolim, 2006) –, são silenciados pela obrigação da submissão e o despotismo dos oficiais. Em qualquer outro contexto laboral, a forma como se concretizam cotidianamente tais princípios seria caracterizada como assédio moral. No entanto, o autoritarismo presente nas organizações militares aumenta sensivelmente as possibilidades de adoecimento dos policiais e propicia a reprodução da violência (banalizada em sua própria formação) junto à população que deveria proteger. Mantida por meio de privilégios e punições que compreendem a simbologia e a prática da humilhação, a disciplina militar doutrina ao longo dos anos que é possível “corrigir” sujeitos através do castigo e do sujeitamento forçado à autoridade – algo extremamente perigoso de ser reproduzido pelos detentores do “uso legítimo da força” quando tratados, eles mes-
mos, por meio da brutalidade e do exercício bélico. Não menos importante é a consideração do sofrimento psíquico a que está sujeito o próprio profissional da segurança pública, pressionado a dar respostas imediatas a um problema estrutural e difícil de ser efetivamente enfrentado nos marcos de uma sociedade produtora de desigualdades. O outro front invisível da guerra está no campo. Sequências de chacinas foram realizadas, sobretudo no Norte e Centro-oeste do Brasil, contra campesinos(as) e indígenas que lutam por reforma agrária e demarcação de terras para os povos originários. A mais recente ocorreu em de 24 de maio de 2017: nove homens e uma mulher ligados à Liga dos Camponeses Pobres (L) foram mortos na fazenda Santa Lúcia, localizada no município de Pau d’Arco, sudeste do Pará, durante ação das Polícias Civil e Militar. Outras 14 pessoas foram baleadas e ficaram feridas. É o maior morticínio, em uma única investida, desde Eldorado dos Carajás. De 2007 para cá, os assassinatos motivados por disputas de terras mais que dobraram, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (T). O Brasil, considerado um dos países mais perigosos do mundo para ambientalistas, teve 58 assassinatos registrados pela T em 2016 – um crescimento de 23% com relação aos casos registrados em 2015. Neste ano, já foram contabilizadas 36 mortes por conflitos agrários. A construção da figura do inimigo delinquente – um Outro diferenciado de nós e de quem precisamos, a qualquer custo, nos proteger – foi forjada há séculos e ainda permanece como um assustador consenso social. Ela foi primeiramente legitimada enquanto uma ideia, apresentada como necessidade e sustentada por teorias dentro de uma concepção moderna de Estado que amparou dominações e práticas autoritárias com vernizes democráticos. Virou política pública, algumas vezes expressa (lei antiterror) outras veladas (“guerra às drogas”, objeto inanimado que leva o “caveirão” e a gestão militar para as favelas), mas apresentando-se, invariavelmente, como preservação social. O massacre multissecular, portanto, foi e é feito “em nome da segurança”, da “Defesa Social”. O trabalho ideológico foi bem-feito: ainda hoje, “bandidos” e “vagabundos” – independentemente de sua idade – não merecem direitos, pois não são concebidos como humanos iguais. São vidas indignas de serem vividas, pelo menos em sociedade. São seres humanos privados do caráter de pessoas por um
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direito penal subterrâneo (Zaffaroni, 2007) que comemora sua morte em massa. Cada corpo no chão é “um a menos” numa sociedade que aprova amplamente a pena de morte e a prisão perpétua2: “vagabundo não merece perdão”. A maioria legitima o que, em tempos idos, era mais facilmente identificável como interesses de uma poderosa minoria. Os Direitos Humanos se distanciaram cada vez mais do conceito de humanidade e do consequente chamado à dignidade. Sua concretização esteve sujeita à definição de quem conta como ser humano a ter seus direitos garantidos: os “humanos direitos”; demonstrando uma gigantesca lacuna entre o Homem abstrato das declarações e os sujeitos de carne, osso e classe social. Se algum discurso sedicioso se propõe a resgatar seu sentido original, relacionado à concepção de cidadania no contexto da Revolução sa, é desqualificado junto com o sujeito: defensor de bandido não merece crédito, pois contribui com a violência, sempre atribuída ao outro. O medo construído a partir de um inimigo suposto (e que, justamente por ser suposto, é inesgotável) e invariavelmente identificado nos setores populares, cumpriu o seu dever: a força policial, hoje, está autorizada a atuar no patamar do massacre. O Brasil, assim como boa parte do ocidente, optou por uma gestão penal da miséria e da desigualdade. Trata-se, cada vez mais, de fortalecer o Estado Penal para conter o aumento da insegurança objetiva e subjetiva que é, ela mesma, causada pela incapacidade da intervenção estatal para reduzir os desdobramentos da questão social inerente ao capitalismo. Esta alternativa se acirra com algumas particularidades a partir da entrada em cena do neoliberalismo enquanto ideário político e econômico predominante. Nos termos de Wacquant (2003, p. 32), “a mão invisível do mercado encontra seu prolongamento ideológico e seu complemento institucional no ‘punho de ferro’ do Estado penal”, que por sua vez se materializa em práticas de criminalização da pobreza e no refortalecimento das medidas de disciplina e controle direcionadas para aqueles que são as principais vítimas da violência, embora tomados como seus exclusivos algozes: adolescentes e jovens pobres, negros e moradores das periferias urbanas. A principal proposição de Wacquant nas duas obras em que trata da “nova” governabilidade da 2
miséria (2001; 2003) está em demonstrar que a direção punitiva tomada pelas políticas penais nas sociedades ditas avançadas a partir do final do século XX (e copiada em diferentes partes do globo, incluindo o Brasil), consiste na reedição de um governo da insegurança social no sentido de ampliar técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta daqueles envolvidos na turbulência da desregulamentação econômica neoliberal. No interior dessa proposta de organização, a prisão assume um papel maior que se traduz, para os grupos que vivem nas regiões inferiores da pirâmide social, na imposição de uma tutela severa e minuciosa. Assim, não nos parece exagero afirmar que a estratégia segregacionista da Política Criminal é parte estruturante da preservação do Capital e revela, no rio de lama de Mariana e no rio de sangue da carne mais barata do mercado, o que significa a Garantia da Lei e da Ordem no acirramento do conflito de classes do Brasil atual.
De qual democracia estamos falando? A adesão subjetiva à barbárie
Se, para Marx e Engels (1932/2007), é a vida que determina a consciência a partir de suas condições concretas de existência, há de se considerar que a crescente militarização da “questão social” e a execução da política criminal tal qual discutida anteriormente, associada à manipulação ideológica operada, sobretudo, pela mídia empresarial, terá efeitos bastante concretos no cotidiano da população brasileira. Trata-se do entendimento do processo de constituição subjetiva que legitima, reitera e sustenta práticas ditas “democráticas”, mas que efetivamente são de segregação e extermínio, alimentadas pelo desejo crescente e massivo por punição. Caldeira (1991), em uma análise minuciosa da transformação do discurso dos Direitos Humanos em “privilégio de bandidos” no estado de São Paulo, evidencia como a mídia empresarial, via meios de comunicação de massa, inculcou uma relação direta e causal entre a democracia e o aumento da criminalidade. Esse processo se iniciou nos períodos de transição e reabertura democrática na década de 1980, mesma época em que os índices de violência na cidade de São Paulo chegaram a níveis alarmantes e se ensaiava a tentativa de humanização de presídios e de reforma da polícia. Nesse contexto, as notícias destacadas roti-
http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,no-brasil-46-aceitam-pena-de-morte-e-51-prisao-perpetua,787757
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neiramente pelos programas de rádio, enfatizavam o aumento da criminalidade em função da diminuição do poder de ação da polícia militar após o fim da ditadura, hiperdimensionando episódios de violência, retratados como verdadeiras carnificinas como se fossem a regra do cotidiano das cidades. Essa estratégia de imposição do medo à população torna-se tão mais sofisticada quanto cruel quando se atualiza nos programas televisivos. Com o recurso da imagem, diversos programas, e especialmente os policialescos, não só narram episódios isolados e grotescos de violência como exploram imagens sanguinolentas, investindo incisivamente em uma via de mão dupla: por um lado, na criação da sensação de que a próxima pessoa a experienciar a violência será o expectador, sempre na condição de vítima; e por outro, na da pessoa exposta ali como criminosa, configurando-a como inimiga, “lixo da humanidade”. Ambos investimentos terão consequências desastrosas, sobretudo para as pessoas que são alvo preferencial e histórico da política criminal. O estereótipo do “bandido” que está nas bordas da humanidade, alheio a sentimentos de compaixão, piedade e que, portanto, executa “crimes cruéis”, é endossada constantemente pelos meios de comunicação de massa (Batista, 2012), atualizando uma vez mais as concepções lombrosianas sobre o “homem delinquente”: se originalmente esta teoria apregoava que o criminoso traria organicamente, por atavismo ou hereditariedade, a reminiscência de comportamentos adquiridos durante a evolução psicofisiológica (em sua obra são constantemente comparados com “bárbaros” e “selvagens”), possuindo uma tendência inata para o crime e com características especialmente reveladoras de sua delinquência (ânimo violento, espírito vingativo, vaidade instintiva, insensibilidade ou tolerância a dor, ausência do sentimento de compaixão ou indiferença pela desgraça alheia, preguiça e apreço à ociosidade, insensibilidade moral, tendências obscenas ou “forma monstruosa de amor sexual” etc.), hoje esta visão reverbera no próprio conceito de criminalização, entendida como a condenação antecipada de pessoas por questões físicas, sociais, econômicas e/ou geográficas que supostamente revelariam a sua periculosidade. Usando o medo como metodologia, a mídia propaga um senso comum criminológico que julga feroz-
mente pessoas a quem se destina o estigma de “bandidos” ou “vagabundos”, incitando e demandando coletivamente o castigo e a punição. Esse julgamento se efetiva com ações cotidianas que se relacionam com o impacto que o discurso midiático tem na vida da população, a exemplo do aumento de episódios de justiçamento nas semanas seguintes à ampla difusão do discurso da jornalista Rachel Sheherazade, em 20143. Ou ainda se desmembra em um clamor pelo encarceramento em massa, associando segurança pública com o aumento do número de prisões. Não é demais destacar que 57% da população brasileira concorda com a frase “bandido bom é bandido morto”, e que o “país da impunidade” possui a quarta maior população carcerária do mundo; sendo que, ao contrário dos EUA e da Rússia, que ocupam respectivamente, a primeira e a terceira posições – e para os quais há dados mais consolidados –, nossa taxa de encarceramento permanece em ascensão sob o aplauso entusiasmado de amplos setores. Em paralelo a isso, destaca-se o risco em que se encontram as pessoas “dignas e honestas”, bem como suas famílias, consideradas “cidadãos de bem”. Essa dualidade foi construída e enfatizada, corroborada por discursos de agentes da segurança pública que afirmavam a ameaça a que estava submetida a população em um momento de mudança social, provocando a sensação de insegurança. Permanecemos, destarte, diante de uma atuação estatal, midiaticamente explorada e socialmente legitimada, que reproduz tradições e valores que rejeitam “visceralmente a noção de direitos universais e divide binariamente os seres humanos em ‘cidadãos de bem’ (ou ‘cidadãos’ tout court) e ‘não-cidadãos’”. Num gradiente de autoritarismo, sustentado pelo argumento da necessidade de segurança, “essa moral binária (...) oferece e à continuidade das práticas policiais ilegais, em nome da pretensa necessidade de se travar uma ‘guerra’ sem trégua, por todos os meios, contra o crime e a desordem” (Lemgruber, Musumeci, & Cano, 2003, p. 55). Ademais, a criação da figura do “cidadão de bem” foi também bastante útil para desarticular a luta em prol dos mínimos direitos para a população prisional. De acordo com Caldeira (1991), a direita se utilizou da equiparação entre direitos civis individuais à noção de privilégios, investindo no argumento de que se queria transformar prisões em hotéis luxuosos e dar
3 Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) (Produtor). (2014). Telejornal SBT Brasil - 4 de fevereiro de 2014 - 1º bloco. [Vídeo]. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=yxSr0ht8vgM
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boa vida aos “bandidos”, que zombariam das pessoas que lutam para sobreviver “de forma honesta”. Tais elementos contribuíram para equiparar a luta pelos direitos à “privilégio de bandido”, quando a realidade do sistema prisional brasileiro é assustadoramente oposta a qualquer privilégio. No campo psi, Martín-Baró (1990), em Psicología social de la guerra, apontava para as características psicossociais de contextos de conflitos declarados, ao analisar a condição de El Salvador. Nesse sentido, podemos articular tais apontamentos com as questões aqui apresentadas ao analisar as permanências da ditadura nas políticas de segurança e sua disseminação no corpo social a partir dos elementos tratados por Baró, tais como: processos de militarização da vida cotidiana e “das mentes”, a veiculação de mentiras institucionalizadas a partir das expressões midiáticas da ideologia dominante, e a cristalização das relações sociais, redundando numa polarização social, a qual determina quais são os sujeitos que devem ser encarcerados, exterminados, aniquilados da sociedade. Desse modo, os estereótipos forjados sob medida para legitimar a execução da política criminal no Estado Democrático de Direito, associados aos discursos contra os direitos humanos, escamoteiam os interesses de classe aí contidos: a manutenção dos privilégios da elite brasileira. Em um contexto nacional de expansão dos direitos, a partir da conquista das lutas populares e dos movimentos sociais na década de 1980, o crime se torna justamente um meio de articular discursos contra os direitos, sobretudo, de pessoas empobrecidas, amparado na noção de periculosidade e propensão para o crime, herdada das teorias e práticas higienistas e eugênicas. A semelhança com outros períodos de nossa história não é mera coincidência. No contexto de consolidação da República, no final do século XIX e início do século XX, a valoração positiva do trabalho após séculos de regime escravagista ganha contornos particulares na conjuntura nacional, articulado aos ideários positivista, de “ordem” e “progresso”, e à eugenia, articulada ao conceito de degenerescência. O que estava em jogo, portanto, não era “somente” a construção de um novo regime político e econômico, mas igualmente a conservação e justificação de uma hierarquia social arraigada. Assim, tem início o regime republicano, em meio às grandes transformações políticas, econômicas e sociais geradas, dentre outros fatores, pela abolição do regime escravocrata e pela ação dos médicos higie248
nistas. Ao mesmo tempo em que se verifica a expansão populacional em centros urbanos e o desenvolvimento do comércio e da indústria, surge um novo projeto de Nação especialmente empenhado em fortalecer o Estado e moralizar as famílias, sobretudo através da imposição do trabalho assalariado.
A Psicologia que não teme tomar partido: provocações necessárias Após 55 anos da promulgação da Lei no 4.119/1962 (Brasil, 1962), que regulamenta a profissão da Psicologia no Brasil, muitos foram os desdobramentos de nossa ciência e profissão que merecem destaques ao analisarmos o contexto político-social brasileiro e as convocações históricas a que a Psicologia buscou responder nesse período. Constituída como uma profissão que tem como função privativa a utilização de métodos e técnicas psicológicas com objetivos de diagnóstico psicológico, de orientação e seleção profissional, de orientação psicopedagógica e de solução de problemas de ajustamento, conforme descrito no texto legal, a história de nossa profissão expressa também as conflitivas sociais determinantes na relação com as demandas frente às desigualdades vividas pela maioria da população brasileira. Nesse contexto, discorrer sobre o compromisso ético-político de nossa profissão, em verdade, significa analisar as contradições postas no desenvolvimento do Estado Brasileiro, buscando compreender a Psicologia como um conjunto de contribuições sociotécnicas inseridas na totalidade das relações sociais, e que tem, desde o seu surgimento, produzido respostas e posicionamentos diante das demandas que lhe são apresentadas. Tais contribuições denotam determinados compromissos e objetivos, os quais são fundamentais para compreendermos o movimento constante de construção de suas teorias e práticas. De forma hegemônica, a Psicologia desenvolveu-se pautada na construção de técnicas e métodos, por meio das bases teóricas, mormente importadas de outros países e oriundas de outros contextos sociais, com o intuito primordial de fazer valer a promoção de “ajustamentos de conduta”. Foi assim nas escolas, nas fábricas e empresas, nas instituições assistenciais, na relação com a justiça e, ainda mais enfaticamente, nos espaços privados das clínicas psicológicas. A legitimação de constructo teórico expresso pelos contornos de uma individualidade destacada das relações sociais é condição fundamental para o desenvol-
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vimento de processos de controle, disciplina e pretenso apaziguamento dos sujeitos frente aos conflitos sociais vivenciados, escamoteando-se, assim, a processualidade e o movimento dialético da constituição de individualidade. A validação de traços de personalidade, a predominância do foco na doença, esta fundamentalmente de responsabilidade de cada sujeito, a elaboração de crivos para marcadores sociais de diferença, traduzidos em características individuais naturais, e a produção teórica sobre o que deve ser considerado normal, foram constituindo a prática dominante da Psicologia desde seu surgimento. Nossa ciência e profissão foi peça importante, nesses termos, para a instauração e manutenção do capitalismo e isto deve ser posto em análise, sob pena de reproduzirmos discursos meramente alegóricos sobre nosso papel. Como Martín-Baró (1997) já nos ensinou, a Psicologia ainda tem permanecido numa relação servil em relação aos interesses dominantes, bem como à apropriação colonizada de teorizações, no levantamento de questões e de produção de respostas, como distante e alheia aos anseios sociais dos povos latino-americanos. Um dos vieses colonizadores tem sido a tendência ao “psicologismo” como gabarito para a compreensão de complexos problemas sociais encarnados dialética e contraditoriamente nas histórias de vidas de sujeitos singulares. Löwy (1994), inspirado por Rosa Luxemburgo, apresenta a metáfora do mirante para nos dizer que há uma relação intrínseca entre a posição social do pesquisador (e podemos dizer de todo profissional) e seu horizonte de visibilidade do movimento do real, a qual se desdobra na definição de um “ponto de vista” que não tem interesse em escamotear a realidade (produzindo e reproduzindo a mistificação) e que dá condições de se vislumbrar as múltiplas determinações do objeto a ser estudado (e a realidade da intervenção). A visão de mundo e concepção de ser humano do pesquisador – e porque não, da(o) psicóloga(o)? –, portanto, são elementos que precisam ser explicitados nesse processo de produção de conhecimento e não são estranhas ao estatuto da ciência ou da práxis profissional. Dessa forma, cabe-nos indagar: sob qual mirante nos assentamos para conhecer aqueles que atendemos e para desenvolver e realizar as práticas psicológicas? Como já pontuado anteriormente, a história da América Latina é recheada de episódios de violência, de dominação e opressão, histórias de invasão e
colonização, de extermínio de seus povos originários, de escravização, de desigualdades sociais, guerras civis, militarismo e ditaduras civis-militares financiadas pelo imperialismo estadunidense como tática para a expansão do capitalismo entre os países subdesenvolvidos. Muito recentemente, esta história está pautada por um frágil processo de uma “abertura democrática” em vários de seus países, baseado em uma débil emancipação política como corolário de uma pretensa conquista de cidadania burguesa. Conflitos agrários, precarização do trabalho, baixo índice de desenvolvimento humano (IDH), desintegração de recursos naturais, ações policialescas e políticas neoliberais dão o tom de muitas das contradições atuais que ainda vivenciamos em nosso território latino-americano. A partir do desenvolvimento do trabalho assim chamado livre no território brasileiro, temos que necessariamente discutir as dimensões e contradições no mundo do trabalho, além do determinante fundante de classe social, também a partir também dos recortes raciais e de gênero. Nesse sentido, cabe-nos destacar que o racismo e o machismo incidem sobre a precarização do trabalho, pois há o desenvolvimento de justificativas ideológicas para a mão de obra negra e feminina ser superexplorada a partir do desenvolvimento do capitalismo. Dessa forma, para analisarmos a relação do desenvolvimento da Psicologia como ciência e profissão e o da história do Brasil, nessa perspectiva, há que se rechaçar, portanto, as concepções que visam à harmonização da formação social brasileira, escamoteando as raízes da violência trans-históricas pautadas pelo racismo e pelo patriarcalismo que fundaram a ideia de “Brasil Moderno”. Resgatamos aqui o sentido do compromisso ético-político de nossa profissão, calcado na radicalidade da compreensão dos determinantes histórico-sociais a que estão submetidos os povos latino-americanos, a partir da especificidade de como isso se desdobra em nosso país. Há que se partir das vozes das resistências, dos enfrentamentos e das transformações realizadas no interior de nossa prática profissional em diálogo com os coletivos e grupos atendidos em sua história de lutas, confrontos e insurgências. Cabe-nos falar, nesse contexto, partir de uma Psicologia que se pretende indisciplinada, por não se pautar pela disciplinarização dos sujeitos, e de libertação/emancipação humana para produzirmos formas de cuidado e de intervenção voltada à nossa população. 249
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Considerações finais
A história não é linear e nem se desenvolve necessariamente no sentido do progresso emancipatório da humanidade. As diferentes concepções se interpenetram e se atualizam, as múltiplas e contraditórias determinações concretas dos modos de produzir e reproduzir a vida se inter-relacionam. À inferioridade jurídica e biológica, inicialmente atestada “cientificamente”, soma-se à social. Sua desconstrução, na teoria, não se desdobrou numa desconstrução prática. O estereotipo do delinquente, ainda hoje sintomaticamente chamado “vagabundo”, ganha novos ares: um jovem negro, morador da favela, próximo ao tráfico de drogas, de boné, cordões e “portador de algum sinal de orgulho ou de poder e nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o circunda” (Zaccone, 2013, p. 21). Este sujeito/objeto forjado pela teoria criminológica só pode ser compreendido se atentarmos para a demanda por ordem em cada momento histórico. As contradições sociais necessitam ser istradas, de uma forma ou de outra, pelo Estado burguês. No caso dos setores mais precarizados, sua ação tem forte viés punitivo e coercitivo, sentido com particular violência por crianças e jovens. Tal realidade impõe, àqueles que possuem algum compromisso
com os direitos humanos, a tarefa de uma crítica radical ao modelo criminalizante. Nesse sentido, talvez a primeira e mais difícil tarefa seja abandonar a ideia de que direitos são sinônimo de justiça e, sobretudo, abandonar a fé no poder punitivo para a resolução de conflitos. Isso significa repensar o modo como temos abordado opressões históricas, uma vez que a crítica, mesmo quando acertada, não tem contribuído em ações para a resolução ou superação da realidade posta, muitas vezes, inclusive, utilizando-se de argumentos que reverberam na ampliação da criminalização e do encarceramento. O problema comum da criminologia tradicional está na necessidade de ordem numa perspectiva de luta de classes. É essa ligação com o fio condutor da história – a luta de classes – que não podemos perder de vista. Como afirma Batista (2012, p. 22), “ela nunca foi tão visível e palpável como na dura conflitividade social do dia a dia do capitalismo de barbárie: garotos morrendo ou matando por um boné de marca”. Qualquer proposta que vislumbre a redução da letalidade do sistema penal em nosso país deve incluir, portanto, a contenção do poder punitivo. E à Psicologia está posto o desafio de revisitar-se, com vistas a ampliar suas contribuições possíveis nessa empreitada.
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Ana Vládia Holanda Cruz Doutora e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal – RN. Brasil. Professora da Faculdade DeVry Fanor, Fortaleza – CE. Brasil. E-mail:
[email protected]
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Tatiana Minchoni Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal – RN. Brasil. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis – SC. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Brasil. E-mail:
[email protected] Endereço para envio de correspondência: Soraya Souza de Andrade QI 20, conjunto B, casa 114, Guará I. CEP: 71015-026. Brasília – DF. Brasil. Recebido 30/06/2017 Reformulação 15/09/2017 Aprovado 25/09/2017 Received 06/30/2017 Reformulated 09/15/2017 Approved 09/25/2017 Recebido 30/06/2017 Reformulado 15/09/2017 Aceptado 25/09/2017
Como citar: Cruz, A. V. H., Minchoni, T., Matsumoto, A. E., & Andrade, S. S. (2017 ). A ditadura que se perpetua: direitos humanos e a militarização da questão social. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 239-252. https://doi.org/10.1590/1982-3703180002017 How to cite: Cruz, A. V. H., Minchoni, T., Matsumoto, A. E., & Andrade, S. S. (2017). The dictatorship that remains: human rights and the militarization of the social issue. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 239-252. https://doi.org/10.1590/1982-3703180002017 Cómo citar: Cruz, A. V. H., Minchoni, T., Matsumoto, A. E., & Andrade, S. S. (2017). La dictadura que se perpetúa: derechos humanos y la militarización de la cuestión social. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(n. spe), 239-252. https://doi.org/10.1590/1982-3703180002017 252
Normas Diretrizes para Autores Forma e preparação de manuscritos O manuscrito submetido à Revista Psicologia: Ciência e Profissão não pode ter sido publicado em outro veículo de divulgação (revista, livro, etc.) e não pode ser simultaneamente submetido em outro meio de divulgação científica ou de pesquisa. Uma avaliação referente a plágio será conduzida mediante critérios reconhecidos pela Associação Brasileira de Editores Científicos (Abec). Todas as submissões de manuscritos devem seguir as Normas de Publicação da APA: American Psychological Association. (2010). Publication manual of the American Psychological Association (6th ed.). Washington, DC: Author), no que diz respeito ao estilo de apresentação do manuscrito e aos aspectos éticos inerentes à realização de um trabalho científico. A omissão de informação no detalhamento que se segue implica que prevalece a orientação da APA. Categorias do manuscrito 1. Estudo teórico - discussão de problemas fundamentados teoricamente, envolvendo reflexão crítica e indicação de avanços científicos no estado da arte a ele associado. É necessário conter: resumo, introdução, método, discussão, conclusão ou considerações finais e referências. Devem ser escritos entre 20 e 25 laudas, não considerando resumos e referências; 2. Relato de pesquisa – investigação original, de relevância científica, baseada em estado da arte e dados empíricos, lastreada em metodologia específica e discussão. É importante que seja explicitada a contribuição da pesquisa para a produção do conhecimento em Psicologia. É necessário conter: resumo, introdução, método, resultados, discussão, conclusão ou considerações finais e referências. Devem ser escritos entre 20 e 25 laudas, não considerando resumos e referências; 3. Relato de experiência - relato de experiência relacionados à intervenção profissional, de interesse e relevância científica e social para as diferentes áreas do conhecimento psicológico, e que demonstrem contribuições para a melhoria de práticas profissionais em Psicologia. É necessário conter: resumo, introdução, método, discussão, conclusão ou considerações finais e referências. Devem ser escritos entre 15 e 20 laudas, não considerando resumos e referências. Critérios gerais para avaliação dos manuscritos 1) Os trabalhos enviados devem ser redigidos em português, em inglês ou em espanhol e, obrigatoriamente com resumo, abstract e resumen; 2) Espaço duplo, fonte Times New Roman, tamanho 12, margens de 2,54 centímetros, texto alinhado à esquerda; 3) Textos devem ser submetidos em extensão .doc ou .docx; 4) Tabelas e figuras (gráficos e imagens) devem constar no corpo de texto, mas necessariamente em formato editável; 5) As páginas não devem ser numeradas; 6) O título deve ser centralizado, em negrito e conter letras maiúsculas e minúsculas; 7) O título deve explicitar o(s) fenômeno(s) estudado(s) e a relação com o contexto de investigação; 8) O resumo deve ater-se às informações relevantes do manuscrito, destacando o contexto teórico do estudo, objetivo, método, resultados, discussão e conclusão. Manuscritos de revisão sistemática ou teóricos devem explicitar a perspectiva adotada e as contribuições ou avanços produzidos pela pesquisa no campo da Psicologia. De 150 a 250 palavras, e de 3 a 5 palavras-chave em cada um dos resumos;
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9) A introdução deve destacar o estado da arte, propósitos e objetivos e potencial contribuição da investigação na área de conhecimento considerada; 10) O método deve salientar o delineamento e os procedimentos de pesquisa e, principalmente, no caso das pesquisas empíricas, especificar o contexto, participantes, variáveis ou categorias estudadas, instrumentos de coleta de dados, análise dos dados sistematizados e discussão; 11) As referências e formas de citação devem seguir as Normas de Publicação da APA: American Psychological Association. (2010). Publication manual of the American Psychological Association (6th ed.). Washington, DC: Author); 12) Todos os endereços de páginas na Internet (URLs) incluídos no texto devem estar ativos e prontos para o imediato. Envio de manuscritos Os manuscritos devem ser inéditos e os originais submetidos a exame pela Comissão Editorial, que poderá recorrer ao conselho consultivo e/ou a pareceristas ad hoc, a seu critério, omitida a identidade dos autores. Os autores devem atentar-se as seguintes especificações de envio: 1) Carta ao Editor Os autores devem dar ciência da sua concordância com a publicação do manuscrito à Revista Psicologia: Ciência e Profissão por meio de carta ao editor assinada por todos os autores, digitalizada e enviada via Plataforma SciELO como “Documento Suplementar”, atendendo às seguintes exigências: Identificar a categoria do manuscrito, conforme especificado no item “Forma e preparação dos manuscritos”; Justificar a relevância científica e social; Declarar que o manuscrito submetido à Revista Psicologia: Ciência e Profissão não foi submetido ou publicado em outro meio de divulgação científica; Declarar que os procedimentos éticos de pesquisa exigidos pela legislação vigente (Resolução 466/2012) foram cumpridos e, em todos os casos de estudo/pesquisa empírica, sejam Relatos de Pesquisa ou Relatos de Experiência, é necessário apresentar o respectivo parecer do Comitê de Ética da Universidade/Instituição ou Termo de Consentimento Livre e Esclarecido no caso de estudo individual/grupal; Autorizar o início do processo editorial do manuscrito; Indicar a área de conhecimento a qual o manuscrito pertence de acordo com a tabela do CNPQ. Somente serão avaliados manuscritos submetidos à Revista Psicologia: Ciência e Profissão via Plataforma SciELO. 2) Folha de Rosto A folha de rosto deverá ser enviada via Plataforma SciELO como “Documento Suplementar”, contendo: •
Título em português (máximo de 12 palavras);
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Título em inglês;
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Título em espanhol;
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Nome, titulação e afiliação institucional e/ou profissional, por extenso, de cada um dos autores;
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Nomes dos autores como devem aparecer em citações;
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Endereço de correspondência do(a) autor(a) com o qual a Revista poderá se corresponder (recomendamos que sejam utilizados endereços institucionais);
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Agradecimentos e observações, quando pertinentes.
3) Apresentação formal do manuscrito Os textos originais deverão ser submetidos via Plataforma SciELO mediante cadastro do(a) autor(a) no sítio da Revista Psicologia: Ciência e Profissão (http://submission.scielo.br/index.php/p/about/submissions#authorGuidelines). Como a revisão dos manuscritos é cega quanto à identidade dos autores, é responsabilidade dos autores verificarem a não existência de elementos capazes de identificá-los em qualquer outra parte do manuscrito, inclusive nas propriedades do arquivo. Os autores serão comunicados imediatamente sobre o recebimento do manuscrito e poderão acompanhar o processo de editoração eletrônica, utilizando seu nome de usuário e senha. Os manuscritos somente iniciarão o processo editorial com o registro de todos os autores no sítio da Revista e de seus respectivos e-mails. Condições para submissão Como parte do processo de submissão, os autores são obrigados a verificar a conformidade da submissão em relação a todos os itens listados a seguir. As submissões que não estiverem de acordo com as normas serão devolvidas aos autores. 1. A contribuição é original e inédita, e não está sendo avaliada para publicação por outra revista; caso contrário, deve-se justificar em “Comentários ao editor”. 2. O arquivo da submissão está em formato Microsoft Word, OpenOffice ou RTF. 3. URLs para as referências foram informadas quando possível. 4. O texto está em espaço duplo; usa uma fonte de 12-pontos; emprega itálico em vez de sublinhado (exceto em endereços URL); as figuras e tabelas estão inseridas no texto, não no final do documento na forma de anexos. 5. O texto segue os padrões de estilo e requisitos bibliográficos descritos em Diretrizes para Autores, na página Sobre a Revista. 6. Em caso de submissão a uma seção com avaliação pelos pares (ex.: artigos), as instruções disponíveis em Assegurando a avaliação pelos pares cega foram seguidas. Política de Privacidade Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.
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Lista dos pareceristas do número temático “Psicologia e democracia” Avaliadores Adriana Eiko Matsumoto (UFF) Aluísio Lima (UFC) Bárbara de Souza Conte (SIG/RS) Bruno Peixoto Carvalho (UFMS) Candida Dantas (UFRN) Carla Biancha Angelucci (USP) Cristiana Facchinetti (FIOCRUZ) Cristina Mair Barros Rauter (UFF) Cristóvão Giovani Burgarelli (UFG) Daniele de Andrade Ferrazza (UEM) Domenico Uhng Hur (UFG) Elio Rodolfo Parisi (UNSL - Argentina) Fellipe Coelho Lima (UFRN) Fernando Lacerda Júnior (UFG) Fernando Santana (UFJF) Filipe Boechat (UFG) Francisco Teixeira Portugal (UFRJ) Frederico Viana Machado (UFRGS) Fuad Kyrillos Neto (UFJF) Isabel Fernandes de Oliveira (UFRN) Jader Ferreira Leite (UFRN) João Paulo Macedo (UFPI) José Rodrigues de Alvarenga Filho (UFJF) Kátia Maheirie (UFSC) Laila Maria Domith Vicente (UNESA) Luis Eduardo Franção Jardim (USP) Marcelo Afonso Ribeiro (USP) Márcio Seligmann-Silva (UNICAMP) Marco Aurélio Soares Jorge (FIOCRUZ) Maria Helena Zamora (PUC-RJ) Maria Lucia Boarini (UEM) Mariana Alves Gonçalves (UFRJ) Marilda Castelar (EBMSP) Marilda Gonçalves Dias Facci (UEM) Miriam Debieux Rosa (USP)
e-mail
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Nadir Lara Júnior (USP)
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Neuza Guareschi (UFRGS) Paulo Gajanigo (UFF) Pedro Paulo Gastalho Bicalho (UFRJ) Rafael Bianchi Silva (UEL) Raquel Ribeiro (UAQ - México) Rodrigo Castelo (UNIRIO) Samir Pérez Mortada (IFBA) Saulo Luders Fernandes (UFAL) Sonia Alberti (UERJ) Suely Aires (UFRB) Zuleika Köhler Gonzales (UNISINOS)
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