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Walter Figueirôa

POLLY LEE

e o Morcego da Pensilvânia

Walter Figueirôa

POLLY LEE

e o Morcego da Pensilvânia

POLLY LEE

e o Morcego da Pensilvânia

Walter Figueirôa

Diseño y maquetación: Alberto Uzcategui Editor.

Auxiliar / Prefácio e Revisão: Walter Cavalcanti Bezerra / Lídia Benvindo.

© 2020 Walter Figueirôa

Facebook Fan Page: @Nuevaluz21Editorial Twitter: @Edinuevaluz Instagram: @Editorialnuevaluz_21

Impreso en Colômbia por; Pan-americana Formas e impresos Editorial Nueva Luz 21 S.A.SNIT 901223519-6

www.editorialnuevaluz.m o@editorialnuevm

[email protected] Teléfono: +57 3212269121

Celular: +573508184636

CEO: Alberto Uzcategui ISBN: 978-980-431-0737

Queda prohibida cualquier forma de reproducción, distribución, comunicación pública y transformación de esta obra mediante cualquier medio impreso o electrónico, sin contar con la autorización de la editorial. La infracción de los derechos mencionados puede ser constitutiva de delito contra la propiedad intelectual.

Agradeço e ofereço esta obra a duas pessoas de minha rede social:

Poli Bahia,

Milly Carvalho

e toda minha família.

Polly Lee

PREFÁCIO

s narrativas fantásticas sempre tiveram o poder de Aatra

ir leitores pela profusão de novidades e universos que nos, são, apresentados. É um convite agradabilíssimo ao nosso ser no intuito de vislumbrar novas terras, conhecer criaturas mágicas, e navegar nesse mar infinito de possibilidades. Elas definitivamente, permitem uma desconexão com nosso mundo, muitas vezes cruel.

Não que a fantasia não apresente crueldades ou injustiças, mas uma grande mola propulsora na fantasia é a utilização de uma premissa que leve os personagens à luta por um bem maior, ainda que no andar dessa carruagem certos sacrifícios ocorram.

Neste primeiro volume da saga de Polly Lee, somos agraciados com um universo que nos é apresentado de forma cadenciada, e acredito que este é o grande diferencial na obra, além da mescla de elementos fantásticos de diferentes universos.

O autor, antes mesmo de nos apresentar um novo mundo, mostra-nos o velho e cruel.

Aqui temos uma abordagem cirúrgica sobre a bondade —

ou ausência dela — e a ganância do ser humano, em contraste com aquilo que deveria fazê-lo ser mais "humano" em um ser fantástico na história.

E essa é a grande premissa até que haja a migração do plano desta narrativa. Uma construção caprichosamente 9

e o Morcego da Pensilvânia elaborada que faz com que leitores de todas as idades possam curtir e tirar algo dessa incrível saga que hora se inicia.

Não seria justo de minha parte falar qualquer coisa mais, portanto, aconselho a você, que está de posse desta obra: não perca um minuto mais e confira o princípio desta bela história.

Polly Lee está chegando... Acompanhe-a nesta incrível jornada.

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Polly Lee

CAPÍTULO UM

A INTRUSA

udo começou com um voo desgovernado de um Tenorme

morcego de asas manchadas ao redor da casa dos Lee e, paralelamente, o toque insistente na campainha numa manhã de sábado.

Residia na região de Dutch, nos Estados Unidos, a família Lee, que somava entre a filha de nome Deborah, Margaret Lee; uma mulher vaidosa e mal-humorada, de pernas tortas, magra, cabelos desmoderados e curtos, que não se conformava com o limitado salário do marido, buscando por pelo menos três dias da semana, confeccionar roupinhas de bonecas para uma loja no centro da cidade, a Andrew Doll, para aumentar os ganhos econômicos e poder satisfazer os gostos compulsivos da filha Deborah. Havia também seu esposo; um senhor magro como uma vara de pau e muito sério, com sua barbicha rala querendo despejar-se no queixo comprido, tinha olhos fundos e mortos, e chamava-se Donald Lee. Ele mantinha seu cabelo num corte puxado para o lado, que de instante a instante, quando o via cair em seus olhos, ajeitava-o insistentemente, tentando mantê-lo quieto.

Eles moravam na Rua 666 em Lancaster. Há quem alimente superstições

ou mesmo

acredite em

coisas

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e o Morcego da Pensilvânia mirabolantes em relação ao número enigmático 666. Mas a família Lee nunca pensara muito sobre isso, ou sequer fizera algum questionamento a respeito ao chegar àquela rua. Assim que compraram a mansão em Dutch, quando ainda Deborah não existia, os Lee aram mais ou menos uns seis meses sem falar com os vizinhos, pois eram desconfiados de tudo, até mesmo de suas próprias sombras. Sua campainha tocava a toda hora. Eles apenas olhavam pela brecha da fechadura quando estavam em casa, mas não abriam a porta. Resmungavam coisas como: “O que esses desocupados querem aqui, parece que vivem nos vigiando?”. Assim dizia Donald para a sua esposa que, da fresta da janela da sala, afastando um pouco a cortina de tecido fino quase sem cor devido à sujeira do tempo, balbuciava dizendo: “Bando de desocupados!”. Por meses se esconderam e, sempre que saíam, os fundos da casa era o local ideal para os Lee escapulirem da vizinhança intrometida, como eles intitulavam.

A família Lee tinha o hábito de fazer piqueniques quase todos os finais de semana numa famosa praça da cidade, de nome Amish — o nome é uma homenagem a uma antiga cultura de mesmo nome do Rossio, onde havia um lago extenso e de águas claras por perto. E ali, eles e sua pequena filha se divertiam quase o dia todo — isso quando ela não estragava tudo com seus choros compulsivos e sacudindo-se no chão de grama, deixando sua roupa suja de terra, tentando conseguir algo impossível com seus pais, que quase sempre faziam o que ela queria. Só quando o relógio de pulso do Sr. Donald —

presente do patrão após quinze anos de empresa — marcava quinze para as quatro da tarde é que eles resolviam regressar ao lar. Deborah era uma daquelas crianças bem ináveis, que discutia até mesmo com seus pais quando queria algo que os 12

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contrariavam. Gritava, esperneava e se sacudia toda vez que se sentia ameaçada ou não correspondida. Chorava o quanto podia para obter seus desejos, que eram quase todos impossíveis aos olhos dos adultos. Para ela não havia local certo para dar suas crises de falso choro. Seus cabelos aloirados e escorridos em franja deixavam-na incrivelmente feia, o rosto largo e bochechudo era motivo de chacotas na escola que frequentava nas mediações da cidade. Mas ela nunca dava o braço a torcer, estava sempre por cima diante dos amigos, seja lá quem fosse que perturbasse sua paciência. E antes que a pequena Deborah nascesse — Margaret já tinha alguns meses de gravidez —, os Lee resolveram fazer seu primeiro piquenique na mais falada praça — isso porque, na entrada da rua 666, os moradores mais fiéis mantinham uma enorme faixa de lado a lado enaltecendo o evento que os moradores participavam. Para eles, era o melhor divertimento do bairro, e se posso dizer, da cidade. Apenas os Lee não compareciam. É que nos primeiros dias, após irem morar naquela rua, antes que Deborah desse seu primeiro choro de vida, como eu já havia falado, eles não participaram dos famosos piqueniques, deixando os vizinhos furiosos, porque naquela mesma rua era assim: todos os novos moradores teriam que se unir para o suposto evento e seria uma forma de se conhecerem e se apresentarem aos demais. E os Lee não fizeram isso, como mandava a regra, deixando-os indignados com seus falatórios de má intenção. “Por que os Lee não participam dos piqueniques?”, sussurrava o organizador, o Sr. Ávila, diante de outros vizinhos em uma reunião organizada por ele na garagem de sua casa, tentando entender a razão para tal desprezo. Para ser sincero, eles até pensaram que os Lee eram uma espécie de bandidos fugitivos, ou quem sabe dessas pessoas que saem 13

e o Morcego da Pensilvânia devendo o aluguel de uma casa para outra, sem que os donos ficassem sabendo de suas fugas, ou mesmo fossem pessoas metidas, que gostam de desprezar os outros sem nem ao menos conhecê-las. Era tudo o que os moradores antigos pensavam dos Lee por não quererem aproximação e nem participarem do divertimento.

Foi quando, após alguns meses, escondendo-se e evitando contato com os antigos moradores, que Margaret Lee precisou ir à maternidade; gritava de dor para dar à luz sem que seu esposo soubesse, uma vez que ele ainda estava no trabalho. Um dos moradores mais enxeridos, o próprio Sr. Ávila; um homem robusto e sem quase cabelos na cabeça, de estatura baixa e já idoso, que vivia de cara amarrada, ouviu os gritos do seu quintal ao aguar as plantas — ele adorava jardinagem e molhar o jardim era seu hobby. Os gritos abafados da Sra. Lee espremendo-se no banheiro de sua casa se elevavam. O som chegava aos ouvidos dos vizinhos, que se posicionaram nas brechas de suas janelas, espiando em silêncio. Alguns até imaginaram que os Lee estavam se acotovelando. O Sr. Ávila, deixando a mangueira jogada no chão e vazando, correu aproximando-se curiosamente da janela esverdeada da mansão dos Lee e tentou, no largo batente, espiar o interior da casa para ver o que estava ocorrendo. Os gritos foram ficando mais fortes aos seus ouvidos já quase surdos, mas ele atentamente aproximou-os da parede tosca e percebeu realmente que se tratava de gritos desesperados de uma mulher, misturados a alguns urros.

Seus olhos arregalaram-se.

— Socorro! Socorro! Alguém aí?! Socorro!

O Sr. Ávila, então, desesperou-se e procurou encontrar uma entrada, ou pelo menos uma brecha qualquer pela qual 14

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pudesse gritar, percebendo que se tratava da nova vizinha.

Resolveu bater nos vidros da janela aos berros:

— Senhora! O que está havendo aí? Sra. Lee! Por favor, abra a porta!

Insistiu em suas pancadas fortes. Ela continuava a gritar de dor espremida. Até que ele conseguiu empurrar uma das grandes janelas baixas e penetrar na casa. Desta forma, foi ver o que se ava com a mulher que chorava, buscando encontrar de onde vinham os gritos desesperadores.

Na mansão dos Lee havia vários vãos entre banheiros, quartos, cozinha, sala de estar, biblioteca, escritório e um alçapão pequeno, fora o porão da casa, que quase não era visitado.

— O que está havendo, senhora? — disse ele já na porta do banheiro em freio repentino sem olhar para dentro, desviando seus olhos esbugalhados ao constatar

que a mulher em prantos estava seminua. — O que tem a senhora?

Margaret urrava sentada na privada como se quisesse expulsar algo de dentro de seu corpo.

— Meu marido, por favor! — dizia tentando lhe ar o telefone com voz espremida, mas não conseguia. — Estou tendo um... um... um...

— Um ataque?! É isso?!

— NÃO. Preciso ir à... à maternidade im...

imediatamente!

— Meu Deus! A senhora está tendo um bebê? —

perguntou, espantado. — Calma, senhora, que já vou chamar a ambulância. Calma! Espere aqui! Procure acalmar-se e segurar-se mais um pouco. E acho que deve sair daí dessa privada, se não seu bebê irá cair nela e se afogar. Fique no chão. Por favor!

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e o Morcego da Pensilvânia Ele procurou na sala o suposto aparelho telefônico de cor branca e discou quase sem conseguir, de tão nervoso, o número do hospital. Margaret continuava a gritar de dor sentada naquela privada marrom. O bebê estava quase no momento de nascer. O

Sr. Ávila — em plena agonia, descontrolado e sem saber como agir. Não sabia se ficava na sala ou se permanecia junto da mulher em sua nudez total. A situação era realmente constrangedora. Pensou em chamar sua esposa, que cochilava na cadeira de balanço na sala de sua casa com um livro já caindo de suas mãos engelhadas. Margaret continuava urrando aos quatro cantos da casa. Quando o som de uma ambulância soou lá fora, o coração do Sr. Ávila se aliviou como se um milagre ocorresse naquele momento. “Graças a Deus”, sussurrou, respirando profundamente. Procurou as chaves da casa para abrir a porta, mas não as encontrou. Precisava deixar os médicos entrarem —

outro momento de desespero o invadiu. Os enfermeiros, juntamente com o doutor de plantão, tocavam a campainha, batiam na porta, apressados. Os gritos da mulher ouvia-se por toda a casa. Os visitantes tentavam entrar, desesperados falando:

— Por favor! Abram a porta. Abram logo! Por favor, senhora!

— Por que não abrem?! — dizia o médico já nervoso ouvindo os berros da

mulher. Ele era baixinho e magro, de forma que sua bata o engolia, ficando apenas sua cabeça e seus pés de fora, mostrando um enorme par de sapatos de cor branca.

A equipe médica, toda preparada para o socorro, corriam para as janelas da sala e dos quartos. O Sr. Ávila parecia um louco atrás da chave, jogando e espalhando tudo diante de si no chão, e nada de encontrá-la. “Meu Deus, isso não pode estar acontecendo comigo”, sussurrava.

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— Por favor, entrem pela janela, não acho as chaves desta casa! — dizia Ávila forçando os vidros. — Entrem logo!

Venham! É por aqui!

E entraram pela janela como assaltantes e socorreram a mulher, que já estava dando à luz dentro da privada. E

finalmente a pequena Deborah nasceu ali, naquele largo banheiro, de forma totalmente inusitada. Seu rosto era vermelho, cabelos já bem cheios e aloirados,

bochechas assustadoramente volumosas — era uma menina gordinha e de cara larga, para ser mais claro e realista. O Sr. Ávila, surpreso e junto à equipe médica, sorria satisfatoriamente.

— É uma menina! — falou o médico levantando a criança nas mãos. Ela chorava rasgadamente. — Graças a Deus!

Margaret não sabia se chorava ou se ria da situação. E foi assim que Deborah, essa criança inável, veio ao mundo, fazendo daquela casa um inferno e trazendo os vizinhos mais para perto da família. Eles aram a frequentar o piquenique nos sábados, até mesmo em dívida com o Sr. Ávila.

E os anos se aram...

E um dia, Deborah, agora contando seus seis anos, recebeu da Sra. Mirlly — uma daquelas professoras que precisa baixar os óculos até a ponta do nariz para poder enxergar adiante, seus cabelos eram pretos e flocados, que insistia em tocar seus ombros nus, seu porte meio descomunal, e sua voz grave e embutida eram sempre alvo de risos silenciosos entre alguns alunos, um bilhete para seus pais lerem, após ser vista brigando com um dos alunos de sala. Era o primeiro de tantos que iria receber durante aquele ano. Deborah vivia brigando 17

e o Morcego da Pensilvânia com quem olhassem-na sorrindo — achando que era motivo de chacota, por ser ela muito bochechuda e gorda.

— Menina! — gritava a professora antes de Deborah sair da sala. — Leve este bilhete a seus pais.

A menina amassou o semblante e pegou o papel com vontade de rasgá-lo na frente dela, de tanto ódio, guardando-o no bolso do uniforme, que parecia estar sempre querendo explodir devido ao seu corpo. Deborah já sabia que teria quase três dias sem bonecas e ficaria trancada em seu quarto por um dia inteiro. Isso a deixou emburrada até chegar em casa dentro daquela van escolar. E assim, a menina começou a odiar a professora Mirlly definitivamente pelo resto do período colegial.

No dia seguinte...

— Deborah! — falava a professora Mirlly novamente ao vê-la dando gargalhadas cínicas, olhando para trás e discutindo com outro aluno, que caçoava dela. A menina fechava a cara, cruzava os braços e só mudava de postura após tocar a sirene de largada. Na escola havia um grupinho de alunos que a chamava de bochechuda, e quase sempre, ela partia para cima de um deles, que se atrevia a perturbá-la. Ela era bravia e respondona.

Não ficava por baixo. Mesmo que levasse desvantagem na hora da briga, gritava o último palavreado feio e em tom agudo e rasgado para quem quer que fosse. Enfrentou, noutro dia, até mesmo a diretora da escola, sendo castigada na secretaria no período da aula até a hora de largar. Foi nesse dia, quando a falta de uma professora fora motivo para alguns minutos à toa no pátio da escola, que Deborah se enfezou com uma das colegas de classe que a xingava. Voou para cima dela, desesperada e em fúria, batendo na mesma continuamente e deixando-lhe marcas vermelhas de unhas em riscos longos de 18

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sangue. O espetáculo foi visto por todos, inclusive por alguns professores, que saíram das salas de aula para ver do que se tratava. Os gritos dos outros alunos incomodaram as outras turmas, fazendo com que eles saíssem para ver o show ao vivo da pequena Deborah.

— O que está havendo aqui? — gritou arregalando os olhos a diretora, dona Marta; uma judia que se naturalizou americana, assim que seus pais se refugiaram da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, ando, após alguns anos, a ser americana. E continuou: — Pare com isso! Pare, menina!

PARE. Ah, se eu fosse sua mãe!

Na verdade, os funcionários da escola já conheciam a fama desagradável de Deborah. Então, a professora puxou-a pelo braço, arrastando-a até a secretaria. A espancada fora rodeada pelos outros alunos, e alguns professores ficaram espantados com aquela cena violenta. Deborah foi suspensa por uma semana. Em sua maleta colegial, como sempre, um bilhete enviado a seus pais que dizia: Sr. e Sra. Lee, por ordem da direção, ao pegar sua filha batendo em outro aluno, desrespeitando as regras da escola e da sociedade norte-americana, resolvemos colocá-la de castigo por uma semana consecutiva. Assinado, a diretoria.

Ao ler o bilhete, seus pais ordenaram-lhe o castigo mais severo: ficar em seu quarto pelo resto do dia e sem direito às bonecas, que era o que mais a pequena Deborah gostava de ter consigo, quando estava em casa — e dessa vez, por uma

semana. Isso a deixava furiosa, por não ter com quem brincar.

Seus gritos e choros desesperados soaram dentro daquele quarto por sete dias completos. Agora, apenas a janela seria sua distração com os insultos dos demais meninos da rua, quando 19

e o Morcego da Pensilvânia avam e a viam ali, com cara triste e segurando o queixo. A rua inteira já sabia do ocorrido na escola e, consecutivamente, o porquê de ela estar no quarto, presa. Em sua casa, Deborah sempre fora órfã e solitária. Nem mesmo seus pais gostavam de fazer-lhe companhia. O Sr. Donald, ao chegar do trabalho, logo se enfiava na biblioteca com seu par de óculos quadrado, e mal procurava saber da filha, mergulhado em seus livros ou no jornal diário. Sua mãe, que ava o dia costurando roupas de bonecas para a loja de uma amiga, ficava entretida na barulhenta máquina, e nem se dava conta de que sua filha havia chegado —

Deborah simplesmente ava correndo com seu tênis branco All Star pela sala indo para seu quarto e jogava-se na cama com seus olhos grandes e espertos, como se fosse invisível naquela casa. E logo seu gato de estimação, Meme, aparecia para fazer-lhe companhia, esfregando-se em sua perna balofa e branquela, porque devido ao seu crescimento, seu corpo foi aumentando, além de sua bochecha e seu rosto, que continuavam alargando-se.

— Meme, venha cá — dizia ela puxando-o para seu colo, ainda vestida no uniforme azul e branco. — Meu fofinho.

Ele parecia que já entendia o que ela falava, olhando-a nos olhos com seu olhar

azulado. Às vezes, Deborah lhe puxava pelo rabo, de forma que Meme berrava como se quisesse reclamar — não se sabe se era de dor ou alguma outra coisa que não dava para entender. Só se sabe que, às vezes, ele quase falava olhando para ela, com cara de fúria por ser puxado daquela forma. O quarto da menina Deborah... nem vou detalhar para vocês, porque não me cabe. Ela não ligava para nada além de segurar seu gato nas mãos e levá-lo para ear pela casa inteira, inclusive no quintal, quando queria explorar os lugares ainda desconhecidos, porque a residência dos Lee era imensa, 20

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inclusive o terreno. Ela o puxava por um cordão em seu pescoço pelos cômodos, quase o enforcando. Quando ele emperrava, Deborah puxava com mais força, e o berro era certo. Ela já sabia o que queria e, por isso, tudo a contrariava se não tivesse ao seu agrado. Desde que nasceu, e da forma que nasceu, que sua vida era sempre desastrosa. Mas ela era única. A única que reinava naquela mansão dos Lee. Até que, então, uma novidade lhe ameaçou seus dias infelizes e os tornaram ainda mais infelizes.

Eu acho!

Como eu disse no início, era manhã de sábado, e a família Lee se aprontava para mais um daqueles piqueniques rotineiros de fim de semana, organizado pelo Sr. Ávila e sua esposa, Madame Mary; uma mulher de estatura comprida e forte, que tinha que, ao falar com seu esposo, olhar para baixo, esquivando-se toda.

Então, antes dos ponteiros do relógio apontarem quinze para as sete da manhã, a

campainha dos Lee tocou três vezes consecutivas.

— Quem será, querido? — perguntou Margaret com sua voz irritante e anasalada, tentando fazer um laço no tênis da filha, que não parava de balançar as pesadas pernas.

Ter uma mulher que falava para dentro era algo que ninguém ava, apenas Donald; talvez por amá-la além do normal ou, quem sabe, por ela ter sido a única que o enxergou no dia em que eles se viram, quando atravessavam a principal avenida da cidade.

Desde que a menina Deborah nascera, a família Lee nunca teve uma visita de estranhos, a não ser a do leiteiro gritando às sete da manhã e deixando a garrafa de leite no degrau largo, a do jornaleiro sacudindo o jornal às sete e meia por cima do portão 21

e o Morcego da Pensilvânia de madeira crua e quase derrubando o leite e, algumas vezes, o carteiro trazendo-lhes alguma correspondência sem nenhuma novidade mais importante, que não fosse a Sra. Laura e seu esposo, o Sr. Jorge, comunicando suas promessas de, quem sabe, uma visita ao lar dos Lee — eram seus avós paternos.

Há um tempo, houve, numa dessas visitas inesperadas dos pais de Donald, uma surpresa que fez Deborah odiar pelo resto de sua vida aquele casal de velhos tão simpáticos e atenciosos.

Eles presentearam-na, para mudar a rotina de sempre ser uma boneca comportada e sem vida, um gatinho de cor preta com algumas manchas encardidas em círculos na parte do corpo e do rabo fino. A menina odiou de início, ao ver aquele repugnante animal magro e peludo ser entregue em suas pequenas mãos nutridas e traquinas. O semblante da garotinha se transformou ao ver aquela cena provocadora para ela, que já não simpatizava muito com os avós.

— Que lindo esse gatinho, minha filha! — disse Margaret, acariciando o animalzinho apenas com os dedos finos e longos e com ar de desprezo e sem sentimento, justamente por ela odiar animais domésticos.

Deborah cerrou os olhos e mordeu os lábios como se quisesse avançar em alguém. Sabe-se que Margaret nunca gostou de animais em sua casa, muito menos de um gato rabugento. Mas, por ser um presente do sogro e da sogra, que ela tanto prezava, aceitou calada, mas trincando os dentes.

— Não gostou, minha filha? — perguntou seu pai com um sorriso simpático, notando sua cara emburrada.

Ela nada falou. Foi a primeira visita desagradável que fez a menina Deborah sentir-se mal pelo resto do dia.

— Um café, papai? — perguntou Donald, retirando os óculos.

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— Sim, meu filho — disse seu pai; um senhor magricelo e jovial, parecido com o filho, a ponto de se confundirem quando andavam na rua juntos, como gêmeos. — Por favor, nunca mais me pergunte isso, Donald, porque santo não rejeita reza, não é?

E os dois gargalharam, deixando Margaret também sorridente. Então foram à cozinha para um fugaz café com bolinhos de chuva. Deborah correu para o quarto carregando o presente vivo e barulhento em miados rasgados, que a deixava mais irritada ainda. Como falei, ela tinha apenas seis anos e nunca havia tido algum tipo de animal de estimação. Sua vontade era mesmo de enforcar e esfolar aquele gato inocente —

bater nele até seu último grito silenciar.

— Eu trouxe o nome da ração para o gatinho da pequena Deborah, Margaret — disse a Sra. Laura; de corpo largo e cara espalhada, motivo pelo qual se via Deborah em sua aparência atual, com a xícara na mão trêmula, a qual levou à boca engelhada. — É barata e faz bem para ele. Contém minerais e vitaminas.

— Eu sei, minha sogra, mas nós não teremos tempo para cuidar de comida de animais. O que faremos?

— Não tem importância, minha querida — retrucou a velha, quase se queimando na beira da xícara com a voz tremelicosa. — Já há supermercados que fazem essas coisas. É

só dar o seu endereço completo. Tudo está ficando muito prático neste mundo. É a modernidade, não é, Jorge?

— Sim, querida. Claro — respondeu ele, mergulhado na xícara pequena por entre os lábios seco e roxos.

E o novo hóspede agora fazia parte da família Lee. Era o caçula mais barulhento que se podia ter naquela rua. Durante a noite, seu miado de fome soava pelo quarteirão, incomodando 23

e o Morcego da Pensilvânia algumas pessoas; até acendiam suas luzes, dando para ver o fechar e bater de janelas por toda a madrugada. O animalzinho andava pela casa inteira a miar e melecá-la de caca, enquanto o casal Lee tentava dormir em meio ao odor inável. Mas Deborah sim, adormecia trancada em seu quarto num pesado sono, que nada a fazia despertar, nem mesmo o fedor das fezes do animal barulhento. Houve uma manhã em que Meme saiu de casa pela janela da biblioteca, que era baixa, e Deborah gritava do seu quarto tentando encontrá-lo com seus gritos de arara.

Procurou pela casa. Era cedo. O relógio da parede da sala marcava apenas sete e meia da manhã. O jornaleiro, do lado de fora, ainda montado em sua bicicleta, jogava o jornal do dia, batendo, como sempre, na garrafa de leite e deitando-se na grama rala e verde. A Sra. Lee ainda dormia em seu quarto por ter trabalhado muito em suas confecções no dia anterior.

Deborah continuou gritando feito uma louca e sacudindo as roupas para tudo quanto é lado do quarto. Até embaixo de sua cama e no teto haviam roupas jogadas e dependuradas no imenso ventilador de metal, que estava parado.

— Meme! Meme! Onde você está?

A casa era pequena para tantos gritos ensurdecedores daquela pestinha. A Sra. Lee despertou ainda com os olhos franzidos, tentando enrolar-se na coberta grossa de cor azul-claro, devido àqueles gritos de sua filha, que penetravam em seu sonho como se fizessem parte de um terrível pesadelo. Os gritos da menina continuavam pela casa. A mulher se virava de um lado e do outro, reunindo raiva e cara feia.

E, de repente, deu um salto da cama, seguindo para a sala aos gritos, quase que tombando na mesa comprida e espelhada:

— Deborah, por favor, PARE COM SEUS GRITOS. Isso já está me irritando!

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— É Meme, mamãe!

— O que tem o diabo desse gato rabugento?!

— Não consigo encontrá-lo.

“Era bom que ele sumisse de uma vez”, sussurrava Margaret espremendo-se em sua raiva. E disse em tom alterado:

— Eu não consigo dormir sossegada com esses seus gritos ensurdecedores! Já olhou no banheiro? Ontem vi que ele entrou lá para fazer suas necessidades, deixando o local fedido e todo sujo. “Já não aguento mais isso” — rosnou baixo.

E lá estava o ambiente todo melecado e fétido. Mas Meme não estava lá.

— Não está, mamãe! — gritou Deborah, fechando a porta fortemente.

— Ele deve ter saído para o quintal. — retrucou a mulher, ainda espreguiçandose. — Depois ele volta, como todo gato faz! “Espero que nunca mais volte” — balbuciou novamente com desprezo.

Margaret ou a odiar aquele gato na mesma intensidade que não gostava do jeito da própria filha. Por alguns dias, ele ou desaparecido de casa e Deborah entristeceu-se durante essa semana que Meme estava invisível aos seus olhos. Na escola, ela era insultada por seu rosto — que além de feio e gordo, agora era raivoso e triste — pelos cantos da sala.

— O que foi, Deborah? — perguntava sua única amiga, de nome Salá; uma descendente indiana que se instalara na rua 666, na última casa do lado direito. Seus pais eram comerciantes na cidade de Lancaster — possuíam uma loja de tecidos finos e estampados, importados da Índia.

— Meme, meu gatinho, sumiu, Salá. Foi embora e ainda não voltou para casa.

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e o Morcego da Pensilvânia Salá era uma menina de rosto afilado e cabelos lisos e escuros, pernas finas como galhos secos e olhos negros, mas carregava também um mau-humor terrível, e sua pele era parda.

E disse, piorando a situação:

— Também tive um que foi embora pela janela da sala e nunca mais voltou.

Aquelas palavras de Salá deixaram Deborah ainda mais desesperada. Então, ela gritou franzindo o cenho e juntando os lábios:

— Mas meu Meme vai VOL TAR. E não é você nem ninguém que vai tirá-lo de mim!

Salá se surpreendeu com a amiga, justamente por nunca esperar ser insultada daquela forma. Sempre a defendeu dos alunos nas horas de briga, e agora vinha com essa de dirigir-lhe insultos.

— Desculpa, Deborah! — disse ela encolhida e tentando mudar aquele jeito enfezado da amiga, que nunca se rebaixava.

— Por favor, Deborah! — gritava a professora Mirlly olhando para elas. — Parem de conversar e prestem mais atenção na aula! Aqui não é lugar de conversas frívolas!

Deborah fechou a cara como se quisesse bater naquela mulher de meia-idade que a obrigava a se calar, e se aquietou com sua amiga Salá em seus lugares. E a aula prosseguiu em paz. Pelo menos foi o que se viu ali, durante quase meia hora, com os olhares direcionados para o quadro-negro.

Em casa, a menina emburrada teve uma surpresa: Meme voltou, mas fora preso no banheiro pelas mãos de Donald. E

imaginem como ficou aquele banheiro após meia hora de prisão do gato que não dera sequer um miado depois que foi trancado.

Quando ela entrou pela porta da sala, percebeu seus pais 26

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desconfiados. Neste dia, o Sr. Donald havia ido almoçar em casa, queria dizer algo à filha, que estava com aquela cara fechada de sempre, e agora, coberta de tristeza.

— O que houve aqui? — perguntou ela olhando para eles.

— Não consegui entrar no banheiro hoje. Alguém o trancou?

— Deborah, minha filha — disse Donald com ar de felicidade encolhida —, temos uma surpresa para você.

— O que foi, papai? — perguntou, mordendo a língua. —

Não o mistérios.

— Ele voltou — disse Donald, abrindo de vez um sorriso forçado.

A cara da Sra. Lee não era das melhores — ela queria mesmo que aquele gato tivesse sumido de uma vez por todas.

Havia pedido ao marido para mentir e jogá-lo fora, aproveitando o sumiço do animal, mas Donald não concordava com muitas das maldades de sua esposa para com a própria filha.

— Meme então voltou? — fez Deborah, entusiasmada.

— Venha cá! — disse Donald indo na direção do banheiro fechado aos extremos.

A menina o seguiu, já com o rosto mudado. Quando a porta se abriu — Donald havia trancado à chave —, ocorreu algo inusitado além do odor inável que saiu de lá de dentro: o gato deu um pulo, quase que arranhando a cara dele.

“Meu Deus”, sussurrou o homem, aterrorizado. Donald levou um tremendo susto e quase foi ao chão, mas conseguiu segurando-se na porta. Seu óculos quadrados caíram, partindo-se em duas partes — armação para um lado e lentes arranhadas para o outro. “Droga”, balbuciou ele novamente, referindo-se aos óculos quebrados e pegando ambas as partes rapidamente.

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e o Morcego da Pensilvânia

— É isso que dá a insistência desse gato aqui! — gritou Margaret, amassando a cara.

— Meme! — vociferou Deborah, tentando pará-lo e correndo atrás dele. — Meme, venha aqui! Paare!

O gato saiu disparado pela casa tentando se livrar daquele lugar apertado e

sufocante, além do mau cheiro que ele mesmo causou com suas fezes escuras. A menina mal olhou a situação de seu pai e dos óculos. Para ela, o gato era mais importante naquele momento. Naquele dia, Meme foi parar na biblioteca que estava aberta — um descuido de Donald, que nunca a havia deixado escancarada daquele jeito. Tinha medo de que a filha e o animal quisessem brincar lá, devido aos seus livros conservados e valiosos. E Meme subiu na estante, ficando nas últimas fileiras dos encapados de Donald. Deborah, sentada no chão de tapete marrom, apenas o olhava e chamava-o com a voz irritante, estralando os dedos miúdos. O gato ficou ali por quase dois dias. Não comia nem bebia água. Apenas miava alto, assustado. A família Lee agora estava em desespero, principalmente o Sr. Donald, porque seus livros seriam a próxima vítima da caca e das unhas afiadas do animal asqueroso. Sabe-se que todo gato adora arranhar tudo que vê.

Então, o que vocês acham que ia acontecer com os livros dele?

— Esse animal não pode ficar aqui — dizia o Sr. Lee nervoso e sem óculos, andando para os lados e sem saber o que fazer, vendo aquele animal em cima dos livros, eando e enfiando suas garras afiadas por entre as páginas.

— O que faremos, querido? — perguntou Margaret, trincando os dentes e olhando para o felino inável. Por ela, jogava um balde de água, porque gatos odeiam água, mas isso 28

Polly Lee

faria dos livros uma lama de celulose. A sorte de Donald é que por dois dias o animal não comeu nem bebeu água, então não havia motivo para ele fazer suas necessidades fisiológicas ali.

Ele apenas miava como se estivesse querendo descer, ou sei lá, comer ou matar sua sede. Fato era que o gato miava dia e noite andando por cima dos livros. Donald tentou, por esses dois dias, espantá-lo de lá — fazendo descer com vassoura, retalhos de tecidos, bolinhas de papel, mas não adiantava nada, o gato permanecia no local escondendo-se quase que por trás das brochuras, quando não para lá e para cá, ou deitado neles.

O final disso?!

Imaginem. Conseguiram imaginar alguma coisa?

Como eu já havia falado, vocês sabem o que os gatos fazem quando estão próximo de algum objeto ou das pessoas...

Isso mesmo: ele, com suas unhas afiadas, estraçalhou e arranhou tudo. Foi o que fez Meme, picou as quinas das páginas dos livros de Donald que estavam enfileirados. Inclusive, desfigurou algumas capas. Destroçou quase todos, deixando o Sr. Lee enfurecido e bufando ao ver aquilo sem poder fazer nada. Eram seus livros, seus melhores livros.

— Antes tivessem sido melecados. — dizia ele mordendo a língua. — Meus livros... São raridades que comprei nos sebos da cidade. Vou matar esse gato! Aah, vou!

E após aquele estrago todo, Meme, num pulo inesperado, desceu caindo em cima da mesa em talha, envernizada, que ficava próxima à estante — herança dos pais de Margaret, após falecerem num desastre de avião. Mesa e estante eram do mesmo material, inclusive a cor. E Donald não teve dúvidas, pegou o animal com as duas mãos e, com a fúria de um titã, levou-o para fora da biblioteca, trancando-o no porão. Ficaria lá 29

e o Morcego da Pensilvânia por algum tempo, mesmo que fosse contra a vontade de sua filha. Deborah, assim que chegou da escola, logo foi avisada.

Ela chorou, reclamou, esperneou, mas não teve volta, seu pai estava decidido. Pela primeira vez, Deborah foi freada. Desse dia em diante, a menina ou a visitar o porão diariamente, antes e após o horário escolar. Levava água e comida para seu gatinho, que miava o dia inteiro sentindo-se só e preso.

Vocês já imaginam como ficou aquele ambiente com o gato lá trancado?

Isso mesmo: melecado e malcheiroso até as paredes.

Somente Deborah para ar tamanha situação. E com um jeitinho insistente, que só ela sabia fazer, conseguiu tirá-lo de lá do porão com a permissão do pai, que não ava mais o choro constante da filha, além do miado abafado e inável do gato.

E assim, dois anos dos Lee se aram...

30

Polly Lee

CAPÍTULO DOIS

UM SÁBADO DIFERENTE

omo eu havia falado no início, era manhã de sábado e Ca família Lee se preparava mais uma vez para o corriqueiro piquenique entre os três... Opa! Agora, entre os quatro, por que a menina queria porque queria levar com ela seu gatinho de estimação, que já era esperto o bastante e se tornara um felino com mais alguns centímetros.

Então, a campainha tocou.

— Deve ser o jornaleiro — dizia Donald, sentando-se no sofá acolchoado com lona quadriculada cor de abóbora e com os pés por cima do centro de madeira salmão, colocado entre as poltronas, observando o relógio em seu braço tentando enxergar os ponteiros por sobre seus pequenos e quebrados óculos, que havia emendado com fita durex enquanto não ia ao oculista fazer um novo, — ele sempre chega na hora certa.

— Não quer ir ver, meu querido? — disse Margaret, naquela peleja com a filha e seu tênis. — Estou aqui atacando os sapatos de Deborah, que não me deixa conseguir. Ela não fica quieta!

A menina, sentada na cadeira alta, balançava a perna direita enquanto sua mãe tentava abotoar seu tênis alvo. Naquele tempo, o tênis All Star era o mais procurado nos Estados Unidos 31

e o Morcego da Pensilvânia e em outros países, sendo conhecido de todos os alunos, pois um jogador famoso norte-americano que o tinha usado numas das melhores partidas de sua vida.

— Tudo bem — disse Donald levantando-se forçadamente.

— Quieta, filha! Ainda não terminei — falava Margaret já irritada, vendo o rosto franzido da menina bochechuda.

A porta, então, fora aberta em estilo dos Lee: um olhar pelo buraco da fechadura e o giro rápido na maçaneta dourada.

— Bom dia, Sr. Lee! — disse um homem de aparência estranha, e sua voz rasgava de forma a incomodar qualquer tímpano mais sensível. O visitante usava um chapéu escuro em leves dobras, que parecia feito de asas de morcegos cobrindo seus cabelos desgrenhados, e vestia-se de roupão preto e largo com golas vermelhas. Um lenço encarnado se via sobre seu gordo pescoço, sua barba se espalhava por sobre o rosto, e seus sapatos em tom vermelho-escuro lembravam couro de cobra brilhando feito estrelas noturnas.

— Bom dia, senhor! — respondeu Donald com a voz calma, mas espantado de ver tamanho retrato vivo de alguém um tanto esquisito aos seus olhos observadores por cima daqueles óculos sociais, em lentes altamente grossas. — Do que se trata? Conheço-o de algum lugar? Se for o que estou imaginando, não

temos.

— Trouxe essa encomenda para o senhor e a senhora sua esposa — disse o visitante.

O homem, já no batente da casa, segurava nas mãos uma cesta de tamanho considerável em material artesanal e rígido de cor escura, coberta por um pano em cor morta. Um som familiar em tom baixo saía do recipiente, fazendo com que o tecido se mexesse em dobras feito ondas. Donald logo imaginou que seria 32

Polly Lee

outro animal doméstico. Isso ele não iria ar, muito menos sua esposa. “Outro bicho aqui em casa sujando tudo, não”, pensou. Já bastava o gato inável de Deborah, que acabou com seus livros na biblioteca.

— Do que se trata, amigo? — insistiu ele. — Pelo que sei, ninguém me ligou ou me avisou nada em carta sobre...

— Não mesmo, senhor — retrucou o estranho com riso leve, cortando suas palavras e deixando Donald mais assustado ainda. E prosseguiu no mesmo tom rasgado e amigável: — Essa encomenda é especial e veio de muito longe para ser entregue a este lar. O senhor não está pensando que eu vim de tão longe para lhe pedir alguma coisa, ou trazer um...?

Donald silenciou coçando sua barbicha ridícula e tentando imaginar do que se tratava aquela encomenda. E completou em tom afirmativo, antes que o visitante abrisse a boca grande novamente:

— Um animal de estimação.

O homem ficou em risonho silêncio. E Donald continuou:

— Seja lá o que for, quem mandou essa encomenda desconhecida? E do que se trata? E quem é o senhor?

— Olhe aqui — disse o visitante retirando o pano vagarosamente com seus dedos peludos —, veja que gracinha de menina!

E uma criança de tamanho minúsculo e totalmente ruiva, de pele alva e empalidecida, olhos avermelhados e puxados do tipo oriental, mexia as perninhas e os braços magros com um sorriso inocente olhava para Donald, que ficou petrificado com seus olhos de peixe morto. Lembrou-se imediatamente de sua esposa, ela detestava essa coisa de filhos adotivos. E o esquisito continuou dizendo em tom baixo e rasgado, tocando com um 33

e o Morcego da Pensilvânia dos dedos enormes nos lábios da criança que sorria à toa: — E

garanto ao senhor, ela não é uma “neurotipo”. Não é uma gracinha?

A menina aparentava ter uns nove meses de nascida.

Perninhas e bracinhos ralos e pálidos.

— Uma menina?! E o que disse sobre “neurotipos?”

— Sim, não está vendo que é uma menina? É uma linda menina, veja! — enfatizou o estranho, deixando sair de seus lábios carnudos e ressecados outro pausado riso. — Então não reconhece um “neurotipo” em sua frente? Veja, ela não é linda?

Aquele rosto oriental estava grudado em uma chupeta na cor rubro-negra, e em seu pescoço havia um cordão amarelado segurando uma estranha medalha com forma triangular com três iniciais que diziam: CVT. Sua roupa tinha tonalidade escura com a gola e algumas partes também em vermelho vivo. Aquela visão gótica deixou Donald impressionado, o que o fez alimentar um certo ar preconceituoso, apesar da beleza ímpar da criança, que o tomou de súbita iração. E uma afinidade, que ele não sabia explicar de onde vinha, fê-lo sentir piedade da pequena que sacudia as perninhas para cima a todo instante.

“Quem abandonaria uma criança tão linda como essa?”, perguntava-se em silêncio, olhando-a atentamente naquela cesta ainda nas mãos do visitante.

— Que bebê lindo — dizia atrevidamente ao tocar aquele rostinho com um olhar vivo, com seu dedo comprido e estampando uma careta engraçada para a pequena, tentando fazê-la sorrir. — Mas o que significa isso... essa garotinha na minha porta? Ainda não entendi nada.

A menina, então, abriu um riso quase de olhinhos fechados, apertando o dedo de Donald com suas mãozinhas tão miúdas quanto a mão de uma boneca, deixandoo mais 34

Polly Lee

agraciado ainda. Aquela medalha o intrigava, mas ele nada perguntou a respeito. Apenas brincou com a criança risonha ainda agarrada em seu dedo.

— Então — disse o estranho —, eu fui incumbido de trazer-lhe esta encomenda vinda de muito longe para cá.

— De muito longe?! O que o amigo quer dizer com isso?

— É que essa linda garotinha veio da Transilvânia para ser adotada por vocês.

— Transilvânia? — retrucou Donald, espantado. — Mas por que nós? E quem a mandou de tão longe para cá?

— Sim, senhor, ela veio da Transilvânia. E por favor, não me pergunte mais nada! É só o que tenho a dizer no momento.

— Querido — gritou Margaret lá de dentro em tom estridente e de curiosidade, ocupada com Deborah —, o que está havendo aí? Quem é a visita? Não me deixe aqui ansiosa, por favor!

A mulher estava até aquele momento tentando atacar os sapatos, que se balançavam nos pés da filha inável e teimosa. Donald se virou para a porta ouvindo os gritos da esposa, que repetia a pergunta por várias vezes, deixando-o atrapalhado e amedrontado, porque sabia que ela não aceitaria tal absurdo em sua porta àquela hora da manhã, nem em hora nenhuma. O visitante, então, aproveitando a distração de Donald olhando para a porta, deixou a cesta no largo batente da casa e foi embora em questão de segundos, sem mais nada dizer.

Quando Donald se voltou para o esquisito, ele havia sumido como num e de mágica — viu apenas o sorriso meigo de uma garotinha linda mexendo as perninhas. O Sr. Lee ficou estupefato, petrificado diante da cesta e daquela linda menina, sem saber o que fazer. A criança fazia algum barulho, 35

e o Morcego da Pensilvânia despertando nele certa afinidade. Donald olhava para os lados tentando ver algum vestígio do estranho homem, e nada. Apenas uma neve rala caía e ventos leves e frios tocavam seu rosto crispado.

— Querido! — insistia Margaret, agora aproximando-se da porta com seus olhos agateados. — O que está havendo aqui?

De quem se trata a visita?

“Cadê aquele infeliz”, balbuciava Donald, ainda olhando em todas as direções do ambiente ignorando a presença da esposa. “Onde ele foi? Meu Deus, e agora o que faço?”

Continuava em seus questionamentos sem dar atenção a ela. Seu coração estava acelerado. A mulher, então, encostando suas longas pernas nas costas do marido e a cabeça para o lado de fora, presenciou a cena mais inusitada que poderia lhe ocorrer numa manhã de inverno: uma criança posta numa cesta e quase sacudindo-se em um sorriso irável para com o marido.

— O que é isso aqui, Donald? — perguntou arregalando os olhos e estampando indignação.

— Uma criança numa cesta, não está vendo? — retrucou ele, amedrontado.

— Eu sei que é uma criança numa cesta, eu não sou cega nem burra! Mas onde está a mãe dela?! E o que faz aqui na nossa porta e com você?!

— Não sei. Eu... ela... ela estava com...

— Sr. Donald — disse ela trincando os dentes e apontando o dedo horizontalmente —, pare de tentar me enrolar e não venha com suas anedotas agora! Trate logo de devolver essa criança!

— Não posso — falou, erguendo o rosto franzido. —

Ele... ele a deixou aqui e... e...

36

Polly Lee

— Não pode?! — disse antes que ele terminasse de falar.

— E quem é esse tal que você tanto fala?! De quem você está falando, homem de Deus?! Não venha com essa agora! Você sabe muito bem que eu não quero filhos adotivos aqui! Já basta nossa Deborah! Só me faltava essa agora!

— Mas ela... eu... ela foi deixada aqui e... — gaguejava Donald.

— O quê?! Deixada?! — retrucou Margaret. — Como assim, deixada?! Essa história está muito mal contada, Donald!

— Isso que você está ouvindo, querida. Um estranho a deixou aqui e sumiu quando eu me virei para a porta.

— Não posso acreditar no que vejo e ouço de você.

Depois de velho, você deve estar enlouquecendo — disse ela batendo e empurrando as costas dele, enquanto a minúscula menina continuava mexendo as perninhas. — Levaremos para o orfanato se for o caso. Não vou aceitar que nenhum engraçadinho deixe aqui uma criança para que a criemos. Está ficando louco?! Devolva rápido a quem deixou, ou eu vou...

— O mensageiro que deixou já se foi, querida, e não podemos fazer mais nada.

Por causa de você ele sumiu sem que eu pudesse saber para onde foi — falou, tentando intimidar a esposa. — Agora não tem mais jeito, não vou deixá-la aqui do lado de fora. Você acha isso certo? Ela morreria de frio.

— Culpa minha? E que mensageiro é esse que você está falando, Donald? Não estamos em condições financeiras para tal, esqueceu? Qual o nome dele? Quem é ele?

— Ele não disse nada, nada além de deixar a garotinha aqui no nosso batente dizendo que foi uma encomenda. Apenas isso.

37

e o Morcego da Pensilvânia A cara da Sra. Margaret se enraiveceu completamente e quase soltava fumaça pelo nariz feito um dragão em chamas.

Porém, nada poderia fazer a não ser aceitar aquela órfã e cuidar dela como se fosse sua própria filha.

E a porta foi fechada sem mais comentários.

Naquela manhã de sábado, nada do rotineiro piquenique, nem mesmo discussão sobre a criança. Isso deixou a menina Deborah indiferente com seu gatinho nas

mãos. Dali em diante, a nova filha dos Lee seria odiada pela pequena Deborah e rejeitada por Margaret, apenas Donald se afeiçoaria à criança.

— Não vamos mais ao piquenique, papai? — perguntou Deborah encostada na sua tristeza infantil.

— Não, minha querida — disse ele sentando-se no sofá, cansado pelo peso da imensa cesta, e colocando-a no centro —, não podemos sair e deixar esta pequena aqui sozinha em casa, nem levá-la nesse tempo frio, não é, querida? Você entendeu?

Deborah correu para o quarto carregando seu animal, quase chorando.

— Querida! Filha! — dizia Margaret, indo atrás dela.

“Agora mais essa!”, balbuciou a mulher, inconformada, enquanto seguia em seus os zambetos e desajeitados.

— Deixe-a, Margaret, ela logo se acalma! — disse Donald fazendo caretas para a criança que sorria para ele.

E após alguns minutos de distração, Donald tentou pegá-la em seus braços. Assim que a levantou, retirando-a da cesta alguns centímetros, ainda agarrada ao pano fino, viu um envelope de carta de cor preta e um papel todo enrolado em forma de canudo amarrado por uma fina fita vermelha de laço.

“O que é isso aqui?”, sussurrou com curiosidade pegando o canudo de papel pálido. Retirou o laço e abriu a folha, que dizia em letras grandes: CONTRATO TEMPORÁRIO.

38

Polly Lee

E o fim de semana daquela família foi diferente.

Duas semanas se aram e a pequena criança não tinha nome, sendo chamada por Margaret de intrusa, justamente por não ter sido convidada pela família. Ela resolveu, a contragosto, contratar uma babá, coisa que nunca fizera para a sua filha Deborah, espremendo-se nas contas da casa. Margaret estava ficando sem tempo devido ao aumento nas confecções, ocupando-lhe quase toda a semana. A babá era uma moça jovial de nome Betty, possuía um corpo forte e tinha cabelos longos e castanhos. Ela havia se mudado para o bairro há pouco tempo.

Logo Betty se afeiçoou à criança, que crescia rapidamente, de uma forma não comum aos padrões humanos. Aquilo deixou os Lee impressionados e assustados. Não só a eles, mas a todos que a conheciam. A cada dia que se

ava, a inveja de Margaret e de Deborah aumentava em se tratando da nova filha, que tinha uma beleza nunca vista naquela rua envelhecida, onde a quantidade de idosos ultraava a dos jovens e crianças. A rua 666 era conhecida como “a rua dos velhos”.

— Como devo chamá-la, Sra. Margaret? — perguntou Betty, sorrindo para a pequena em seus braços avantajados. —

Já faz dias que estou aqui cuidando dela e nem mesmo sei o seu nome.

A Sra. Lee nada respondeu. E por algum tempo, Betty a chamou de princesa devido à sua beleza ímpar, deixando a mulher e sua filha Deborah com mais ciúmes e inveja da pequena e inocente criança.

E numa manhã de domingo, assim que se deliciaram do desjejum, Margaret, olhando para Donald, perguntou: 39

e o Morcego da Pensilvânia

— A menina vai ficar sem nome, Sr. Donald? Não me afeiçoo a ela, mas isso não é justo... deixar alguém sem um nome. Ninguém pode ficar sem nome.

O interesse da Sra. Lee era que parassem de chamar a menina da forma que estavam chamando, não que quisesse dar-lhe um nome digno, mas por não mais aguentar ouvir aquele título de princesa vindo de Betty e dos demais da rua.

— Acho mesmo que ninguém deve ficar sem ter um nome, Sra. Margaret — observou Betty ao ouvir a conversa deles.

Donald apenas mostrou-se interrogativo com tal pergunta.

E respondeu sorrindo:

— Eu já estava me acostumando em chamá-la de Princesa Lee.

Com esse comentário, via-se que a Sra. Lee estava furiosa e com vontade de bater no marido.

Um dia, quando Donald voltara do trabalho e se sentara ao lado da pequena para brincar, como sempre fazia, observou que naquela medalha havia, na parte de trás, uma inscrição em letras finas e quase apagadas que dizia: POLLY V.T. Então, lhe veio à mente que o nome dela seria aquele. Mas não poderia adivinhar nem saber o seu sobrenome, pois tinha apenas as iniciais. Desta forma, ficara decidido por Polly Lee, por não saber o significado das duas letras restantes, e claro, por ser ela agora, pertencente à família Lee, o que era muito justo.

— Querida! Margaret! — gritou ele entusiasmado buscando a esposa. — Venha cá ver isso!

— O que houve, Donald?! — disse, curiosa.

— Já temos o nome de nossa filha, veja aqui!

E mostrou as costas da insígnia.

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Polly Lee

— O que é isso? O que tem aí escrito?

— Veja, Margaret, está escrito Polly e mais duas letras maiúsculas, as mesmas iniciais da parte da frente.

— Polly? Onde encontraram esse nome tão estranho para essa criança? — falou, indiferente. — E essas duas letras, o que querem dizer?

— Não sei. Acho que devemos ignorá-las e completar com o nosso sobrenome, o que acha? Na realidade, ela agora é nossa filha, não é? Seria mais que justo.

Margaret o olhou com o rosto indignado, mas tinha a certeza de que aquele deveria ser mesmo o nome da intrusa menina, e assim não mais seria chamada de Princesa. Desse dia em diante a criança ou a ser chamada de Polly Lee. Polly já havia se acostumado com o antigo nome que Margaret colocara nela, apesar de soar em tom de desprezo, mas ela o ajustou a sua personalidade.

Alguns meses se aram...

A essa altura, a menina Deborah já não se conformava com a nova irmã atrapalhando seu caminho, sua vida — era o que ela alimentava. Toda a atenção de seu pai era para a filha adotiva, que crescia excepcionalmente. Polly já engatinhava a os rápidos em apenas seis meses de adoção. Algumas palavras já eram ditas e chorava pouco. Diferentemente de Deborah, que chorou até os quatro anos e demorou a falar. O

gato não tinha paz nem sossego com Polly — ela vivia tentando pegá-lo, e quando conseguia, apertava-o até ele dar um berro com um olhar furioso. Meme voltou a ficar no porão por causa da menina, por alguns dias. Os Lee tinham medo de que o animal se revoltasse e atacasse Polly com suas unhas afiadas. Isso deixaria Deborah mais enfurecida.

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e o Morcego da Pensilvânia Agora, mais dois componentes da família Lee participavam dos eventos e eios corriqueiros.

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Polly Lee

CAPÍTULO TRÊS

UM GATO SE AFOGANDO

s anos se aram na mesma peleja naquela casa; Oindi

ferenças e maus-tratos à pequena Polly. E a legítima filha dos Lee já estava com doze anos. Polly agora contava cinco e já era bem esperta. Sua palidez a destacava das outras crianças, seus olhos continuavam em tom avermelhado como se vivessem irritados eternamente, seus cabelos foram cortados bem curtos, feito os de Deborah, com franja, pois ela pegou piolho na escola, deixando-os tocar os ombros. Seu nariz bem desenhado dava a ela um ar de uma verdadeira criança europeia. E os Lee resolveram fazer uma festa para comemorar o décimo segundo aniversário de Deborah, que já era uma mocinha, mas continuava mal-humorada e irritante — agora mais que antes.

Seu corpo crescia com ela.

Mas vocês devem imaginar para que lado?

Se é o que eu estou pensando, vocês têm toda razão!

O bolo foi confeccionado em tom de limão e uma bonequinha de açúcar, homenageando a aniversariante —

colocada de pé bem no centro do doce. A casa foi enfeitada da sala aos quartos, com balões de várias cores e fitas penduradas, 43

e o Morcego da Pensilvânia e na parede do quarto das meninas, um enorme palhaço pregado, que Deborah ganhara de seus avós paternos. E por um convite de má vontade da Sra. Lee, alguns vizinhos se fizeram presentes. O problema maior foi na hora de soprar as velas, porque Polly também queria apagá-las. Chorava em pé na cadeira de frente para o bolo. As palmas foram batidas em penumbra, e quando chegou a hora de soprar as velinhas, Polly, com entusiasmo de uma criança normal, meteu as mãos nas duas coloridas velas, tentando apagálas, derrubando-as em cima do doce de chantili, amassando-o quase por inteiro. O susto foi coletivo. Alguns risos soltos, inclusive pelo Sr. Donald, que amava aquela filha e suas traquinagens. A aniversariante fechou a cara fazendo um enorme bico e cruzando os braços ao olhar para a irmã, com vontade de esganála, mas Donald retirou, às pressas, Polly, que se posicionava próxima ao bolo. O doce ficou com cara de pizza e todos riram. Menos Deborah, é claro, com os olhos mergulhados em lágrimas.

— Minha filha — dizia Donald pegando Polly nos braços e rindo —, você machucou todo o bolo de sua irmã.

Polly, então, começou a chorar por ter sido retirada de perto da deliciosa iguaria. Mais um motivo para que Deborah alimentasse o ódio pela irmã bastarda, como diziam alguns naquela rua estreita e repleta de lixeiros e caixas de correios amareladas.

A mesa foi servida do jeito que ficou. E aquela noite ou como o vento...

Domingo, sete horas da manhã.

Como sempre, nesses últimos dias, ao redor da mansão dos Lee, sobrevoava um morcego de asas manchadas e grandes.

A família Lee, junto com a babá, aprontavam-se para o 44

Polly Lee

agradável piquenique. Os preparativos foram finalizados, contendo sanduíches de queijo e presunto com bacon, sucos e algumas fatias de bolo socado, feito por Margaret, e bastante geleia de ameixa, que Deborah tanto gostava. Saíram no carro de formato quadrado em busca do famoso lago arborizado, que ficava no meio da praça. Como sempre, Donald quase não conseguiu tirar o automóvel velho da garagem, com suas manobras loucas, exatamente por não saber guiá-lo direito. Para quem não sabe ainda, o carro que o Sr. Lee ganhou de presente de seu adorável pai era um Opala quatro portas de cor preta, já bastante desbotado — na verdade, o automóvel tinha cor de burro quando foge.

A viagem foi tranquila pelas ruas de Lancaster.

E lá estava a imensa praça de grama rala e verde, que ajudava as pessoas a jogarem suas toalhas estiradas e coloridas na grama para um longo descansar de

seus corpos alongados em dias de sol morno. Era uma área bem visitada pelos moradores, uma vez que não havia outro tipo de diversão na cidade. Alguns namorados se encontravam ali, formando o colorido palco de cenas românticas. Fora neste local, alguns anos atrás, que o casal Lee se enamorou pela primeira vez, quando ainda jovens.

E quando descansavam com caras franzidas ao toque dos brandos raios solares, houve um corre-corre graças ao animal de estimação de Deborah, que saltou de suas mãos ao ver algo sobrevoar rasamente por cima dele, fazendo com que uma grande réstia se movimentasse no chão ensolarado, deixando Meme curioso e seguindo a sombra escura do voador imenso —

é o que todo gato faz quando algo se movimenta diante de seus olhos de vidro e inocentes. Meme correu na direção do lago 45

e o Morcego da Pensilvânia seguindo aquela silhueta, que o fez saltar dentro da água, sem que ele notasse, e quase morrer afogado.

Mas vocês que estão lendo essa simples história, não se preocupem, porque, como todo gato tem sete vidas, Meme sobreviveu.

Contarei como se sucedeu o caso Meme...

O casal Lee, assim que viu o gato correr na direção daquela réstea, deixou as filhas com a babá, e foi atrás do animal sem perceber que ele perseguia algo que

sobrevoava suas cabeças, embrenhando-se na rala grama atrás daquele vulto, próximo ao lago. E Meme, vendo a sombra sobrevoar a água parada, também pulou tentando continuar a brincadeira inocente de um animal irracional, quando começou a afogar-se. Deborah chorava desesperada vendo seu animalzinho pular dentro do lago e sumir às suas vistas. Para ela, perder Meme era como ser privada de um brinquedo que tanto gostava. E Donald, então, sem pensar duas vezes, mergulhou no frio lago tentando salvar o pobre gato. Após algumas tentativas desastrosas, devido à agonia do bicho peludo, ele conseguiu salvá-lo com vida, levantando o animal acima de sua cabeça para não mais tocar na água, e o jogou na grama. Parecia um rato molhado. Até hoje não se sabe de onde Donald tirou aquela coragem de pular naquele lago tão frio, porque, pelo que se sabe, Donald sempre foi um homem covarde para essas aventuras inesperadas.

— É culpa sua, Polly! — gritava Deborah, enervada, vendo a irmã sorrir da ocasião. Ela sempre achava mais fácil culpar a irmã de tudo que lhe ocorria, para ter em quem se vingar e derramar toda a sua raiva. Polly era sempre a primeira vítima — o saco de pancadas da irmã.

46

Polly Lee

— Calma, Deb — dizia Betty tentando apaziguar a situação —, ela não está fazendo por maldade, querida. E seu animal foi salvo por seu pai, não está vendo? E mesmo assim, pelo que me consta, eles têm sete vidas, não é?

— Cale-se! — insistia a menina olhando para a babá, em choro soluçante, olhos vingativos e lábios bicudos, ao o que juntava os braços e apertava o cenho.

— É meu gato, e eu falo o que eu quiser!

Deborah não respeitava a moça, xingando-a a toda hora.

Betty nada mais falava para não contrariá-la e fazê-la acentuar mais sua cara de maracujá seco. O problema é que Polly ria ao ver sua irmã chorar. Deborah, então, iniciou seu choro falsificado — nada fazia parar aquele pranto inável. Nem mesmo a idade a fazia livrar-se da chatice. E vendo o riso solto e contínuo de Polly, ela se irritou mais e mais. Quanto mais Deborah chorava, mais Polly gargalhava. A babá já não sabia o que fazer com a situação. Pegou Polly nos braços tentando fazê-la parar de rir, porque já estava vendo a hora de Deborah voar em cima da irmã, furiosa, e esganar seu pescoço.

Então o Sr. Donald, após muita dificuldade para sair do lago, pegou Meme, que estava ensopado e deitado na grama, e trouxe-o de volta para a filha que estava em pranto.

— Não falei, Deb, que seu gatinho voltaria logo —

observou Betty, com ar risonho.

A menina apenas a olhou com ar de desprezo. Assim que o casal Lee voltou ao local, com o gato na mão, Deborah estancou o choro e ficou de pé. E queria porque queria enxugá-lo com sua toalha. Mas o gato se sacudiu, espalhando seus

pelos e jogando toda a água neles em pingos gelados.

47

e o Morcego da Pensilvânia

— Meme vai morrer de frio, papai! — disse ela. — Vou enxugá-lo!

— Não, minha filha — retrucou Donald. — Gatos não morrem fácil assim, eles têm sete vidas. Deixe que ele se seca sozinho. Veja só o que ele está fazendo!

Aquela frase fez com que Deborah enrugasse novamente o semblante, mas apenas ficasse observando o gato sacudir-se em seus pelos úmidos.

E depois de algumas horas, retornaram para casa...

Notava-se que, durante todo piquenique, os olhos de Polly estavam sempre franzidos aos raios do sol e à claridade do ambiente. Seus pais observaram o caso e resolveram levar a criança ao médico de olhos para ver do que se tratava. Vários exames foram feitos e nada de resultado negativo. A menina era perfeita de saúde. O oftalmologista alertou dizendo que, após ela completar seis anos de idade, teria que usar, por questão de prevenção, uma lente para descanso, mas nada via de ruim; nenhum defeito ocular na menina.

E numa sexta, à noite, enquanto Margaret estava na sala vendo tevê e Debora no chão brincando com suas bonecas, Polly começou a chorar no quarto, aos gritos.

— Deborah — disse Margaret —, veja o que sua irmã tem!

E ela emperrou ali onde estava, de cara fechada, e não foi ver a irmã — continuava alimentando certa antipatia pela pequena Polly. Nesse momento, Donald, que chegava da rua, correu na direção do quarto, antes mesmo de dar boa-noite, e nem mesmo soltou sua pasta no sofá, como de costume, para ver do que se tratava aquele choro compulsivo de Polly.

E gritou, indo ao quarto:

48

Polly Lee

— Vocês não estão ouvindo isso?

Ele era preocupado em demasia com Polly. E sem querer, antes de entrar no

cômodo, bateu com a mão no interruptor da luz, apagando-a repentinamente. A menina deitada na cama, estancou o choro de súbito, ficando em silêncio. Donald espantou-se com o feito — era ao contrário do tradicional com as crianças. Mas não deu muita importância, e a pegou nos braços acariciando-a com palavras paternas. Lembrou-se da carta que havia debaixo dos panos daquela cesta. Ele havia guardado a missiva e o pequeno rolo de papel envelhecido dentro de uma gaveta, que ficava trancada à chave em um armário na biblioteca. Resolveu, após deixar Polly no sofá com a esposa, ir imediatamente à biblioteca e abrir a pequena gaveta, retirando o envelope de carta e, consecutivamente, o rolo de papel gasto em forma de canudo. Leu alguns trechos daquele longo escrito em letra de sangue, mas logo dobrou-o e guardou novamente, sacudindo-a dentro da gaveta. Nem quis observar o contrato — tinha medo do que pudesse estar escrito ali em relação à menina. E muito menos desejava ver aquele escrito. Já havia se afeiçoado à pequena Polly e a seu meigo sorriso num tom avermelhado, como a lua de sangue que se apresenta em um eclipse lunar.

— O que houve, querido? O que Polly tinha? — falou Margaret aproximando-se do esposo na biblioteca. — Por que tanto choro?

— Nada, Margaret. Apenas sentindo-se sozinha. Acho que foi isso. Mas consegui fazê-la se calar. Esse ano ainda, Polly terá que ar a usar óculos. Lembra o que disse o doutor?

Margaret assentiu e eles voltaram à sala. Polly se agarrou as pernas de Donald, que lhe acarinhou os cabelos acerejados.

49

e o Morcego da Pensilvânia Deborah logo se transformou em ciúme vendo aquela cena de carinho paterno — algo nunca visto naquela mansão, desde que ela nascera.

E mais alguns dias e noites se foram...

Como eu falei antes, Polly crescia desordenadamente.

Corria por toda a casa, desembestada a sorrir, sempre tentando agarrar aquele gato, que fugia dela, desesperado. Os Lee ficaram espantados com o crescimento da filha. Então, o Sr. Donald resolveu retornar ao médico, agora para ver sobre o seu espichar e o uso dos óculos. Eles tiveram medo de que ela fosse portadora da doença esquisita do crescimento, chamada Acromegalia, na qual os hormônios aumentam em demasia e o indivíduo cresce sem fim. Mas nada fora detectado a respeito, apenas usaria agora um par de óculos para descanso, de forma social e quadrado, semelhante ao de Donald. O artefato dava a ela uma aparência de uma verdadeira nerd. Isso fazia com que os colegas de sala de aula a perturbassem todos os dias na escola, apelidando-a de quatro olhos. Mas Polly, diferente da irmã, não ligava para os insultos, e mantinha os colegas sem ação e sem levar adiante as perturbações. Ela sabia como manusear as situações sem perder as estribeiras. Era uma espécie de psicóloga nata. Ao contrário de sua irmã, que xingava a quem a insultassem.

Polly com cinco anos ou a ir junto com Deborah à escola, mas lá chegando, ficava sozinha, porque sua irmã se juntava com a amiga de sempre, de nome Salá. A coleguinha de Deborah também não se afeiçoava com Polly que já era bem popular na escola. Apesar de sua pouca idade, ela tinha carisma a ponto de angariar amigos de mais idade. A professora Mirlly também se afeiçoou à ela — Polly era inteligente, sabia quase 50

Polly Lee

todas as tarefas, inclusive ler a simples tabuada matemática na ponta da língua. Muitas crianças da sala de Deborah acompanhavam Polly por gostarem dela, deixando a irmã mais ainda indiferente. Deborah chegava a negar que Polly era sua irmã para algumas amigas. Mas quando precisava de ajuda nas tarefas de casa, buscava-a para auxiliá-la. E algumas ciladas, por Deborah e sua amiga Salá, foram feitas para ver se Polly seria pega pela professora para então ser castigada, como ela sempre fora, tendo que levar bilhetes para os pais.

E, num certo dia, Deborah, chamando sua amiga num canto, lhe perguntou:

— Salá, quero pregar uma peça em Polly, você me ajuda?

Porque eu nunca consegui. Não sei o que tem ela que sempre consegue livrar-se das armadilhas. Iremos a sua sala hoje na hora do intervalo do lanche e faremos o que pretendo.

Aproveitaremos que, depois do intervalo, não teremos mais aulas e já ficaremos na sala dela para vermos o resultado.

Salá assentiu com olhar maldoso e atento de uma verdadeira presepeira. Havia

na escola um garoto de nome Lennon, que se afeiçoara a Polly, de forma que não conseguia sair de perto dela; era um menino inocente e agalegado que nada percebia a sua volta, e de cara rosada de tanto sangue que tinha.

Enquanto Lennon estava entretido com Polly, brincando no pátio, Deborah e Salá, na ausência dos colegas, aproximaram-se da carteira do garoto, retiraram seu material escolar e colocaram na mochila de Polly, sem que ninguém percebesse. E o final do dia se aproximou, a sirene escolar gritou, e os alunos saíram para seus lares como sempre, a os rápidos, pegando seus materiais sem nem observarem suas mochilas. A saída foi em polvorosa, ficando Deborah, Polly e 51

e o Morcego da Pensilvânia Salá para pegar a segunda viagem da van, que não comportava os alunos de uma só vez.

No dia seguinte, um curto bilhete acompanhou o garoto Lennon em sua mochila azulada até a escola, que após averiguada — porque naquele colégio eles mantinham o hábito e a disciplina de pedir para que os alunos mostrassem suas mochilas, no intuito de que não houvesse problemas de sumiço de coisas pessoais e materiais escolares, causando desconfiança na escola e nos alunos —, foi visto pela professora Mirlly, que logo o abriu ficando a par do problema. No bilhete, algumas palavras diziam que Lennon não chegara com seu material completo em casa — era uma reclamação de seus pais, e que não poderiam ir por motivos pessoais de trabalho.

Então, a Sra. Mirlly, olhando por cima dos óculos, observou cada aluno da sala detalhadamente, e perguntou em tom altivo:

— Quem de vocês mexeu na mochila de Lennon ontem, durante o intervalo? Porque ele foi para casa com o material escolar incompleto. Aqui estou com o bilhete enviado por seus pais, reclamando. Não vou itir mentiras!

Todos se olharam bastante confusos. Mas, do canto esquerdo da sala, Deborah e sua amiga riam em silêncio. “Agora eu quero ver se essa intrusa não vai se dar mal”, sussurrava ela com as mãos na boca e os olhos atentos para Salá, tocando seus ombros. A colega também ria da situação maliciosa.

— Preciso que esvaziem imediatamente suas mochilas antes do início da aula! — disse a professora caminhando vagarosamente. — Vamos logo! Coloquem os seus materiais em cima da carteira. Quero ver todas as bolsas!

Eles abriram suas mochilas rapidamente. Ela eou de carteira em carteira observando os materiais, e percebeu, ao se 52

Polly Lee

aproximar da banca de Polly, algo estranho: dois livros, dois cadernos e alguns lápis e borrachas a mais, inclusive uma tabuada totalmente machucada dentro de outra.

— O que é isso aqui, Srta. Polly? — disse, levando a régua transparente aos lábios desenhados. — Por que há material duplo em sua carteira?

A menina não sabia o que dizer, e seus olhos nadaram em lágrimas. Seu coração pulava pela caixa dos peitos. Um castigo daquela mulher não seria nada fácil para uma criança, além do bilhete bem escrito aos pais, por ela — seria um terror para Polly, que sempre se comportou como um anjinho alado. Era um exemplo na escola. Todos se voltaram para ela com olhares de espanto. A Sra. Mirlly não acreditou no que via — não era normal, da índole da menina, fazer aquilo.

— Eu sabia. — disse Deborah de onde estava, em tom de acusação, quase colada na amiga, que ria debochadamente.

— O que você sabia de sua irmã, que eu não sabia, Deborah? — falou a professora, olhando para ela, segurando a cintura quadrada.

Deborah silenciou, baixando a cabeça. Aquilo soou muito estranho para a Sra. Mirlly que logo pegou o material que sobrava na carteira de Polly e observou de quem se tratava, porque a escola obrigava os alunos a colocar nomes em seus materiais, para não haver problema de furto. “Este livro pertence a Lennon Jackson” era o que dizia o escrito na primeira página do livro. Mirlly averiguou um por um e cada material continham o mesmo nome. O olhar sério da professora foi direcionado a Polly em tom de dúvida, em se tratando de ela ter feito aquilo.

— Não fui eu, senhora — disse Polly, tentando defender-se.

53

e o Morcego da Pensilvânia As palavras da menina saíram quase em choro. As lágrimas desciam pelo seu rosto de pele pálida e inocente, deixando-se cair em seus lábios finos alcançando o queixo, que mostrava uma barroca bem visível, como também se via em suas bochechas ao sorrir. A Sra. Mirlly a olhava com ar de comiseração — sabia que Polly jamais faria uma coisa daquelas.

Mas algo teria de ser feito, até mesmo para que servisse de lição para os demais alunos e para que aquele ato não se repetisse —

aquela era uma escola com total disciplina. Era o lema das estrofes do cartaz posto na frente do prédio educacional, e isso não poderia ser quebrado, sob o risco de desmoralizar toda a instituição. “Como você poderá provar isso, Polly?”, sussurrou a professora sem olhar para ela. A menina apenas chorava em silêncio. Sabia do que poderia sofrer em casa com sua mãe, que já mal lhe queria e que apelava para um erro seu no intuito de expulsá-la de casa de uma vez por todas, perdendo assim seu amável pai. O clima era de suspense total. O silêncio tomou a sala inteira. A professora Mirlly segurava a régua grossa nas mãos, que seria o grande castigo em uma cena pública a se ver.

Deborah e sua amiga Salá estavam na expectativa e torcendo para que Polly fosse castigada de alguma forma — seus olhares eram bem maliciosos.

— O que está havendo aqui? — ouviu-se alguém repentinamente com a cara na porta. A supervisora, como de costume, vasculhava todas as salas de aulas durante o horário para averiguar se estava tudo normal. Mas percebeu um

silêncio estranho quando ava em frente àquela sala — aquilo não seria normal quando haviam várias crianças, muitas indisciplinadas, agrupadas num só ambiente, e toda a escola sabia da procedência daquela professora rígida, que mesmo sem ter motivos, gritava com a sala para ver se alguém sentiria medo 54

Polly Lee

dela — e grito algum se ouviu no momento em que ela ava por ali.

— Sra. Magdalena? — disse a professora Mirlly, surpresa.

Era o que ela não desejaria naquela hora impactante.

A supervisora — muito mais rígida do que a Sra. Mirlly, com certeza, desejaria saber o porquê daquele momento estranho, no qual os alunos mantinham seus materiais fora da mochila e de pé. O clima ficou dramático, tanto para Polly, para a professora e o resto da sala. Aquele seria, no ver da supervisora, um ato de indisciplina quando, no meio da aula, os alunos estavam de pé com seus materiais jogados em cima da carteira. Para ela, alguma coisa havia ocorrido de muito sério. E

agora precisaria averiguar.

— Sra. Mirlly — disse a supervisora —, por favor, diga-me, o que está havendo aqui em sua sala?

O coração de Polly agora quase escapava pela boca. Sua tensão fora a mil. Deborah e a amiga Salá mantinham um riso cínico, desejando o pior para a irmã.

— Houve um... um problema aqui, Sra. Magdalena —

retrucou Mirlly, atropelando-se nas palavras.

— Isso eu estou vendo, não sou cega! — enfatizou ela, em tom áspero. — Por favor, guardem seus materiais e sentem-se no mesmo silêncio que estão. Sra. Mirlly, por favor, venha comigo à diretoria, agora!

E saíram deixando a sala em cochichos. E de lá do seu canto, Deborah e sua inseparável amiga se deixavam rir descontroladamente por trás dos dentes. Polly logo percebeu do que se tratava, mas não tinha certeza do que imaginava ser —

ela sabia que algo estava errado, por tudo que sua irmã aprontava e do que seria capaz para a culpar. De sua carteira 55

e o Morcego da Pensilvânia situada no meio da sala, Lennon olhava indiferente

para Polly, deixando-a completamente culpada e triste em vê-lo assim, desconfiado — ela preferia perder sua irmã invejosa do que seu melhor amigo.

E após mais ou menos meia hora, a professora Mirlly e a supervisora voltaram junto com a diretora à sala de aula. Agora eram três autoridades. Suas caras não eram das melhores. O

assunto em questão era sério, ao ver da escola e sua reputação na sociedade de Lancaster. Naquela cidade havia uma espécie de disputa entre os colégios para ver qual seria o mais disciplinado para ganhar um troféu importantíssimo na área da educação, em forma de livro, em prata, realizado pelo prefeito local, todos os anos, incentivando as instituições a se organizarem e manterem uma disciplina e bom ensino aos seus alunos.

E após aquele dia turbulento, Polly ficou afastada da escola por ordem da direção e toda equipe educacional, menos pela professora Mirlly, que desconfiava da culpa da menina naquele ato indisciplinado e desonesto, e manteve-se em alerta na sala de aula pelo resto do ano. E como vocês já sabem, a menina foi castigada por Margaret por uma semana inteira sem direito a nada — na verdade, isso para Polly já era normal naquela mansão: não ter nada. Não houve expulsão familiar, graças a Deus. Polly Lee continuou no seio da família por muito mais tempo. Essa é a verdade.

E cinco anos se aram...

Durante três noites, pelas sete horas, no início daquele quinto ano, o grande morcego de asas manchadas voltou a rondar a casa dos Lee, como se quisesse

dizer algo. E naquela terceira noite, Donald, sua esposa e sua filha Deborah, que já era uma moça, haviam saído, ficando apenas Polly e sua babá em 56

Polly Lee

casa. Betty, mesmo com o crescimento das meninas, ainda continuava trabalhando na casa como arrumadeira, adeira, cozinheira e outras coisas mais, além de cuidar das duas —

estava se tornando parte da parentela da família Lee. Polly já estava com dez anos. Era final de outono e as pessoas da rua 666

adoravam a estação para ir à rua apreciar o clima exuberante que se estendia aos seus olhos curiosos e iradores. E esse fora um dos motivos de os Lee saírem em direção do centro da cidade, apesar de Margaret odiar as flores como odiava também os animais de qualquer espécie. Ao contrário do marido, que era um homem bastante sensível à natureza.

E no silêncio daquele lar, a porta bateu sem o som da campainha. Betty cochilava na cadeira de balanço feita de palha, enquanto a tevê falava em volume alto para ninguém ouvir. A pequena Polly, como eu falara, agora com dez primaveras, brincava no quarto sozinha com as bonecas da irmã, justamente por nunca ter ganhado uma.

A porta da sala gritou novamente em pancadas mais firmes e, dessa vez, a babá

assustou-se, dando um pulo da cadeira e quase se estendendo no chão de madeira. Olhou pelo buraco da fechadura, como sempre faziam os Lee, e viu um imenso homem lá fora, vestido de um roupão escuro, cabelos assanhados feito capim queimado, segurando um chapéu estranho na mão e um objeto desconhecido na outra, parecido com uma vara seca, mas com algo, como um metal em forma triangular na ponta superior do cajado. Ela, então, resolveu abrir a porta aos poucos. Seus olhos iam observando o visitante a cada centímetro que a abertura se afastava dos alizares. Seu corpo tremia como vara de bambu ao ver a fisionomia estranha e largada. Seu coração acelerava e seus olhos arregalados não 57

e o Morcego da Pensilvânia perdiam um detalhe daquele esquisito homem. Imaginou várias coisas em relação a ele, como algum bêbado sem noção ou mendigo com muita fome, ou talvez, quem sabe, um malfeitor querendo se aproveitar e roubar a casa.

— Boa noite, senhorita! — falou o visitante em voz rasgada. — Não tenha medo. Não sou nenhum bandido como vejo que imagina. Nem mendigo. Muito menos um “neurotipo”

bêbado.

Betty se irou por aquele esquisito adivinhar-lhe os pensamentos e engoliu em seco, antes de responder qualquer coisa. Após alguns minutos, ela resolveu abrir a boca e dizer, com a voz trêmula, antes de escancarar a porta totalmente, segurando-a com o pé direito:

— No que posso lhe ajudar, senhor? Nada tenho em moedas, nem mesmo ordem dos donos da casa para lhe doar alguma coisa.

O visitante deixou sair um riso irônico e disse:

— Como já lhe falei, moça, não sou nenhum mendigo e não estou com fome. Não vim buscar nada. Apenas preciso de uma informação. Apenas isso.

— Então fale-me o que quer.

— Chamo-me Robert Galeno. É um prazer senhorita...?

— Betty — disse, totalmente assustada.

— Srta. Betty, é aqui que moram os Lee, não é? —

perguntou curvando-se e colocando na cabeça o chapéu de um tecido estranho como veludo macio que mais se assemelhava a asas de voadores acinzentados e apoiando-se naquele estranho pedaço de madeira comprido. — Gostaria muito de falar com o proprietário da casa, ou com sua esposa.

— O Sr. e a Sra. Lee não se encontram, no momento.

58

Polly Lee

Ele espiou a sala como um curioso tentando ver alguma coisa e perguntou:

— Eles demoram?

— Um pouco.

Nisso, Polly apareceu de súbito aproximando-se e agarrando-se na cintura de Betty e dizendo:

— Srta. Betty, estou com fome.

O estranho, vendo-a, logo sorriu dizendo em voz aguda e arrastada:

— Mas que criança linda! É sua filha, senhorita?

— Não. Sou apenas a babá da pequena Polly.

— Polly? — perguntou, surpreso.

— Sim, senhor. Por que a pergunta espantosa?

— Por nada, senhorita. Apenas... “Você está linda, mocinha” — balbuciou o visitante fazendo caras e bocas e impulsionando com a mente ondas na direção da menina, que logo percebeu as palavras de elogio e deixou escapar um sorriso amável para ele.

— O que disse? — perguntou Betty, tentando ouvi-lo.

— Nada, senhorita, apenas achei o nome dela diferente.

Que horas o casal Lee volta? Posso saber?

— Daqui a mais ou menos uma hora — disse ela, olhando em seu relógio de pulso, com pulseira de couro preta.

O visitante, logo percebeu no pescoço de Polly a medalha contendo a inscrição, e teve a certeza de que era mesmo quem ele imaginava ser. Seus olhos brilharam de alegria. E disse, antes de sair:

— Avise-os que voltarei mais tarde. Até mais, Polly!

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e o Morcego da Pensilvânia E acenando, jogou uma careta amigável à menina e continuou direcionando suas palavras a ela: — Encontrar-nos-emos em breve!

Betty assentiu e fechou a porta rapidamente, desconfiada e não entendendo aquelas últimas palavras do visitante mais estranho que ela já havia visto em sua vida.

Quando o relógio emadeirado e antigo em tom escuro da sala marcou oito horas da noite, o casal Lee e sua filha mais velha chegaram. Deborah logo se pôs em seu quarto, emburrada como sempre, para falar com Meme que estava deitado no redondo tapete no chão. O quarto das meninas era repleto de desenhos de animais em papel machê pregados nas quatro paredes. Tudo na cor rosa. E lá

estava Meme, espalhado em cima do artefato de veludo, gordo e preguiçoso.

— Alguma novidade, Betty? — perguntou Donald sentando-se no sofá, retirando seus óculos e sacudindo suas pernas por cima dos braços da cadeira.

— Sim, Sr. Donald. Um estranho apareceu procurando o senhor e a Sra. Margaret.

— Uma visita? — observou Margaret, espantada, seguindo para seu quarto. — Que raridade é essa? Alguém nos visitando a essa hora da noite!?

— Sim, senhora. — respondeu a babá em tom alto. —

Falou que voltaria assim que chegassem.

— Ele falou mais alguma coisa, Betty? — perguntou Donald, curioso. — Disse quem era, ou...

— Apenas avisou que voltaria às oito e meia, e se chamava Galeno de... de...

60

Polly Lee

E antes que ela se lembrasse do nome do visitante, a campainha tocou duas vezes sem intervalo, assustando-os, que olharam-se no mesmo momento.

— Deve ser ele — afirmou a babá, aproximando-se da porta rapidamente.

Olhou novamente pela brecha da fechadura e falou:

— Não há ninguém lá fora, Sr. Donald. Que estranho.

— O quê? — perguntou Donald, espantado.

Então ele a empurrou para o lado, e continuou: — Como não há ninguém lá fora, se tocou duas vezes? Deixe-me ver!

Havia algum mistério entre aquela carta de cor rubra, o estranho visitante e Donald em relação à pequena Polly, mas nada se falava a respeito. Nem algum

zum, zum, zum pela casa.

No quarto, Polly se distraía com o animal peludo, que ainda estava deitado no tapete espesso em seu sono rotineiro.

Quando por encanto se viu o animal sendo arrastado em cima do artefato pelo chão, sem que ninguém o levasse, até próximo à janela. Deborah arregalou os olhos ao ver a cena lá da cama, espantada, e arrepiando-se com o inusitado acontecimento mágico. Após alguns minutos, petrificada e olhando o feito, gritou:

— Mamãe! Papai! Venham aqui!

Polly apenas ria de ver a irmã assustada e o gato lá, deitado, sem nem saber o que havia ocorrido com ele. De repente, antes que o casal Lee aparecesse, o gato foi trazido de volta do mesmo jeito, em cima do pequeno tapete em tom de ouro, sendo arrastado no chão de taco envernizado. Deborah, agora com dezesseis anos, levantou-se, estupefata e correu até a porta do quarto, com os olhos arregalados e respiração ofegante.

Polly continuava sorrindo em silêncio e brincando com Meme 61

e o Morcego da Pensilvânia como se nada houvesse ocorrido de anormal. Por um instante, Deborah imaginou que aquilo teria sido causado pela irmã.

“Mas como teria sido isso?”, pensou ela tentando banir aquilo de sua cabeça.

— O que foi, minha filha?! — perguntou Donald chegando à porta e vendo Deborah lobotomizada.

— Ele... ele... — fez ela, tentando falar algo, as palavras interrompidas e apontando com o dedo indicador para o gato. A cada tentativa de frase, ela ia perdendo a voz, até que nada se ouvia mais daquela boca de lábios gordos.

— O que houve, filha?! — perguntou sua mãe, chegando por trás do marido. — O que tem sua voz?! Perdeu a fala?! Por que não consegue falar?! Que diabos Polly fez com ela, Donald?!

A moça então mais nada conseguiu dizer, a não ser alguns resmungos ainda apontando para o gato, com movimentos desesperados.

Ficou muda por alguns dias.

E assim que eles deixaram o quarto, Polly ouviu barulhos vindos debaixo da cama. Ela se assustou, mas por ser ainda muito criança, aguçou sua curiosidade ignorando o medo infantil e foi verificar. Nada viu. E retornou para a sala.

O casal Lee, no dia seguinte, resolveu levar a filha mais velha ao médico para ver do que se tratava o problema, mas ele nada soube descrever ou diagnosticar. Procuraram um psicólogo, que afirmou que aquilo teria sido causado por um susto, e a menina teria que levar outro susto para compensar e voltar a falar novamente.

— O quê? — perguntou Donald espantado diante do doutor naquele consultório estreito.

62

Polly Lee

— Sim, Sr. Lee — retrucou o médico —, ela terá que levar um susto provocado para voltar à sua voz normal. Esse é um caso tipicamente psicológico.

— Meu Deus! — falou Margaret. — E como faremos isso, doutor?

— Tenho algumas dicas aqui, mas... — observou ele, inseguro.

— O quê, doutor? — perguntou Donald, atropelando sua fala. — Pode dizer.

— Venham aqui, por favor! — disse, levando-os a uma sala estreita que ficava por trás do consultório.

— Doutor — falou a secretária de nome Marly entrando na sala de súbito —, o Sr. Jaime já está lá fora esperando!

— Ok, Srta. Marly — retrucou ele —, peça para ele me esperar mais um pouco, logo atendo.

— Tudo bem, doutor. — fez retirando-se.

Na saleta, eles se sentaram e o Doutor Doru, pegando numa das gavetas do birô de madeira uma papelada em forma de caderno em espiral, começou a folheá-lo rapidamente. Após algumas adas de páginas, ele falou:

— Aqui...

— O quê, doutor? — perguntou Donald, curioso e aproximando-se.

Margaret encostou junto a Donald com seu pescoço comprido e espichado.

E perguntou:

— Qual a ideia, Doutor Doru?

— Essa aqui, vejam! — observou ele lendo um parágrafo que dizia: “A melhor forma para dar um susto em alguém sem causar danos físicos e psíquicos, é acordá-lo repentinamente”.

63

e o Morcego da Pensilvânia Fechou rápido o caderno, levando os olhos ao casal Lee e continuou dizendo: — Pronto, está aí a resposta e a cura para a filha de vocês.

— É isso? — disse Margaret.

Ele assentiu.

— Mas só isso, doutor? — perguntou Donald, insatisfeito.

— Sim — retrucou o doutor. — E o que queria mais, Sr.

Lee?

— Nada, doutor — disse Donald, engolindo em seco.

— Então — observou o médico —, amanhã pela manhã, vocês a acordem dessa forma, e tudo ficará nos conformes. E

nada de remédios.

— Obrigada, doutor! — disse Margaret, já com alguns planos na cabeça.

E saíram os dois satisfeitos do consultório.

Em casa, assim que chegaram, logo correram ao quarto por verem a mochila da filha em cima do sofá, jogada, e, por sorte, Deborah dormia tranquilamente em sua cama, como sempre, desforrada — havia chegado do colégio cansada de uma nova aventura que vivera.

Vocês querem saber do que se tratava a aventura dela?

Ok! Narrarei em detalhes para que não se percam nada diante do quadro da jovem Deborah, e para que a história siga adiante...

Assim que Deborah e Polly chegaram à escola naquela manhã, alguns alunos do segundo ano — pois Deborah agora pertencia ao terceiro ano do científico, como se falava naquela década, e Polly no primeiro ano ginasial, por estar adiantada —

trataram-na indiferente, zoando-a como sempre, de bochechuda 64

Polly Lee

da escola, e agora de bochechuda-surda-muda. Ela, então, não ando aqueles novos ataques em relação à sua mudez, maltratou-os com muita ira, xingando como sempre, não com palavras, mas com gestos obscenos, seus pais e suas famílias, além deles próprios. Os movimentos com os dedos foram do mais baixo calão. A sala toda ficou em polvorosa. Papéis jogados ao ar, lápis voando, cadernos soltos no chão, a maior zorra. Estavam novamente sem professor

naquele dia. A cara de Deborah se comparava ao de uma velha chata que resmungava com todos por não poder falar nada. Ela adorava aquelas cenas de bagunça total. E, por azar, como sempre ela teve, assim que a professora Mirlly botou a cara na porta, deixando sua sala do primeiro ano ginasial, viu Deborah com objetos nas mãos para serem atirados nos outros, inclusive a caixa de giz inteira, que se espatifou no chão em pedaços ao bater no quadro-negro. Ela havia quebrado um a um e saiu jogando nos alunos que a perturbavam. Um pedaço ou raspando o rosto da Sra.

Mirlly, que gritou apavorada e furiosa:

— MENINA, sente-se! Sente-se logo! Vejo que você não tem jeito mesmo! Olhe para você! Veja! Já é uma moça feita.

Não se envergonha disso?!

Sentaram-se com um riso debochado, e o silêncio foi completo. Deborah a olhava com cara de desprezo e não se sentou, permanecendo de pé com os braços cruzados e o semblante com uma enorme tromba. Ela apenas encarava Mirlly como se quisesse enfrenta-la. Agora estava com um físico que quase ultraava a professora na altura e na largura.

“Essa intrusa não é dessa sala, o que ela quer aqui?”, pensava olhando para a professora.

65

e o Morcego da Pensilvânia

— Não vai se sentar, menina atrevida?! — insistiu a Sra.

Mirlly ao aproximar-se dela.

Deborah respondeu com gestos agressivos por não conseguir falar, permanecendo de pé e do mesmo jeito. Todos ali, sentados, observavam a cena, curiosos e em cochichos e risos temerosos. Muitos imaginaram que ela iria voar em cima da professora, por ser mais alta agora.

— Venha cá! — falou Mirlly, puxando-a, irritada por Deborah nada responder e não sair do lugar. — Venha logo!

A professora não sabia de sua mudez e pegou-a pelo braço grosseiramente. Deborah prontamente lhe chutou sua canela, de modo que Mirlly sentiu a dor mais aguda de sua vida, soltando-a

— é que o bico afinado dos sapatos de Deborah, que ela resolvera calçar exatamente naquele dia, abandonando seu tênis, acertou o tornozelo da Sra.

Mirlly em cheio, deixando uma marca roxa e dolorosa.

— AAI, menina atrevida! — gritou Mirlly, levando a mão direita ao local atingido. — O que você está fazendo, sua... Irá ficar de castigo até a diretora chegar! Vamos para a diretoria agora!

Aqueles puxões nada resolveram diante do peso de Deborah dizendo que não iria, ficando parada como uma estátua larga, com seu dedo gordo.

E se dirigiu à porta, enraivecida.

— Vá, então! — retrucou a mulher. — Eu mesma vou te levar até o portão. Mas levará um bilhete bem escrito a seus pais.

A menina saiu correndo porta afora, sem nem esperar bilhete algum.

— ME NI NA — disse a professora arrastadamente —, venha aqui! Volte! Deborah!

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Polly Lee

Deborah voltou para casa num choro silencioso e os pesados; quem estivesse próximo a ela, ouviria o bater dos solados no chão, com a mochila presa às costas, que sacudia fortemente a cada ada larga da moça emburrada. Aproveitou o descuido da portaria. A escola não ficava longe da residência dos Lee. Mas, por segurança, os pais e a direção do colégio preferiam que os alunos fossem levados e trazidos pela própria.

E naquele momento, do jeito que Deborah se sentia, quem seria tão atrevido assim a provocá-la? Quem se atreveria a mexer com ela? Deborah, como a conheciam, era uma fera quando irritada.

E já era conhecida em todo o bairro de Lancaster.

— Ela está em casa e dormindo, Donald. — observou Margaret, espantada, olhando no relógio. — E Polly, onde está?

— Não faço a mínima ideia. — retrucou ele. — Isso não pode ter acontecido. O que ela está fazendo em casa a essa hora sem sua irmã?

— O quê?! — perguntou ela, voltando os pensamentos a sua costura.

— De nossa filha vir sozinha da escola, do jeito que está a cidade, com essa violência toda. O que terá havido lá? Isso está muito estranho, não acha?

— E você ainda duvida da astúcia de nossa filha? —

observou com um riso irônico. — Com certeza coisa boa não foi.

— Não estou gostando nada disso — disse Donald, colocando a mão por cima dos lábios finos. — Alguma coisa houve de muito sério. Temos de ligar para lá agora, antes que ela acorde. E onde estava aquele porteiro incompetente que não a viu sair?

67

e o Morcego da Pensilvânia

— Esqueceu, Donald? — observou a mulher virando-se para ele com ar de quem planeja algo.

— Esqueceu o que, querida? — perguntou, retirando os óculos remendados dos olhos.

— Do susto que temos que pregar nela para que Deborah volte a falar... Acho que devemos aproveitar o momento, não acha?

Donald pensou por uns minutos e caiu em si, dizendo:

— E você vai querer fazer isso agora? Você não acha melhor ligarmos antes para a...

— Não. — retrucou Margaret, em tom alterado. — Vamos acordá-la com um susto, como disse o Doutor Doru.

— E como faremos isso, mulher?

— Deixe que eu faça de forma mais correta. Usarei o nome de seu gato para que fique mais dramática a cena.

E sorriu debochado.

— O quê?! — fez não acreditando na própria esposa.

E aproximando-se da cama comprida e mal forrada, antes mesmo que o esposo pensasse em impedi-la, Margaret deitou os lábios finos bem no ouvido da filha, que roncava feito uma porca gorda e papuda, e gritou num tom tão agudo... mas tão agudo e ensurdecedor, que até Donald se espremeu em seu corpo, franzindo o cenho:

— DE BO RAH!!! O que esse gato está fazendo AQUI?

A menina deu um pulo da cama caindo no chão como um travesseiro mole e gritando desesperada. E, para surpresa dos Lee, logo foram ouvidas algumas palavras que saíam da boca carnuda da moça:

— Meme! Meme!

— Curada, querido — disse Margaret, levantando as mãos e sorrindo para ele.

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Polly Lee

Donald deixou que um riso aguado saísse de seus lábios secos, porque já havia dias que ela não os respondia nem dizia palavrões, e agora tudo voltaria ao normal.

— O que houve, mamãe, e por que me acordou assim, dessa forma?! — perguntou ainda sacudida no chão. — O que houve com meu Meme?!

Seu coração batia acelerado. Seus olhos mostravam-se arregalados e sua cara amassada.

— Desculpe-me, filha! — disse Margaret. —

Precisávamos fazer isso com você para que sua voz voltasse.

Receita do Doutor Doru.

Donald a puxou pelo braço e deslizou os dedos em seus fios capilares aloirados. Pela primeira vez na vida de Deborah, ela sentira alguma carícia do pai e se irou, estava com um ar de felicidade em lágrimas, não dando importância ao susto nem mais lembrando-se da cena do gato no tapete — sentiu-se uma verdadeira Lee sendo cuidada pelos pais. Não havia Polly.

Apenas os três, como nos velhos tempos. Mas com uma diferença: o carinho nunca recebido deles.

— O que está fazendo em casa a essa hora, Deborah? —

perguntou ele com a voz calma e paciente, fazendo-a mudar repentinamente o semblante e lembrando-se logo do ocorrido na sala de aula.

— Isso mesmo — observou Margaret, lembrando-se do assunto e com cara de zangada —, o que faz aqui a essa hora, Deborah? Não deveria estar na sala de aula? E sua irmã Polly, por que não está em casa com você?

Deborah nada falou. Então o telefone, que agora era preto e mais refinado, tocou na sala. Donald foi atender. “Alô?” / “É

da escola de suas filhas, sou a diretora substituta, Carmellita, 69

e o Morcego da Pensilvânia estou ligando e já incomodando porque logo mais cedo houve um problema com sua filha Deborah, e ela se foi sem permissão da diretoria. Ficamos preocupados.” / “O quê?”, disse Donald surpreso. / “É isso que lhe falei, Sr. Lee, ela destratou uma das professoras e a agrediu com um chute na canela, gritando, e a desobedecendo indo embora na ausência do porteiro.” / “Ok, senhora, mas como... como... como ela ou pelo portão sem que ninguém visse?”, disse ele, tentando uma resposta mais lógica. / “Por azar da escola, senhor, hoje foi a folga do funcionário da portaria e não tivemos nenhum

substituto, ficando um dos funcionários da cozinha, mas ele se descuidou.”

/ “Tudo bem, Sra. Carmellita, logo iremos aí averiguar o caso.” /

“Obrigada, Sr. Donald, pela atenção, e desculpe-nos mais uma vez pelo incômodo e a falta de cuidado para com sua filha!” /

“Tudo bem, senhora, logo irei aí para conversarmos!” / “Mas precisamos ter uma conversa urgente, muito urgente.” Disse ela.

/ “Tudo bem, senhora.” E desligou o telefone, indo para o quarto.

— Quem era, querido? — perguntou Margaret.

— Era da escola das meninas.

Nada fazia Donald sair dos limites de sua paciência. Os olhos de Deborah estavam espantados quando ouviu seu pai falar que era da escola. Imaginava que seu pai já estaria sabendo do inusitado fato e, consecutivamente, sua mãe iria logo saber e a botaria de castigo por mais tempo e sem direito a eios, porque agora suas bonecas já não lhe faziam mais falta.

— Já sei — falou Margaret, alterando-se —, Deborah aprontou novamente!

Ele assentiu calado, mas já sabendo que a menina teria mais alguns dias de castigo e sem tevê, que ela tanto adorava. Só que dessa vez, Deborah se livraria do castigo, mas não iria no 70

Polly Lee

próximo fim de semana ao piquenique com eles: ficaria em casa com Betty, que ela detestava desde criança.

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e o Morcego da Pensilvânia

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Polly Lee

CAPÍTULO QUATRO

O ESTRANHO VISITANTE

uando o relógio de pulso do Sr. Donald marcou oito Q horas e trinta minutos daquela noite que iniciava o inverno, já chuviscava lá fora, o estranho bateu na porta.

Novamente não tocou a campainha. Donald correu para ver de quem se tratava. Como de praxe, observou pelo buraco da fechadura, curvando-se para baixo de forma que deixava sua coluna envergada como um arco, e notou a presença de um senhor descabelado, barba espichada e espalhada, olhos grandes e avermelhados em tom suave, na mão esquerda um chapéu esquisito, e, na outra, uma espécie de cajado como de um mago de contos de fadas. O mesmo esquisito que a babá havia visto e do mesmo jeito. A porta foi aberta. O céu estava escuro e sujo

— uma tempestade de neve ameaçava a cidade — era o inverno.

Alguns morcegos sobrevoavam o ambiente, quase tombando nos lustres pregados na parede da mansão dos Lee. O semblante de Donald franziu ao toque dos ventos gelados em sua pele enrugada. Sua lareira já queimava a lenha seca, esquentando a sala.

— Boa noite, Sr. Lee! — disse o homem soltando um riso amigável, envergando-se para frente e com a mesma voz rasgada que usara da última vez.

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e o Morcego da Pensilvânia Donald franziu novamente o cenho devido ao som estridente em seus tímpanos sensíveis, e disse:

— Boa noite, senhor! Conhecemo-nos de algum lugar?

— Robert. — falou lhe estendendo a mão. — É um prazer, revê-lo novamente! Não se lembra de mim?

— O prazer é todo meu, Sr. Robert! — fez não retribuindo o cumprimento do visitante. — Mas... não me lembro de ter conhecido alguém tão... tão...

E silenciou, tentando disfarçar. Robert ficou curioso, esperando algo não tão agradável naquelas palavras indiferentes de Donald. E o Sr. Lee continuou: — Na verdade, não me lembro de algum sujeito aqui na minha porta, tão feio assim. É

novo no bairro?

— Não, senhor, não moro nessa rua envelhecida. Venho de muito longe e preciso lhe falar algo que foi combinado algum tempo atrás.

— Combinado? — perguntou, levando a mão, como de costume, aos lábios e em tom de surpresa. — Do que está falando, Senhor? Não me lembro de ter combinado alguma coisa com um desconhecido.

— O amigo não vai me convidar para entrar? Ou prefere que eu congele aqui nesse frio intenso de começo de inverno?

— perguntou, deixando saltar um riso agradável e entrever dentes em tom opaco.

Donald tinha alma boa. Logo ficava amigo de qualquer estranho que lhe abrisse os dentes, mesmo sendo amarelados do excesso de fumo, como os daquela visita esquisita. E sentiu que, naquele ridículo homem, havia algo de familiar. E convidou-o a entrar.

— Obrigado, Sr. Lee! Licença e boa noite a todos!

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Polly Lee

— Sente-se, Robert — falou, apontando-lhe a única cadeira que estava vazia. — Um café ou um chá?

— Sim, claro. Um chá cai muito bem, obrigado! O frio está forte hoje — falou, colocando seu exótico chapéu e seu casaco escuro encaixado num tripé que ficava no canto da sala.

A babá já se preparava para ir embora. As meninas estavam no quarto.

— O senhor — perguntou Margaret virando-se para o visitante — é o novo corretor que ouvi falar que quer comprar nossa casa?

— Não, senhora — retrucou ele. — Não sou nenhum corretor, muito menos um comprador de imóveis. Vim a negócio sim, mas não para a sua mansão, que é realmente uma bela casa, meus parabéns!

— Sr. e Sra. Lee — observou Betty, levantando-se do sofá acolchoado —, estou de saída.

— Tudo bem, Betty, tenha uma boa noite! — disse Donald indo até a porta e lhe acompanhando os seus os. —

Amanhã é sua folga, não precisa vir. Aproveite.

— Sim, claro. Obrigada, Sr. Donald! Boa noite!

— Divirta-se, senhorita — falou Robert, colocando o cajado em sua frente, fazendo com que Betty se lembrasse de quem se tratava a visita. — Não me reconhece?

— Obrigada, senhor! Sim, claro. É o mesmo que esteve aqui no outro dia.

O visitante apenas sorriu de satisfação olhando para ela.

Os cumprimentos foram dados, e Betty se foi na neve solta que caía misturada aos ventos fortes. Margaret, curiosa com o visitante, resolveu preparar o chá para ele, deixando-o conversando com o esposo, mas seus ouvidos eram como um 75

e o Morcego da Pensilvânia captador de som — conseguia detectá-los de longe. A curiosidade era seu principal objetivo sobre aquela visita. Ainda insistia em pensar que, quem sabe, Donald estaria querendo vender sua mansão sem seu conhecimento.

— Agora posso lhe falar do porquê de minha vinda, amigo

— observou Robert aconchegando-se na cadeira, que quase foi engolida pelo seu avantajado e largo traseiro. — E a criança Polly, como está?

— O quê? — perguntou Donald, espantado. — De onde a conhece? É da escola? É algum dos funcionários de lá? Ou é o novo porteiro que o colégio contratou e não nos avisou?

— Não, não sou. Bem que eu o desejaria ser, mas já não sou mais. Penso que o Sr. Lee deva estar fingindo de alguma forma. Sei que já sabe do que se trata. Se não sabe, é porque não quis saber. Já assinou o contrato?

O corpo de Donald congelou com aquela pergunta e seus olhos abriram, de forma que parecia que iriam pular para fora.

Lembrou-se da carta e do rolo de papel envelhecido.

— Quem é o senhor e do que está falando? Que contrato?

O amigo não é mesmo um corretor?

— Chamo-me Robert Galeno. Esse nome não lhe faz lembrar alguma coisa, Sr. Donald? Não está mesmo reconhecendo-me? O amigo, por acaso, tem problema de memória? E como já citei aqui, não sou nenhum corretor de imóveis — observou ficando de pé, pegou seu chapéu e colocou-o sobre a cabeça novamente, tentando ser reconhecido.

— E agora?

— Não, senhor, não me lembro do amigo mais feio e gordo. Desculpe-me! E esse chapéu na sua cabeça o... o deixa horrível. O tempo dos bruxos já se foi, não acha? — disse sorrindo e tentando disfarçar o deboche.

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Polly Lee

— Então não leu a carta nem assinou ainda o contrato que lhe trouxe naquele dia? — perguntou o visitante, ainda de pé e apoiado em seu cajado.

— Que carta? — observou, insistindo em fazer-se de desentendido. — Que contrato é esse que... que está falando?

Não, não vi nenhuma carta e nem nenhum contrato

— O amigo está querendo enganar-me, ou não quis mesmo ler o escrito e ver o contrato que estava por baixo da menina Polly quando a deixei aqui anos atrás? Ou tem mesmo problema de memória? Acho que deve ir a um médico o mais rápido possível, Sr. Donald. Se é que não está fingindo para mim.

— De onde o senhor a conhece? Não sei de nenhum contrato nem de...

— Espere, então — disse ele, cortando suas palavras com um riso debochado —, vou refrescar sua memória. Lembra-se do visitante que lhe trouxe a cesta com a garotinha numa manhã friorenta de sábado?

Ele assentiu seriamente após olhar no horizonte da janela pelas suas lentes já embaçadas. Seu coração de pai batia mais forte, querendo saltar pela caixa dos peitos. E continuou o visitante: — Pois aquele estranho, amigo, era eu em carne e osso.

— Você, então, é o...

— Sim — adiantou-se, atropelando-o novamente. — É

que meus cabelos e minha barba cresceram demasiadamente.

Não tive tempo de ar no barbeiro por esses dias. Então...

não leu a carta? E consequentemente também não assinou o contrato. Eu já esperava isso Sr. Donald. É típico dos

“neurotipos”.

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e o Morcego da Pensilvânia E sentou-se novamente, agora na poltrona de apenas um lugar, acomodando-se com a respiração ofegante.

— Para lhe ser franco, não — retrucou Donald. — Não tive coragem de lê-la nem de...

— Mas por quê? — perguntou, adiantando-se. — Deveria ter lido e mostrado à sua esposa para não haver problema agora.

E o contrato também deveriam ter assinado. A não ser que queiram...

E silenciou.

— Também não assinei, como já lhe disse, é que eu não tive...

— Já sei — disse Robert interrompendo-o ao colocar seu dedo indicador por cima dos lábios grossos —, deixe-me adivinhar... o senhor se afeiçoou à pequena Polly e agora não quer... não quer se desfazer da menina, é isso? Se é isso, deveria ter lido a carta por completo.

— Então, o amigo vai querer levá-la mesmo? —

perguntou, entristecendo-se.

— Sim. Trago comigo os agradecimentos do Conde V, por terem tomado conta dela, não como deveriam, mas por ela estar sã e salva. E pelo que notei, cuidaram muito bem da menina em se tratando de alimentação e educação. Ela agora é uma princesa. Eu a vi outro dia. Está a nível de sua coroa.

— Viu? — perguntou Donald, surpreso. — Coroa? O que quer dizer com isso?

Robert assentiu e disse, eufórico:

— A menina Polly, Sr. Donald, é mesmo uma princesa.

Disso, não tenha dúvida!

— E se não atendermos ao tratado da carta e do contrato?

— Da parte do Conde, nada, mas a menina será uma estranha aqui neste lugar entre os “neurotipos”, acredite. Se é 78

Polly Lee

que já não está sendo. E vocês terão problemas sérios com ela futuramente. Viu seu tamanho? Ela cresce descomunalmente.

Mas como o amigo e sua esposa não leram a carta, vou lhe adiantar um detalhe que narra lá no décimo segundo parágrafo que diz assim: Assim que chegar ao

término do contrato, uma quantia alta será ada para vocês, oferecida pelo Conde V, em agradecimento aos cuidados de sua filha, a única herdeira do trono do Castelo de Bran e de toda sua fortuna e nome.

Neste momento, os olhos de Donald, por ser ele um homem interesseiro, como sua mulher, brilhou quase em cifras, e falou:

— Quantia? Castelo?

— Exatamente. Foi o que ouviu, amigo, sem tirar um til ou uma vírgula, ou um zero. — observou Robert, levantando-se novamente com a respiração ofegante. — O Sr. V, manda uma quantia para que lhes seja entregue pelo favor que prestaram à menina e a ele, e não é pouca coisa. Não irão arrepender-se. E

digo mais: daqui a dois dias, pode largar seu emprego, porque poderão viver muito bem o resto de suas vidas com todo conforto que desejam. O Conde não gosta de ficar devendo a ninguém neste Mundo nem no Outro. Sua palavra é fiel, como fiel é aquele que ele respeita.

E sentou-se novamente, afundando no assento da poltrona.

— Mas... por que nós? — perguntou Donald, curioso. —

Por que nos entregou a menina, se poderia ser qualquer família de qualquer lugar do mundo, inclusive de onde ela veio? Por que nos trouxe essa tão encantadora...

— É essa parte que preciso lhe revelar, já que o senhor não leu a carta — observou, antes que Donald terminasse sua dissertação duvidosa, erguendo o dedo indicador e deixando-o 79

e o Morcego da Pensilvânia surpreso. — Mas agora não vai dar para falar com detalhes.

Virei outro dia para que possamos conversar com mais tempo sobre a carta e o contrato, inclusive a quantia em dólares. Claro, se o amigo pensar melhor em sua decisão.

Margaret adentrou a sala na hora em que Robert falava em cifras, e se apressou com uma bandeja florida nas mãos e duas xícaras brancas de tamanho médio com seus pires no mesmo tom de cores, dizendo:

— O chá, senhor...?

— Robert, é um prazer! — disse levantando-se e cumprimentou-a, quase derrubando a cadeira no chão. —

Chamo-me Robert Galeno!

— Margaret Lee, é um prazer, Sr. Robert! — falou estendendo-lhe a mão, que foi beijada nos mais respeitosos sentimentos pelo visitante.

— O prazer é todo meu! A senhora é muito gentil.

— A que devemos a honra da visita do cavalheiro tão distinto na nossa casa? — perguntou com um punhado de falsidade misturado ao interesse. — Aqui está o chá que pediu.

Donald percebeu a falsidade de sua esposa naquelas palavras bem articuladas.

— Hum... me parece bem delicioso. Obrigado, Sra. Lee!

— observou Robert fingindo-se de desentendido. — Vim apenas tratar de negócios com seu esposo. Mas saiba que não sou um corretor, apesar de sua mansão ser mesmo muito bonita. Depois o Sr. Donald lhe contará do que se trata minha visita e o tal negócio.

— Não precisa ir agora — disse Margaret, disfarçando não ter ouvido a conversa dos dois. — Essa casa foi herança dos meus pais e não pretendo desfazer-me dela, disso tenha a certeza.

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— Tudo bem. Não era minha intenção comprá-la. Como lhe disse, vim apenas tratar de outro tipo de negócio com os amigos.

Agora os Lee teriam de resolver um sério problema: o que dizer à menina Polly quando tivesse que ser levada por Robert

— com certeza, ela não iria aceitar tamanho desprezo dos próprios pais. Apesar de serem eles adotivos, ninguém aceitaria violento abandono.

— Acho que já está na minha hora — observou o visitante levantando-se com muita dificuldade do sofá e dando seu último gole na xícara de chá, na qual se via o líquido descer por entre sua barba em garranchos. — Maravilhoso chá, senhora.

Obrigado!

— Está cedo, senhor. — insistiu ela disfarçando o olhar de felicidade, mas pedindo por dentro que ele fosse embora o mais rápido, para que pudesse ter uma conversa urgente com o esposo

— estava ansiosa.

— Não. Preciso mesmo ir embora — disse ele — porque deixei minha lareira sem fogo, e a casa vai congelar nesse início de inverno.

— Tudo bem — adiantou-se Donald lhe apertando sua mão e quase botando-o de casa para fora. — Agradeço a visita!

Quando quiser voltar novamente, fique à vontade.

E dirigiram-se à porta. Quando eles deixaram a sala e Margaret voltou à cozinha com a bandeja do chá, Robert falou bem no ouvido de Donald:

— Sr. Donald, desculpe-me por isso acontecer, mas foi avisado na carta, e o amigo poderia estar sabendo e já preparado para sua despedida da menina. Deveria ter avisado também à 81

e o Morcego da Pensilvânia sua esposa que Polly perderá seus pais adotivos, se é que o amigo contou a menina Polly que não é sua filha biológica.

— Eu compreendo, acho que sentirei falta dela mesmo, mas eu me prepararei para isso, não vai ser fácil, mas seremos fortes, e eu não contei mesmo a ela sobre ser adotada —

balbuciou.

— Eu já esperava por isso. Logo trarei os cálculos do pagamento, quando vier buscá-la. Até mais, Sr. Donald, avisarei por carta — concluiu.

— Tudo bem.

— Tente preparar sua esposa para a suposta despedida —

sussurrou Robert, já descendo o degrau largo.

— Pelo que conheço Margaret, a menina já poderia ir agora se quisesse —

observou, soltando um riso aguado.

— Até daqui a dois dias!

— Até, senhor!

E o visitante se foi, sumindo na escuridão da noite misturada à neve que despencava do céu. Donald, então, acenou e entrou rapidamente, fugindo dos cristais de gelo. O visitante seguiu apressadamente desviando-se deles. Naquela noite, Donald não conseguiu dormir, revirando-se na cama e pensando em como iria fazer para dizer a Polly sobre sua partida. Quanto à Margaret, ele sabia que ela nada se afeiçoara à menina, nem mesmo Deborah gostava de Polly. Então, já era um primeiro o. O maior problema, nessa história, seria ele mesmo, com sua sensibilidade à flor da pele e Polly, que já se sentia parte da família, apesar de ser tratada com indiferença.

Da janela do quarto, após a saída de Robert, Deborah observava movimentos bizarros lá fora sem saber do que se tratava, e viu quando a esquisita pessoa, ao esconder-se por entre um arbusto de uma calçada, em movimentos incomuns, 82

Polly Lee

modificou-se de forma que ela nada entendeu do que via. Então sumiu sem que a menina pudesse notar para onde teria ido aquele ser de metamorfose estranha — sumiu como num e de mágica. E, de repente, o mesmo e grande morcego de

asas manchadas sobrevoou sua janela desordenadamente, quase que batendo no lustre pregado na parede. Ela se assustou, franzindo os olhos e esfregando-os com as mãos. O animal, dando algumas voltas orçando o quarto, seguiu estabanado pela escura noite em neve na direção da floresta que beirava o bairro.

Deborah fechou a janela e correu para a cama a falar com seu gato, que dormia no tapete, em voz baixa, enquanto Polly estava adormecida e quieta em sua velha cama, que disse:

— Você viu, Meme, aquele morcego e o estranho homem? Sumiram do nada. Meu Deus, acho que estou sonhando ou ficando louca. — E silenciou, deitandose.

No dia seguinte, uma chuva tempestuosa de neve tomou a cidade, deixando as ruas e calçadas com uma camada de considerada espessura do pó gélido. Deborah despertou com o barulho do carro do pai saindo do estacionamento, como sempre: atropelando tudo que via pela frente. Ela deu um pulo da cama e foi até a janela. O quarto estava friorento. Olhou para baixo e viu quando seu pai lhe acenou da janela do carro por entre os flocos de neve. Ela retribuiu e voltou para a cama. Seu pensamento ainda retornava ao estranho e aquele imenso morcego que insistia em rodear a mansão. Polly estava com Margaret na cozinha tomando seu desjejum, como de costume, cereais com leite e bacon frito com fatias de pão.

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e o Morcego da Pensilvânia

— Não vai comer tudo, Polly? — disse a mulher, impaciente. “Queria que algo acontecesse, e essa menina fosse...”, sussurrava, trincando os dentes.

— Mamãe! — gritou Deborah com seu gato de estimação nos braços, agora gordo e robusto, como ela própria, saindo do quarto.

— Bom dia, filha! — fez Margaret. — Seu café está na mesa. Só não vou colocar na sua boca, se é que você me entende. E trate de soltar logo esse gato no chão, não quero que coma com ele no colo, porque só falta acontecer isso nessa casa!

A moça, então, deixou que Meme se soltasse de seus braços largos, sentou-se à mesa colocando uma das pernas no estofado bege da cadeira e começou a comer feito uma porca lambuzando-se toda com aquele pedaço de bacon de tamanho avantajado.

Como eu dissera, Polly já era uma garotinha de dez anos, e continuava causando inveja na irmã devido ao físico raquítico e sua beleza facial. E como vocês sabem: inveja é um sentimento muito ruim para os “neurotipos” e para qualquer ser que tenha uma alma vivente. Quanto à escola, elas iam juntas, mas ficavam em salas diferentes. Na classe, Polly não conseguia copiar nada do quadro-negro porque a claridade das janelas ofuscava seus olhos, deixando os alunos assustados. Eles a estranhavam por ter aqueles olhos em tom escarlate, como se vivessem irritados, mas sua simpatia a todos.

— Polly — observou a professora Mirlly quando recebera todas as turmas do primeiro ano, inclusive a que a menina frequentava —, seus pais precisam levar você ao oftalmologista antes que piore dessa visão. Acho que suas lentes já ultraaram. Seus olhos vivem irritados o tempo todo.

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E fez um bilhete para que ela levasse até seus pais. Nele falava sobre a dificuldade de a menina copiar as tarefas do quadro e de ler, devido a essa eterna irritação vermelha, que a professora imaginava ser uma doença ou alergia, mas que não ava de algo natural para Polly, sendo o tom normal. Ela não sofria dos olhos. E o bilhete foi colocado no bolso do uniforme da garota.

Ao chegar em casa, logo o entregou aos pais. O papel de caderno foi aberto rapidamente em tom de surpresa e medo de que fosse mais uma reclamação ao Sr. Donald, deixando Deborah com o rosto aberto e torcendo para que Polly tivesse um castigo muito mais severo do que os dela, por imaginar que seria, finalmente, um bilhete de reclamação da professora. Mas constatou que fora uma vã torcida quando a folha foi lida em tom alto e com ar de curiosidade por Deborah; esta também sonhava, como sua mãe, que Polly fosse castigada novamente.

— Pensei que fosse outra coisa — sussurrou Margaret, após a leitura da filha.

— O que disse, querida? — perguntou Donald, olhando enviesado para ela.

— Essa professora insiste, em que levemos Polly ao médico novamente. Ela fala sobre seus olhos, sempre irritados.

Eu também acho isso muito estranho. Não é uma coisa normal de uma pessoa. Mas o oftalmologista teima em dizer que a menina nada tem. E você vive me dizendo isso.

Donald também leu os parágrafos calmamente e lembrou-se do visitante, disfarçando e dizendo:

— Calma, querida, que levarei no próximo mês! Este mês o ordenado não vai dar, temos muitas contas a pagar.

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e o Morcego da Pensilvânia

— Tudo bem. Então trate de ir até a escola conversar com a Sra. Mirlly sobre a

carta, e lhe explicar o porquê de não levá-la ao médico imediatamente, porque, pelo que eu a conheço, ela não vai aceitar sua resposta fácil.

— Irei sim. E falarei com a professora.

E um choro alto se ouviu vindo lá do quarto das meninas.

— Não quero mais ela no meu quarto, papai! —

reclamava Deborah, irritada, vindo de lá.

— O que houve, filha? — retrucou Donald, pacientemente.

— Está vendo, querido — adiantou-se Margaret, irritadíssima —, Polly não deixa nossa filha em paz! É o tempo todo mexendo com Deborah. Ah! Se eu pudesse eu... Aff!

Donald, percebendo o desprezo de sua esposa para com Polly naquelas palavras, logo se viu esperançoso, como se tivesse conseguido algo maravilhoso em tom de riso silencioso.

— O que você está achando engraçado, Donald? —

perguntou Margaret seriamente, percebendo seu rosto mudo e de satisfação. — Acho que nossa Deborah já está precisando ficar só em seu quarto. Ela já é uma moça, e precisa de privacidade.

— Não estou pensando nada, querida. Eu sei que nossa filha precisa de privacidade, e vai ter logo, assim que... que...

— O que disse, seu sabichão?! Eu já estou cheia dessa menina, Donald! Falei para você que não daria certo, mas você é um homem muito teimoso. Mas... fale logo! Desembuche! “Um dia me livro dela” — sussurrou no final de suas palavras.

Donald ajeitou o bigode, que insistia em deixar enrolado para cima, deslizou seus dedos por cima da barbicha e seus pensamentos tiveram a maior das ideias e disse entusiasmado, dirigindo-se à esposa:

— Eu tenho uma solução para isso.

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— O quê?! Do que você está falando, homem?! Qual é o próximo desgosto que irá me causar agora?! — falou cruzando os braços e amassando o cenho.

— Venha cá! — disse calmamente, puxando-a para a sala de livros.

Sua biblioteca era bem equipada de títulos, apesar de eles terem sido maltratados por Meme, e outros documentos, além de alguns móveis antigos e quadros belíssimos na parede, inclusive uma moldura enorme que mostrava ele, sua esposa Margaret e sua filha Deborah com um sorriso feio contando seus seis anos de idade.

No quarto, Polly havia tido um breve sonho com algum ser um tanto quanto estranho.

— O que está havendo, Donald?! — insistia Margaret, impaciente.

— Lembra-se daquele visitante de ontem à noite, o Robert?

Ela assentiu. E o olhou com cara de curiosidade, ao que perguntou com os olhos cerrados:

— O que tem o visitante?

— Escute o que tenho a lhe dizer...

— Por favor, fale logo! Não estou lhe entendendo. O que viemos fazer aqui? Não me deixe tão curiosa assim!

— Veja isso, Margaret!

Ele, então, abriu uma daquelas gavetas com chave, de sua cristaleira marrom, e retirou a tal carta que não quisera e nem tivera coragem de ler nem de mostrar à esposa, e o contrato em forma de canudo amarrado com laço vermelho.

— O que é isso? Que carta é essa? E esse canudo?

— Leia.

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— Ler?! — disse, encolhendo-se.

— Claro.

— Você esqueceu de que eu não sei ler? Acho que deve procurar o médico de memória, Donald, antes que piore.

— Aah! Desculpe-me, querida! Havia me esquecido desse detalhe. Dê-me aqui, então, que eu leio para você.

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CAPÍTULO CINCO

A LEITURA DA CARTA

E DO CONTRATO

eborah, na sala, via tevê. Já Polly, no quarto, Dbrinc

ava com uma velha boneca de pano, a única que ganhara desde que fora adotada pelos Lee — isso porque foi uma das sobras da confecção de Margaret. E sem que Polly percebesse, saiu por debaixo da cama um ser curioso aos seus puxados olhos. O mesmo que se apresentou a ela naquele sonho que a fez gritar desesperada. Ela assustou-se de súbito, mas o pequeno animal peludo que, andava apoiado em suas asas quase transparentes e fazendo-as de pés, mentalmente, não a deixou gritar, neutralizando-a, falou em tom agudo e levantando suas orelhas, que pareciam duas antenas desproporcionais ao seu corpo, em fino couro que dava para se ver a claridade da janela:

— Srta. Polly!

Polly estava perplexa diante da cena inusitada, que a fez lembrar-se de seu sonho. E viu que, daquele minúsculo rosto estranho, saltou um breve sorriso, também esquisito.

— O que você está fazendo aqui no quarto? — perguntou, retraída em seu corpo e com os olhos arregalados.

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e o Morcego da Pensilvânia

— Chamo-me Killer! — disse fazendo pose de um artista minúsculo. — É um imenso prazer, senhorita! Eu aguardava ansioso por esse momento.

— Você falou? — perguntou, assustada e ainda pétrea.

Ele assentiu piscando os olhos antes de responder, deixando-se ver sua língua fina e comprida saltar para fora velozmente algumas vezes.

— Mas você é só um morcego, e pelo que sei, morcegos não falam. — disse em tom de surpresa e assustada esfregando os olhos.

— Sim, sou. E claro que falei, senhorita! — retrucou, ainda em pose e ofegante. — Mas o que tem de errado nisso? Na minha Terra, todos falam.

Um silêncio ocorreu. Ele então continuou em tom teatral:

— Em Sighişoara, todos falamos.

— Sighişoara? — perguntou ela, agora em plena curiosidade dupla. — Que lugar é esse que todos os animais falam? E como sabe meu nome, Sr. morcego, ou... Sr. Ki... Ki...

— Killer. Chamo-me Killer. — disse, completando a frase da menina. — É o lugar de onde vim. Um lugar que não mais chove e...

E um breve silêncio entristeceu seus pequenos e escuros olhos arredondados por sobre um focinho acinzentado e curto.

— O que foi, Sr. Killer? Por que está triste?

Ele, então, aproximando-se em seus os lentos, usando as asas para se apoiar no chão, e olhando seriamente para ela, disse quase em sussurros em tom aveludados:

— Foram os Moldavos, que jogaram esse encanto em Sighişoara, e lá já sabem sobre sua existência, todos a conhecem, e a notícia de que a princesa existe e que irá voltar já correu toda a Voivoda e todo o país.

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Polly Lee

— Por que está falando tão baixo?

E olhando para o lado rapidamente, o pequeno animal sussurrou:

— É que podem me ouvir.

— Quem? Quem pode lhe ouvir? Meus pais?

— Não, eles — disse olhando para os lados minunciosamente, inclusive para a janela aberta.

— Aqui só moramos eu, minha irmã Deborah e meus pais.

Não tem mais ninguém.

— Disso eu sei, mas os Moldavos estão por aí... — repetia ele observando o ambiente como se estivesse sendo vigiado.

— Por onde? E quem são os Moldavos, senhor?

— Por toda parte da cidade, e sabem que eu fui trazido até você. Eles são os seres mais detestáveis de Sighişoara.

— Minha irmã odeia morcegos e não pode vê-lo aqui no quarto dela. O amigo deve ir embora, se ela voltar.

— Não, não posso.

— Não pode?

— Não. Eu tenho que proteger você. Foi para isso que eu vim. Fui ordenado por meu mestre a escoltá-la. Quer dizer, não agora, mas um dia eu serei seu amigo mais próximo.

— Seu mestre? — disse ela em tom de curiosidade.

Ele assentiu em silêncio.

— Mas quem é seu mestre?

— Desculpe-me, senhorita, mas nada posso lhe dizer por enquanto — falou sussurrando e desviando os olhos novamente para os cantos do vão.

— Mas como irei escondê-lo aqui? — perguntou ela, olhando todo o ambiente.

91

e o Morcego da Pensilvânia

— Não sei, Polly, mas vou mesmo ficar em sua casa, até receber nova ordem. Por favor! Não me mande ir embora, eu lhe imploro. Posso ficar em cima de sua cabeça, ou... quem sabe...

por baixo de sua roupa... da sua cama e... e fico onde a senhorita disser, não

tenho luxo.

— Não. Mas poderá ficar dentro do guarda-roupa, o que acha?

— Não sei se é uma boa ideia, mas... pode ser. Quebra o galho. O que é um guarda-roupa? É alguma espécie de ninho ou...

— Não, não, amigo. É aquele ali! — falou cortando suas palavras e apontando o armário enorme de madeira, onde quatro portas e algumas gavetas de cor quase marrom jaziam fechadas.

— Esse será o nosso segredo.

Ele assentiu. Ela colocou o dedo por cima dos lábios finos e sussurrou vergandose para ele:

— Mas ainda não me disse quem o mandou aqui. Há! Já sei... o amigo é o mesmo morcego do meu sonho, é isso? Até que é bem parecido.

— Desculpe-me, senhorita, mas não posso falar nada além do necessário! Sim, fui eu mesmo quem invadiu o seu sonho.

Aquele era eu.

— Por que está fazendo isso? Aqui não o de uma intrusa, uma bastarda, alguém sem nenhum valor. É isso que sou e o que pensam minha mãe e minha irmã. Apenas meu pai Donald é que, com certeza, gosta mesmo de mim.

— Disso eu sei — observou ele. — Mas lá, há um reino inteiro esperando a senhorita salvá-lo, e será reverenciada como a uma legítima princesa.

— Reino? Princesa? — perguntou indiferente em tom de ironia. — O senhor, por um acaso, está de brincadeira comigo?

92

Polly Lee

Ele a olhou indiferente e levantou voo até ela, pousando em seu braço fino e de pele empalidecida, que a fez encolher-se devido às patinhas e unhas que a tocavam e arranhavam levemente. Deixou sua fina língua sair algumas vezes rapidamente e disse, entusiasmado:

— Ficarei com você até o Sr. Robert voltar para busca-la.

— O que disse?

— Foi o que ouviu. E vou agora para meu guarda-roupa, preciso esconder-me do dia.

— Então — observou ela —, estamos combinados. Só poderemos nos ver quando eu estiver sozinha aqui no quarto.

Não se preocupe, eu lhe chamo. “Meu Deus, morcego falante”

— sussurrou achando tudo aquilo ser um sonho.

Ele assentiu e logo se dirigiu para o guarda-roupa num voo desgovernado, pousando de cabeça para baixo na quina do teto do armário. Polly abriu a porta, onde suas poucas roupas estavam, e o minúsculo morcego se jogou nelas pendurando-se num dos cabides que estava sem roupas. Então, olhou para ela e disse, deixando sua língua o atropelar:

— Até mais, Princesa Polly. Bom dia!

— Bom sono, amigo. “Acho mesmo que devo estar sonhando” — balbuciou fechando o armário. A porta então foi lacrada. Para ela, parecia mesmo um sonho. Voltou para a sala, ainda encantada com seu mais novo amigo de estimação, apesar de sua esquisitice. Era agora seu segredo. Era estranho, ela sabia, mas nunca havia tido, em casa, um amigo assim tão próximo, e isso a deixou encantada esfregando os olhos, ainda repleto de dúvidas.

E na sala dos livros, com a porta bem trancada, a carta foi lida pelo Sr. Donald, gradativamente, vírgula por vírgula, diante 93

e o Morcego da Pensilvânia de sua esposa, que dizia mais ou menos assim, em letras de sangue:

Sr. e Sra. Lee,

em primeiro lugar quero desculpar-me pela forma como estou agindo com os senhores, mas é que não há outro jeito, e tenho que fazer dessa forma. Peço, novamente, que me perdoem, e fiquem sabendo que nossa afinidade vem de longa data e que, de todos que eu pensei em deixar a pequena Polly, os amigos foram os mais indicados por terem feito parte, há tempos remotos, de uma convivência com minha pessoa por estas bandas de cá. Por isso, não estranhem, quando em sua porta um homem esquisito e feio bater, carregando uma cesta contendo uma criança, a mais linda que eu já vi na minha vida, modéstia à parte. Há também uma carta rubra e um contrato em canudo composto de papiro envelhecido, lacrado com uma fita vermelha em laço. Ela, a criança, será entregue aos senhores para ser educada e alimentada por um longo período, mas saibam que logo mandarei meu mensageiro buscá-la, no tempo certo e predito aqui neste escrito, realizando a profecia de há muito. Então, por

favor, antes de resolverem ficar com a pequena Polly, leiam a carta com bastante atenção e verão que se trata de um acordo que farei com os amigos, seguindo as leis e os direitos que vos pertencem aqui nas terras de Sighişoara.

Na verdade, lhes pagarei até mais do que merecem receber pela guarda da minha filha. Mas, se caso resolverem ficar com ela para sempre, após a adoção, nada farei para impedir a escolha, deixarei aos seus cuidados, mas alerto ao casal Lee que ela não é uma “neurotipo” como os demais, e terão, num futuro próximo, alguns problemas com a sociedade e com a própria 94

Polly Lee

criança e sua família, por ela sentir-se diferente, e que, ao crescer desordenadamente, coisas estranhas irão acontecer a sua volta, deixando-a confusa e perdida. Observo aqui que, o melhor nesse momento é mesmo que me devolvam quando o dia marcado chegar. Deixarei registrado a data, indicando quando Polly estará na idade certa para iniciar na C.I. (Competição dos Iniciados), e terá que vir rapidamente para ser reconhecida como uma Iniciada, ela é a mais importante de todos os Iniciados da C.I. Lembrando que, Robert Galeno, o mensageiro que visitará a vossa mansão para deixar a pequena com o casal, assim que a criança completar dez anos de suas primaveras, irá buscá-la no mesmo endereço, como já falei. Os amigos o reconhecerão por sua larga e assanhada barba e cabelos de um louco, carregará um chapéu estranho feito de asas de Morcego e um cajado de madeira de ponta triangular.

Caso o casal Lee aceite o trato, assim que meu mensageiro pegar a criança de volta, deposito-lhe a grande quantia em sua conta bancária, e a família ficará rica pelo resto da vida.

Quanto aos segredos da minha pequena Polly, nada posso revelar. O sinal para que possam saber da busca da pequena pelo meu mensageiro será a morte do animal mais odiado pelos senhores.

Ao término desta missiva, desejo-lhes felicidades e que cuidem bem de minha Princesa Polly. Fico grato ao casal Lee, desejando-lhe bons ventos!

Assinado: Conde V.

Após ler a carta, até ele mesmo ficou surpreso com o que lia, por nunca ter tido a coragem de fazê-lo. A Sra. Lee engolia 95

e o Morcego da Pensilvânia em seco enquanto ouvia aquelas palavras escritas com pingos de sangue, de forma que se sentou na cadeira acolchoada que se mantinha na sala, surpresa e respirando forte. Quando chegou na parte da gratificação, que não era pouca coisa, ela deixou que seus olhos brilhassem como duas estrelas pequenas e lembrou-se da conversa na sala com o estranho homem. Margaret era interesseira e, se antes da leitura não havia sentimento por Polly, imaginem agora, que ela tinha certeza da quantia em dinheiro que iriam receber e que a menina tinha pais verdadeiros e ricos.

E Donald percebeu definitivamente que na sua esposa não havia mesmo algum sentimento pela filha adotiva. Ele, então, que alimentou amor por ela, entristeceu-se ao ler e ver a felicidade de sua esposa. Donald havia se apegado à menina — por mais que ele quisesse fingir, sentiu a tristeza invadir sua alma paterna.

Mas nele também havia interesse pelo vil metal, devido ao seu sacrifício na empresa para o ganho, tendo de ar um patrão ruim e mão-de-vaca (ganancioso), e endureceu seu coração naquela hora, alimentando a alegria de Margaret — parecia que todo aquele dinheiro já estava em suas mãos sendo contado junto dela. Imaginava-os indo aos gastos exagerados pelas lojas e lugares nunca alcançados em suas vidas, comprando carro novo e uma boa mansão no litoral americano. E sua filha Deborah, agora uma moça feita, teria o que quisesse.

— O que acha, querida? — perguntou ele, saindo daquele fugaz transe e ajeitando novamente seu bigode, querendo uma resposta.

A carta dizia também, em poucas palavras, que, se caso eles tivessem se afeiçoado a Polly, o Sr. V não iria interferir na decisão deles, preferia perdê-la do que ter de agir ilegalmente com as leis de Sighişoara. Então, ele daria de mão beijada a criança ao casal. O Conde V era justo. Mas em compensação, 96

Polly Lee

nenhum valor, nem mesmo uma moeda no valor americano, seria entregue aos Lee. Não haveria proteção alguma à menina durante seus dias de vida, mesmo que isso lhe custasse muito caro em relação aos seus sentimentos paternos. Ficaria elas por elas, porque, para o Conde, sua filha era realmente uma verdadeira pérola valiosa — a única herdeira do Castelo e de toda região de Sighişoara. Nela, havia um objetivo maior ao voltar à sua Terra de origem, mas esse segredo não poderia ser revelado aos Lee nem a nenhum “neurotipo”.

— Não quero assunto com esse tipo de gente, Donald! —

observou Margaret com ar de indignação e medo. — Precisamos logo desfazernos de Polly!

— Então devolveremos a menina ao pai — observou Donald, deixando sua esposa perplexa com a resposta dele. —

Eu já a tenho como uma filha, mas...

— Pare logo com isso, homem! — retrucou Margaret, mudando seu semblante e pensando na quantia em dinheiro. —

Ela não é nossa filha e...

Fez-se um silêncio. A mulher desviou os olhos para a janela e com o dedo por entre os finos lábios. O silêncio ali, naquela sala, foi total. Mas logo ela continuou dizendo: — E

teremos uma boa gratificação por tê-la criado. Pelo menos é o que diz a carta, o que é bem justo pelo que sofremos para criá-la, não acha, querido? Pense na vida que levaremos e... e sempre almejamos uma boa vida de luxo, lembra disso, meu bem?

Pense em nossa Deborah, que já está uma moça feita e precisa viver sua vida longe dessa petiz, que vive perturbando-a seus dias. Longe também dessa gente intrometida dessa rua. “Será que isso tem alguma garantia?” — sussurrou por fim, agora com 97

e o Morcego da Pensilvânia a mão direita no queixo, sem nem considerar os sentimentos de Polly ou do esposo.

— E o que diremos a Polly? — observou Donald, tirando-a da reflexão.

— Não sei, mas...

E silenciou novamente, reflexiva, levando a mão ao queixo e matutando alguma ideia. Levantou-se da cadeira e pôs-se a andar pela sala, tentando encontrar uma boa resposta.

— O que houve, querida?

— Aliás — disse ela em curta reflexão —, Polly é só uma garotinha, temos que bolar algo. Será que não conseguiremos?

E ficaram os dois ruminando. Até que a mulher gritou, estampando no rosto certa satisfação:

— Que tal um sequestro?

— O quê?! — retrucou Donald espantado. — Você enlouqueceu de uma vez, Margaret?

— Seria uma forma prática de...

— E seríamos presos imediatamente — observou, lhe atropelando a ideia — ao descobrirem nossa trama. Você sabe como é a lei aqui. É isso que você quer? Nós dois trancafiados numa cela vendo o sol nascer quadrado pelo resto da vida? Nem a quantia do Conde V daria para nos soltar.

E por mais alguns minutos eles novamente cogitaram... A neve caía fina e o céu era como um cobertor escuro. As árvores se enfeitavam de branco em suas poucas folhagens e os ventos sopravam friorentos. Corujas piavam na escura noite, tentando alimentar-se de algum camundongo solto nas ruas.

Enquanto a mulher pensava, Donald caminhou até a pequena cristaleira avermelhada que ficava num canto da parede e, abrindo as duas portas de vidro, sacudiu o envelope dentro dela e fechou-a sem ar a chave. A carta ficou por cima dos 98

Polly Lee

copos e taças que o casal guardava desde quando se casara, e segurou o rolo de papel envelhecido desenrolando-o devagar.

— Já sei, Donald — disse Margaret, com os olhos em brilho e um leve sorriso vaidoso quebrando o silêncio —, eu sou uma mulher brilhante! Sou genial! Agradeça-me, querido!

E deixou sair uma estranha gargalhada ao final das palavras.

— Do que se trata agora, Margaret? — perguntou estampando indiferença e estranhando aquele riso malévolo que ele nunca havia visto nela. — Não venha com mais uma dessas suas...

— Levaremos Polly a um eio nas mediações da estação ferroviária de Lancaster — explicou lhe atropelando as palavras —, onde o Sr. Robert deverá

estar para pegar o trem.

Então, de alguma forma, provocaremos uma distração e a abandonaremos sem nenhum dano mais sério. Na verdade, desde que moramos aqui que nunca fizemos uma viagem de trem com as meninas. Essa seria a hora certa para o evento. O

que achou, querido, da minha nova e brilhante ideia?

— Margaret — disse, entusiasmado —, não que eu queira lhe dar algum crédito a isso, mas que ideia brilhante essa sua.

Mas tem um porém...

E silenciou.

— O que foi agora, Donald? — perguntou levando as mãos à cintura.

— Como faremos para abandoná-la assim, do nada, na estação? — insistiu, entristecendo-se.

— Ora, Donald, vi que adorou a ideia! Ou está arrependido de devolver a menina aos pais verdadeiros? Se for, peço que pare logo com isso, ou eu...

99

e o Morcego da Pensilvânia Calou-se, pensativa. Ele se manteve quieto e sério. Ela, então, continuou um tanto eufórica: — Deixe comigo, eu terei uma ideia de abandono quando chegarmos lá.

Ele nada falou. O silêncio o tomou de assalto. Donald estava diante de uma situação, para ele, lastimável. Como eu havia falado, ele já se sentia um pai para aquela criança inocente e pura — não ficaria bem se despojar dela assim. Não dessa forma tão trágica, como deixá-la perdida em meio a uma plataforma como aquela e saber que Polly estaria chorando nas mãos de um desconhecido. Visualizava a menina perdida chamando por ele, chorando em demasia — seria mesmo uma lástima. Sentiria-se culpado pelo resto de sua vida se desse algo de errado. E mesmo se não desse errado, também ficaria desgostoso.

— Querido! Donald! O que houve? — perguntou Margaret, tocando-lhe o ombro. — Não venha arrepender-se agora, já lhe disse! Esqueceu o dote que vamos receber?

Ficaremos ricos pelo resto de nossas vidas. Não precisaremos mais trabalhar. Você não precisará mais ir ao escritório daquele homem imprestável, e eu jogarei todas aquelas roupinhas de bonecas no lixo. Nunca mais quero costurar uma

peça sequer para alguém, muito menos para aquela loja velha e ridícula.

Com sua euforia e indiferença, ela andava de um lado para o outro tagarelando.

— Eu sei, mas... — fez, cabisbaixo.

— Pronto, está decidido — disse ela cortando suas palavras novamente, para que ele não mais se lastimasse —, vamos fazer Polly perder-se da gente e acabaremos logo com isso! Deixe de lástimas. São milhões, querido. Milhões em nossas mãos! Viajaremos pelo mundo com nossa filha, o que acha? Não era o que sempre imaginávamos para a nossa vida?

100

Polly Lee

E aproximou-se da larga janela de vidro embaçado e pôs-se a olhar, reflexiva, a neve cair. Donald com ar interesseiro, pensou por mais alguns minutos e disse, conformado:

— Tudo bem. Estamos decididos. Mandarei uma carta para Robert marcando o eio e...

Interrompeu-se, e seu semblante se entristeceu, como um pai que sofria a suposta perda de uma filha querida.

— Donald — falou de forma enérgica, voltando-se para ele —, pare logo com isso e vamos ao que temos de fazer! Você bem sabe que Polly não é nossa filha, e ela tem seus pais verdadeiros que a querem de volta. Não estamos fazendo nada de errado, apenas um curto momento de sofrimento da menina ao se perder numa estação. O resto... está nos conformes. Não há mal nenhum nisso. Futuramente, até ela irá nos agradecer. Veja, Donald: Polly tem pais riquíssimos e terá uma vida de princesa, enquanto nós teremos apenas uma quantia insignificante diante de tanta realeza que possuirá, esqueceu? Ela é herdeira de um castelo, ao menos é o que diz a carta e, pelo menos, não ficaremos na miséria aqui. E quem sabe a visitaremos um dia.

Pegue logo esse contrato e assinemos de uma vez por todas. Vá logo!

Ele assentiu. O contrato, que já estava em suas mãos, foi posto em cima da mesa e, com uma caneta esferográfica de cor preta, o casal Lee assinou as duas linhas que foram separadas para tal. Ele assinou primeiro, e depois ela. E em silêncio, conformando-se com a possibilidade de um reencontro com a filha futuramente, Donald enrolou o canudo, ando-lhe a fita e guardando-o na cristaleira. E assim, saíram da biblioteca, desconfiados.

101

e o Morcego da Pensilvânia

— Papai! — disse Polly, agarrando-lhe as pernas, parecendo adivinhar algo. Polly tinha essa mania, quando via Donald, segurava-o nas pernas longas e estranhas — o Sr. Lee tinha cambitos realmente esquisitos. Alguns costumavam apelida-lo de Joelho-e-canela, por ele ter as coxas muito finas.

Pareciam ser apenas canelas alongadas até os pés e os joelhos no meio. Às vezes, até parecia que ele iria cair quando andava, de tão bizarro. Donald lacrimou os olhos e acariciou os cabelos finos de Polly, balbuciando palavras tristes e olhando para baixo; suas lágrimas desciam pelo rosto comprido, quase pingando nos cabelos carminados da menina. “Desculpe-me, minha filha, papai não queria fazer isso, mas terá que...” Seus olhos eram só lágrimas silenciosas.

Ainda agarrada às suas pernas, Polly o acariciava vestida no seu pijama de flores e sua boneca de pano nas mãos.

— Papai, o senhor está chorando? — perguntou inocentemente

ao

perceber

suas

lágrimas,

olhando

repentinamente para cima.

— Não, querida — disse Donald, ando a mão nos olhos —, foi apenas um cisco.

E no dia seguinte, a carta foi enviada a Robert; o dia de Donald foi um dos piores que já viveu. No quarto, Margaret relatava para a filha Deborah sobre Polly e o que iriam fazer.

Deborah se encheu de alegria ao saber que não mais teria a pestinha em sua casa e no seu caminho. Pensou no quarto só para ela — no guarda-roupa, onde suas peças ocupariam todo exterior do armário e gavetas. E sua cama não mais dividiria aquele quarto enorme. Não via a hora de voltar ao que era, quando ela vivia sozinha em seu mundo e em toda casa, quando criança. Deborah detestava a irmã intrusa. Era assim que ela 102

Polly Lee

continuava a tratá-la. E as duas caras entre mãe e filha desfrutavam de uma felicidade jamais vista naquela mansão. Até um beijo nunca visto da Sra. Margaret na filha foi palco de um sentimento que escondia-se há anos ou, quem sabe, por trás das cifras vindas do Conde V. E Deborah estranhou ao sentir os lábios finos de sua mãe tocar sua cara larga.

— Que bom, mamãe — observou, estampando alegria no rosto —, até que enfim vamos nos livrar dessa garotinha inável. Essa intrusa. Nunca gostei dela, apesar de viver no nosso meio familiar.

— Apenas de criação, querida, não esqueça disso! —

acrescentou Margaret, indiferente. — Apenas de criação!

Duas semanas se aram após aquela carta enviada a Robert, e o novo amiguinho de Polly ter aparecido saindo do seu sono prolongado e de debaixo da cama.

Quando o relógio da sala marcava nove e meia da manhã do dia 29 de dezembro de 1970, a resposta chegou em envelope rubro — um lado preto e o outro vermelho, que parecia até uma pequena bandeira de um país qualquer, ou quem

sabe, de algum time de futebol. Nesse momento, Donald voltava de um eio pelas ruas de Lancaster, quando, enfiando sua imensa mão dentro da caixa de correios de madeira pintada em amarelo-claro, percebeu o envelope e retirou-o de forma rápida, e muito curioso. Estranhou a cor do papel, mas logo se lembrou de quem vinha aquela correspondência, não sendo nada anormal as cores fortes, ao menos quando se tratava do Sr. Robert.

Nota do Jornal do dia na capa em letras grandes, jogado em cima do sofá de estampa quadriculada: “No início desse ano de 1970, no mês de maio, houve rumores sobre um suposto 103

e o Morcego da Pensilvânia vampiro que assombrava a população europeia nos arredores de Londres, no cemitério de Highgate, mas, durante esses dias de assombro, alguns caçadores de vampiros — amadores —

afluíram em busca do animal, rodeando todo o local indicado, e ficou denominado: O Vampiro de Highgate, que mais tarde seria exorcizado e destruído com todo o ninho de vampiros daquela área”. Donald, então, se pôs na sua biblioteca, pegando também o jornal para ler a estranha carta e a matéria curiosa daquela folha do Diário assinado mensalmente. Margaret e suas filhas estavam no quintal colhendo alguns legumes já queimados da neve, cultivados pela família. E novamente aquele imenso morcego de asas manchadas fora visto nos arredores da mansão pelos olhos de Polly e pelos frios raios do sol, sendo uma raridade ver-se uma espécie desse mamífero no clarão do dia.

Algo estava realmente errado naquela rua, naquele bairro ou na cidade inteira. Ou era simplesmente por causa de Polly?

— Olha lá mamãe — gritou Polly —, um morcego de asas manchadas!

— Morcego? — perguntou Margaret, assustada, tentando enxergar com seus grandes olhos agateados, franzindo-os. —

Como pode ser isso? Morcegos não voam pela manhã. Alguma coisa está errada por aqui. Isso é ridículo.

E quando eles abriram bem os olhos, lá estava o morcego, em voos loucos e estabanados. “Por Deus, acho que esse dia não será dos melhores”, balbuciou a mulher demonstrando medo.

— Sim, mamãe — observou Deborah, apontando-o com o dedo balofo —, é mesmo um morcego de asas velhas e grandes!

O que ele faz aqui? Já é dia.

— Não sei, querida — disse a mulher virando-se para a porta. — Vamos entrar! Isso está muito estranho. Vamos logo!

Venham! Venham!

104

Polly Lee

— Será parente do Sr. Killer? — falou Polly quase em sussurros.

— O que disse, menina tonta? — retrucou Margaret irritando-se e estranhando aquelas palavras sem nexo. — Pare de falar asneiras, criatura, e vamos logo entrando!

Mas logo a mulher viu que saía da boca de uma menina de dez anos e isso era coisa de criança sonhadora e cheia de imaginação. Puxou as duas para dentro de casa a os largos.

Agora, sabendo do contrato do Conde V não podia deixar que nada ocorresse de ruim à Polly. O animal escuro e grande ainda sobrevoava toda a casa dos Lee em voos rasos, pousando num dos galhos finos da árvore frondosa que ficava próxima à mansão. Nesse momento, o gato de Deborah pulou da janela num dos galhos da mesma árvore que, encostado a parede, quase tocava a janela. E olhando o morcego como se quisesse falar algo, Meme saltou por cima do pau fino, dependurando-se com suas garras afiadas. O morcego se aproximou do felino e uma conversa foi travada entre os dois, olhando-se ao inverso, devido ao mamífero estar pendurado de cabeça para baixo. Acho que era mesmo um papo de animais, porque a língua da exótica ave saía e entrava velozmente, e seus olhos piscavam acelerados, enquanto o gato rosnava e olhava diretamente para

ele. Dentro do quarto, próxima à janela, Deborah percebeu o encontro do gato com o orelhudo esquisito e observou aquele diálogo estranho entre eles, assustando-se. Para ela, era coisa do outro mundo ver dois animais numa conversa informal. Foi o que imaginou ao ver a cena inusitada.

— Olha lá, mamãe! — gritou apontando para a árvore, percebendo a aproximação de Margaret no quarto. — Eles estão conversando.

105

e o Morcego da Pensilvânia

— O que você está dizendo, menina? — perguntou a mulher alterada, achando ridículas as palavras da filha. — Já viu animais conversarem, por acaso, Deborah? Saia logo dessa janela! Ele pode, de repente, atacar você. Morcegos são todos perigosos. “Onde já se viu isso” — sussurrou por último, franzindo o cenho.

— Mas eles tão mesmo conversando, mamãe, veja isso!

— insistiu ela, apontando para a árvore.

E lá estavam eles olhando-se — o gato Meme já gordo e quase caindo, de olhos

fixo no voador, e o morcego de cabeça para baixo, com as patas agarradas ao mesmo galho, em conversa silenciosa. Sua língua não parava de mostrar-se, como se fosse lamber a cara do felino. Então Deborah, balançando suas longas e pesadas mãos, tentava espantar o gato que continuava a olhar para a ave dependurada, como se quisesse balançar-se no galho no intuito de alcançá-lo. O medo dela era que seu gato fosse atacado e mordido pelo morcego ou, quem sabe, se desequilibrasse do pau e caísse. Meme não percebia que se desse mais alguns os, cairia de lá por falta de apoio, devido ao fato de aquele galho ser bastante fraco para aguentar seu peso excessivo de um animal obeso e largo. O pau fino realmente não aguentaria por mais tempo. Deborah estava assustada e imaginando a queda. Seus olhos, atentos. Seu coração pulsando mais acelerado. Nada podia fazer, a não ser gritar para que o felino saísse dali. Mas não era o que ocorria.

Nem mesmo o morcego se espantou com seus gritos e manteve-se ali, intacto, a duelar com o animal doméstico.

— Mamãe — gritou Deborah novamente voltando-se para a porta do quarto —, eles estão mesmo conversando, e Meme vai cair! Ele precisa sair dali!

106

Polly Lee

A mulher realmente percebeu que havia ali um diálogo de animais não entendido pelos “neurotipos”, e arregalou os olhos o quanto pôde, assustada com a cena. Meme levantava a pata na direção do morcego, tentando alcançá-lo. E de repente, num descuido inocente, ele caiu lá de cima, chocando-se no topo de

uma enorme pedra larga e rude que havia no chão. Um berro fino soou e uma cabeça espalhada se via na grama rala com sangue grosso e escuro, que escorria dele. Sua língua para fora cobrindo as presas e seus olhos esbugalhados quase no chão.

Devido à altura do galho, não deu tempo para que o felino se virasse e caísse de pé, que era o normal de um gato fazer. O

grande morcego, vendo a cena dramática e o pau deslocando-se, saltou de onde estava e voou desgovernado, sumindo misturado aos ventos de neve. Deborah gritou um choro lastimável olhando para baixo. Ela chorava desesperadamente pela morte do animalzinho — seu único animal de estimação.

— Meme caiu, mamãe! Meme caiu!

— Venha, querida. Saia logo daí. — dizia Margaret, tentando puxá-la para não mais presenciar a cena horrorosa. —

Que lástima!

— Meme! Meme morreu! — continuava Deborah chorando.

Era mesmo uma cena terrível de se ver. A moça chorava com altos soluços, e o gato estraçalhado no chão não ava de um simples cadáver agora.

— O que houve aqui, querida? — perguntou Donald surpreso, aproximando-se da janela, quando ouviu o choro e os gritos de Deborah. — Por que Deborah tanto chora? “Meu Deus, o que é aquilo?” — sussurrou olhando para baixo e vendo o 107

e o Morcego da Pensilvânia animal amassado, parecendo um tapete ensopado de sangue. —

O que houve com esse gato?

E virou-se para a esposa que saía do quarto com a filha em prantos, dizendo:

— Não está vendo que ele caiu da árvore, Donald?

Vamos, querida, agora não temos mais o que fazer para salvá-lo.

Por favor, Donald, feche logo essa janela!

Após o ocorrido, Deborah chorou pelo resto daquele dia.

Nem a notícia de que iria se ver livre de Polly ou mesmo o piquenique nos finais de semana a consolaram. Ela chegou até a ter um pesadelo com seu falecido animal naquela noite. Gritos no quarto eram ouvidos pelos Lee durante a madrugada do dia 29 de dezembro. Correram até lá e viram a filha com os olhos arregalados deitada na cama — fitava o teto e algumas lágrimas desciam pelo rosto repleto de espinhas em chamas.

— O que foi, minha filha? — perguntou Donald com os olhos ainda cerrados de sono olhando para o relógio. — Minha nossa, são quatro da manhã! O que houve, Deborah?

— Deve ter sido mesmo um pesadelo com o gato asqueroso. — observou Margaret, insensível. — Vamos deitar!

Então, uma garapa foi feita para a filha e tudo voltou ao normal.

No dia seguinte, uma pergunta bem peculiar na mesa no café da manhã foi feita por Donald, que se dirigia à sua esposa:

— Por que não compramos outro animal de estimação para ela, querida?

— O quê? — retrucou Margaret, enfezada. — Você enlouqueceu, Donald? Nada de animais, nessa casa, por favor!

Já basta ter que aguentar duas filhas como essas e você. Não.

108

Polly Lee

Nada disso. Chega de gatos. Só mesmo para sair de sua cabeça, Donald, um absurdo desses.

O homem engolia em seco e levava a xícara aos lábios finos, quase molhando seu imenso bigode no café ao leite. O

jornal, já na sua mão, era lido sem alarde algum.

— Alguma coisa interessante hoje, nesse jornal? —

perguntou ela, despejando do bule o leite no copo das filhas.

— Apenas algumas pessoas curiosas com o noticiário do suposto vampiro que foi morto.

— É... — fez ainda despejando o leite, em tom de deboche. — Isso é coisa de quem não tem mesmo o que escrever e o que fazer na vida. Vampiros à solta...

— As autoridades de Lancaster estão reunindo-se para ir lá investigar. Alguns cientistas — observou Donald com o jornal completamente aberto em suas mãos —, acham que é real.

Nesse ínterim, Deborah foi para a sala com o cheiro do dejejum. E Polly para o quarto; queria ver o amigo secreto e dar um bom-dia para ele, se é que ele existia mesmo.

— Eu, particularmente — disse Margaret —, acho isso muito ridículo. Depois daquela visita do estranho Robert, você vem agindo de forma muito esquisita, não acha? E agora nossa Deborah acredita que um gato dialogava com um morcego. Sei não...

— Essa menina deve estar ficando perturbada, Margaret.

Isso é coisa da poluição mental da sociedade. E Robert, ele não a de um sujo estranho que apenas queria livrar-se da menina para cumprir seu trabalho lá com o tal do Conde. E animais não conversam entre si, deixe de imaginação, Deborah! Você agora deu para ver coisas? — falou virando a cabeça na direção da 109

e o Morcego da Pensilvânia sala. — Se continuar assim, falando desse jeito, vai deixar sua mãe assustada. “Onde já se viu isso, gato que fala com morcegos” — balbuciou levando a xícara aos lábios enquanto olhava para o jornal.

— Não sei não, Donald, mas algo de estranho há naquele velho rabugento e nesses morcegos que rondam nossa casa a toda hora — observou Margaret.

— Querida, não destrate nosso único visitante, que por sinal a qualquer momento nos deixará riquíssimos, esqueceu?

A mulher apenas o olhou e falou, retirando-se:

— É... já que seus pais demoram tanto a vir aqui, pelo menos o tal Robert faz a diferença, não é?

Ele apenas deixou sair um riso aguado por cima do óculos lendo a folha.

No quarto, Polly se aproximou do guarda-roupa e chamou o novo amiguinho, quase em sussurros abrindo as duas portas:

— Sr. Killer! Sr. Killer! Está aí?

— Estou sim, senhorita. O que quer? Tirou-me de meu sono adorável, não está vendo?

E saltou do cabide num voo louco até a cama, apoiando-se nas asas transparentes e fazendo Polly franzir o cenho de susto.

— Desculpe-me! — disse ela.

— Pelos deuses, feche essa janela, a claridade me deixa cego!

— Trouxe uma fruta para o amigo.

— Comida? — perguntou eufórico.

Ele então, voou até o fino braço de Polly, aproximou-se de sua mão e levou sua língua comprida para alcançar o fruto doce e suculento que ela havia dividido ao meio. O fruto brilhava por dentro como o sol incandescente no céu.

— Que delícia, senhorita. Que fruto é esse?

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Polly Lee

— Chamamos de caqui.

— Não é um tomate?

— Não. Esses caquis são trazidos pelo meu pai, Donald, todas as sextas. Coma e volte para lá, antes que minha irmã Deborah entre no quarto. Seja rápido!

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e o Morcego da Pensilvânia

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Polly Lee

CAPÍTULO SEIS

A RESPOSTA DE Robert

luto de Deborah durou apenas um dia, que foi como Ouma

década para ela. Nas primeiras horas desse dia, ela ficou muito triste com a perda de seu gato Meme. Chorava de saudade e sentiu ódio do morcego que imaginava ter provocado aquela queda pavorosa — era o que a moça insinuava quando falava com sua mãe a respeito. Margaret tentava reverter o assunto, mas a filha era teimosa e receosa. “Quem já viu um gato conversar com um morcego?”, sussurrava a mulher para a filha, tentando mudar de assunto, apesar de ter presenciado a cena misteriosa. Polly a via como uma louca que acreditava em animais falantes e ria dela, deixando-a irritadiça, apesar de ter um amigo morcego tagarela.

— Animais não falam, Deborah, onde já se viu isso? —

dizia Polly, com um sorriso vago sentada no tapete do quarto, onde Meme costumava ficar.

— E o que você tem a ver com isso, sua intrusa? —

retrucava Deborah, trincando os dentes e com vontade de surrar a irmã. — Se eu

ver aquele morcego novamente voando por aqui, eu o derrubarei com uma vassoura, como fazem os caçadores de morcegos dessa rua quando querem derrubar algum.

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e o Morcego da Pensilvânia Deborah falava dos vizinhos que, vez ou outra, juntavam-se para erguer cabos de vassouras ou pedaços de pau compridos para tentar bater nos morcegos que voavam em frente às suas casas, quando o sol se ia. Isso sempre foi coisa mal pensada dos

“neurotipos”. Ela falava, sentando-se na beira da cama, amuada e com os braços cruzados. Já era uma moça, mas ainda se portava como uma menina malcriada e mimada de doze anos.

— Eu não deixarei, Deborah — retrucava Margaret, imponente, entrando no quarto no momento em que a filha falava sobre o assunto —, você lá fora segurando uma vassoura e tentando matar algum morcego junto àqueles garotos tolos...

isso seria ridículo, não acha? O que diriam os nossos vizinhos, que já chamam você de destrambelhada? E você sabe muito bem que não existem caçadores de morcegos. Onde já se viu uma coisa dessas? Pare de inventar suas histórias! Aqueles garotos não am de um bando de paspalhos na rua olhando para cima.

— Eu vou sim, mamãe. — insistia Deborah, amassando a cara e cruzando os braços como fazia desde quando ainda era criança. — Eu vou sim e pronto. E existem caçadores de tudo, até desses ridículos morcegos! Eu li na biblioteca da escola.

— E de uma vez por todas — enfatizou Margaret —, não quero mais saber dessas histórias aqui em nossa casa! E pare de ler essas coisas ridículas que encontra na biblioteca.

E o silêncio fez-se entre elas.

No dia em que a resposta de Robert chegou, Donald se trancou em sua biblioteca para ler a carta de cor e cheiro estranho — estava ansioso para saber o que ele havia falado.

Antes de ler, levou o papel ao nariz imenso, fino e torto, embriagando-se do aroma silvestre daquela folha. E então, 114

Polly Lee

iniciou a leitura. As palavras, em caneta fina, diziam que concordava com a ideia de sua esposa e que os esperaria logo cedo, pela manhã do dia 31 do mesmo mês, na estação, e que tinha pressa. A tensão de Donald aumentou a ponto de ele ter que tomar remédios para se acalmar. Após ler a missiva, ficou sentado na cadeira por meia hora refletindo sobre a leitura. Não conseguia imaginar sua

filha ser largada ao léu na estação ferroviária como um pedaço de papel sem valor algum, no meio de tantas pessoas estranhas. Mas se lembrava de que Robert estaria lá para pegá-la, e que uma grande quantia em dinheiro seria recebida naquele dia triste. A carta também falava de um suposto sinal de que Robert já estaria nas redondezas da casa dos Lee; assim que alguém visse certo animal sofrer um desastre repentino, para acompanhá-los no processo. O mesmo agoiro que fora escrito e alertado na missiva do Conde V. O prenúncio fora realizado às claras quando Meme se desequilibrou da árvore e caiu. E logo Donald percebeu, decifrando qual teria sido o sinal. Lá dizia também sobre não levarem roupas da menina, apenas sua veste do corpo. E ainda no quarto, segurando a folha, gritou para a esposa:

— Querida! Margaret! Querida!

— O que houve, Donald? — gritou ela da cozinha. —

Pare com seus gritos histéricos. Fiz um café fresquinho, não quer?

Ele assentiu e falou:

— Está aqui o sinal!

— Que sinal, homem de Deus? Do que você está falando?

— disse aproximando-se com uma bandeja e duas xícaras.

— A carta de Robert indica o sinal. Veja! O gato de Deborah.

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e o Morcego da Pensilvânia

— Então aquele era o sinal...

— Sim, era — falou adiantando-se e atropelando-a, coisa que Donald nunca se atrevia a fazer. — Estejamos agora preparados para nosso plano. Robert concordou com sua ideia.

“Ideia mais detestável que...” — balbuciou, quase imperceptível.

— O que disse, querido? — perguntou com o olhar enviesado.

— Nada, Margaret. Estava apenas falando com meus botões.

— Não podemos desistir agora. E trate de não responder aos seus ridículos botões! — incrementou ela, um tanto áspera.

— E quando será o dia que iremos à estação?

— Dia trinta e um deste mês.

— Já?!

— Sim. É o que diz na carta, veja!

E exibiu a folha na sua frente, segurando com as duas mãos. Ela ouviu o parágrafo na segunda leitura dele e esboçou um sorriso em silêncio. Donald adoçou o café e bebeu com os olhos no horizonte, e disse em voz esticada e triste:

— Ficaremos na estação esperando ver algum sinal de Robert. Então... deixaremos Polly no banco e... e nos misturamos com as outras pessoas. O que acha?

— Donald — falou a mulher, quase furiosa —, vamos parar com isso! Já conversamos sobre, e não venha com suas lástimas agora. Trato é trato. Lembrese, Polly não é nossa filha e temos apenas dois dias para preparar tudo; suas roupas e objetos. E saiba que eu adorei sua ideia de deixá-la por entre as pessoas, ela é tão pequena que...

E deixou escapulir uma gargalhada quase muda. Donald baixou a cabeça ao ver tanta frieza naquela mulher amarga, e 116

Polly Lee

pensou: “Como pude me apaixonar por essa pessoa tão... tão fria?”.

— Vamos preparar a mala dela? — disse Margaret, entusiasmada, caminhando até a porta.

— Não vai precisar.

— Como é que é?! — retrucou enquanto se virava.

— Robert diz na carta que não precisa levar nada, não leu essa parte?

— Não sei ler, seu tonto! Esqueceu de novo, idiota?

— Desculpe-me, querida! O parágrafo diz que ele quer apenas a menina com sua roupa do corpo, e diz também para não esquecermos da medalha em seu pescoço.

— Terei de fazer uma doação de suas coisas, então. —

observou ao recolher a bandeja. — Não quero que você fique choramingando quando der de cara com as roupas dela no guarda-roupa, ou espalhadas pelo quarto. É melhor se livrar logo de tudo. Amanhã à noite já visto Polly com a roupa de viagem e escondo o resto na maleta grande. Faremos uma doação à Igreja de São Bernardo.

Da janela, durante a noite do dia 29, Deborah viu alguns morcegos pequenos sobrevoarem a árvore de onde Meme caíra.

Eles trombavam nas poucas folhas a toda hora tentando abocanhar algum fruto, ou quem sabe pousar nos galhos finos.

Mas nenhum era parecido com aquele de asas manchadas. Ela, então, se lembrou do seu gato, desejando tê-lo de volta. A vassoura foi escondida embaixo da cama para que, caso o morcego grande voltasse a aparecer, iria vingar-se dele. Queria matá-lo.

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e o Morcego da Pensilvânia E, de repente, para sua sorte — ou azar —, lá estava ele, voando desordenado pelos galhos da grande árvore. Deborah se agitou e lhe veio a sede por vingança. No chão de grama rala, as marcas de sangue ainda apareciam como tinta vermelha deixada pelo gato, após ser retirado por seu pai e enterrado no próprio quintal. Olhou rapidamente para seu quarto: na cama, Polly dormia feito um anjinho. E levando os olhos para o chão, viu a vassoura esperando por ela. Pegou o pau para tentar abater o morcego. Abriu as duas bandas da janela devagar, sentindo o frio intenso em seu rosto rechonchudo e franzindo os olhos; quando se posicionou com o artefato nas mãos para esperar o voo desordenado daquele morcego louco, um homem de meia-idade se posicionou na sua frente, olhando-a seriamente com dois olhos arregalados e petrificados como uma lua de sangue, do lado de fora. Seus cabelos esvoaçavam ao ar. Ele pulou para dentro do vão sem hesitar e em silêncio total, para não assustar a pequena Polly de seu sono sem sonhos. Deborah se assustou, de modo que quase gritou ao sentar-se na beira da cama largando a vassoura no chão. E já do lado de dentro, o homem levou o dedo grosso aos lábios secos pedindo silêncio à moça. Ela obedeceu com sua respiração ofegante, como se estivesse dominada por uma força mágica. Ainda em pane, olhava para o esquisito visitante, com os olhos completamente arregalados e sem saber por que não conseguia se mexer. Balbuciou algumas palavras, quase sem voz dizendo:

— Quem... quem é você?

— Não precisa ter medo, mocinha.

Ele pediu-lhe calma. Deborah ainda estava assustada, mas não conseguia gritar. Estava sem fala. Tentou alguns sussurros dizendo: “Quero matá-lo”. Tentou mexer-se e não conseguiu.

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Polly Lee

Apenas seus olhos estavam livres para pedir socorro, mas também não conseguia fazer nada. Algo a dominara de súbito.

— Não conseguirá matar aquele morcego — disse o visitante em voz baixa para não despertar Polly de seu longo sono, nem chamar a atenção dos Lee, que estavam na sala vendo tevê.

— Por que está dizendo isso? — balbuciava forçadamente.

— Nada posso lhe responder, menina.

— E o que faz aqui no meu quarto, e quem é o senhor? —

insistiu em tom soprado.

Ele, então, caiu em gargalhadas cínicas e em tom mais contido enquanto olhava para ela. E Deborah continuou: — Por que está rindo? Não vejo nada de engraçado nisso, e por favor, solte-me!

— Não posso.

— Como está fazendo isso?

— Calma, mocinha! Sou eu quem levará a pequena Polly embora daqui, de suas maldades, de suas garras afiadas de uma má “neurotipo”. Chamo-me Robert e já estive aqui mais de uma vez em sua casa. Com certeza não me viu antes.

— Robert? — sussurrou ela. — E já esteve aqui nos visitando? Nunca vi tão feio.

— Exatamente. Conheço seu pai e sua mãe. Estou aqui apenas para lhe afirmar que aquele morcego não teve culpa do acidente de seu gato atrevido, inclusive

muito estranho, o danado. Nunca havia visto gato tão ridículo na vida.

Então, Deborah voltou a mexer braços e pernas, ainda sentindo o campo energético do visitante a lhe conter a voz baixa.

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e o Morcego da Pensilvânia

— Ufa! Estava ficando paralisada. O que fez comigo?

— Desculpe-me, senhorita! Mas eu precisei fazer isso e nada posso falar. E acredito que logo se esquecerá de tudo.

— Esquecer? Disso eu duvido, Sr. Feio. Sou a melhor da sala de aula em decorar leituras e imagens.

— Isso é o que veremos, menina atrevida.

— Agora, não desdenhe de meu Meme — sussurrou, franzindo o cenho —, e

saiba que ele não era ridículo nem esquisito. E o que sabe sobre aquele morcego? Por acaso era seu? É um criador de morcegos?

— Além de atrevido, seu gato era inável feito você, menina emburrada — disse seriamente. — Saiba que seu animal foi que se descuidou e se espatifou lá de cima da árvore. E fique certa de que eu não tenho nenhum morcego, apenas respeito os animais, e vi que ele não teve culpa alguma. Eu estava aqui naquele dia.

— Odeio homens barbudos — resmungou ela entredentes e com os olhos cerrados.

— O que disse, menina? Logo vejo que não a de um

“neurotipo”.

— Fiquei muito triste por sua morte — retrucou, entristecida. — Não sei se eu gostava mesmo dele, mas acho que me acostumei a seus pelos e miado. À sua companhia, eu acho.

— Acredito — obtemperou o visitante. — Isso é coisa de

“neurotipos”: pegam os animais por meros caprichos e interesses próprios, tratando-os como objetos pessoais, e sequer procuram saber o que eles querem. Quando os bichinhos não servem mais aos seus interesses, são rejeitados como se fossem um nada, largando-os nas ruas, abandonados.

— Por que insiste nessa palavra? — perguntou, curiosa.

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Polly Lee

— “neurotipo”? Logo saberá do que se trata. Eu só queria livrar a culpa do pobre morcego diante da morte de seu animal de estimação. E sei que você detesta sua irmã. Então chegou a hora de se livrar dela. Chegou sua chance de reinar nessa bela mansão morta. Até mais! — disse, saindo em gargalhadas abafadas pela janela numa cabriola desajeitada. Robert quase caiu fazendo um barulho ao tocar o chão de grama, levando com ele um daqueles pequenos lustres que ficava pregado abaixo da janela do quarto, espatifando-se no chão. Deborah apenas espiou, assustada, vendo-o tentar levantar-se e arrumando a capa escura e colocando de volta seu chapéu esquisito na cabeça.

Então ele acenou para ela e se foi no escuro da noite.

— O que foi isso, Deborah? — perguntou Margaret, empurrando a porta de súbito. — Que barulho foi esse?

— O que houve aqui, minha filha? — gritou Donald, vindo logo atrás.

Polly despertou. Donald se aproximou dela, acariciando-a.

— Logo me livro dessa intrusa — sussurrou Deborah ao ver a cena do pai.

— O que disse, Deborah? — perguntou Donald.

— Nada, papai. Aquele enorme morcego tentou invadir o quarto.

— Morcego? — fez Margaret surpresa. — E por que está com essa janela escancarada, Deborah?! Eu havia lhe falado que não...

— Calma, querida! — fez Donald, atropelando-lhe as palavras enfurecidas.

Quando Margaret se aproximou da janela, percebeu o lustre lá embaixo, todo desmantelado na grama, e gritou com irritação:

121

e o Morcego da Pensilvânia

— O que foi aquilo ali? Quem derrubou nosso lustre? Já sei, você tentou pegar o tal do morcego e quebrou meu lustre!

— Lustre? — disse Donald assustado, debruçando-se na abertura. — Quem o derrubou?!

— Foi o morcego — insistiu Deborah. — Não fui eu.

— E essa vassoura aqui? — observou Margaret, vendo-a caída no chão do quarto. — Avisei que não queria você com essa ideia de matar morcegos nessa casa! Já bastou a morte daquele gato. Agora veja o que fez com meu lustre! Você já é uma moça bem crescida e, por favor, porte-se como tal!

A moça baixou a cabeça. Polly arregalou os olhos ao ouvir quando Margaret falara dos morcegos. E a Sra. Lee fechou a janela rapidamente, dizendo:

— Não quero que abra mais a janela durante a noite! Vai ser seu castigo agora, menina teimosa. E guarde logo essa vassoura lá na cozinha! Vá! Vá logo!

— Margaret — retrucou Donald —, deixe a menina em paz.

— Está dito, de hoje em diante, a partir das dezoito horas, janelas fechadas. E pronto. É a minha nova regra aqui nessa casa. E nada de morcegos, Srta. Deborah, já estou cheia com esses animais asquerosos!

Polly, acordada, agarrou-se aos braços de Donald, lembrando-se do amigo do guarda-roupa, que não ava de um mísero morcego. Sua mãe não poderia vêlo lá dentro, de forma alguma, nem Deborah.

Agora estávamos no penúltimo dia dos planos dos Lee.

Manhã de sábado; a chuva caía forte, o que não era de costume em dias de neve, como se o céu chorasse pelo que iria acontecer a Polly no dia seguinte. E após aquela chuva, uma neve rala 122

Polly Lee

começou a despencar do céu enfeitando as árvores com seu branco esplendoroso. A cidade ficou toda imersa em um tapete com tom de gelo. Os Lee não saíram de casa, ficando a aquecer-se em frente à lareira acesa e tomando chá com bolinhos de chuva — era o que aquele povo gostava de fazer nos dias frios.

A rua 666 era uma das mais movimentadas do bairro.

Aquele número intrigava muitas pessoas por ser um algarismo conhecido em livros religiosos — superstições, como sempre, das sociedades alucinadas dos “neurotipos”. Ali não havia um religioso que não fizesse o sinal da cruz quando saía de suas casas para algum eio, ou lugar de destino — era como uma proteção, ou escudo por morar na rua. Apenas os Lee se mantinham normais quanto ao número. Na verdade, como eu já havia falado, eles não ligavam muito para isso. Nunca foram pessoas religiosas, não que eu soubesse.

E aquela noite ou-se sem nenhuma novidade. Apenas o castigo de Deborah acerca da janela e o desassossego de Donald perante o suposto dia do plano, e claro, Polly a conversar com o novo amigo, Killer, durante a madrugada, enquanto a irmã roncava.

— Srta. Polly — dizia Killer, sentado na cama de frente para ela —, ouvi tudo lá de dentro do guarda-roupa.

— É... Deborah queria matar seus parentes.

— Pelo pouco tempo que estou aqui, em sua casa, só vejo maldade em sua irmã e em sua mãe.

Polly assentiu em silêncio entristecida. Ele, então, continuou: — Odeio os roncos dela, acordam-me a toda hora.

Tento tapar meus ouvidos por entre as suas roupas, mas não consigo, pois minhas patas são pequenas e minhas orelhas muito grandes.

123

e o Morcego da Pensilvânia Polly quase deu uma gargalhada ao ouvir aquelas palavras em tom engraçado. E Killer observou dizendo:

— Acho que a senhorita deve ir dormir, porque já está tarde. Mas, antes, preciso que deixe pelo menos uma parte da janela entreaberta, quero dar uns voos noturnos por aqui.

Amanhã, logo cedo, estarei de volta para que eu possa dormir.

Ela assentiu e, enquanto Deborah roncava, foi até a janela e deixou-a meio aberta. Killer bateu as asas imensas levantando suas orelhas transparentes e, num voo desordenado, saiu pela janela batendo em suas beiradas. O ar frio lá fora era o paraíso para ele. Polly deu um aceno e voltou para a cama. Esperaria o amigo voltar antes que o sol desse bom-dia, deixando também a porta do guarda-roupa aberta.

E logo adormeceu.

Na noite seguinte, a neve era forte lá fora. Estava Donald em seu escritório, que ficava na mesma sala da biblioteca, lendo um livro, quando algo bateu em sua janela com força. Já eram cinco da tarde e o sol naquele dia não aparecera com seus raios mornos. A neve ainda caía levemente. Ele espantou-se, tomou um susto com o barulho e levantou, aproximando-se, soltando o livro em cima da mesa comprida. A casa dos Lee era alta, os quartos e banheiros ficavam na parte de cima junto a um alçapão; a biblioteca, no térreo, como também seu escritório, a cozinha, a sala e uma escada em curva. E como toda casa americana, um porão para casos urgentes de questão climática ou desastres físicos. A mansão dos Lee tinha a forma arredondada, como se fosse um pequeno castelo, tendo no centro do telhado inglês uma minúscula cúpula — arquitetura feita pelos turcos.

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Polly Lee

Donald aproximou-se da janela a os lentos e desconfiados. E novamente, algo espancara o vidro da abertura, como se o vento deixasse uma réstia mostrarse em movimentos lentos. Ele afastou a cortina em dobras e puxou os ferrolhos aos poucos. Imaginou algum mendigo perdido na noite fria, que era de costume aparecer naquela região, ou quem sabe alguém pedindo alojamento por uma noite. Seus olhos arregalados sentiam certo medo do que pudesse ser, na verdade. “Mas o que não seria estranho naquela mansão?”, pensava ele. E como sempre, sua curiosidade foi maior do que seu medo. Resolveu abrir de vez as duas bandas da vidraça sentindo o vento forte e gélido tocar-lhe o peito e o rosto franzido, com seu óculos na mão. Donald, então, afastou-se dando alguns os

para trás, e sentou-se numa cadeira, como se levado pelo medo. E o mesmo homem do dia anterior, que visitou o quarto de Deborah, disse em voz rasgada diante daquela janela comprida:

— Boa noite, Sr. Donald! Aff! Que frio.

Donald tomou mais um susto inclinando-se para o lado, e sua aparência era de extremo pavor. Seu coração acelerou as batidas. Quase mijou nas calças de tão forte que foi o susto.

— O que o senhor está fazendo aqui, Sr. Robert, a essa hora e dessa forma? Isso não é uma boa maneira de se visitar alguém ou um amigo, não acha?

— Assustou-se, Sr. Lee? — disse ele. — Desculpe-me!

Não era minha intenção assustá-lo. Posso entrar?

Seus cabelos assanhados e sua barba espalhada estavam quase brancos do pó alvo, que descia agora de enxurrada do céu.

Carregava, como sempre, seu chapéu na cabeça e o cajado meio distorcido na

mão direita.

— O que você quer aqui na minha janela?

125

e o Morcego da Pensilvânia

— Esqueci de alguns detalhes e precisei vir o mais depressa possível. Já estava de viagem marcada quando lembrei-me e resolvi voltar.

Vestia-se em sua capa alongada e escura com golas pontiagudas e vermelhas, e um xale também em tom escuro rodeando seu condensado pescoço e seu chapéu esquisito já se colocava na mão. O rosto pálido de Robert se destacava da roupa; seus sapatos em um vermelho brilhante refletia na mínima luz que havia, como se tivesse sido engraxado naquele momento, e sua barba era agarrada aos cabelos.

— Do que se trata mesmo, amigo, já que está aqui?

— Vai me deixar aqui na janela debruçado? — retrucou Robert antes de falar alguma coisa. — O frio está terrível, e estou quase congelando, não está vendo isso?

— Não costumo deixar que estranhos entrem em minha casa pela janela. E se algum vizinho ver você pulando? Acredito que logo teremos um carro da polícia parado na minha porta, e eu não quero ar por esse vexame.

— Desculpe-me, Sr. Lee, eu posso então ir até a porta da frente se o senhor desejar. Entrarei pela sala, como todo

“neurotipo” faz.

— Não precisa. Já está aí. Agora entre logo, venha e deixe de suas lorotas. Não vejo sequer uma viva alma nas janelas da vizinhança — disse, observando as casas. — Venha, entre, antes que eu me arrependa!

E Robert, com dificuldade devido ao seu avantajado corpo, quase tombou no box, mas conseguiu saltar para dentro da biblioteca esparramando-se no piso de madeira.

E um vinho foi servido por Donald, para aquecer a noite e o corpo deles.

— Aceita?

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Polly Lee

— Sim, claro — disse já sentando-se no sofá. — Preciso mesmo aquecer o corpo e a alma. Principalmente agora que fiz um esforço grande. O Sr. Lee pensou bem.

— Na verdade, você caiu. — observou Donald debochadamente. — Agora digame, do que se trata sua visita tão inadequada, inesperada e ridícula em minha casa? Sabe que me deixou completamente assustado, não sabe?

— Desculpe-me! É que não tive outra opção. E para começo de conversa... — falou, tragando quase toda caneca numa só golada. — Aaah! Que delícia esse seu vinho, Sr. Lee.

Deve ser de primeira. Pode encher novamente, eu...

— Não é para se embriagar, amigo. — disse, atropelando-lhe as palavras. — É só para espantar o frio.

E encheu novamente a caneca do visitante sem hesitar. A cor daquele líquido fez com que Robert viajasse em pensamentos enquanto via ser despejado.

— Obrigado, amigo! Agora estou pronto para falar.

Então respirou fundo, tragou mais um gole do vinho e continuou: — Como eu ia lhe dizendo, para começo de conversa, não tive culpa da morte do gato de sua filha. Ela pensa que fui eu quem o matei, derrubando-o de cima daquela árvore, já que me viu naquele local olhando para cima, naquela noite.

Donald, ao ouvir suas palavras, assustou-se sem nada entender. E Robert prosseguiu: — Ao contrário, eu tentei impedir que aquele animal imbecil caísse, mas ele era totalmente igual à sua filha. Desculpe-me as palavras indelicadas!

— Tudo bem, senhor. É o que pensamos dela desde que nasceu. Com certeza não teve culpa alguma do desastre do gato, 127

e o Morcego da Pensilvânia nem é alguém que costuma criar bichos estranhos de estimação, não é? Mas... por que está me falando isso?

— Sim, claro que não. Mas... mudando de assunto, vim aqui a essa hora e dessa forma pedir-lhe a conta bancária para o depósito do Conde V, porque o pagamento será instantâneo, e preciso ter a certeza de que o senhor e a senhora sua esposa am o contrato. Preciso dessas duas coisas antes de partir.

Não poderia voltar sem esse contrato em mãos e o número de sua conta.

Donald, antes de afirmar, fixou o olhar no horizonte da janela e disse, cabisbaixo:

— Sim, assinamos o contrato. Espere aqui, vou buscar os papéis no armário, já volto!

Ele foi até o móvel em seus os esquisitos. Robert apenas observava o ambiente onde fora criada a pequena Polly.

Então o Sr. Lee trouxe, tirando da cristaleira, a numeração escrita em um pedaço de papel e o contrato assinado pelo casal.

— Aqui está!

— Obrigado, Sr. Lee! Nossa, que vinho delicioso esse.

Onde comprou, se é que posso saber?

— Tenho-o aqui há um bom tempo, guardado para ocasiões especiais. Ganhei do patrão há dois anos, no Natal. E

vejo que esse momento é especial — falou em tom amigável.

Robert, ouvindo as palavras do amigo, deixou que seus olhos mergulhassem em lágrimas rasas. E Donald retomou a palavra dizendo: — E obrigado pelo que está fazendo por minha família! Apesar de que eu...

E silenciou.

— Sou apenas um mensageiro. Apenas isso. Está tudo bem?

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Polly Lee

— Sim, obrigado! E que sapatos bonitos... São tão avermelhados. Onde os comprou? É couro de cobra?

— Na melhor loja da Transilvânia, senhor — disse, ficando de pé. — Veja como é linda minha roupa também! O

amigo gosta de roupas assim?

Robert se virava como se estivesse em um desfile em plena biblioteca. Donald balançou a cabeça negativamente, observando aqueles movimentos não tão normais. E o visitante continuou com o desfile majestoso e vaidoso dentro da sala. Seu rosto largo e já com rugas salteadas dava a ele aparência de mendigo. E continuou, ao se sentar-se, e falou: — Desculpe-me, Sr. Lee, pelo atrevimento! É que não consegui me conter. Eu me empolguei.

— Tudo bem. Adorei seus sapatos.

— Está falando sério? Posso enviar-lhe um par se quiser, quando chegar lá.

— Claro. É muito caro?

— Não tão caro, mas vale um bom preço. Posso descontar em sua quantia que receberá do Conde V, quando ele pagá-lo.

— Tudo bem. Combinado, então.

E apertaram as mãos como bons amigos.

— Então — observou Robert —, anotarei também seu endereço para envio dos sapatos. E antes que me esqueça, ontem à noite assustei sua filha mesmo, se é que ela já não lhe falou.

Desculpe-me! Precisei mostrar a ela, como eu havia lhe falado, que não fui o culpado pela morte de seu peludo e asqueroso gato. Estou falando isso porque ela me viu mesmo embaixo da árvore quando seu animal caiu. Eu havia vindo aqui para pedir os documentos preenchidos, mas, quando o episódio do 129

e o Morcego da Pensilvânia asqueroso ocorreu, não me contive e invadi o quarto dela. “Gato ridículo, achar que sabe falar” — balbuciou.

— O que disse?

— Nada, amigo, apenas tropecei nas palavras.

— Ela, hoje, já está melhor.

— Que bom. Então, até amanhã, logo cedo, na estação de Lancaster! — falou de pé e estendendo-lhe a mão. — Seu vinho é realmente maravilhoso. Excepcional. Foi um prazer o conhecer e poder negociar com sua família e, claro, tomar esse delicioso vinho.

— Obrigado, Sr. Robert! Eu quem fico grato.

— Agradeço a hospitalidade! E sua esposa, como está?

— Está bem, obrigado!

E Donald percebeu, em seu pescoço, um cordão em tom de ouro com uma medalha em forma de pirâmide, parecida com a que se encontrava no pescoço de Polly.

— O que é isso aí, em seu pescoço? Por acaso o amigo é um historiador? Vejo que se parece com a medalha de...

— Até mais, Sr. Lee! — disse fitando-o antes que Donald terminasse a frase. —

Estou com pressa.

E debruçando-se com dificuldade na janela larga, saltou num pulo estabanado e seguiu pela noite, mancando da perna e tentando esconder-se da neve.

— Donald! — gritou Margaret, batendo na porta. —

Donald, você está aí, querido? Abra essa porta!

— Sim, Margaret, estou! Espere um pouco!

A porta foi escancarada.

— Por que se trancou, Donald? Nunca fez isso.

— É que eu... — disse, ainda espiando Robert, que sumia por entre o pó alvo.

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Polly Lee

— O que está olhando lá fora? Por acaso alguém apareceu aqui, ou você viu algum fantasma?

Ele nada falou e voltou-se para ela, que continuava perguntando e se encolhendo em seu corpo espichado:

— E essa janela aberta, não está vendo que já estamos no inverno?

— Esqueci de fechar, querida. Eu precisava ficar só, um pouco, com meus livros.

— Coloquei a janta na mesa, vamos comer! — disse ao bater e lacrar as janelas.

— Vamos, sim. E as meninas?

— Estão esperando na mesa. Será a última janta de Polly conosco, esqueceu?

— E precisa ficar lembrando-me disso, Margaret? —

disse, entristecendo o semblante.

— Acostume-se, querido. Acostume-se. Venha, vamos!

E seguiram para a cozinha.

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e o Morcego da Pensilvânia

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Polly Lee

CAPÍTULO SETE

A MENINA PERDIDA

EM LANCASTER

quela noite do dia 30 de dezembro de 1970 não foi Afá cil para Donald. Mas, ao contrário, para sua esposa e sua filha Deborah, foi a melhor noite que já tiveram.

Comemoraram em silêncio cínico e maldoso. Donald deitou-se na cama, pensativo, com os braços por sobre sua testa franzida e a cabeça no travesseiro macio. ou pela sua mente adulta a possibilidade de desistir, mas lembrou-se da quantia e do conhecimento de que aquela menina tinha pais verdadeiros e tantos mistérios; conteve-se, reflexivo, por algumas horas.

No quarto das filhas, Margaret conversava com Deborah, enquanto Polly dormia tranquilamente em sua pequena e estreita cama de madeira velha, que obtiveram numa loja de usados, assim que a menina completara cinco anos.

— Amanhã, minha filha — disse Margaret, eufórica —, estaremos livres dessa intrusa. Não vejo a hora desse dia chegar.

Deborah sorria como se aquela notícia fosse a mais importante de sua vida. Até alimentou em sua cabeça pensamentos frívolos de soltar alguns fogos de artifício quando a irmã se fosse para sempre. E elas, por um bom tempo, ficaram 133

e o Morcego da Pensilvânia ali aproveitando-se dos minutos e até horas de

satisfação naquele quarto. Dentro do guarda-roupa, Killer ouvia as duas mulheres em suas epifanias familiares — estava cheio de revolta, mas contevese, quieto.

Enquanto isso, Donald, no quarto, em seu travesseiro confortável, virava-se sem conseguir sossegar ou pegar no sono.

O dia se debruçou aos raios de sol tímido e com uma neve rala, e a família Lee já estava de pé em seu degustar de um saboroso desjejum à base de, como todo americano, cereais com leite e ovos com bacon. O cheiro forte da iguaria chegava à vizinhança quando fritado à base de banha de porco numa frigideira de alumínio. E já trocados de roupa, naquela manhã fria, haveria um eio diferente com a família Lee.

— Para onde vamos, mamãe? — perguntou Polly inocentemente, levando a colher de cereais à minúscula boca.

— Iremos dar um eio de trem — disse Margaret, com cinismo. — Vocês querem ir?

— Andaremos de trem? — perguntou a menina, em epifania por nunca ter conhecido uma locomotiva desde que chegara àquela casa.

— Eu quero, mamãe! — gritou Deborah, entusiasmada com a ideia, mas já sabendo do que se tratava a trama.

Margaret assentiu, mantendo o mesmo olhar cínico e olhando para a filha. As duas se olharam satisfeitas com riso vago. Os olhos de Deborah cerraram, e elas trocaram mensagens e sorrisos silenciosos. Donald percebeu e manteve-se indiferente em seu silêncio, lembrando-se do que iriam fazer naquela manhã. Era uma sexta-feira, dia 31 de dezembro de 1970, véspera de ano. O jornal daquele dia estampava novamente a notícia sobre certo caso de vampirismo na Europa — coisas de 134

Polly Lee

superstições, dizia a matéria. Donald lia aquele texto entusiasmado e certo de que alguém fora visitado por um desses seres na velha Europa. E lembrou-se da roupa de Robert, que parecia até trajes de filmes de vampiro. Mas logo afastou de sua mente conturbada esses pensamentos frívolos diante do noticiário do jornal.

— Você vive acreditando nessas bobagens, querido, que são estampados nesses jornais mentirosos — falou Margaret com ar de zombaria.

Donald tomou o último gole do café e se levantou, respirando fundo. Era chegada a hora mais difícil para aquele personagem tão sentimental, na qual eles iriam cometer o ato mais deplorável que ele, Donald, já havia pensado que iria fazer em sua vida. O carro foi retirado da garagem como sempre: uma manobra malfeita e o estanque do motor num sopapo brusco, e sacudiram-se suas cabeças para frente e para trás em resmungos.

— Meu Deus, Donald — disse Margaret —, até quando você vai agir assim? Parece que nunca aprendeu mesmo a guiar esse automóvel velho que ganhou de seu pai! E acho que não vai aprender nunca.

E saíram por ali pelas ruas da cidade friorenta. A estrada estava coberta pelo branco e gélido pó seco. As duas meninas aparentavam que estavam felizes por irem ear com os pais, coisa que dificilmente faziam, a não ser ir ao famoso piquenique nos finais de semana. Mas nada além das fronteiras do bairro.

Deborah sentia uma felicidade dupla — o eio diferente e a ideia de se ver livre da irmã, que tanto detestava.

Quando Donald dirigia pelo caminho arborizado, viu certo movimento desordenado do lado esquerdo, a uma certa distância, beirando as árvores mais baixas das encostas da 135

e o Morcego da Pensilvânia avenida. Manteve sua atenção para o volante do carro, enviesando os olhos para a esquerda. Era ele, o morcego de asas manchadas, que rondava sua casa, e agora seguia o carro, em seus voos loucos. “O que diabos esse desajeitado animal está fazendo a essa hora do dia voando por aí?”, balbuciava ele, já irritado com a cena. Logo desviou os olhos, buscando a pista e acelerando o carro, tentando livrar-se daquela imagem do esquisito voador.

Vocês, leitores, devem estar se perguntando sobre o nobre Killer, que ficava no guarda-roupa. Desculpem-me não ter relatado sobre o pequeno morcego, quase incolor em suas asas..., mas, naquela manhã, Deborah, ao levantar-se e sair do quarto, tendo Polly ainda se espreguiçando na cama maquinando algumas ideias.

E ao se levantar, e não vendo a irmã, Polly gritou em tom alegre direcionada para o armário:

— Bom dia, Sr. Killer!

— Bom dia, senhorita! — falou e deu um voo até seu colchão, pousando desordenado com suas asas em pele fina e os olhos franzidos da claridade. — Está preparada?

— Preparada para quê?

O morcego quase estragou toda trama dos Lee com Robert, mas pensou no que poderia sofrer se caso falasse alguma coisa, e continuou: — Para o eio à estação.

E deu um pulo, como se fosse decolar dali, mas se manteve no lugar, dizendo:

— Posso ir?

— Claro, Sr. Killer.

Então ele abriu um riso tão largo que seus dentes pontiagudos, da parte superior da boca, pam-se para fora, 136

Polly Lee

dando-lhe uma aparência estarrecedora. Mas logo pôs para dentro.

— Obrigado, senhorita! Muito obrigado!

— Mas como faremos isso?

— Faremos o quê?

— Para leva-lo, sem que meus pais e minha irmã Deborah percebam. Eles não permitirão, muito menos Deborah, que odeia morcegos.

— A senhorita tem plena razão. Esqueci-me desse detalhe

— disse com a pata no focinho. — Poderei ir dentro da sua maleta.

— O quê? — falou Polly com os olhos apertados, desaprovando a ideia.

— Isso. Poderei ir na sua roupa. Que tal a ideia?

— Não sei. Não sei não. Não gostei disso. Por que não vai voando?

— Voando? Mas como eu irei...

— É simples — observou, atropelando-o —, é só acompanhar o carro.

— Não, não posso fazer isso. É muito arriscado para mim e para a senhorita também.

— E por que não pode?

— Por favor, não me venha com suas perguntas difíceis.

Simplesmente não posso. É o que ouviu.

— Já sei... — disse, entusiasmada.

A estação nesse dia estava repleta de viajores — pessoas e suas malas preparadas para o embarque no trem mais movimentado da cidade. Se olhássemos de cima da plataforma, veríamos apenas cabeças umas próximas das outras, em movimentos constantes. Acho que tinha a ver com a data, 31 de 137

e o Morcego da Pensilvânia dezembro, e as pessoas queriam chegar logo aos seus destinos antes que o dia rompesse sem seus familiares. Os Lee desceram do carro e caminharam até a plataforma como uma feliz família

— Donald segurando na mão de Polly, e Margaret ao lado de Deborah, que parecia uma tartaruga cansada a os forçados.

E quando estavam na plataforma, algo inusitado ocorreu aos olhos dos Lee: um gato preto cruzou o estrado, quase atropelando algumas pessoas e mergulhando

por entre os trilhos vazios. Aquilo fez com que Deborah acompanhasse o animal e se lembrasse do seu Meme, por alguns minutos, fazendo-lhe ter desejo por aquele felino escuro de olhos com um brilho esverdeado. Acho que ela deve ter se apegado mesmo aos gatos, devido ao tempo de convivência com um em sua casa. Ela então gritou:

— Olha lá, mamãe, é um gato!

— Espero que ele nunca mais saia desses trilhos —

balbuciou Margaret, franzindo o cenho.

— Vamos andar de trem, papai? — perguntou Polly, alegremente.

— Sim, minha filha — disse ele —, pegaremos o próximo que chegar.

Ela então, sentou-se no primeiro banco que viu, segurando sua velha boneca de pano.

— O gato! — gritou Deborah, empolgada ao ver o animal caminhar por cima dos trilhos no intuito de achar um local onde pudesse enterrar suas fezes, como

todos os gatos fazem. Porém, só achou pedregulhos à sua frente, além dos trilhos de ferro antigo, e seguiu pela linha ferroviária. A moça se afastou dos pais, correndo na direção do gato. Ela parecia uma doida varrida naquela plataforma repleta de pessoas. Batia com as mãos 138

Polly Lee

gordas nas pernas dos outros tentando buscar agem, não queria perder o animal de vista.

Imaginem uma moça de dezessete anos de corpo avantajado correndo por entre uma multidão de pessoas?

— Deborah! — gritava Margaret e Donald, assustados. —

Espere, minha filha! Não se aproxime da faixa amarela, é perigoso!

Ela sempre fez isso quando criança, ao sair com os pais.

Mas agora, era uma moça e estavam no meio de uma multidão.

E sumiu por entre as pessoas que buscavam seus lugares. Os Lee não conseguiram mais vê-la; corria entre os outros, batendo em suas malas, quase derrubando-as no chão. Algumas pessoas caíram ao tombar com a moça avantajada.

— Deborah! Volte aqui! — insistia sua mãe a os rápidos em pernas juntas, indo atrás dela.

— Filha! — gritava Donald atrás da esposa.

E ocupados com a filha mais velha, esqueceram a pequena Polly, que ficara para trás assustada, sentada no banco comprido de madeira rústica. Polly começou a chorar, ficando de pé em meio às pessoas, que a olhavam com curiosidade. Mas era tanta gente que ela não mais via seus pais. Seus olhos eram só lágrimas. Ficou olhando a multidão que se aproximava da faixa para o embarque no trem, que chegava gritando em uma nuvem de fumaça.

— Papai! — choramingava Polly. — Mamãe!

Um jovem tentou aproximar-se da menina, mas viu o trem tomar a estação e correu em direção dele, ainda olhando para trás. O apito do guarda soava tentando organizar as filas, em seu uniforme azulado. Killer, com seu focinho miúdo dentro do bolso do casaco da menina — ideia dela —, tentou pôs-se para 139

e o Morcego da Pensilvânia fora, mas logo retornou, amedrontado. Ouvia o choro da garotinha, mas nada podia fazer. Sentiu pena dela e teve vontade de consolá-la — queria falar tudo que sabia, mas nada disse, ficando em silêncio total, esperando o que poderia acontecer.

Ele sabia da trama dos Lee com Robert, e não poderia ser visto pelo mensageiro.

— Olá, menina! — disse um senhor de barba espalhada e cabelos voados, pegando em sua mão de súbito. — O que houve, senhorita? Onde estão seus pais?

Polly assustou-se ao sentir o toque da enorme mão peluda e apontou na direção aonde foram os Lee, em palavras soluçantes. Killer beirou novamente o bolso dela e percebeu o estranho homem. Na verdade, Killer era conhecido em sua terra como: o Sr. língua-solta. E encolheu-se novamente, para que o tal não o percebesse.

— Calma, senhorita! Vamos achá-los logo, logo. Venha comigo! — disse o senhor estranho e avantajado.

Então, carregando uma imensa mala quadrada de madeira de cor gasta, ele puxou a menina dirigindo-se ao barulhento trem, que já beirava a plataforma. Ela chorava. O movimento de pessoas aumentava e todos queriam subir na locomotiva. A fumaça se soltava acompanhada do apito ensurdecedor. E

nenhum sinal dos Lee.

— Vamos querida, não chore. Seus pais também estarão neste trem.

E a puxou pelo braço. Ela continuava em pranto, tentando resistir ao chamado do esquisito homem. Os dois subiram num dos vagões atrelado aos outros. Polly sabia que seus pais e sua irmã Deborah iriam entrar naquele trem. Pelo menos era o que ela imaginava ser — conforme ouvira de seu pai. Entusiasmou-se, seguindo o senhor, em os curtos e rápidos. Suas lágrimas 140

Polly Lee

deixavam seus olhos umedecidos e suas pernas finas aceleravam na tentativa de seguir aquele homem que a deixava um tanto assustada.

— Venha, suba, criança! Depois procuraremos pelos seus pais nos demais vagões.

Sentaram-se do lado contrário ao da plataforma — ela ainda chorava baixo e soluçante. Estavam no penúltimo vagão.

— Por favor! Não chore. — insistiu ele. — Não aguento ver criança chorando. Tome aqui este doce.

E remexeu sua mala, tirando de dentro um embrulho pequeno e quadrado. Polly não pegou. Apenas chorava em silêncio. Nada a fazia ficar calada. A tristeza era tanta que esqueceu até de seu amigo em seu bolso.

— Pegue, é seu. Pegue.

Killer, para quem não sabe, adorava doces, e ouviu a voz do homem oferecendo a guloseima à menina. Mexeu-se querendo ver do que se tratava, mas se conteve. Havia, no banco de frente ao deles, um menino e sua avó — ele observava aquele ato, desejando o adoçado oferecido à Polly, quase lambuzando-se e, prontamente, o estranho, vendo o olhar falante do menino, entregou-lhe o meloso. O garoto pegou rapidamente, levando à boca, faminta de açúcar.

— Obrigada, senhor! — disse a senhorinha. — O que ela tem?

O esquisito homem apenas assentiu com os olhos em tom vermelho escarlate, a mesma cor dos de Polly, deixando aquela senhora curiosa, em silêncio e assustada. E o trem deu partida rumo à Ilha da Nova Escócia, nos Estados Unidos. Era o que dizia a plaqueta da estação. De lá, os ageiros pegariam um navio ao litoral irlandês, na Europa. Era o destino daquelas 141

e o Morcego da Pensilvânia pessoas. Não era um trem de eio curto. E consecutivamente, não seria o trem que os Lee pegariam para ear com as duas filhas. Durante a viagem, a menina adormeceu. Estava exausta de chorar e por ter se levantado da cama muito cedo. O estranho a deitou em seu colo e também dormiu, em roncos altos e alongados, escorado no encosto de madeira — parecia um porco com sua barba espalhada em garranchos.

Na mansão dos Lee, o casal e sua filha nada comentaram sobre Polly, após chegarem em seu velho carro. Mas uma dúvida preocupava o Sr. Donald em relação à garota: onde ela estaria agora? E será que Robert a encontrara? Não sabia o que havia ocorrido. Não foi premeditada aquela separação, fora um acidente. Eles iriam fazer, mas aconteceu tudo sem que eles percebessem. Como sempre, Deborah foi a culpada do evento. E

Margaret aproveitou o incidente para abandonar Polly de uma vez por todas, deixando seu esposo demasiadamente preocupado. Sua alma e seu coração choravam naquele dia, derretendo-se feito manteiga aos raios do sol. Foi um completo pesadelo para ele. Desejava ter visto Robert pegá-la, mas não foi possível. Não se sabe se ele teria a coragem de deixar o mensageiro levá-la. Deborah e Margaret estampavam largos sorrisos de felicidade pelo meio da casa. Nenhum remorso.

Estavam livres. Definitivamente, livres de Polly Lee, que agora viajava estradas de trilhos adentro na companhia de um esquisito

homem.

O

quarto,

naquela

mansão,

seria

completamente dela, para fazer o que quisesse — era seu sonho: ficar só naquele quarto sem a presença de Polly e suas traquinagens, que não eram poucas. Mas também não mais teria o saco de pancada para exercer sua maldade diária, nem a irmã para ensinar-lhe alguns exercícios de matemática. Na casa havia 142

Polly Lee

outros quartos, mas Donald exigiu, desde há muito, que elas ficassem juntas.

O que aconteceu na verdade é que Deborah entrou num dos vagões do trem tentando ver o gato, que fora para o outro lado dos trilhos, obrigando o casal Lee a retirá-la de lá às pressas, porque o trem iria dar partida a qualquer momento. Foi quando eles perceberam que haviam esquecido Polly no banco, mas se lembraram de Robert, que estaria ali observando o movimento e logo pegaria a menina. Donald quase teve um ataque. Pensou em voltar para buscá-la, mas os olhares de Margaret para ele o condenou por apenas sentir seu remorso de pai arrependido. Só que o casal Lee prometera às filhas que iriam dar um eio de trem, e Deborah agora queria porque queria realizá-lo. E o fizeram, pegando o próximo com destino curto, sentados naquele banco. Donald era só preocupação com a filha, que ficara na estação sozinha, e já não mais a via. Torceu para que Robert tivesse levado a menina, pois Donald sabia que ele iria estar lá, pelo menos foi o combinado entre eles. Mas mesmo assim sentiu a dor do abandono na pele, e certa dúvida no ar. Não foi muito fácil para ele aceitar o que estava fazendo.

Sentia culpa dupla. Sentia-se o pior dos piores. Aquilo não era, na verdade, o papel de um bom cristão, ou de um pai de família.

No trem que se destinava à Ilha da Nova Escócia, o silêncio das pessoas era total, todas sentadas e agasalhadas. Mas lá fora, o barulho dos trilhos nas linhas de ferro era ensurdecedor; puro aço colidindo entre eles e a neve fina parecia uma orquestra ao ar livre. O dia escurecia, trazendo o entardecer. O frio aumentava. Cobertores eram expostos, cobrindo os corpos em casacos de lã, ou de outros tecidos mais espessos. Todas as janelas foram lacradas devido aos ventos 143

e o Morcego da Pensilvânia fortes que vinham do litoral europeu. O trem faria uma parada na próxima estação, em Nova York. Desceriam alguns ageiros e

subiriam outros. Era véspera de Ano Novo, e Nova York, como tantas cidades do mundo, iria estar repleta de pessoas para ver o romper do ano e seus fogos de artifício maravilhosos sendo lançados ao ar.

A estação se aproximou. A euforia de alguns ageiros era a cena vista. Polly despertou, assustada, pensando ver a imagem dos pais ao seu lado e da irmã indesejada — pelo menos era o que ela queria. Mas apenas viu aquele homem estranho e gorducho ao seu lado, com os olhos franzidos. Olhou para a janela e viu uma paisagem iluminada bem distante — a cidade mais cobiçada do mundo, onde os hippies faziam movimentos junto aos artistas pop — faltavam poucas horas para o romper do ano. O relógio do esquisito marcava oito e meia da noite aos seus olhos grandes e fundos. Não era um relógio comum, como os já conhecidos — o dele tinha um formato triangular e a cor amarelada — parecia feito de puro ouro. O trem sairia dali a meia hora e seguiria direto para o Estado de Vermont. Eles viajariam agora pelo interior do país.

Donald, em sua mansão, teria o pior romper do ano de sua vida. Sua esposa havia preparado a ceia junto à filha e alguns vizinhos. Eles costumavam fazer isso: convidar os moradores para festejar a virada em grande estilo. Havia porco assado e recheado com ervilhas e azeitonas cozidas e um bom vinho. O

dote do Conde V já havia caído na conta dos Lee — uma grana alta. Seria para eles a última ceia magra de suas vidas, já que não puderam pegar o pagamento naquele dia. Mudariam-se para o litoral — era o sonho da Sra. Lee — iria para São Francisco provar de suas belas praias. Alguns vizinhos perguntavam por Polly, mas os Lee já sabiam o que dizer: ela apenas fora ar a 144

Polly Lee

virada de ano e o Natal com os avós, em outro bairro distante dali e, consecutivamente, seu mês de férias. Era o tempo propício para que eles se arrumassem e viajassem para longe, sem ter que dar satisfação da filha intrusa a ninguém.

— Não vai comer, garotinha? — dizia o estranho naquele trem, olhando-a assustada e triste.

O silêncio era a sua resposta. Mas resolveu quebrá-lo e perguntou em tom choroso:

— Quero meus pais, onde estão? O senhor me prometeu que iria encontrá-los.

O esquisito e largo homem de barba esticada ficou mudo diante daquela pergunta. Ele realmente prometera a ela que seus pais iriam estar dentro daquele trem. “E agora, o que fazer?”, pensava ele. E a consolou para que não continuasse seu choro, dizendo em tom amável:

— Mais tarde iremos aos vagões ver se achamos eles. Não se preocupe, estou aqui com você, Polly. Eles devem mesmo ter embarcado no trem.

— O senhor sabe meu nome? — perguntou, surpresa.

— Sua medalha — observou ele, erguendo-a — tem seu nome, veja!

A menina aquietou-se e ficou olhando da janela com olhar sereno e tristonho. Então, ele retirou de sua mala um sanduíche imenso de mortadela e começou a devorá-lo feito um homem das cavernas, sujando toda sua barba de migalhas de pão.

O trem reiniciou sua viagem rumo a Vermont, a nova parada. Polly observava as imagens em movimentos rápidos diante de sua visão infantil, que já estava sonolenta novamente.

O cobertor do homem singular alcançava todo o corpo da 145

e o Morcego da Pensilvânia menina. O trem acelerava. A fumaça se soltava junto aos gritos da locomotiva. Ela estava cada vez mais distante de sua casa e de sua família. Sentiu algo mexer-se em seu bolso do casaco.

“Srta. Polly”, o animalzinho balbuciou tentando vê-la. “Sr.

Killer”, disse ela em tom baixo. “Onde estamos?”, perguntou ele. “Dentro de um trem sem meus pais” “O quê?!”, espantou-se. “Estou dizendo que estamos dentro de um trem com um estranho”, sussurrou ela novamente, encerrando a

conversa quase muda entre os dois.

— O que disse, senhorita? — perguntou o homem ainda devorando o pão, percebendo sua falação baixa.

— Nada. Eu não disse nada.

— Não quer mesmo um pedaço? — perguntou sem olhar para ela, naquela horrível mastigação.

Polly franziu o cenho em silêncio e continuou sussurrando para o amigo: “Fique, quieto aí, amiguinho, porque ele quase ouviu sua voz.” Então o pequeno morcego se aquietou.

O esquisito ageiro que levava Polly havia esquecido do bilhete que seria cobrado pelo funcionário da ferrovia, relacionado à menina — o famoso furador de bilhete. E lá estava ele com o perfurador na mão, vestido em um uniforme azul-marinho e um quepe da mesma cor, pedindo as agens. Eram muitos vagões, e agora que ele havia chegado ao que eles viajavam. O incomum, então, enfiando a mão em seu bolso fundo do casaco escuro, que mostrava botões imensos e pretos, retirou o seu bilhete e ficou pensando no que diria em relação à Polly. Já estavam na metade do caminho do Estado de Vermont

— dava até para se ver a luminosidade de Nova Hampshire.

— Boa noite, senhor! O bilhete. — disse o homem de bigode volumoso e curto como o do personagem Carlitos, tentando equilibrar-se no corredor do trem sem se segurar nos 146

Polly Lee

ferros de alumínio. Sua altura naquele uniforme com botões redondos e imensos fazia todos olharem para cima, com seus bilhetes, uma pequena caderneta e uma caneta nas mãos.

— Aqui está, senhor! — disse o inusitado, entregando-lhe apenas um bilhete.

O funcionário estranhou, observando-o e furando seu bilhete, e perguntou com a voz grave, de imediato:

— E a agem da menina, não tem?

— Ela não é minha filha, senhor. Encontrei-a perdida na estação.

O funcionário apenas o fitou por alguns minutos, e retrucou:

— Ela vai precisar descer na próxima estação e pediremos ajuda aos guardas do local para que detectem seus pais, certo, senhor? Nesse trem não viaja ninguém sem sua agem. Até porque é uma identificação do ageiro, caso aconteça alguma eventualidade.

O estranho apenas assentiu com a cabeça. E o funcionário se mandou para o último vagão anotando algumas linhas. Agora o esquisito homem tinha um problema a resolver, e muito sério.

Polly dormia como um anjo deitada em seu colo. Antes de chegar na cidade, fogos foram vistos do lado de fora. Era meia-noite — o famoso romper do ano. Alguns ageiros se cumprimentaram, mas o excêntrico continuou em seu lugar, sentado, com sua respiração acelerada e imaginando o que faria para livrar-se do cobrador de bilhete e dos guardas na próxima estação. Teria de entregar a menina às autoridades, e tudo iria por água abaixo. Então, ele teve uma ideia brilhante, dando para ver o entusiasmo em seus olhos grandes e escarlates, e relaxou escorando-se no encosto duro daquele banco gasto.

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e o Morcego da Pensilvânia

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Polly Lee

CAPÍTULO OITO

A NOVA ESTAÇÃO

uando amanheceu, eles já estavam no Estado de Q Vermont. O apito soou aos ares. Polly despertou e sentia fome. Mas antes perguntou novamente a ele por seus pais e por sua irmã Deborah. O sujeito apenas deu algumas desculpas, convencendo-a temporariamente. Retirou de sua mala outro lanche, entregandoo para ela. Polly pegou, ainda desconsolada e desconfiada, mas a fome falava mais alto. Era novamente um sanduíche de mortadela. Começou a devorar aquele apetitoso lanche olhando para o estranho homem, que também retirou de sua mala uma garrafinha de suco de algum sabor, que só ele conhecia, e entregou-lhe para que o pão não entalasse na garganta da jovem criança, deixando que ela terminasse de comer e oferecendo-lhe também uma sobremesa

— um caqui bem vermelho e suculento. E logo se lembrou do amigo Killer, que adorou comer o fruto e com certeza, estaria com muita fome. Então, deixou que o homem se distraísse e falou em tom baixo, virando-se para a janela: “Sr. Killer, Sr.

Killer!” “O que foi, senhorita?” , respondeu ele, em tom abafado. “Pegue, coma isso, antes que ele perceba que estou falando com você”, e soltou uma parte do seu fruto dentro de 149

e o Morcego da Pensilvânia seu próprio bolso profundo, deixando o menino que viajava de frente a eles ver a cena com um ar de espanto. “O que é, senhorita?”, perguntou o Killer. “Caqui bem suculento”, disse ela. O animal, então, lambeu-o com a língua comprida, satisfazendo-se.

Assim que o trem estacionou, o homem chamou-a para descer, antes que o funcionário aparecesse novamente. Polly não sabia do ocorrido e, ainda muito triste, acompanhou-o.

— E meus pais? — perguntou ela novamente, mas agora com profunda tristeza nos olhos. — Eles não estão no trem?

— Para lhe ser franco, senhorita, eles não subiram, neste trem. Andei ontem à noite, enquanto a mocinha cochilava, por todos os vagões, mas não os encontrei, e a menina agora está sem ninguém. Mas não se preocupe, porque eu cuidarei de você.

Não deixarei que nada de ruim lhe aconteça, acredite.

Polly experimentou uma tristeza que nunca havia sentido em toda sua vida. Começou a chorar baixo, chamando pelo nome do pai. Alguns ageiros observaram aquela cena, mas o homem puxou-a, descendo do trem rapidamente junto aos demais que ali iriam ficar.

— Menina — disse ele assim que se sentaram num dos bancos da plataforma —, eu me chamo Robert Galeno e sei que você se chama Polly Lee, e que é filha adotiva da família Lee.

— Então você conhece meus pais? — perguntou em tom de esperança. — O que quer dizer, senhor, com adotiva?

— Sim, claro que conheço. Então você não sabia que eles são seus pais adotivos?

Ela assentiu ando as mãos nos olhos. “Por Deus, como aqueles dois imbecis fizeram isso com uma criança?”, balbuciou ele.

— Como disse, senhor?

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— Nada, senhorita Polly. Não se preocupe, logo você estará com eles novamente. Eu lhe prometo — disse, juntando os dedos e beijando-os. — “Mas acredito que depois de conhecer sua história real, não irá mais...” — sussurrou novamente ao se virar.

— Não ouvi, senhor.

— Não foi nada. Sinto dores nas costelas por viajar sentado por longa distância e fico resmungando comigo mesmo.

Ela ouvia tudo, agora sabendo que estava nas mãos de alguém em quem poderia confiar e, quem sabe, talvez pudesse rever seus pais. Pelo menos fora o que ele dissera, e isso lhe era encorajador. Ele então, continuou: — Eu tenho algo a contar a você. Algo muito importante.

Ela ficou em silêncio. De repente, um apito — o funcionário à procura deles. Robert logo se misturou aos demais ageiros naquela imensa e larga plataforma, puxando a menina, e perderam-se do uniformizado, que desistiu da procura. E caminharam por ali, afastando-se da ferrovia.

— Polly, não tenha medo — disse ele, puxando-a. — Vou cuidar de você muito bem. Iremos pegar o próximo trem que chegará daqui a pouco tempo, mas quero antes informar-lhe o que seus pais deveriam ter feito e não fizeram. Venha! Vamos ali, para que possamos conversar um pouco. Pode confiar em mim.

Polly continuava calada e andava a os rápidos. O frio era intenso. Aquelas pernas finas caminhavam com ele como se fossem o maquinário da locomotiva. Sentaram-se em um daqueles bancos de uma casa de lanche — a primeira que viram.

Ele pediu dois lanches e dois sucos. Em seguida, Robert começou a narrar o que Polly precisava saber em se tratando dos 151

e o Morcego da Pensilvânia Lee e de seus verdadeiros pais, que viviam em outro país distante.

— Quem é você? — insistiu ela, olhando-o nos olhos e já com o choro estancado.

— Sou eu quem vai te levar aonde vivem seus verdadeiros pais, como já lhe disse.

— Meu pai é o Sr. Donald e minha mãe, a Sra. Margaret, e minha irmã é Deborah! — enfatizou, furiosa. — E não vou querer outros pais nem outra irmã nenhuma.

— Não quero te decepcionar, mas eles apenas a adotaram por um tempo, porém teriam que devolvê-la a seus pais verdadeiros. Eu mesmo a levei até eles quando a senhorita ainda era um bebê, para que fosse criada por um tempo limitado pelos Lee. Seus pais adotivos foram informados disso desde o início, e era para eles revelarem tudo à você assim que começasse a ficar mais esperta e mais crescida. Mas não o fizeram. E agora está essa confusão toda.

— É mentira sua! É mentira! Quero meus pais! — disse, desabando em pranto novamente ali naquele banco, com seu lanche nas mãos. Curvava-se quase a

ponto de deitar-se em seu próprio colo.

— Polly, não chore, por favor! Fique calma que tudo vai dar certo. Eu não estou mentindo. E vou ser franco com a menina: seus pais adotivos venderam-na, de certa forma, por algum preço para o Conde V, seu verdadeiro pai. E veja aqui o contrato que os Lee am! Olhe bem aqui, são as s deles, veja! — disse ao abrir o canudo alongado e repleto de letras. — Agora coma, logo estaremos embarcando novamente.

Polly, com dez anos, já sabia ler bem as palavras e teve certeza de que aqueles nomes eram mesmo de seus pais. E uma 152

Polly Lee

tristeza a tomou como se o mundo desabasse em sua cabeça, quando reconheceu aquelas s. Nisso, o trem se aproximou da estação.

— Olha lá ele, vamos! — gritou Robert, apontando e dobrando o contrato rapidamente e guardando os lanches na maleta.

— Não vou. — disse ela ainda soluçante, mas com aquelas últimas palavras na mente, sobre ter sido vendida pelos pais.

— E vai ficar aí sozinha? — falou, já de pé. — Vamos, senhorita! Prometo que logo voltaremos para seus pais adotivos.

Vamos logo! Será apenas uma viagem em curto tempo.

Então ela se rendeu e o acompanhou com medo de ficar ali sozinha. Entraram no último vagão dessa vez, porque daria tempo para se adiantar bem do caminho sem que o furador de bilhetes impedisse. E sentados, ele começou a narrar a realidade dela no seio daquela família. Falou tudo que a menina deveria saber dos pais adotivos. Ela soluçava. E o trem deu partida.

Agora, rumo ao Estado do Maine — Nordeste dos Estados Unidos. Seria outro longo percurso. Mas, naquele trem, algo inesperado aconteceria — um personagem ímpar e que mudaria completamente o comportamento da pequena Polly perante a situação.

Durante aquela noite, o Sr. Killer resolveu colocar a cabeça do lado de fora do bolso de Polly, mexendo-se como se estivesse incomodado por estar ali, naquele tecido apertado. “O

que foi, Sr. Killer?”, balbuciou ela olhando para o animal.

“Preciso de um pouco de ar, senhorita”, disse ele, mexendo-se.

“O quê?”, perguntou ela. “É o que você ouviu, preciso da noite por alguns minutos pelo menos.” Polly o deixou sair um pouco, 153

e o Morcego da Pensilvânia enquanto Robert roncava deitado no encosto do banco, e os outros ageiros também estavam de olhos cerrados. “Aah!

Que alívio!”, sussurrou o morcego, olhando a janela. “Então você já sabia que isso iria acontecer?”, perguntou olhando para ele. Killer, nesse momento, ficou sem ação e nada disse. “Pode falar”, insistiu Polly. Ele assentiu, cabisbaixo. “E você deixou que isso acontecesse?”, falou ela, seriamente. Ele apenas ouvia mudo e entristecido, deixando sua língua sair da pequena boca a todo instante. “Deveria ter evitado, mas, como disse Robert, foram meus pais quem quiseram ver-me aqui.” E assim, seus olhos se encheram de lágrimas. “Não chore, senhorita”, sussurrou ele, tentando consolá-la, e continuou: “Estou aqui para a ajudar no que for preciso.” “É desse jeito que você quer me ajudar, traindo-me?”, falou ela, fazendo com que Killer colocasse a máscara da culpa e retornasse ao bolso de cabeça baixa e em desânimo total. “Também não precisa ficar assim”, disse ela, tentando animá-lo. Ele logo retornou, mudando sua cara de animal dengoso em um sorriso piegas e de satisfação.

Via-se ali que o pequeno morcego já se afeiçoara à menina.

O novo dia raiou já na fronteira do Maine, e parariam na capital. A viagem já estava ficando exausta para eles. Comeram novamente o mesmo sanduíche, mas agora Polly já estava mais calma. Não que estivesse conformada, mas silenciou o choro, pois nada podia fazer. Olhava as lindas paisagens do lugar ando aos seus olhos pequenos, mas sabendo que o pequeno morcego era seu conforto.

Os leitores devem estar se perguntando o porquê da família Lee estar envolvida nessa história de Polly. Explicarei detalhadamente tudo em algumas páginas de um outro livro.

Agora, vamos ao novo personagem, que seria muito caro para Polly nessa viagem...

154

Polly Lee

Quando o trem adentrava Maine, apareceu, do nada, naquele último vagão, onde a menina e Robert estavam, duas novas personagens, que também viajavam no mesmo rumo.

Havia um banco naquele vagão que ficava numa posição diferente dos normais, e lá se via, sentadas, as duas: uma mulher de meia-idade, de pele alva como o leite e com algumas pintinhas marrons no rosto e nas partes do corpo que dava para se ver aos olhos, seus cabelos eram curtos e escorridos, bem Chanel, de porte nem magro, nem gordo, e seus olhos vivos tinham tonalidades que iam para o verde-claro; sua companheira de viagem, uma menina da mesma idade de Polly, que segurava um pacote de biscoitos nas mãos, a comer um por um, seriamente, olhando a janela e sua paisagem a ar. A garotinha não se parecia com a mulher; ela era negra e cabelos cacheados escuros, em tranças longas, seu rosto era fino e os olhos quase alaranjados, numa tonalidade como nunca se havia visto antes, destacando-se como uma pérola rodeada de escuridão, suas

pernas eram tão finas quanto seus braços — era realmente uma criança magricela, mas seu rosto vivia em riso simpático.

Então eles começaram a olhar-se — Robert e a mulher quase pálida. Havia algo que os atraíam, mas ainda não haviam percebido. Troca de olhares era algo que os faziam querer se comunicar. O trem percorria a estrada de ferro numa velocidade que mal dava para perceber alguma coisa pela janela. Mas, de repente, a mulher o olhou diretamente, onde Robert, percebendo aquele movimento, fechou os olhos tentando fugir dela. A esquisita mulher, deixando lá no banco sua filha a comer seu lanche, quieta, levantou-se e, segurando-se nos ferros redondos 155

e o Morcego da Pensilvânia do trem, tentando se equilibrar-se para não cair, aproximou-se de onde estavam o gordo homem e a pequena Polly.

— Bom dia, senhor! — disse em voz infantil e irritante.

Robert tomou um susto ao abrir os olhos e quase não separou os lábios; em um tom de resmungo, e falou:

— Bom dia, senhora! Robert a seu dispor.

— Chamo-me Luana — falou lhe estendendo a mão direita.

— E no que posso ser útil, senhora?

Robert era direto e, às vezes, mal-educado.

— O senhor já não esteve em Sighiçoara, na Transilvânia?

Acho que estou reconhecendo-o.

— Como é que é? — disse, assustado. — Do que a senhora está falando?

— O senhor me parece muito familiar — insistiu ela.

— Nunca estive em tal lugar. E por que eu estaria em um lugar que não conheço nem nunca ouvi falar?

— Então não esteve lá e não conhece o Conde V?

Robert suspirou. Agora sim, ela era alguém que ele deveria dar algum crédito. Não teria como fugir daquela mulher insistente e inconveniente. Rendeu-se e perguntou-lhe:

— A senhora é da Transilvânia?

— Sim. E estou levando para lá a minha filha, Lana, que estava ando as férias com sua tia, no Maine. Somos de Síbiu, Romênia, ela é uma das Iniciadas na competição deste ano. Foi escolhida pelo próprio coordenador.

Robert, então, disse:

— Hum... Desculpe-me! Estou levando essa pequena criança para lá.

— Que ótimo, senhor! — disse ela, já sentando-se no banco junto a ele, tentando empurrá-lo para o canto, e gritou 156

Polly Lee

rasgadamente: — Lana! Lana! Venha, minha filha, para cá!

Você agora tem uma companheira de viagem! Nós temos companheiros de viagem!

Polly estava entretida na janela e se virou de súbito ao ouvir aquela voz aguda da mulher inconveniente. A cada palavra que Luana falava, Robert se encolhia franzindo o cenho, pelo tom de voz tão estridente e inável. Ela prosseguiu com um sorriso ridículo, dizendo: — Então o senhor está levando essa linda pequena para a competição, é isso? Que maravilhoso! É

sua filha? Nunca ouvi falar que teve filhos.

Ele assentiu, pedindo em pensamento que a mulher saísse logo dali. Mas ela era insistente — estava decidida a permanecer ao seu lado. Polly ficou virada para a janela em sua divagação.

— Lana, minha filha, venha cá logo! — continuou a mulher, vendo a garotinha já no meio do corredor tentando equilibrar-se. — Venha conhecer Robert e sua filha! Como a menina se chama, senhor?

Robert sentia incômodo ao ouvir aqueles gritos dentro do trem. Já dava para perceber algumas pessoas também incomodadas com o tom de voz da inconveniente mulher.

— Polly — disse ele.

— Polly? Lindo nome esse. Lana, minha querida, essa é Polly a filha do Sr. Robert, sente-se.

— Ela não é minha filha — observou ele.

— O quê? — disse a mulher, surpresa. — Pensei que o senhor havia dito que...

— Sim, falei — disse atropelando-a —, mas... ela não é minha filha. Eu menti.

157

e o Morcego da Pensilvânia

— Não lhe entendo — rebateu a mulher. — Mas isso não importa. Agora que estou sabendo que o senhor está indo a Sighiçoara, precisamos conversar, não acha?

— Por que eu deveria? — perguntou, ironicamente.

Nisso, a menina Lana sentou-se junto de Polly, quase caindo no corredor com o balanço do trem.

— Olhe aqui — disse a mulher, deixando sair um riso e segurando no magricelo braço da filha —, veja que criança linda, minha Lana! Diga oi ao Sr. Robert, filha. Seja educada.

— Oi senhor. — fez Lana em riso agradável e infantil.

— Olá, senhorita! — disse ele, exibindo um sorriso amável. — Como vai?

— Tudo bem.

Em seus devaneios, Polly estava em sua casa, naquele momento, desfrutando do dia a dia dos Lee e suas novidades.

— Ela se chama Polly, querida Lana — observou Luana.

— Veja como minha filha é educada, senhor! Eduquei-a para que, quando chegar em Sighiçoara, não faça feio na frente dos demais, e acredito que ela estará de frente para o Grande Conde.

— Que ótimo — disse ele, tentando segurar-se por dentro de tanta irritação ao ver tamanha insolência daquela estranha mulher com sua filha. Robert não se agradava da forma que ela agia. E continuou: — Realmente, sua filha é bemeducada, Sra.

Luana.

— E muito inteligente — completou, erguendo o dedo indicador na altura de seu rosto e arregalando os dois olhos claros.

— Claro. Será uma boa companheira para Polly Lee na competição.

158

Polly Lee

— Polly Lee? — observou Luana, surpresa com aquele sobrenome. — Mas... que sobrenome é esse? É bem... diferente.

Sua descendência vem do Japão?

— Disso não sei.

— Mas eu tenho certeza que elas serão bem unidas na competição. Isso eu tenho — completou ela, deixando escapar um sorriso vaidoso.

Robert assentiu, quase pedindo que aquela mulher sumisse de sua frente.

O trem agora se aproximava da capital do Maine. Ali não teriam parada, e consecutivamente não haveria furos de bilhetes.

Rumariam agora para Nova Brunswick, onde fariam a próxima estagnada. Lá, Robert faria a mesma coisa que fez em relação à agem de Polly — desceriam e pegariam novo trem até o próximo Estado. O motivo pelo qual ele não pagava a agem da menina não era por falta de dinheiro — isso ele tinha em demasia —, mas porque seria exigida a documentação dela, e não as tinha em mãos. E já se via Lana sentada junto a Polly, para se unir a ela em conversa inocente. Robert viu que aquilo seria legal para a menina, que vinha muito triste pela falta de seus pais, e resolveu aturar por toda a viagem aquela inconveniente mulher com sua voz estridente, para que Polly se sentisse melhor e mais confiante. Agora teríamos duas crianças seguindo para Târgu Mures (Sighiçoara), no intuito de ingressar na mais famosa Competição da Transilvânia.

— Você, então, se chama Polly? — perguntou Lana, tentando quebrar o gelo entre elas. Polly apenas balançou a cabeça, mantendo-se virada para a janela.

— Não quer conversar comigo então, é isso? — insistiu Lana.

159

e o Morcego da Pensilvânia Após alguns minutos em silêncio, disse Polly virando-se para ela:

— Eu já tenho uma irmã.

E voltou os olhos à janela.

— Você tem uma irmã? Eu nunca tive uma irmã.

Polly se virou novamente ouvindo aquela afirmativa; percebeu tristeza nos olhos da companheira e perguntou:

— Você nunca teve uma irmã?

— Não. Eu sempre fui sozinha em minha casa, a não ser pelas minhas bonecas que me fazem companhia todos os dias. E

vejo que você não é sozinha.

— Como disse, eu tenho uma irmã de nome Deborah —

observou virando-se para Lana novamente. — Mas por quê?

Seus pais não quiseram outro filho para brincar com você?

Lana, então, entristecendo-se, demorou a responder àquela pergunta intrigante, e disse repentinamente:

— Porque meu pai morreu.

Polly ficou triste ao ver a expressão da nova amiga.

Robert e Luana conversavam sobre a Competição e sobre a viagem, que seria muito longa, e não perceberam o diálogo das meninas.

— De onde o senhor e sua filha estão vindo?

— Ela não é minha filha, já lhe disse.

— É verdade. Desculpe-me, eu havia esquecido!

— Tudo bem. Tive de ir buscá-la na América, no Estado da Pensilvânia. Sou um mensageiro de Sighiçoara.

— Ela estava de férias?

— Nada mais posso falar-lhe, senhora. Nada sobre isso ou de mais pessoal. Desculpe-me!

Luana não se conformou com a resposta de Robert — era uma mulher muito curiosa, além de possuir uma vaidade em 160

Polly Lee

todos os sentidos. Engoliu em seco a resposta dele, que era frio e direto em suas conversas. Humanos não entendem os mistérios da vida surreal. Havia mais um segredo que Polly precisava saber sobre si mesma. Mas, para isso, ele precisaria de tempo; um tempo mais longo a sós com a menina e no lugar certo.

Brunswick se ava ao som estridente do longo trem em velocidade máxima. Seus gritos soavam a todo instante, avisando sua chegada ao próximo local. Os ageiros estavam com brilho nos olhos, debruçados nas janelas. E em uma das cidades interioranas de Nova Brunswick, o trem estacionou.

Houve um intervalo longo após o último grito esfumaçado.

— Vamos, Polly, temos que descer novamente aqui e pegar outro trem até a Nova Escócia! — falou Robert levantando-se rapidamente.

— Descer? — perguntou Luana, surpresa. — Esse mesmo trem não irá a...

— Sim — retrucou ele, cortando-lhe as palavras —, mas não me faça mais perguntas agora. Se quiser, pode vir conosco.

Mas também, se quiser, pode continuar nele e nos encontraremos lá.

— Não, não — disse ela. — Iremos ficar sim, as agens foram compradas para o final da viagem até o navio.

Não posso perdê-las agora.

Polly já se sentia familiarizada com Robert e sua companhia infantil. Então desceram despedindo-se das duas.

Agora era ele e a menina apenas, naquela estreita e antiga plataforma. Alguns ageiros também haviam descido. Ele olhou no seu relógio e no mapa da estação, e viu que o novo trem chegaria após meia hora. Seria muito tempo para eles ficarem de pé ali devido aos poucos bancos que havia lá e que já 161

e o Morcego da Pensilvânia estavam ocupados. Ele a puxou para um canto do ambiente e começou a narrar algo dizendo:

— Srta. Polly, não me veja como um inimigo ou um estranho, mas como um amigo ao qual, mais tarde, irá agradecer por tudo que estou fazendo por você. Tenho alguns segredos a revelar, mas ainda não posso. Teremos tempo para isso. Quando chegar a hora e o lugar certo, relatarei tudo detalhadamente.

Então, Robert respirou profundamente e adiantou alguma coisa, dizendo: — Saiba, de antemão, que a senhorita não é uma

“neurotipo” como as outras pessoas.

Ela nada entendera sobre aquela palavra que soava estranha, muito menos do que se tratava o que ele dizia. Mas nada perguntou. Robert olhou no relógio da parede do local e viu os ponteiros marcarem cinco para as quatro da tarde. Olhou para o seu novamente, pregado no braço peludo e comparou o horário, vendo que o trem logo encostaria na estação.

— Vamos, o trem já está vindo. Chegaremos depois da Sra. Luana e sua filha.

Polly, então, curiosa e inconformada, olhou para ele e perguntou:

— O que o senhor quis dizer com não ser uma

“neurotipo”? O que quer dizer isso? Não é a primeira vez que ouço essa palavra de sua boca gorda.

O homem, que respirava dificultoso e pesava alguns quilos, sorriu levemente e falou:

— Vamos! Depois conversaremos melhor sobre tudo que precisa saber.

O trem parou apitando e soltando fumaça como um dragão sem chama. Eles subiram novamente no último vagão. Nova Escócia seria a nova estação e a final, para depois tomarem um 162

Polly Lee

navio, que rumaria até a Alemanha. A viagem seria excessivamente cansativa.

Não demorou muito e o trem deu partida. Polly já não mais chorava a falta dos pais, começava a conversar com Robert de uma maneira mais familiar. Contou que sua irmã era ruim com ela, e que sua mãe também era indiferente, apenas Donald, seu pai, amava-a de verdade. Falou sobre sua escola e a professora Mirlly. Relatou também sobre o gato Meme, do qual Robert já tinha conhecimento. Falou sobre seus avós, da parte de Donald, e do piquenique junto à babá. Robert se sensibilizou com a menina ao lembrar-se de Donald, mas se manteve forte para não chorar nem piorar as coisas — ele era sério, mas, no fundo, também se mostrava um ser sensível e derretido feito açúcar molhado.

— Mas você terá agora, Polly — disse ele —, um pai completamente amoroso. O Conde é muito bom e está ansioso para conhece-la. Eu acredito.

— E como se chama a minha mãe? Ainda não falou nada sobre ela.

Ele engoliu em seco e corou. E disse, em tom estranho, como se estivesse engasgado:

— É uma... uma mulher esplendorosa e magnífica pelo que sei. Uma verdadeira Lady. Conhecemos-a por Mirena. Sim, sua mãe se chama Mirena Moldavo, um sobrenome não tão bem-vindo ao povo de Sighişoara.

— O quê?! Não entendi, senhor.

Aquele sobrenome fez Robert serenar os olhos no horizonte. E continuou:

— E seu pai é o Conde V, senhor do mais famoso Castelo da Romênia, e da mais famosa Competição.

163

e o Morcego da Pensilvânia

— Castelo? Competição? — perguntava Polly, cheia de curiosidade. — E que lugar é esse, Sighişoara?

— Sim. O Conde é rico, muito rico. É poderosíssimo. Ele fundou uma competição que ficou famosa no país que se chama Sighişoara, por ser um lugar paralelo a esse. E o Sr. V vive em um castelo imenso.

— Paralelo? Do que o senhor está falando? Não entendo nada.

— A senhorita saberá de tudo no momento certo — disse ele, percebendo nela já algum interesse por sua legítima identidade.

— De que tipo de competição estamos falando?

— Logo saberá, e você verá o que a espera em seu real mundo. Posso? — perguntou, retirando seu cachimbo alaranjado do bolso do casaco e um isqueiro amarelado, deixando que seus dedos deslizassem por cima de uma esfera em atrito, liberando faíscas brilhantes e acendendo o artefato que exalava aroma seco.

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Polly Lee

CAPÍTULO NOVE

O NAVIO E DOIS NOVOS INICIADOS

obert tragava seu cachimbo serenamente, deixando Rque

a fumaça se espalhasse no ambiente ventilado. O

trem acelerava e gritava a todo instante. Percorria o Estado de Nova Brunswick, que fazia divisa com a Ilha do Príncipe Eduardo. O mar em águas onduladas era visto por Polly à distância. A paisagem a tomava de encanto. Sua nova amiga, Lana, também se encantou com a visão do trem que seguia a frente. Elas debruçavam-se na janela para ver tudo e apreciar em detalhe. Logo se via os cachos longos e escuros de Lana esvoaçarem aos ventos litorâneos que entravam pela janela.

— Ali, Polly — disse ele, retirando o cachimbo dos lábios e apontando com o dedo compacto —, é o Oceano Atlântico Norte, que nos levará à Europa dentro de uma imensa Nau!

———————————————————

— Nau...? — perguntou Lana para sua mãe, ao arem primeiro pelo local, que explicava sobre o navio que as esperava. As palavras de sua genitora se nivelaram com as de Robert diante de Polly quando aram no mesmo local. A pequena Lana foi criada pela Sra. Luana como Polly, pelos Lee; 165

e o Morcego da Pensilvânia era filha adotiva, mas ao contrário dos Lee, Luana a amava demasiadamente, mesmo sendo diferentemente dela em seu físico e aparência. Foi adotada quase que no mesmo dia em que Robert entregou Polly aos Lee. A Sra. Luana vivia sozinha desde que seu esposo Ângelo Moore se fora. E aquele bebê de pele escura foi, para ela, a maior alegria de sua solidão, que já a acompanhava há muitos anos. A menina foi criada com todo zelo e carinho que uma mãe pode dar a uma filha. Luana nunca tivera filhos, já que Ângelo era estéril — isso era o que se falava. E com a chegada de Lana àquela família, que agora somava Luana, a filha e seu cão George; um animal enorme e peludo, que era muito dócil para com a menina, tornaram-se uma família completamente feliz. Lana teve alguns períodos difíceis na escola por ela ser negra, devido ao preconceito que ainda sobrevive em nossa sociedade. Mas a Sra. Luana foi muito cuidadosa com esses detalhes, que ela já sabia que ocorreria com a nova filha. E conseguiram sobreviver à sociedade medíocre europeia.

— É um grande navio, senhorita — observou Robert para Polly. — Um grande barco metálico e poderoso. A viagem será muito longa nas águas geladas e calmas.

Após alguns dias, o trem beirava a Nova Escócia; uma imensa Ilha do Baixo Canadá. A temperatura era mais amena. O

trem ficaria na estação da capital da província, chamada Halifax.

Houve uma parada forçada, antes de chegar ao destino, pela quantidade de neve por cima dos trilhos, onde homens limpavam de pá o pequeno trecho da estrada de ferro. Das janelas, as pessoas observavam a árdua lida daqueles trabalhadores do inverno, que mal voltavam para seus lares e suas famílias, tendo que, durante aquela estação, se alojar 166

Polly Lee

próximos aos trilhos ferroviários. Polly, então, debruçou-se para apreciar a paisagem friorenta e viu quando um veado e seu filhote adentraram a floresta próxima dali.

Ela gritou:

— Olha lá, senhor!

— O que foi, Polly?

— Eles. Veja! São lindos.

— Aaah! — disse ele apontando para uma manada que surgia do nada. — São veados canadenses, eles beiram as estradas no inverno atrás de alimento, e

atravessam os trilhos em bando. Veja ali aqueles outros! Às vezes são atropelados quando escolhem atravessar na hora que o trem a.

— Lastimável! — fez Polly.

Notava-se que, naquele momento, em que ele falara sobre morte, Polly havia ficado triste. Lana também observou o trabalho dos homens ao ar por ali antes deles.

— Nossa, que lindo! — disse para a sua mãe, impressionada e debruçada na janela. — Olha lá, mamãe!

— O quê, minha filha? Aaah! São os veados assustados com nossa presença.

Polly se encantava com os animais na correria por sobrevivência. Um deles, de repente, parou e, erguido, olhou o movimento do trem e dos homens, e correu em disparada para a floresta, sumindo por entre as árvores rasteiras, carregando seu filhote — é a vida natural, que sabe se conduzir e proteger-se quando há ameaças.

O trem voltou a movimentar-se e seguiu viagem rumo ao Canadá, sob acenos dos trabalhadores com suas ferramentas nas mãos. Novamente a noite aproximou-se e o frio aumentou —

estava congelante. As janelas foram lacradas. Uma bebida foi 167

e o Morcego da Pensilvânia servida para aquecer o corpo dos ageiros. Polly adorou o líquido doce. No momento do lanche, Lana só faltou ter uma dor de barriga de tanto tomar aquela bebida deliciosa. Deliciavam-se, de forma que seus lábios secos ficaram completamente melecados. As locomotivas corriam e a fronteira era o próximo o. Nova Escócia se aproximava aos olhos de todos. Teriam uma parada de algumas horas, antes do destino, para um descanso nos hotéis da redondeza.

E Robert teve mais uma surpresa — uma voz grave como um ronco gordo, que dizia:

— Senhor, bilhetes!

Era o cobrador. Robert cochilava com seu cachimbo apagado por entre os lábios, mas logo se posicionou assustado, dizendo:

— Sim, senhor, está aqui!

Quase derrubou o artefato em suas pernas ao mostrar-lhe a agem.

— Não tem o da menina?

A pergunta foi a mesma, mas o aspecto do funcionário mudara; esse era baixo e gordo, de cara larga.

E Robert logo veio com a mesma resposta, deixando-o preocupado:

— Não tenho.

— Não? Não é sua filha?

Ele logo repetiu as mesmas palavras de outrora, retrucando ao funcionário desconfiado. O dito cujo falou:

— Então precisaremos encontrar seus pais. Desceremos na Nova Escócia, e lá eu tentarei localizá-los, ligando para a estação na América.

Robert assentiu e esperou a próxima parada. Mas antes de chegar lá, ele e Polly se mudaram novamente de vagão, para 168

Polly Lee

então livrar-se do furador de bilhetes. Andou com a menina para os primeiros vagões. Dessa vez não havia banco vazio onde adentraram. O trem estava completamente lotado.

— Senhor! Senhor! — gritava um rapaz de pele escura e bem aparente, já levantando-se do banco. —, pode sentar-se aqui com sua filha se quiser?

E o lugar apareceu.

— Obrigado, rapaz! — disse Robert aconchegando-se no banco gelado e colocando a menina em seu colo esparramado.

Não era na janela, e Polly ficou longe da paisagem, mas a certa altura dava para ver alguma coisa. E pelo resto da viagem ela ficou com a cabeça erguida tentando alcançar a abertura de vidro. Luana e sua filha no outro trem, que corria desesperado, cochilavam arriadas no encosto do banco. A estação da Nova Suíça se mostrava, e os ageiros começavam a movimentar-se para a descida. Estavam próximos ao litoral. Um imenso navio já aportava com seus apitos estrondosos, avisando para levar as pessoas à Europa, destino Amsterdã, Alemanha — uma longa e enfadonha viagem pelo mar do imenso Oceano Atlântico Norte — seriam vários dias mar adentro. Luana e Lana já haviam se aproximado do navio, já que seu trem chegara na frente, ficando à espera dos

outros.

— Aqui, Polly! — gritava Lana lhe acenando de longe. —

Polly!

E lá iam caminhando Robert e os demais na direção do grande navio, a os longos, subindo a rampa comprida de metal e carregando suas malas, mostrandose cansado, com a respiração acelerada. Seguiram pelo corredor enorme e comprido, onde portas baixas e arredondadas estampavam-se aos olhos curiosos deles. Todas numeradas em metal. O piso do 169

e o Morcego da Pensilvânia barco enorme era de madeira envernizada e bem rústica, no teto, por todo corredor, havia lustres e lamparinas acesas. O som rasgado do apito do barco entoava seu cântico de despedida do porto, fazendo seus primeiros movimentos sobre as águas geladas aos acenos de quem ali ficou.

— Acho que é esse aqui, Polly. — disse Robert, olhando seu bilhete, à frente do compartimento, onde uma porta de madeira avermelhada os esperava.

Então, ele rodou a maçaneta em tom azulado, e lá dentro do compartimento havia dois beliches em metal cinza, abraçando dois colchões finos e bem forrados de cobertas grossas cor de carne, em conjunto com travesseiros pouco duros na cor dos ferros, mostrando duas listras alvas. E naquele compartimento, ninguém mais apareceu para ficar com eles.

Acomodaram-se — Robert em cima e Polly na cama de baixo.

Numa outra porta, de mesma cor e modelo, a Sra. Luana e sua filha já haviam se acomodado junto a três outras pessoas, que também estavam indo ao mesmo destino que eles — a Sra.

Magda e suas duas filhas quase gêmeas, Cornelius e Cosmina; duas crianças chatas e briguentas de pele alva e cabelos aloirados, olhos escarlate, e seus rostos bochechudos, que lembravam em muito Deborah.

E quando Luana entrou com sua filha, as duas meninas com caras dobradas discutiam sobre quem ficaria com a cama de cima do beliche. Uma delas começou a chorar em gritos horrivelmente estridentes. Olharam para Lana, indiferentes, devido à sua cor e sua aparência. As duas eram como a mãe: alimentavam preconceitos quanto à pele e a situação financeira das pessoas. Eram filhas do falecido Capitão da Marinha alemã, o Sr. Charles Moldavo, que lutou na guerra dos anos 40. Pelo que me consta, ele era um dos braços-direito do nazista ridículo, 170

Polly Lee

mas teve um fim não muito agradável. Também pertencia à família mais temível de Sighişoara.

— Meninas — gritou Magda falsamente — Comportem-se ou eu vou bater nas duas! Respeitem as visitas. Bom dia, senhora...?

— Luana — disse a mulher com os olhos arregalados e amedrontados ao ver a cena das meninas mal-educadas. — Essa é minha filha, Lana!

O olhar de Magda remetia à sensação de nojo ao ver a menina negra.

— É um prazer, queridas. Sintam-se à vontade! —

retomou com riso forçado. — Ficarei no meu colchão, que carrego para onde vou. Podem ficar com o beliche.

— Obrigada, senhora! — disse Luana, desconfiada.

— Essas duas aqui — observou Magda — são minhas filhas, Cornelius e Cosmina, elas não conseguem se unir nunca, vivem acotovelando-se o tempo todo. A culpa por elas serem assim é do pai delas, que lhes dava muito dengo fazendo seus gostos. ei uma vida inteira reclamando com ele.

Lana olhou para elas quase rindo, por ver tanta gordura naqueles rostos infantis e briguentos, com os olhos franzidos.

— São apenas crianças — falou Luana, tentando amenizar o clima entre elas. — Ele não veio junto?

— Quem? Meu esposo?

— Sim.

— Não, não. Ele morreu durante a guerra.

— Sinto muito.

— Tudo bem. Ele era muito dado à bebida — disse, friamente.

— Entendo.

171

e o Morcego da Pensilvânia

— Para onde estão indo? — perguntou Magda.

— Estamos indo para Ardeal.

— Que magnífico! Também estamos indo para lá. Sua filha é uma Iniciada na Competição do “filho do dragão”?

Luana assentiu em silêncio e logo falou:

— Então vocês também estão...

— Sim, sim — disse lhe atropelando as palavras. —

Soube que as matrículas para a Competição são limitadas e que poucos conseguem ar nos testes.

Luana concordou e jogou sua mala em cima da cama.

Lana logo se jogou também no colchão macio — estava cansada. As filhas de Magda olhavam para Lana, de braços cruzados, sentadas na beira da cama inferior de olhos cerrados, como uma coreografia.

— Tire os chinelos, minha filha — disse Luana. — Faça como lhe ensinei. Se a Sra. Magda quiser uma cama, posso dormir com minha Lana, e suas meninas podem ficar com as outras.

— Não, não precisa, Sra. Luana. Essas meninas têm que aprender a se comportar melhor diante das pessoas e nos ambientes.

— Eu quero, mamãe! — gritou Cosmina, referindo-se às palavras de Luana.

— Não. — retrucou sua mãe. — Deixe de ser egoísta.

Magda era magra como uma tábua e apresentava o rosto enrugado, como se vivesse a todo tempo com raiva, sua voz era embutida como um cone apertado, seus cabelos bem curtos deixavam à vista um pescoço fino e comprido, tão fino que dava para perceber suas veias quando falava, querendo escapulir do corpo — era o grande problema das meninas com a mãe — por ela ser magra demais e suas filhas...

172

Polly Lee

Vocês já imaginam, não é?

Mas quero frisar aqui que o pai delas era um tanto largo e pesado, como um hipopótamo, e dos maiores.

— Acho que essa viagem será muito cansativa —

observou Magda, colocando sua mala colorida no chão e sentando-se na cama.

Cornelius e Cosmina logo se colocaram em seus lugares e riam em gargalhadas altas. Lana apenas espiava a cena das duas meninas de rostos redondos, em tom de riso, mas seu sono e cansaço a fez cochilar rapidamente.

— Comportem-se meninas! — dizia Magda, com a respiração cansada.

Houve enjoo naquela viagem devido ao balanço do mar agitado. Polly estava encantada com tanta água; a sua visão era infantil e sonhadora enquanto olhava pela pequena e redonda janelinha na lateral do aposento de onde ficava um dos beliches.

Nunca havia visto tamanha grandeza aos seus olhos. E em determinado local oceânico, ela começou a gritar com iração:

— Olha lá, Sr. Robert!

Ele apenas ouvia, vendo-a eufórica em cima do beliche.

Quando a primeira noite caiu, eles permaneceram fora dos aposentos, sentados nas cadeiras de madeira nas quais as pessoas, durante o dia, acomodavam-se para o banho de sol, caso ele aparecesse. O som alto e chorado de baleias, vindo do alto-mar, soava como lamúria em assovios melancólicos, deixando Polly e as demais crianças um pouco assustadas. Mas havia, naquele som meloso, algo de encantamento. Killer, nesse momento, sentiu vontade de sair daquele bolso apertado para voar com suas longas asas incolores e finas. Polly percebeu seus 173

e o Morcego da Pensilvânia movimentos forçados e cochichava para que ele ficasse quieto, dando a perceber que reclamava alguma coisa com alguém.

— Não fique com medo — disse Robert para eles —, baleias cantam quando se

encontram em suas viagens longas. É

como se quisessem reunir-se em família em comunicação aquática.

Todos juntos sentiam a frieza do mar em seus casacos e lábios pálidos, enquanto olhavam para o céu estrelado e límpido.

Então, Robert ficou de pé e disse:

— Querem ouvir uma pequena lenda que minha mãe me contava quando eu ainda era bem criança como vocês?

Assentiram, curiosos e de olhos fitados nele. E olhando no horizonte além do mar calmo, ele acendeu seu artefato fedorento e começou a narrar em voz acabrunhada, ao som daqueles imensos mamíferos, para as quatro crianças e suas mães dizendo:

— Um dia, quando o sol sorria para o mar, numa linda manhã clara de verão, “uma filhote” de baleia azul, que vagava sozinha pelas águas do imenso oceano, chorava por ter sido abandonada, ou se perdera, não sei bem, de sua família, que navegava mares agitados. Seu olhar era triste e algumas lágrimas, que saíam de seus olhos melancólicos, se misturavam com a água ondulada e salificada, onde nadava calmamente.

“Filha, por que choras?” Uma voz soou aos seus ouvidos. Ela olhou ao seu redor e nada viu. E continuou a chorar e a nadar perdida por entre as águas. “Filha, por que choras?”, insistiu a voz calma. “Quem está falando?”, perguntou a pequena baleia, curiosa e assustada, tentando encontrar de onde vinha aquela voz em forma de canto. “Você acha que está sozinha, é isso?”, perguntou a voz, agora em tom esperançoso. Ela, então, assentiu tristonha, mesmo sem saber de quem se tratava a estranha voz.

174

Polly Lee

“Está vendo toda essa água que você nada e na qual você se alimenta?” A pequena baleia assentiu novamente. “Pois é, vivo sozinha há milênios e nunca me senti triste por achar que estou só”, disse a voz. “Então estou falando com as águas?”, perguntou a pequena baleia, surpresa. “Sim, e abraço você desde que era um bebê.” Ela, então, sorriu e começou a nadar mais animada em mergulhos profundos...

Nesse momento, Polly adormeceu, deixando Robert falando para os demais que, irados e curiosos, olhavam-no com seus rostos encantados e serenos. Magda e Luana haviam se afastado durante as palavras dele, e conversavam um pouco, nas mediações da proa. Robert, notando que Polly havia dormido, parou a narrativa naquele ponto, e pegou-a nos braços, levando-a para dentro e deixando as outras crianças todas fascinadas com a linda história inacabada.

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e o Morcego da Pensilvânia

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Polly Lee

CAPÍTULO DEZ

O SUSTO

claridade adentrava pela abertura circular do Aapose

nto onde estavam Polly e Robert — alguns raios do tímido sol começaram a incomodar a criança, que ainda dormia inocentemente desde que ele iniciou aquela mágica narrativa. E virando-se, ela tentou abrir os olhos direcionados à minúscula abertura, numa tentativa frustrada, franzindo o rosto e levantando-se, espreguiçou-se como se estivesse em sua cama na mansão dos Lee. Sua boca pequena, mas podia-se ver seus brancos dentes mostrarem-se como neve. Ficou de pé e, para sua surpresa, Robert não se encontrava em sua cama, nem em qualquer canto do estreito aposento.

— Sr. Robert? — chamou assustada. — Senhor!

— O que foi, senhorita? — gritou Killer, sentado em suas asas já no piso emadeirado, olhando para ela. A menina olhou para os cantos do ambiente e nada de Robert. Aproximou-se da porta e tentou abri-la, não tendo algum êxito algum. Na verdade, ele havia trancado a chave por fora, por uma questão de segurança.

— Ele fechou, senhorita — disse o animalzinho, quase cuspindo sua língua comprida e tênue.

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e o Morcego da Pensilvânia

— Há quanto tempo o senhor está aí? Quer ser pego por ele, é isso? Ou por alguém nesse barco?

— Desde que Robert saiu. Ouvi quando ele abriu a porta.

— O amigo precisa ter mais cuidado para não...

— Eu sei, senhorita, eu sei — retrucou antes que ela terminasse de falar —, mas deixei que ele saísse para, então, dar um voo até aqui. Já não aguentava mais de tanto aperto nesse seu pequeno bolso. — O que vai fazer agora?

— Não sei — disse olhando para a mala de Robert.

Pensou em abri-la e vasculhar, mas não o fez. Aprendeu com seu pai, desde os quatro anos, que nunca se deve mexer nas coisas dos outros sem a sua permissão.

De repente, a maçaneta da porta se mexeu, fazendo um barulho agudo e contínuo. Ela olhou rapidamente, levantando-se num pulo — era Robert, voltando acompanhado de Luana e sua filha.

— Sr. Killer, é ele! — disse em voz baixa. — Volte logo para o bolso! Venha!

O pequeno morcego então batendo suas longas asas estabanadas voou até o casaco de Polly escondendo-se.

— Ufa! Essa foi por pouco — falou ela, ajudando o pequeno morcego a esconder-se. — Temos que ter mais cuidado, amigo.

— Bom dia, Polly! — cumprimentou Luana, exibindo um riso amigável ao abrir a porta. — Como ou a noite?

Polly apenas abraçou a amiga Lana, sorridente — já havia uma afinidade entre elas. Porém, teve o máximo de cuidado para não abraça-la muito forte, para que Killer não fosse espremido.

Coitado do pequeno animal, estava todo encolhido nesse momento, com medo de virar pizza de morcego.

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— O que foi, Polly? — perguntou Lana, notando seu súbito afastamento.

— Nada. Apenas com a barriga adoentada. Comi algo que não me fez bem ontem.

— Dormiu bem, senhorita? — perguntou Robert.

Ela assentiu em silêncio e disse:

— Sinto fome senhor.

— Eu também, mamãe. — falou Lana, animada e aproveitando a deixa da amiga.

— Sabia que você acordaria faminta — observou ele, mostrando-lhe algumas maçãs e peras que resolveu pegar na cantina do navio. — Se quiser mais alguma coisa, pode pedir que eu vou buscar.

— Gosto de tomar leite logo cedo. — observou Polly. —

Sinto falta do leite fresco que era deixado todos os dias na porta de minha casa. E meu caqui suculento, que meu pai Donald comprava na feira.

Na verdade, o fruto vermelho de que Polly falou, era simplesmente para Killer — ela era muito esperta.

— Sim, claro — disse Robert. — Pegarei na cantina. A senhora poderia ficar aqui um pouco com elas, enquanto vou buscar o leite?

— Claro. Pode ir que fico com as meninas.

— Posso ir? — perguntou Polly.

— Pode sim. — falou Robert. — Vamos comigo! Mas termine antes com essas frutas, temos bastante tempo.

— Também quero ir, mamãe. — disse Lana, entusiasmada.

E Luana assentiu.

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e o Morcego da Pensilvânia

— Então iremos todos. — observou Robert com um leve riso.

Enquanto elas devoravam os frutos, Robert e Luana iniciaram uma conversa a respeito da nova ageira e suas duas filhas ináveis dizendo:

— Não o aquelas lá. — falava Luana. — Elas são todas repletas de preconceitos. São todas ridículas.

— Já percebi. Mas precisamos ter cautela quanto a isso, porque... a senhora sabe de quem se trata aquela família?

— Não sei. Do que está falando?

— A Sra. Magda Moldavo é herdeira de alguns imóveis de Sighiçoara devido ao seu falecido marido; ex-combatente da marinha alemã. Família dos primos do Conde V.

— Como é que é? Então ela é...

— Sim — disse cortando suas palavras. — Ela casou-se com o primo do Conde, e agora surgiu esse problema dentro da família. Se as filhas dela não forem as preferidas na Competição, poderá ter uma mudança radical do evento. O Sr. V

sente-se ameaçado devido aos escritos deixados por Ângelo, que falam sobre os herdeiros do Castelo e toda a disputa de Sighişoara. Por isso, tenha muito cuidado com o que fala. Ela é mesmo uma víbora. Não vejo um futuro muito bom para o país de Sighiçoara caso os Moldavos vençam a Competição novamente. Desejaria qualquer coisa aqui nesse navio, menos deparar-me com aquela lá. Sighişoara vive os piores dias nesses últimos tempos. Isso precisa mudar.

— Podemos ir? — perguntou Polly, engolindo os últimos pedaços da maçã e limpando a boca com o fino braço.

— Sim, claro. — concordou Robert.

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Polly Lee

Dentro do bolso dela, Killer franzia o cenho de vontade de lamber um pedaço do fruto, pois sentia o cheiro doce quando Polly mordia.

E a porta foi escancarada. Os corredores eram estreitos de fazer medo a quem tivesse certo pânico de lugares fechados, luzes para todos os lados e como eu falara, aberturas do mesmo tamanho e largura, onde pessoas se cruzavam.

E seguiram os quatros...

— Por que todas as portas são circulares, Sr. Robert? —

perguntou Polly, curiosa.

Ele deu uma meia gargalhada e disse:

— Para que se tenha mais espaços. Tudo num navio é calculado nos mínimos detalhes. Quanto mais sobrar espaços, melhor para se ganhar dinheiro. E eu não ajudo com esse meu corpo, não é?

E mostrou um semblante bastante cômico, onde os outros quase riram.

— É sua primeira viagem num navio? — perguntou Luana para ele.

Robert assentiu. E caminharam alguns metros, logo alcançando uma porta que os levariam à movimentada cantina, onde havia várias pessoas de nacionalidades diferentes. Pessoas que eles nunca imaginavam ver ou conhecer. Alguns falatórios e mastigar de alimentos diversos preenchia o ambiente com mesas compridas e leves sorrisos.

— Quero torradas também — disse Polly olhando na direção de uma cesta repleta de pedaços de pão.

— Fique à vontade, senhorita. — fez Robert. — Pegue o que quiser. Você também, Lana. Tem bastante geleia aqui.

Comam porque a viagem será longa.

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e o Morcego da Pensilvânia

“Srta. Polly, não se esqueça de mim”, sussurrou Killer.

Ela ouvia e tentava disfarçar olhando para os demais, na intenção de ver se algum deles havia percebido os sussurros agudos e esquisitos de seu amiguinho. “Senhorita”, continuava ele mexendo-se.

Eles então, sentados à mesa comprida, tiveram um desjejum longo e farto. Killer sentia os aromas e sua cara era de um animal um tanto inconformado e triste. Resmungava baixo.

Sua língua chegava à beira do bolso tentando tocar alguma coisa

— um desespero total, porque Polly, notando seus movimentos, dava uns tapas leves na língua fina do morcego, que logo a recolhia. Robert e Luana continuaram sua conversa enquanto a pequena Polly e a amiga devoravam de tudo um pouco naquela comprida mesa, onde olhares curiosos dos demais ageiros se direcionavam a eles, notando aqueles olhos completamente avermelhados — os conhecidos “neurotipos” estranhavam e ficavam indiferentes ao quadro a sua frente. Alguns se levantavam com medo, outros desconfiados. Não era normal, numa sociedade, ver pessoas de olhos escarlates, parecendo brasa morna.

— É... — fez Robert, sentando-se com a respiração ofegante e com palavras pausadas direcionado a Magda —, o maior cuidado será pouco ao redor daquela víbora.

— Entendo. O amigo viajou muito para buscar a pequena Polly, não é?

— Sim. Era meu dever. Foi o trato que fiz com o Conde, mas logo a menina terá novo guia até o destino. Não só ela como todos os Iniciados, inclusive sua filha.

— Então não será o senhor que irá...

— Não — disse a atropelando. — Lá, no porto francês, as crianças serão entregues a um professor renomado do Castelo —

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o novo instrutor da Competição. Ele quem as guiará até Sighiçoara.

— Posso saber de quem se trata esse professor?

— Não, não pode. Nada sei sobre ele. Recebi apenas ordens do Conde de que deveria entregá-las ao novo professor de mentes. Deve ser alguém de sua plena confiança, acredito.

Disso não tenha dúvida, senhora. Aaah... — fez Robert, levando os braços e as mãos cruzadas à sua nuca, como se fosse espreguiçar-se — minhas férias chegaram. Preciso mesmo de descanso. Devo fazer uma viagem muito em breve.

— Então vai pegar férias? E não pode mesmo me falar sobre o tal de...

— Não — interrompeu ele — Apenas que ele é meu substituto. Mas tranquilizese quanto à sua filha, estará em boas mãos.

Ela então silenciou, e as duas meninas, todas lambuzadas, estavam fartas. Killer, mordia-se de raiva e de fome — seu jeito era de criança malcriada. Sua língua salivava a todo instante, deixando o tecido do bolso úmido.

— Satisfeitas, senhoritas? — perguntou Robert.

Elas nada falaram. Apenas ficaram tristes de tanto comer.

— Posso levar um desses? — perguntou Polly, já segurando o maior fruto da cesta.

— Claro, Polly. Fique à vontade. Vamos?

E ficaram de pé. Ao pegar o fruto, Polly jogou-o dentro do bolso, onde estava o animal, que levou uma pancada forte na cabeça, ficando bravo e meio zonzo. Mas logo se recompôs ao lamber o fruto, que era bem mole e suculento em duas rachaduras meladas.

— Quero dar um eio pelo navio — disse Polly.

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— Eu também! — gritou Lana.

— Não, minha filha — observou Luana —, temos que voltar aos aposentos.

Robert então, segurando na mão de Polly, levou-a ao convés novamente; uma área imensa e plana. Naquele dia, o mar estava agitado. Havia várias pessoas por ali, entre crianças, adultos e velhos.

— Aqui, Polly — disse ele —, é o convés do navio.

— Convés?

— Sim. É a parte mais belíssima dos navios. Venha cá!

Venha ver que impressionante!

E levou-a até as grades que beiravam as laterais do grande barco, deixando visível a imensidão do mar agitado e quase congelado.

— Veja como é alto!

— Muito alto, senhor.

— Essas águas, Polly, estão a alguns graus abaixo de zero.

Muito geladas. Se ficar um bom tempo nelas, o corpo congela e você morre...

Os ventos sopravam friorentos, tocando-lhes a face franzida e o corpo agasalhado.

— Ei, vocês aí! — gritou um rapaz de estatura média e encorpado, vestido em um uniforme com um quepe branco e, por cima do veste, um casaco preto e longo. — O que estão fazendo?

— Sim? — perguntou Robert.

— Sou marinheiro e fiscal do convés, e quero lhes dizer que não é confiável e nem permitido ficar na beira do navio com essas águas agitadas assim! Além do mais, o senhor, com meus respeitos, está com uma criança. Por favor! Retirem-se daí imediatamente!

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— Tudo bem, amigo — disse Robert, afastando-se com a menina. — Venha, Polly, vamos entrar, está ficando muito frio aqui fora!

O navio flutuava em velocidade extrema. Com uma semana, a metade do caminho já havia ido embora. Seu destino seria na Nova Aquitânia; uma região portuária situada em uma comuna sa, de nome La Rochelle. De lá, junto aos demais Iniciados, eles pegariam um trem, que teria destino à Romênia

— seria mais uma viagem longa e exaustiva. O novo professor e as crianças viajariam apenas em um único trem, a famosa locomotiva turística da Europa.

E numa determinada manhã fria, sentindo o balanço do mar, Polly adoeceu, de forma que nenhum remédio buscado naquele barco a curava. Robert ficou muito preocupado —

precisava chegar a Competição com sua protegida sã e salva —

uma imensa responsabilidade para ele. Sabia como resolver aquele problema do seu modo, mas naquela ocasião não podia fazer nada. E lembrou-se que, em sua

mala, havia algumas ervas que ele, não sabia explicar de onde vieram. Pegou as hortaliças rapidamente e foi à cantina preparar um chá. Polly estava com pirexia e variando em conversa sem nexo. Às vezes chamava por seus pais adotivos. O remédio ficou pronto. O líquido foi levado numa caneca de alumínio à boca de Polly, por ele que logo, retirou-lhe a coberta do corpo febril e a lavou com um pano úmido para ajudar a diminuir o aquecimento — foi realmente uma noite de desespero para Robert e de dores trêmulas para Polly.

— Onde aprendeu isso, senhor? — perguntou Luana, irada e observando seus movimentos.

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— Com minha mãe há muito tempo — disse com ar sereno. — Eu contava apenas doze anos quando meu pai caiu doente e minha mãe resolveu lhe preparar alguns chás que ela havia aprendido com a vovó. Tínhamos uma casa simples nas mediações de Sighiçoara, onde eu brincava feliz com toda a minha inocência. Via quando ela amassava aquelas folhas com as mãos e deixava seu caldo grosso cair dentro de um recipiente largo, misturando-se até ter uma cor esverdeada e constante.

Então ela colocava um pouco de água do riacho, que ficava bem próximo à nossa casa e misturava ali, por um bom tempo, deixando curtir. Depois colocava no chá uma pitada de sal e uma colher de açúcar, e continuava mexendo. E assim foram muitos chás e remédios que mamãe preparou na minha presença.

Acho que era para que eu aprendesse mesmo.

No dia seguinte, a menina acordou sã e salva, e bem animada. Seus olhos brilharam como luzes, acesos. “Robert”, sussurrava ela em seu ouvido e segurando-se na grade do beliche. “Senhor”. Ele, ainda com muito sono por ter ficado quase a noite inteira velando-a, abriu os olhos franzidos com muita dificuldade, espreguiçando-se ainda deitado com seu bafo de onça sendo jogado naquele rostinho se dobrando.

— O que foi, Polly?

— Quero comer. Estou com muita fome.

— Então a princesa acordou bem?

Ela assentiu.

— Que bom — disse em bocejos longos e com as mãos para o alto. — O remédio foi tiro e queda. Boas ervas aquelas, que encontrei no quintal de seus pais. Veja aqui, Polly, essas roupas que a Sra. Luana me deu... Isso é para a senhorita trocar-186

Polly Lee

se. Ela falou que poderia ficar com as peças durante a viagem.

Eram de sua filha.

A menina se trocou e foram para a cantina novamente. Lá se encontravam os demais com suas mães. A festa foi completa.

Polly alimentou-se bastante junto a Lana. Mas as irmãs Moldavo mantinham-se separadas dos demais.

— A menina Polly melhorou? — perguntou Luana.

Robert assentiu. Um caqui foi pego novamente por Polly e jogado dentro do bolso largo sem que os outros percebessem. A não ser por Robert, que achou estranho aquele ato infantil; toda vez que ia comer enfiava algo dentro do bolso.

E voltaram aos aposentos. Nesse ínterim, a embarcação aproximou-se da França

— La Rochelle seria a parada. O navio aportou. O movimento foi de agitação no desembarque. Polly acompanhava Robert, que carregava sua pesada mala observando o ambiente de fora do navio. Ficariam por dois dias em um hotel no Centro de Informação ao Turista. Depois seguiriam para a estação ferroviária de La Rochelle Ville, onde Magda

e

Luana,

com

suas

filhas,

desembarcariam

acompanhando-os.

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CAPÍTULO ONZE

O ENCONTRO

uando eles chegaram na estação, uma surpresa e um Q encontro inusitado. Aquele local foi de grande importância na época colonial, junto com Havre, Honfleur e Bordéus. Sentaram-se num daqueles bancos na plataforma opaca. Robert olhou seu bilhete e o de Polly, porque agora ela teria sua agem individual — ali não seria exigida documentação dos ageiros. Apenas se comprava a agem e viajava, não havendo burocracia.

— Robert, é você mesmo aqui? — gritou um homem surpreendido vindo do lado esquerdo deles; ele era do tipo social, de estatura alta, cabelo cortado repartido do lado, terno por baixo de um casaco claro aberto, usava óculos de tamanho pequeno e arredondado, destacando seu rosto quadrado.

— Sr. Enzo! — disse Robert demonstrando afeição. —

Bonvolu vidi vin ĉi tien! (Que bom vê-lo por aqui!).

Cumprimentaram-se com um aperto de mão forte e um abraço caloroso, usando palavras estranhas.

— Kiom longe ni ne vidis vin, amu! (Quanto tempo não nos vemos, amigo!) —

disse Enzo.

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— O que faz aqui, amigo? E essas meninas tão lindas, de quem se trata? Espere aí... não vai me dizer que... que você agora é avô? Ou resolveu casar-se? Cuidado com essas jovens!

— falou debochadamente.

— Não, amigo. Essa aqui é filha do Conde V, fui buscá-la na América.

— Então essa é a famosa filha do Conde? Estou diante da futura princesa de...

— Sim — retrucou Robert, atropelando suas palavras. —

E lhe devemos obediência.

Então eles riram em gargalhadas curtas.

— É um prazer conhecer e estar diante da futura herdeira do Castelo mais conhecido da Romênia. Estou lisonjeado e muito feliz por tê-la visto antes dos outros imbecis professores da Competição, que sonham em ter esse prazer. E como vão as coisas? Os voos desajustados?

— Nesses últimos dias, meu amigo, tenho feito poucos —

retrucou ele —, essa forma de vida dos “neurotipos” me deixa exausto.

— É verdade. Também não o. Ainda experimento porque é o jeito. Os “neurotipos” acham que vivem bem e que são superiores aos demais seres do planeta.

— E é por isso que nos mantemos recuados.

— É verdade. Então essa é mesmo a herdeira do Castelo de Bran?

— Sim. É o que diz os documentos do Conde V.

— E a Competição dele, como anda?

— ou por um momento de perseguição, mas agora tudo se tranquilizou. Vai haver uma nova temporada por lá.

Teremos vários novos Iniciados.

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— Como nós, anos atrás? — disse com um riso misterioso. — Isso é maravilhoso, meu amigo. Isso nos faz ver que já estamos quase aposentandonos.

Robert também riu largamente, chamando a atenção dos demais que estavam por perto.

— O que tanto eles conversam em tamanha epifania? —

perguntou Magda, para Luana, anuviando o olhar.

— Vamos tomar um café amigo? — perguntou Enzo, tocando-lhe as costas levemente.

— Claro, vamos sim, relembrar velhos tempos. Lembro-me que esse convite, antes, seria para um bom vinho —

observou, um tanto debochado.

— Os tempos são outros, amigo. Os tempos são outros...

— enfatizou Enzo, retraído.

E entraram num daqueles Cafés famosos da cidade, que beirava a estação, o La Paix. Polly e as outras crianças deliciaram-se num daqueles cremes de chocolate, lambuzando-se e rindo à toa. Suas roupas ficaram todas sujas de doces. As irmãs Moldavo pareciam até duas porcas fartando-se do creme.

E suas mães observavam, na mesma mesa, enquanto sorviam um gole de chá refinado.

— Esse ano a Competição terá vários concorrentes —

observou Robert, para o amigo, bebericando o café.

— Então será muito divertido — completou Enzo.

Robert assentiu, ainda se queimando no café fervente.

— O amigo lembra-se de quando éramos ainda crianças e... — fez Enzo.

“Velhos tempos, amigo, velhos tempos”, sussurrou Robert em reflexão, cortando-lhe as palavras já baforando seu cachimbo reto e de cabo curto e disse sussurrando novamente: 191

e o Morcego da Pensilvânia

— Ainda trago em minha memória aquelas aulas divertidas e repletas de garotas lindas, e todas...

E silenciou no horizonte.

— Robert! — fez Enzo, tirando-o do delírio emocional e tocando em seu ombro. — Robert!

— O que foi, amigo? — perguntou ele quase engasgando-se na fumaça.

— Você está bem?

— Sim, estou. O que estava dizendo mesmo?

— Sobre os treinos, quando tínhamos pouca idade.

— É... foram mesmo bons e velhos tempos, amigo.

— Sabe, Robert — observou Enzo com um suspiro forte

—, eu nunca aprendi de verdade a usar direito o Bastão Mágico.

— Não?

— Não. Essa coisa de mente sempre me aterrorizou a vida. Mas eu era bom mesmo naquele módulo, lembra? Como é mesmo o nome?

— Com a Besta Sílfica?

Ele assentiu e disse, deixando sair um riso embutido levando a xícara aos lábios engelhados do frio intenso:

— Isso, com a Besta. Nunca esqueci, o amigo ganhou de mim com alguns pontos à frente. Você era bom nisso. Muito bom... — E se perdeu em divagação.

Nisso, o trem aproximou-se gritando em fumaça espalhada por toda a plataforma.

— É ele, amigo, vamos! — gritou Enzo, levantando-se da cadeira de madeira, deixando-a quase cair. — Se perdermos esse, só daqui a algumas horas vem o próximo!

E seguiram juntos.

— Vamos! — fez Robert a os rápidos, engolindo fumaça. — Você está só, nessa viagem?

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Polly Lee

— Não.

— Como não? — perguntou olhando em volta do ambiente. — Não vejo ninguém acompanhando seus os.

— No trem encontrarei com um garoto de nove anos, de nome Gustavo que estará indo a Competição. Ele foi colocado na locomotiva por sua avó. É neto de

um dos professores do curso de mente. Acho que é um dos primos do Conde V, o Sr.

Arthur, lembra dele?

— Claro que me lembro. Que ótimo, então. “Será mais um Iniciado para ajudar a pequena Polly das tramas futuras” — fez balbuciando as últimas palavras.

— O que disse, Robert?

— Nada, amigo, apenas coisas minhas.

— Você e suas divagações de sempre. E Grígore?

— Nada sabe sobre a menina. Mas tenho muito medo de suas desconfianças. Por enquanto, nada percebi ainda.

— É bom ficar de olhos atentos, meu amigo, porque agora, com a ida da herdeira do Conde V, ele poderá tentar qualquer astúcia contra ela. Se já não está tramando alguma coisa.

Robert assentiu e fitou o horizonte, dizendo:

— O mais novo professor e guia já está sabendo de tudo, amigo.

— O amigo não irá até...

— Não — cortou-lhe as palavras —, fui afastado em férias prolongadas.

Naquele momento, vários ageiros subiram no trem.

Mas o transporte não lotou, vendo-se diversos bancos vagos em cada vagão. Poderiam até escolher onde sentar-se. Robert e Polly sentaram-se do lado esquerdo, onde a menina ficou 193

e o Morcego da Pensilvânia novamente a olhar da janela. A Sra. Magda e Luana, com suas filhas, ficaram num dos vagões da frente.

Enzo então levantou-se e seguiu para o vagão seguinte sem nada falar aos demais.

— Aonde vai, amigo? — perguntou Robert antes que ele sumisse atravessando para a outra vagoneta.

— Buscar o garoto no outro vagão. Logo retornarei.

— Tudo bem.

— Aonde vamos agora, mamãe? — perguntou Cornelius.

— Para Sighiçoara, não está vendo? — disse Lana, que estava no mesmo banco delas. Cornelius nada dissera, apenas fez um semblante sério e de desprezo para a própria mãe.

Magda e as duas filhas se sentaram no banco de frente ao de Luana. A locomotiva ficou ali estacionada por meia hora. O

dia começou a escurecer. Eram nuvens frias. O clima mudou de repente e flocos de neve caíam como pétalas de rosa branca —

uma paisagem magnífica. O chão esbranquiçado assumia outro aspecto. Mas antes que o trem partisse, Enzo estava de volta trazendo um garoto sério e franzino; vestia-se de touca de lã preta, casaco escuro de gola em vermelho, botas de cano curto pretas, e calça bege fina. Gustavo era uma criança ruiva e de rosto fino e pálido, olhos em tom escarlate de uma tonalidade não perceptível aos olhos dos “neurotipos”. Sua pele quase pálida o destacava dos outros e era diferente em seu comportamento: Nada falava, não sorria e tampouco mudava seu rosto, sempre sério — um albino que sofrera demasiado bullying dos meninos da rua onde morava e, com certeza, na escola, devido à sua aparência exótica.

— Este é Gustavo, Robert! — disse Enzo, aproximando-se deles.

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Polly Lee

— Olá, Gustavo! — falou Robert em tom de exaltação e sorriso amigável. — Sente-se aqui, garoto.

No outro vagão, sentados, os demais apenas observaram aquele menino estranho que ou seguindo Enzo. O novo garoto nada respondeu para Robert, olhando para Polly, enviesado, sentando-se junto a ela.

— Olá, Gustavo! — fez Polly tentando chamar sua atenção. — Eu sou Polly

Lee.

Gustavo mais uma vez nada falou. Apenas baixou a cabeça, de forma que quase tocou o banco onde se fazia, enfiando a cabeça por entre as finas pernas.

— Ele é assim mesmo — observou Enzo.

Logo as duas mulheres aproximaram-se do vagão onde se encontravam os demais e sentaram-se no banco que ficava em frente ao de Polly. Mas as duas filhas da Sra. Magda mantiveram-se indiferentes ao garoto de pele quase incolor. O

menino nem piscou. De cara séria e mantinha-se o tempo todo buscando o piso com os olhos. As crianças olharam-se seriamente e os cabelos ruivos de Polly caíram por sobre seus olhos avermelhados. Olhando para os dois, Polly e Gustavo pareciam irmãos, em tratando-se da cor dos cabelos, que luzia como fogo, e de suas peles pálidas, no mesmo tom. O trem seguiu viagem em gritos e cuspindo fumaça. E Rochelle ia ficando para trás. As curvas da estrada de ferro eram curtas e perigosas. Viam-se algumas aves de rapina sobrevoarem o arsenal entre montanhas e planarem feito avião, quase a tocá-las, na visão de quem estava distante — mas era apenas uma ilusão de ótica. A locomotiva adentrava por sobre os trilhos em velocidade constante e apitos ensurdecedores. Montanhas e 195

e o Morcego da Pensilvânia montanhas altas aproximavam-se em aberturas afuniladas e fascinantes, perdendo-se no horizonte.

— Balas de variados sabores! Balas! — gritava em tom cansado uma senhora avantajada de pele clara, vendendo doces em um carrinho, simpaticamente. — As crianças não vão querer, senhores e senhoras? Balas de todos os sabores! Promoção!

As crianças olharam-se e levaram os olhos de meninos pidões aos adultos que conversavam distraidamente. Mas logo, com aqueles gritos arrastados da ambulante, os demais voltaram suas atenções à mulher gorducha e alta com sua carroça de alumínio em tom acinzentado.

— Quais os sabores, senhora? — perguntou Robert, levando a mão ao bolso do casaco escuro.

— Temos de menta, caramelo, uva e...

— O que vocês querem, crianças? — perguntou ele antes de a mulher terminar de falar. — Podem pedir o que quiserem.

— O que vai querer, Gustavo? — fez Enzo. — Caramelo?

O menino nada respondeu — como sempre, sério sem dizer uma palavra se quer,

sentado e encolhido. De vez em quando olhava para Polly como se quisesse dizer alguma coisa

— foi a única com quem ele se afeiçoou, de verdade — algo havia entre eles de misterioso — trocavam olhares a todo instante, parecia até uma conversa sem palavras.

— Uma de caramelo, senhora, para aquele garoto! —

falou Robert apontando para Gustavo. — E você, Polly, o mesmo?

Ela

assentiu,

olhando

para

o

menino

sério,

desconfiadamente. As mulheres também pediram doces para as suas filhas, cada uma recebeu um.

— Pode ser dois, mamãe? — perguntou Cornelius com ar de menina gulosa.

196

Polly Lee

— Dois, senhora! — observou Robert.

— Dois doces de caramelo — disse a vendedora, entregando-lhes as balas nas mãos em sorriso amigável —, um para a senhorita e outro para o rapazinho! Mais que menino tão sério, esse. Obrigado a todos e tenham uma boa viagem!

Balas!

Balas de todos os sabores, balas...

— Obrigado, senhora! — retrucou Enzo, vendo-a atravessar o vagão comprido e se indo, empurrando aquele carrinho repleto de guloseimas, com seu andar cansado e manco e despertando os ageiros com sua voz forte.

Agora aproximavam-se de Niort; mais uma comuna sa. Nela, não haveria parada e seguiriam a Poitiers; cidade localizada no Centro-oeste da França, às margens do Rio Clain.

Lá eles desceriam para um breve intervalo. As duas crianças, Polly e Gustavo, continuaram a trocar olhares — algo atraíam-nas a todo tempo. E mais uma vez, Robert vasculhava em sua mala enorme alguma coisa interessante para ele. “Acho que nessa mala deve existir de tudo um pouco”, pensou Polly enquanto observava o homem a mexer na bolsa.

— O que foi, amigo? — perguntou Enzo vendo a dificuldade de Robert com aquela maleta. “Use a mente” —

sussurrou o velho amigo, aproximando-se e aproveitando a ausência das senhoras e a distração das crianças com os doces.

— Não posso — retrucou Robert em sussurros.

— Como não pode? — insistiu ele.

— Esqueceu que estamos em meio às crianças e mulheres completamente curiosas? — e continuou: — Essas crianças ainda não sabem nada sobre nós, nem sobre eles mesmos.

Temos que agir, por enquanto, como meros “neurotipos”, não acha?

197

e o Morcego da Pensilvânia Enzo, percebendo a gravidade, sussurrou:

— Então Gustavo não pode conversar com Polly, ao menos enquanto sozinhos.

— Por quê? Do que está falando, amigo?

— Ele já está a par de tudo, Robert. Veio apenas dar um eio na França, visitar seus avós, mas já sabe de sua origem.

— Aos deuses! Não podemos deixá-lo a sós com nenhum dos outros Iniciados antes de chegarmos à Sighişoara.

— Mas já vejo algo entre ele e sua garotinha, olhe lá!

— Não vai ser fácil manter esse segredo, então.

— Não, não vai.

— Mas ele é bem sério e quieto.

— É verdade, amigo, muito quieto.

— O que tem ele?

— Não sei. Já havia o visto antes, mas não entendo essa sua atitude assim tão...

tão calado.

E silenciaram, jogando-se ambos no encosto do banco duro com respiração profunda. O trem estava chegando agora na Cidade de Poitiers — ficaria ali por um tempo curto.

— Aonde as senhoras foram? — perguntou Enzo, olhando para Magda e para Luana, que retornavam do outro vagão.

— Desceremos nessa estação? — respondeu Robert antes que elas abrissem a boca.

— Sim. Essa durará algumas horas — observou Enzo.

— Então teremos que nos alojarmos em algum lugar. —

falou Magda.

Robert assentiu e desceram de uma só vez.

198

Polly Lee

CAPÍTULO DOZE

O PROFESSOR Diego Dalca

E A NOVA DESPEDIDA

trem chegou em Poitiers pela manhã. Estava muito Ofrio.

Eles desceram para uma breve parada, trincando os dentes e com os braços cruzados e encolhidos em seus próprios corpos. Depois seguiriam para a capital sa, onde se encontrariam com o novo professor. O nome Poitiers, segundo diziam, era derivado de uma Tribo Celta que habitava a região numa época distante, onde tudo que se conta parece ser coisa de histórias infantis.

Após o curto intervalo, seguiram para Paris. As crianças estavam enfadadas, quase dormindo. Apenas Gustavo e Polly se mantinham com os olhos abertos. Agora eram cinco, todos Iniciados de Sighişoara, que significa “o grande espírito da Transilvânia”. Havia um mistério em torno de se chegar ao local de destino — o nevoeiro denso era a trilha, mas só os Guardiões do Clã do Castelo de Bran poderiam atravessá-la por ter a chave do Portal desconhecido dos “neurotipos” e os demais Clãs que habitavam esse secreto mundo, em busca de dominar o Castelo mais cobiçado da Comuna e, consecutivamente, o país inteiro, para então dominarem o mundo dos “neurotipos”.

199

e o Morcego da Pensilvânia Durante a viagem até a estação de Paris, longas histórias foram contadas por Robert às crianças. Elas se embebeciam daquelas palavras com entusiasmo. Mergulhavam em suas imaginações infantis e o contador de histórias se exibia como gostava de fazer — mudando a voz em

certos trechos narrados

— isso dava às palavras mais ênfase e mistérios. Mas um personagem bem peculiar nada se agradava daquelas narrativas dele — o Sr. Killer, que ouvia a tudo silenciosamente naquele bolso apertado.

E assim a viagem se deu tranquila nos trilhos em curvas...

O trem agora chegava a Paris. Gritou por quase meia hora em fumaça alongada e espalhada. Era Paris. A velha Paris se mostrava na sua grandeza europeia. Os ageiros acordaram e já era o entardecer. O sol quase não se mostrava devido ao tempo invernal — parecia uma pérola do mar escondida.

— Paris, pessoal! Paris! — gritava Enzo de pé, segurando-se nos ferros arredondados. — A cidade mais romântica que o mundo já conheceu!

E levantaram-se, inclusive as crianças. E do bolso de Polly, em movimentos minuciosos, Killer beirava a borda do pano para tentar olhar o que se falava. O trem desacelerava aos poucos e algumas pessoas, já de pé, iriam ficar ali, naquela cidade dos sonhos. Robert, segurando a mão de Polly, desceu junto com os demais. Todos se iraram com aquela cidade fantástica e histórica.

— Teremos algumas horas, Robert — observou Enzo. —

Poderemos tomar um bom vinho, o que acha?

— Não esqueça que o Sr. Diego Dalca virá buscar as crianças logo. — retrucou Robert.

200

Polly Lee

— Sim, claro. Mas é só um copo. Vai rejeitar minha oferta? Eu quem irei pagar, amigo.

Robert assentiu, cedendo à tentação. E caminharam por algumas lojas.

Em Paris haveria a despedida que deixaria as crianças em clima de tristeza. Antes que o trem partisse novamente, o professor Diego Dalca viria até a estação e seguiria viagem com elas.

Vocês, leitores, já sabem o que irá acontecer com Polly, que já estava acostumada com Robert?

Só posso adiantar que precisava haver essa nova despedida para que a história continuasse.

Robert e Enzo tomavam seu vinho conversando distraídamente, ambos fumando seus cachimbos. As senhoras ficaram com as crianças em uma pequena praça arborizada de Paris, próxima à estação.

— Robert — disse o amigo, olhando no relógio triangular preso em seu pulso —, o professor Diego já se aproxima.

— Eu sei — retrucou ele, se entristecendo.

— Já vi que se afeiçoou à menina, não é, amigo? Como sempre fez — observou percebendo sua melancolia.

— Sim. Sempre é assim. Da última vez quase chorei. E

pretendo hoje também não chorar. Não vai ser fácil, pois se trata de uma Iniciada consideravelmente importante — falou dando o último gole no copo de vinho.

— Então vamos tomar mais um trago para segurar-se. —

disse debochadamente.

— Jurei ao Conde V — lembrou Robert — que não mais queria ficar nesse trabalho, e que iria me aposentar e viajaria 201

e o Morcego da Pensilvânia para bem longe dessa Competição tão adorável, da qual não consigo desligar-me.

— Eu também, amigo, preciso de férias.

— Olha lá quem vem ali! — disse Robert apontando para a frente.

— Estava na hora. Ele é sempre pontual.

— É verdade. E não larga aquele cachimbo esquisito e fedorento — observou referindo-se ao longo cabo torto do artefato do professor, soltando uma daquelas suas gargalhadas debochadas e escorando-se no encosto da cadeira, que seu corpo avantajado engolia. — Ele insiste em usar aquele fumo de má qualidade. Sinto o cheiro de longe.

— Acho que ele engordou mais um pouco. Veja, Robert!

— disse Enzo, sorrindo ao ver o corpo largo do professor Diego debater-se para os lados com seus os rápidos e forçados.

O professor Diego Dalca era todo desengonçado ao andar, e muito mais gordo do que Robert. Os dois chacoalharam um riso aberto ao visitante. O homem que chegava: aparentava meia-idade, possuía cabelos encaracolados e grandes, olhos atentos e em tom pálido, de estatura baixa e larga, seu pescoço sumia entre sua cabeça grande e seu corpo curto. Ele se aproximou carregando uma boina por cima daquele cabelo sem rumo. Seu rosto era suave e descontraído, mas seu corpo, como dissera o Sr. Enzo, pesado como um imenso elefante.

— Boa noite, senhores! — disse o professor Diego numa voz aguda, que não combinava nada com sua estatura, aproximando-se deles.

— Boa noite, Sr. Diego! — respondeu Enzo com o copo na mão. — Um trago?

— Não — retrucou o professor baforando naquele pito marrom —, hoje não posso beber nada até chegar ao destino 202

Polly Lee

com essas crianças que me foram confiadas. Sou um homem responsável.

— Entendo — disse Enzo.

— E o senhor, meu caro Robert — perguntou o professor

—, como anda sua vida?

— Como posso levá-la, amigo. Precisando, como disse agora há pouco ao amigo aqui, de férias infinitas.

Houve alguns cumprimentos entre eles e, então, sentaram-se.

— Acredito. Mas... e os Iniciados, onde estão? —

perguntou Diego correndo os olhos no ambiente.

— Beba algo, professor — falou Enzo, observando seu relógio —, ainda temos tempo. Tome pelo menos um refresco conosco, ou um café.

— O que vai querer, senhor? — perguntou um garçom bastante jovial, aproximando-se ao ver o estranho sentar-se, de forma que a cadeira quase se desmontou. Para comportar aquele imenso traseiro teria que juntar, pelo menos, umas cinco cadeiras.

— Um refresco para ele, rapaz! — disse Enzo, atrevido.

— Ok, senhor — respondeu o funcionário, retirando-se.

— Mais uma tarefa daquelas — enfatizou o professor Diego encostando-se na cadeira desbotada e em respiração cansada. — Mas é sempre um prazer para eu fazer isso.

— Acredito — retrucou Robert. — Sempre tive prazer em realizar essa tarefa, amigo. Mas confesso, que estou cansado.

Diego tinha mais ou menos uns quarenta e cinco anos de idade. Era a pessoa mais confiável naquele momento, em Sighişoara, para a tarefa que fora designado pelo Conde V, e teve uma das mais confiáveis missões: guardar a herdeira do 203

e o Morcego da Pensilvânia Castelo nessa viagem até o destino traçado, quando os olhos do inimigo estavam à solta, tentando encontrá-la.

— A que horas o trem parte? — perguntou o professor, olhando em seu relógio triangular.

— Daqui a uma hora — respondeu Enzo, olhando os ponteiros dourados.

— Preciso de pelo menos meia hora — retrucou o professor — para falar com as crianças antes de partir, principalmente com a pequena Polly, que é a peça mais valiosa desse grupo. E acredito que nada saiba a respeito do seu destino, não é, senhores?

— Isso mesmo, amigo — observou Robert —, ela ainda nada sabe. Assim que as mulheres voltarem com as crianças, juntar-nos-emos e você poderá falar o que precisa. Mas antes tenho que conversar com ela em particular.

O professor Diego assentiu e devorou seu refresco de groselha numa golada só, de forma que se via sua veia do pescoço movimentar-se ao descer do líquido rapidamente.

— O professor não vai comer nada? — perguntou Enzo.

— Não. Apenas cansado. Dormiria agora por várias horas, se pudesse.

Meia hora se ou e as mulheres, juntamente com as crianças, chegaram ao local onde eles estavam.

— Bom dia, professor! — disse Luana com riso simpático, reconhecendo-o.

— Bom dia, Sr. Diego! — falou Magda, segurando pelas mãos suas duas filhas não idênticas e, como sempre, de caras fechadas. Cornelius era menos gorda, pescoço fino e falava rouco. Cosmina era maior e mais larga fisicamente, em tom corado, olhos alaranjados, sua voz era aguda como a voz de sua mãe — poderia ser comparada com uma abóbora se a víssemos 204

Polly Lee

na lavoura. Polly e Gustavo estavam juntos. Lana segurava no braço de sua mãe. Os “neurotipos” que estavam por ali, iravam-se e ficavam curiosos com o aspecto estranho daquelas crianças e dos adultos com roupas compridas e escuras, de olhos quase em brasa fria.

— E vocês duas — falou o professor, olhando para as filhas de Magda —, podem me falar seus nomes?

Elas nada disseram. Permaneceram sérias — estranharam aquele homem de barbicha no queixo e quase sem pescoço.

— Essa aqui é minha filha Lana — disse sua mãe.

— Linda ela, senhora. — observou o professor, simpaticamente. — Esses olhos não negam sua origem.

— Aquela lá é Polly Lee, Sr. Diego! — falou Robert, apontando para a menina.

— Aaah! — disse o professor em tom de iração. —

Então essa é a...

E silenciou.

— Aquele ali é Gustavo Dumitrescu — falou Enzo, levantando e aproximandose do menino, que estava acabrunhado como sempre.

— Gustavo Dumitrescu e Polly Lee. — disse o professor Diego em tom alegre, olhando diretamente para os dois. —

Gustavo não é o neto do Sr. Arthur de Peles Dumitrescu?

“E eu? Não vou ser apresentado?”, resmungou Killer de dentro do bolso, num tom muito baixo. E Polly logo deu um tapa leve nele por cima do tecido, no intuito de que ele se calasse. Ele fechou o semblante e se aquietou.

— Sim — disse Robert e Enzo ao mesmo tempo, respondendo ao professor.

205

e o Morcego da Pensilvânia Diego, então, continuou: — Boas-vindas às senhoras e às crianças! Bem-vindos rumo à melhor Competição da Romênia.

A Competição de Sighişoara, em Voivoda.

— Deem-me licença — disse Robert pegando na mão de Polly e a levando a um canto do recinto.

Os demais se olharam. E os dois se afastaram.

Robert se abaixou na mediação do rosto da menina e disse, em tom calmo:

— Polly... eu sei que não vai ser de seu agrado ou de sua aceitação, mas preciso dizer que, de agora em diante, você e as outras crianças estarão aos cuidados do professor Diego, que os levará até o Castelo de Bran, e serão inseridos na Competição de Sighişoara como Iniciados.

— E o senhor não vem, Sr. Robert? — perguntou, entristecida e surpresa.

— Não. Meu limite hoje é até aqui, em Paris. Mas logo estarei lá com vocês. Por favor, não chore nem fique com medo, porque o professor é uma boa pessoa e vai cuidar muito bem de todos vocês. Mas ainda preciso ver algo, antes de retornar à Sighişoara, mas logo estarei lá e a procurarei. Porém não diga nada para os demais sobre meu retorno. E acredite, você verá seus pais novamente, assim que terminar sua primeira e breve visita ao seu Mundo.

Ela assentiu, já quase soluçando. A menina era só tristeza.

E, de repente, abraçou-o forte, dizendo:

— Sinto saudade do meu pai Donald!

Os olhos de Robert mergulharam em lágrimas — ele acariciava a sua cabecinha como um pai, eando os dedos por entre os fios capilares avermelhados e curtos da menina. E

não se conteve, chorou como uma criança em silêncio, abraçando-a mais forte e disse:

206

Polly Lee

— Vai dar tudo certo, Polly.

— Não queria me separar de você, Robert. Não queria.

Gosto muito do senhor.

Dentro do bolso de Polly, Killer ouvia tudo em mudez e sentindo um apertar inconveniente, quase sendo amassado —

seus olhos se esbugalhavam. Sentiu vontade de gritar para Polly, mas se conteve encolhido com os olhos lacrimejantes.

— Polly, por favor! Pare com isso e vamos encarar o que tem que ser feito agora — disse Robert, erguendo-se. — Vamos, que as horas se am! Não se preocupe, estarei lá com a senhorita em breve. Confie em mim.

Faltavam apenas quinze minutos para a chegada do trem.

Eles, então, voltaram ao grupo tentando disfarçar suas tristezas.

— Crianças — falou o professor Diego —, daqui em diante vocês serão entregues à minha pessoa para que eu os acompanhe até o destino certo. Não sou nenhum papa-fígado nem algum monstro que vai fazer algum mal; sou um amigo de vocês. Agora é a hora mais difícil... o adeus, por algum tempo, aos seus parentes. E vão rápido, porque o trem se aproxima!

Temos apenas quinze minutos.

A despedida foi lastimosa, havendo lágrimas e abraços. O

trem apitou e eles se prepararam para o embarque. Os olhos de Polly não se desviavam dos de Robert, que também a acompanhava com atenção, sem pestanejar. Foi realmente uma saudação muito triste.

— Não fique assim, Polly — disse Lana, tentando confortá-la —, serei sempre sua amiga. E Polly deixou sair de seus lábios um sorriso aguado, mas bem sincero. Suas lágrimas petrificaram em seus olhos.

207

e o Morcego da Pensilvânia Agora, era o professor Diego Dalca, junto de cinco Iniciados, rumo à Transilvânia. Seguiriam para a Suíça ando pela capital, Berna, mas não fariam parada lá: continuariam até a Áustria, localizada na Europa Central, onde fariam uma parada longa em Graz, capital do Estado da Estíria.

208

Polly Lee

CAPÍTULO TREZE

AS GARGALHADAS NO TREM

trem deu partida e as crianças deram adeus com suas Ope quenas mãos pela janela. Do lado de fora, houve choros dos demais que, mesmo sabendo do que se tratava, não se conformaram em deixar seus filhos por algum tempo. Robert acenava para Polly com os olhos vermelhos do pranto silencioso. Do lado de dentro, a menina estava séria e fria. Para ela, era mais uma perda fatal. Da mesma forma se via Gustavo, sério e calado, vendo o Sr. Enzo ficar naquela estação. Os demais davam adeus, como se já tivessem acostumados com a cena. Na verdade, Magda e Luana viviam fazendo viagens sem os filhos, e isso fez com que eles nem percebessem a separação

— estavam acostumadas. Agora eles teriam um novo destino: a famosa Sighişoara.

A locomotiva corria em sua trajetória. O vento sacudia e esvoaçava os cabelos das pessoas como se quisesse arrancá-los.

As janelas permaneciam abertas acima de suas cabeças, na parte inferior, onde os olhos podiam ver as paisagens; era de vidro grosso e embaçado. E o professor Diego, simpaticamente, resolveu, naquele momento, fazer uma brincadeira para tentar descontrair as crianças do clima da despedida e conhecê-las melhor. E disse, de forma agradável: 209

e o Morcego da Pensilvânia

— Agora que estamos a sós, quero saber o nome de cada um de vocês novamente.

— Por que, professor? — gritou Cosmina, meio desengonçada.

“Não gosto dessa menina”, balbuciou Killer. Mas Polly, apertando o bolso levemente, calou-o. Diego logo percebeu que aquela personagem era inável. E continuou sem dar resposta à menina, dizendo:

— Apontarei para a vítima e ela ficará de pé e se apresentará, dizendo também algo que gosta muito de fazer, ok?

Nenhuma resposta se ouviu deles. Estavam atentos, olhando para o novo guia e seu jeito descontraído.

— Não gostaram da ideia? — perguntou ele em tom de surpresa, percebendo o silêncio vestir aqueles infantis semblantes. E nada de respostas. Ele então, retirando do bolso do casaco compacto seu cachimbo de cabo longo e curvado, mexeu com o dedo na erva seca e, levando uma espécie de isqueiro de metal dourado com a outra mão, riscou umas três vezes tentando acender a palha com faíscas luminosas, até que uma fumaça de cheiro forte fez com que as crianças franzissem seus olhos. O professor pitou profundamente, aliviando sua tensão. Nesse ínterim, ele olhou detalhadamente cada um daqueles rostinhos assustados.

De repente, uma das filhas de Magda ficou de pé, e disse em voz alta:

— Sou Corneliu, irmã de Cosmina e filha da Sra. Magda!

Gosto muito de brincar e de subir nas árvores mas, às vezes, tropeço em algum galho e caio, machucando-me, e logo levo uma surra de minha mãe.

E sentou-se. Houve alguns sorrisos tímidos e silenciosos por parte dos demais. O professor Diego aplaudiu a cena 210

Polly Lee

baforando seu artefato, já relaxado. Gustavo não riu nem se mexeu — continuou calado e intacto com os olhos para as pernas. Nem Killer, lá de dentro do bolso, esboçou qualquer reação. Agora, o indicador do professor Diego se posicionou e parou direcionado à pequena Lana, após uma longa baforada.

Ela se levantou com seus cachos numerosos e negros, pendurados em balanços leves, e disse em riso amável, mostrando seus dentes alvos e seus olhos quase em fogo, arregalados:

— Sou Lana, filha de Luana e...

“Como pode isso, ela é negra e sua mãe é branca?”, sussurrou Cosmina — em tom preconceituoso — para a sua irmã, a mais debochada e ridícula filha de Magda. O professor Diego percebeu a gravidade do comentário baixo, mas ficou em silêncio. Lana então prosseguiu: — E eu adoro brincar de amarelinha quando estou em casa, mas às vezes caio quando vou pular as casas e me esborracho toda, arranhando-me e tendo que ser medicada por minha mãe.

E sentou-se. Algum sorriso das crianças e de Gustavo erguendo a cabeça, mudando seu semblante. Killer estampou um riso de morcego sentando em suas asas finas e incolores dentro do bolso. O professor apontou para outra criança. E caiu na segunda filha de Magda, a mais baixa e que fez o comentário ridículo, de nome Cosmina. Com seu jeito arrogante e desconchavada, disse, ficando de pé em movimentos engraçados

— por ser ela muito avantajada, tal qual uma batata inglesa:

— Eu me chamo Cosmina, irmã de Corneliu e filha de Magda! O que eu gosto de fazer...? Aaah! Eu gosto de comer muito, tal qual uma porca gorda, e gosto também de zombar das pessoas.

211

e o Morcego da Pensilvânia E soltou uma gargalhada tão alta que foi possível ver salivas se saltarem de sua boca enorme. Sentou-se num pulo estrondoso, que vibrou todo o assento onde eles estavam. As gargalhadas agora foram mais intensas, incluindo Gustavo, que até aquele momento estava calado — não pelo que ela dissera, mas pela forma que se sentou no banco. Killer riu de forma que quase se ouvia o som de sua voz aguda, mas Polly o interrompeu com um tapa mais forte no bolso e ele se calou imediatamente, com cara de irritação. Nesse momento se via as bochechas de Cosmina ficarem totalmente rosadas. Polly, com aquela descrição da colega, lembrou-se de sua irmã Deborah, que também comia como uma porca gorda. Então, o dedo do professor Diego agora apontava para Gustavo. O garoto nada falou. Resolveu baixar a cabeça novamente. Gustavo não parecia uma criança normal — apresentava alguns gestos estranhos e como se estivesse em outro lugar. Algum outro mundo surreal.

— E você, Gustavo? — perguntou o professor pitando seu cachimbo. — Não vai se apresentar para seus coleguinhas?

Estamos todos esperando.

Ele balançou a cabeça para os lados. Os demais ficaram em silêncio. O professor, então, continuou: — Tudo bem.

Vamos lá... a última é a Srta. Polly. Pode começar se quiser. Se não quiser, tudo bem. E terminaremos a brincadeira.

Ela olhou para os demais, baixou a cabeça, colocou as mãos no banco para apoiar-se e se levantou, dizendo em voz suave, chorosa e pausada:

— Eu me chamo Polly Lee... filha adotiva dos Lee e... e queria muito estar em minha casa agora, brincando com minha irmã Deborah... apesar de ela não gostar muito de mim como...

212

Polly Lee

como também minha mãe não gosta. Sinto muita saudade do papai.

E sentou-se olhando para suas pernas finas com os olhos lacrimados. Dessa vez, não houve risos nem comentários. O

professor Diego, umedecendo os olhos, emocionou-se e pediu que todos se sentassem, dizendo:

— A brincadeira agora acabou. Se algum de vocês estiverem com fome, é só me falar, que tenho aqui alguns bolos e bolachas, inclusive sucos.

Cosmina foi a primeira a se acusar e pedir comida com sua cara de melancia madura. E logo os demais também quiseram lanches. Killer se animou ao ouvir o barulho e sentir o cheiro forte da comida servida — lambia o focinho curto de tanta fome.

A iguaria fora servida pelo professor — algumas migalhas jogadas no bolso por Polly, e o professor ficou olhando pela janela pensando naquelas palavras da menina, pitando seu cachimbo de madeira escura. Sentiu certa tristeza invadirlhe a alma, por ter se lembrado de seu ado não tão feliz. Como tantas crianças desse mundo, Diego fora mais uma que não conhecera seus pais, por ter sido abandonado quando ainda bebê. Na maternidade, ele foi adotado por um casal de outro país europeu, que não conseguiram criá-lo por terem sofrido um acidente e morrido em seguida, num hospital local. Ele contava apenas dez anos de idade quando a morte de seus pais adotivos ocorreu. Desse dia em diante, Diego viveu nas ruas da Transilvânia por alguns anos, até encontrar alguém, que considera até hoje como um pai — o Doutor Gutemberg Nagy; um professor e cientista na área médica, em se tratando de animais.

213

e o Morcego da Pensilvânia Após muitos trilhos e lugares, o trem chegava à Suíça; república composta por 26 Estados. Ficaria ali por alguns minutos para a troca de ageiros. Polly estava ansiosa para conversar com o professor, mas de forma que ninguém ouvisse o que queria dizer a ele. E, de repente, os demais meninos adormeceram como por encanto. Ficaram apenas ela e Gustavo acordados. Diego estranhou o ocorrido e logo imaginou que aquela menina, com descendência refinada, vindo da parte do Conde V, poderia ter sido a causadora daquela dormência coletiva nas demais crianças. Mas não tinha certeza. E outro mistério: por que Gustavo Dumitrescu também se manteve acordado, enquanto os outros adormeceram? Essa pergunta ficou no ar, alimentada por ele.

— Vejo que deseja falar comigo, Srta. Polly. — disse o professor, já sabendo de seus pensamentos.

Ela assentiu.

— Sinta-se à vontade. O que puder fazer, eu farei.

Ela olhou seriamente para ele e disse, em tom decidido:

— Desde que Robert me encontrou na estação, perdida, que não entendi nada do que se a comigo até agora. O

porquê de estar aqui e... Por que me tirar do meu lar e de meus parentes, mesmo eles sendo adotivos? Preciso entender melhor o que se a. O que querem comigo?

Diego ouvia tudo atenciosamente e ponderava em como iria responder àquelas perguntas sérias e tão importantes para uma criança de apenas dez anos, que pouco sabia a respeito de seu destino e de si mesma.

— Polly — disse ele, olhando-a fixamente —, essas são perguntas que, no momento, não posso nem tenho ordem para responder, mas que, ao chegarmos ao nosso destino, a senhorita, com certeza, terá todas elas respondidas. E então saberá o que 214

Polly Lee

fazer, e se vai aceitar seu destino traçado pelos deuses de Sighişoara. Só preciso lhe dizer que tome cuidado com sua mente — ela, se não for bem equilibrada e direcionada, poderá leva-la à ruína futuramente e a alguns acidentes. Percebi que a senhorita já reconhece que não é uma “neurotipo”.

Polly percebeu que aquele nome estranho estava sempre entre as palavras de Robert e, agora, do professor Diego. Ela assentiu como se estivesse obedecendo aquele homem com suas palavras sábias. Ele então continuou: — E você, Gustavo —

disse, olhando para o menino de olhos cerrados —, sei que está ouvindo nossa conversa porque, de algum modo, não dormiu.

Procure libertar-se desse seu silêncio, pois a Competição de Sighişoara precisa de Iniciados que questionem, para que aprendam mais e sejam úteis aos outros. Da mesma forma que Polly tem um destino traçado desde que nasceu, você também tem. Vocês são de famílias nobres da Corte. Os demais meninos, que agora dormem, também são Iniciados, mas apenas vocês dois têm a chave para a libertação do Reino, que vem sofrendo ataques do Clã organizado.

O professor falava em tom reflexivo e em longas baforadas fedidas. E retomou sua fala dizendo: — Acho que vocês dois nada entenderam do que eu disse, mas saibam que, logo que chegarmos à Comuna de Bran, terão mais explicações sobre o que falei agora. Os dois, como eu, que são escolhidos para vencer essa Competição, precisam apenas de disciplina pelo que já possuem. Como toda Competição de Sighişoara, existem Iniciados mais adiantados e outros ainda perdidos, mas todos fazem parte do mesmo páreo da vida, cada qual com sua tarefa e seu destino. Como já disse, lá, os dois terão outros Iniciados, mas nenhum como vocês. Gustavo e você serão o 215

e o Morcego da Pensilvânia diferencial da Competição, porque a família do Castelo precisa dar continuidade ao sangue e aos poderes recebidos pelo “filho do dragão”.

Polly e Gustavo ouviam sem nada dizer. Mas aquele nome soado pelo professor, “filho do dragão”, deixaram-os curiosos e perplexos, como se estivessem ouvindo uma história de fantasia, que se destrinchava em páginas de um livro real.

E logo os demais meninos despertaram um a um como se tivessem adormecido por uma semana.

— Estou com fome. — disse Lana, pegando em seus cachos longos e abrindo seus grandes olhos em tom alaranjado

— a única que possuía aquela tonalidade. — Eu tive um sonho muito estranho.

Eles olharam-na repentinamente. E ela continuou: —

Sonhei com um morcego enorme e muitos meninos dentro de uma sala também enorme.

A curiosidade tomou a todos.

— Eu também tive um longo sonho sobre a mesma coisa

— disse Corneliu espreguiçando-se.

— Então todos aqui estão famintos? — perguntou Diego, tentando mudar de assunto por perceber a veracidade dos sonhos deles. — Já desceremos para uma parada demorada e iremos a uma quitanda comer à vontade. Preparem-se! Mas não se esqueçam: no primeiro apito do trem, quero todos juntos de volta para o embarque.

O trem parou em gritos e eles desceram. O professor Diego, carregando as cinco crianças, buscou a mais próxima casa de lanches, e ali comeram à vontade. As

filhas de Magda, as irmãs Moldavo, comiam as mesmas coisas e com gulodice —

enchendo a boca e engolindo rápido para enchê-la novamente.

Lana comia picado, mas se alimentava bem. Polly e Gustavo 216

Polly Lee

eram os mais educados da turma. O professor Diego apenas tomou um café bem quente, devido ao frio intenso suíço. E

Gustavo, olhando o professor com mais atenção, notou algo estranho em suas orelhas. “O professor tem alguns pelos cinzentos nas orelhas”, cochichou para Polly. Ela observou com ar de riso, enquanto Diego se distraía com as outras crianças, que se levantavam uma a uma e iam brincar numa área daquele ambiente. Mas logo ele percebeu os olhares de Polly e de Gustavo em sua direção. E colocando as mãos nas orelhas, franziu os olhos por alguns segundos, e percebeu que estavam completamente lisas, sem nenhum pelo acinzentado.

— O que houve, Polly? — perguntou ele, desconfiado, olhando para ela.

Ela nada respondeu. Apenas sorria em silêncio, junto com o amigo, com as mãos na boca e o semblante baixo.

— Do que vocês estão rindo? — insistiu Diego, desconfiado.

— Suas orelhas, professor — disse Polly, apontando com o dedo e deixando sair um riso infantil —, estavam peludas. Isso é uma mágica?

— Como disse? Peludas?

Eles assentiram. Ele então começou a pegá-las novamente, dizendo:

— Não vejo nada nelas. Vocês devem estar sonhando.

— Não, professor — completou Gustavo —, elas tinham mesmo pe... pelos, como os dos ratos.

— Ratos? — retrucou ele, fazendo-se de desentendido. —

Parem logo com isso! Ora, ora... então você fala, Gustavo?

Vamos que o trem já está apitando!

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e o Morcego da Pensilvânia E se inclinou, olhando para o relógio de pulso e chamando as demais crianças. Então levou suas mãos às orelhas novamente, reuniu a todos e se dirigiram à locomotiva. Do límpido céu suíço, flocos de neve começavam a se deslocar, misturados ao leve vento, caindo em suas cabeças como algodão. A paisagem era estupenda, mas a frieza aumentava gradativamente. Então vestiram seus blusões de inverno e se aconchegaram em seus bancos no vagão escuro.

218

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CAPÍTULO QUATORZE

GRAZ E UM INICIADO DIVERTIDO

trem se dirigia à Cidade de Graz, a capital da Estíria, Ona Áustria, terra natal do grande ditador. Na estação de Salzburg, eles parariam por mais uma hora — trocariam de maquinista e depois seguiriam para a Hungria, o último país antes de chegarem ao destino. Em Salzburg, uma nova figura infantil completaria o grupo de seis Iniciados na Competição mais famosa da Transilvânia. A locomotiva, como sempre, apitava avisando sua chegada opulenta em grande estilo, com direito à fumaça ao ar. A estação estava vazia de pessoas. Algo havia acontecido ali. Alguns policiais tomavam o espaço vazio com fitas amarelas e vermelhas estiradas por toda a estação. Não era uma confusão, mas um corpo se via caído no chão de lajota gasta — alguém havia sido morto naquele momento ou há pouco tempo antes de o trem chegar. O sangue grosso e bem vermelho escorria ainda vivo de alguma parte daquele defunto morno. O professor Diego tentou manter as crianças sem olhar para fora do trem, percebendo o fato — não saberia as suas reações com a cena dramática — criança sempre fica traumatizada quando presencia coisas desse tipo. Ele, vendo aquele líquido grosso deslizar pelo chão, suavemente saindo do corpo inerte daquele homem desconhecido de cabelos e barba longos, teve uma reação estranha e ficou quieto sem mais olhar 219

e o Morcego da Pensilvânia para fora, em estado que só ele saberia nos descrever. Suas orelhas magicamente se mostraram peludas e mudando de formato — ficando pontiaguda na parte superior, e sua respiração estava ofegante, dando-lhe a sensação de cansaço.

Polly novamente as viu e cochichou para Gustavo, que olhava fixo para fora do trem.

— O que houve aqui, professor? — perguntou Lana, curiosa.

— Nada, minha querida. Deve ser uma limpeza no local.

Fiquem quietos até segunda ordem. Por favor, não quero que olhem pela janela!

— Mas... não iremos descer, professor? — perguntou a inconveniente Cosmina, aproximando-se dele.

— Por enquanto não. Como já falei, fiquem quietos aqui.

Todos sentados.

O professor respirava a mil, aconchegado no banco e em sensações estranhas com as mãos por cima das orelhas, tentando cobri-las. Suas orelhas continuavam disformes com pelos finos e cinzentos, e sua respiração acelerava a cada segundo. Polly e Gustavo não paravam de observar aquele feito mágico e estranho. “O que está havendo com ele?”, pensava ela. As duas crianças estavam curiosas e assustadas.

De repente, um dos policiais subiu de vagão em vagão, dando um aviso, falando energicamente:

— Todos, por favor, fiquem aqui dentro por uma questão de segurança! Logo tudo se resolverá e liberaremos vocês.

Diego se levantou, ainda segurando suas orelhas, foi até a porta da vagonete, aproximou-se de um dos guardas com quepe preto e um bigode similar a uma taturana, tomando toda a sua boca, e perguntou, já pendurado com a cabeça para o lado de fora:

220

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— O que está havendo aqui, amigo, na estação?

O uniformizado, então, o chamou num canto e disse em voz baixa:

— Um assassinato. Mas já estamos solucionando o estranho caso.

— De quem se trata, senhor?

— Era um daqueles hippies vagabundos que não tem o que fazer e ficam querendo agitar a sociedade com coisas alucinantes. Mas fique tranquilo, já estamos resolvendo tudo para que vocês possam descer. Não queremos assustar as crianças.

Diego assentiu, mas percebeu certa indiferença contra os famosos hippies que invadiam a Europa naqueles anos conturbados. O professor sempre adorou as músicas e artes criadas por eles, justamente por se identificar — ele sabia que aqueles jovens alucinados, como eram tachados, eram diferentes das outras pessoas, e isso o fazia irá-los, pois tinham uma forma diferente de ver a vida, de ver o mundo e as pessoas —

fora esse o motivo pelo qual ele ara a usar cabelos largados.

— Quanto tempo ainda ficaremos aqui, amigo?

— Não muito, senhor. Darei o aviso lá de fora. O que há com suas orelhas?

— Nada — disse Diego tentando disfarçar, e se colocou rapidamente para dentro do trem, levando suas mãos às orelhas.

— Tenha um bom dia!

O professor se sentou novamente em respiração profunda, e Polly, curiosa, perguntou:

— O que está havendo aqui, professor?

— Está tudo bem. Fiquem tranquilos que logo sairemos.

Teremos um curto atraso, mas ficará tudo normal.

221

e o Morcego da Pensilvânia O corpo foi retirado pela perícia local, o chão lavado rapidamente com mangueiras grossas e compridas, e eles desceram da locomotiva. Diego levou seus Iniciados a uma pequena livraria, que também era uma casa de lanche que se situava ali, dentro da estação — ele era um devorador de livros desde criança. Gostava de ler histórias de terror. Era fascinado por aquele assunto e seus mistérios. E procurou algum que lhe chamasse a atenção, enquanto os meninos olhavam outros livros mais leves. Havia cadeiras e mesas, todas de plásticos em cores para se sentar e ler, se assim quisessem. E logo se viam as crianças lá, distraídas com seus livros infantis nas mãos. E

houve um ocorrido — que só o professor percebeu —

envolvendo Polly. Diego irou-se com a cena e deixou saltar de sua boca um breve sorriso mudo de satisfação, folheando algumas páginas de um interessante título que dizia: “Do que o escuro esconde”. O livro levava o leitor às profundezas da escuridão, onde um personagem lutava por sua libertação mental.

Polly, aproximou-se dele, dizendo:

— O que está lendo, professor Diego?

— Uma história que fala da mente, mas não é muito bom para a senhorita.

— Era o que meus pais sempre falavam para mim sobre livros de terror. O que tem a mente nesse livro?

Ele a olhou seriamente e falou:

— Eu sei que a senhorita tem habilidades com sua mente, mas precisa discipliná-

la antes de querer usar. Percebi o livro que caiu da estante, e sei que foi você que o fez mover-se de lá.

Ela assentiu com o semblante aberto em tom risonho.

Quero lhes relatar que, logo quando eles entraram na livraria, algo de estranho ocorreu com Polly. Enquanto as crianças 222

Polly Lee

escolhiam seus títulos, de pé e curiosos, um dos livros caiu da prateleira sem que ninguém o tocasse. Eles se assustaram.

Cosmina, como era uma menina abusada e cínica, havia dito que fora por sua causa que o livro caíra da estante, em suas brincadeiras de mau-gosto. E riram da cara dela, inclusive Polly.

Mas logo, assim que eles pegaram seus livros e se sentaram nas cadeiras, Polly fitou o encapado no chão e ele, por encanto, subiu a prateleira sem que ela colocasse as mãos. Dessa vez, nenhuma criança vira, apenas o professor Diego, de lá da cadeira, com um livro quase tomando seus olhos inteiro, e outro personagem do qual vocês já ouviram falar nessa história, presenciaram o fato inusitado — sim, ele mesmo, Killer, que já estava na borda do bolso quando o assunto era comida. Em seguida, Polly pegou o livro e foi ler. O tomo falava do poder da mente numa linguagem mais infantil; poder que as pessoas poderiam

obter se bem treinadas — coisa de ficção, de acordo com os “neurotipos”. Mas aquelas palavras, para ela, caíram como uma luva, porém, com medo, devolvera ao lugar dele, pegando outro que pudesse ler mais facilmente.

Após quase meia hora, o professor ficou de pé, com muita dificuldade, e disse:

— Acho que já está na hora de nos reunirmos para o embarque no trem. Vamos?

Os pequenos foram reunidos e a plataforma já estava preenchida de pessoas diversas. Havia falatórios sobre o corpo do homem no chão e reclamações quanto ao atraso do trem.

— Calma, pessoal! — gritava o maquinista, segurando um apito de metal por entre os lábios. — O trem já vai partir!

Os noticiários dos jornais locais só falavam sobre os hippies que se alastravam pelo país e pelo mundo. A 223

e o Morcego da Pensilvânia perseguição a eles era geral. Eram tidos como arruaceiros. Era o que estampava a matéria do jornal austríaco em letras grandes e pretas. O professor Diego resolveu comprar um daqueles exemplares de um garoto jornaleiro de mais ou menos doze anos; seus gritos soavam por toda a plataforma; usava uma boina quadriculada, bermudão escuro que alcançava os joelhos e um blusão grosso de frio, seu tênis era branco, um daqueles famosos All Star. Diego se sentou num dos bancos, cruzou as pernas e começou a ler

aquelas páginas em letras miúdas, enquanto as crianças se colocaram no banco próximo a ele, todas enfileiradas — ele queria ficar a par do assunto sobre os hippies. Em seu bolso dormia o longo cachimbo com o pito à mostra. O professor, então, retirou o artefato do bolso e começou a acender com o isqueiro retangular, deslizando o dedo algumas vezes por cima da esfera, evitando o sopro dos ventos, e a fumaça subiu por sobre seus olhos franzidos, queimando a palha umedecida. Baforava com os lábios na boquilha de cabo curvado e corpo pretos serenamente, enquanto lia. A cada baforada seu rosto serenava e seus olhos quase se fechavam.

Aquela era realmente uma descontraída forma de se relaxar.

De repente, uma voz meiga e aguda saltou próxima ao seu ouvido esquerdo, fazendo-o se encolher em seu largo corpo e mordendo a boquilha, evitando que ela despencasse no chão:

— De quem são essas crianças?

A moça jovial deixou sair alguma tosse seca ao final da pergunta. Ele a olhou, enviesado, e deu mais uma expelida longa antes de responder a ela. A estranha era tão magra que sua roupa se mostrava volumosa em seu corpo esquelético e pálido, seus cabelos escuros e lisos se faziam firmes por uma presilha de metal, deixando-lhe a testa mais visível aos olhos, e sua roupa 224

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totalmente social e sem estampa a deixava uma mulher de aspecto sério, como uma religiosa.

— Eu estou com elas, por quê? — disse, mordendo o pito por entre os lábios volumosos.

— Por nada, senhor. Apenas preocupada em vê-las sozinhas num banco com tanta gente na plataforma. O amigo não tem medo de perdê-las, ou que aconteça alguma espécie de violência ou sequestro? Desculpe-me falar assim!

— Diego Dalca, às suas ordens! — disse, ficando de pé e erguendo a mão. — Não sou daqueles que se distrai tão facilmente, senhorita...?

— Cíprian Constantin. É um prazer! — falou esticando sua pequena mão delicada.

Ele novamente pitou o cachimbo franzindo os olhos e, jogando a fumaça para a frente, onde uma nuvem se espalhava, impediu que eles se vissem por alguns segundos. E logo apagou a brasa com o dedo, dizendo calmamente:

— Não. Elas estão protegidas. Não se preocupe. O prazer é todo meu!

E as mãos se deram como se costuma fazer em Sighişoara.

O trem deu sinal para o embarque. A multidão começou a entrar por todos os vagões. O professor guardou seu cachimbo rapidamente e embarcou com os Iniciados, reunindo-os com euforia. A moça sumira por entre a multidão carregando uma pequena maleta de cor de carne. Como sempre, eles ocuparam dois bancos, um de frente para o outro. Polly e Gustavo estavam colados. A locomotiva deu partida — seguiria para Graz, a cidade universitária. Seria uma viagem curta.

E, no decorrer da viagem, o professor desviou seus olhos para um dos bancos laterais, percebendo aquela mesma moça 225

e o Morcego da Pensilvânia que lhe fizera a pergunta na plataforma, olhando-o sem piscar.

Ele fechou os olhos, escorando-se no banco. Com pouco tempo, abriu novamente e buscou-a; ela ainda o olhava e tirava a vista de instante a instante. Ele temia alguma surpresa por parte dos Moldavos e seu Clã traiçoeiro. Teria que saber de quem se tratava aquela moça, antes que o pior ocorresse. Então resolveu fazer um sinal para ela. A mulher percebeu sua mão para cima e retribuiu, acenando com um sorriso simpático — e, elegantemente, sem que ele percebesse, aproximou-se, sussurrando:

— Por um acaso o senhor é o professor que está a caminho da Competição de Sighişoara, na Romênia?

De início, ele nada respondeu. Era uma pergunta muito confidencial. “Como ela saberia sobre isso?”, pensava. Ele não sabia com quem falava. A moça, então, percebendo sua desconfiança, disse:

— Sou convidada do Conde V, e vou levar para lá um garoto que será também um dos Iniciados. Disseram-me que o senhor estava levando algumas crianças. Não se preocupe, não sou uma “neurotipo”, nem mesmo uma espiã dos Moldavos, como o amigo deve estar pensando.

Diego, espantado e ainda desconfiado, perguntou:

— Onde está o garoto que trouxe, Srta. Cíprian? Não vejo ninguém a sua volta.

— Logo ali! — disse, apontando para o banco. — Ele está dormindo desde que o trem parou. É muito pequeno, só tem dez anos e adora dormir. Nunca vi menino para gostar tanto de dormir que nem aquele.

Então o professor levantou-se para ver de quem se tratava.

Cuidado e desconfiança eram sempre pouco em se tratando do que ele fora destinado a fazer. E olhou com muita dificuldade o 226

Polly Lee

garoto. Depois sentou-se novamente, buscou no bolso do casaco um pedaço de papel com uma lista de nomes e perguntou:

— E como se chama o...

— Drágus Vasile — retrucou a moça, atropelando-lhe as palavras. — Fique tranquilo, professor, porque não estou mentindo para o senhor. Ele é realmente um dos Iniciados de Sighiçoara. O nome dele deve estar aí na sua lista.

Ele correu os olhos na lista novamente, e lá estava aquele nome por entre as demais crianças — era realmente o último nome a se ver.

— Correto — disse ele, confirmando.

Aquele nome poderoso do Conde fez com que Diego se tranquilizasse quanto à moça estranha e o pequeno garoto dorminhoco — ela era realmente uma das mensageiras do Castelo, ou da Competição de Sighişoara. Então ele disse,

enfatizando:

— Professor Diego, como já sabe, escolhido para a nova competição!

— É um prazer, professor! — disse novamente com um riso amável. — Sempre desejei conhecê-lo.

Ele tomou um susto. Nunca havia ficado diante de uma pessoa que o irasse dessa forma.

— É minha fã?

Ela assentiu, quase desmanchando-se em simpatia e falou:

— Li tudo sobre o senhor.

— Tudo? O que sabe sobre mim? Sente-se.

— Obrigada! — falou sentando-se ao seu lado. — Como lhe disse, li muito

sobre o senhor e desejava esse encontro já faz tempo. Agora não posso me demorar aqui, mas assim que 227

e o Morcego da Pensilvânia Drágus acordar, com certeza, virei ficar com vocês. Quero conhecê-lo melhor, professor.

— Tudo bem. Então a senhorita sempre desejou me conhecer, foi isso que eu ouvi?

Ela assentiu. Diego ainda alimentava desconfiança, mas sentiu um impacto de afinidade com a Srta. Cíprian e estampou simpatia e iração por aquela estranha e meiga jovem.

Drágus era um garoto de pele alva, cabelos pretos, corpo um tanto largo, divertido e gostava de rir à toa — era um desses meninos que em tudo que vê encontra algo para fazer as pessoas sorrirem. Apresentava um corte de cabelo sem sentido algum, como se houvesse vários redemoinhos atropelando os fios capilares, seus olhos imensos e roseados davam-lhe uma aparência engraçada, tinha o nariz que se assemelhava a uma buzina de bicicleta, sua roupa se tornava curta por causa de seu corpo; por baixo do comprido casaco de frio preto com golas vermelhas, uma bermuda até os joelhos redondos e gordos, uma camisa social quadriculada e um par de tênis colorido.

Ao se aproximar de Graz, o trem soou alto. A cidade se via aos olhos curiosos dos ageiros e das crianças. A plataforma foi a próxima parada. Ninguém deixaria seus assentos para descanso, a não ser quem fosse descer de uma vez.

Seria uma parada rápida devido ao atraso que teve. Alguns desceram, outros subiram, e o trem seguiu viagem agora para a Hungria — penúltima estação antes do destino. A estada ficava em Budapeste, a capital do Estado; a sexta maior cidade da União Europeia, classificada como Cidade Global Alpha. O

trem voava. E logo a estranha moça, acompanhada do garoto, aproximou-se do restante dos futuros Iniciados de Sighişoara.

Era tardezinha e o sol se escondia no horizonte, opaco. A moça sentou-se, acordando o professor Diego, que havia adormecido 228

Polly Lee

há pouco tempo — estava cansado e dava roncos altos, encostado no banco.

— Boa tarde, professor!

Ele assustou-se e abriu os olhos grandes rapidamente, presenciando um garoto um tanto engraçado junto a ela.

— Boa tarde, Srta. Cíprian! Então esse é Drágus, de quem falou?

Ela assentiu e disse:

— Ele foi, como eu havia lhe falado, convidado para iniciar na Competição de Târgu Mures.

— Târgu Mures?

— Sim.

— Por que a senhorita está usando esse antigo termo, que hoje já não se usa mais? E é muito estranho eu não ter ficado a par do menino como um Iniciado. Como já lhe disse, eu sou o professor responsável por todos os Iniciados da parte do Conde V.

— Veja, professor, assim que recebi a incumbência e a papelada em minhas mãos, presenciei esse nome, em se tratando de Drágus. É que sou a mais nova colaboradora da Competição, sou a professora de psicologia de Târgu Mures. Opa! Desculpe-me! Sighişoara. É que nos livros nos quais li sobre a Competição, sempre era escrito dessa forma.

Ele deixou escapar um riso aguado e perguntou:

— Então a Sra. Rute Serban saiu?

— Aposentou-se no final da última Competição. Foi o que fiquei sabendo nas pesquisas.

— Hum... Então será um prazer tê-la na equipe deste ano que, decerto, será muito conturbado.

— Conturbado?

229

e o Morcego da Pensilvânia Ele assentiu.

— Espero que possamos fazer uma boa equipe. Mas o que quer dizer sobre um ano conturbado?

— Senhorita, em toda disputa há conturbação, concorda?

Ela assentiu. Ele, então, continuou e disse, chacoalhando levemente os cabelos do menino:

— E esse garoto aqui, está pronto para transformar-se em um futuro Iniciado de Voivoda?

— O maior! — disse o garoto, exaltado. — Quero ser o primeiro naquela Competição, professor.

— É isso aí, menino! — observou ele. — É assim que se fala.

— Mas — retomou o garoto, com ar de riso —, e essa orelha, professor, por que não corta esses pelos horríveis?

Eles riram. Principalmente Polly e Gustavo, que já haviam presenciado aquela estranha peculiaridade nele. A Srta. Cíprian tentava esconder o deboche com a mão por sobre a boca pequena. O professor Diego levou os dedos às orelhas, percebendo os pelos, e corou o semblante.

— Drágus — disse ela —, peça desculpas ao professor, por favor!

Eles ainda riam daquelas palavras engraçadas. Drágus olhou para ele e disse:

— Desculpe-me, senhor! É que não aguentei ver sua...

— Drágus! — retrucou a moça novamente antes que ele terminasse de falar. — Quanto tempo já seleciona na Competição, amigo?

Ele, então, serenou o semblante antes de responder, e falou prazerosamente:

— Pouco tempo, mas não vi coisa melhor na minha vida.

230

Polly Lee

— O professor não me respondeu à pergunta inicial —

observou ela.

— Não me lembro, senhorita. Desculpe-me! Minha cabeça anda a mil.

— Sobre o ano conturbado de que me falou.

— Aaah! Teremos muito tempo para conversarmos sobre isso, e lhe direi tudo que precisa saber.

O trem viajava veloz. Budapeste se aproximava. Agora eram seis Iniciados — quatro meninas e dois garotos.

231

e o Morcego da Pensilvânia

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CAPÍTULO QUINZE

UMA CONVERSA FILOSÓFICA

uando o trem parou na estação de Budapeste, na Q Hungria, eles desceram para um largo intervalo.

ariam a metade da noite ali naquela estação. A viagem só seguiria após a meia-noite do relógio da cidade. Era exatamente dezoito horas quando o professor Diego guardava seu relógio no casaco, após dar uma espiada nos ponteiros com seus olhos embebecidos de sono. Era uma cidade festiva e bem cultural. Ali próximo havia um grande parque de diversão. Havia vários tipos de brinquedos e comidas típicas. O Sr. Diego e a Srta. Cíprian tiveram que esvaziar seus bolsos para poder deixar as crianças invadirem aquele parque e se entupirem de guloseimas. Todas estavam com um grande e largo sorriso no rosto — era como se o céu houvesse descido aos seus olhos infantis. Alguns daqueles meninos jamais haviam pisado ou visto um parque de diversão em sua vida. Brincaram e comeram o quanto puderam às custas do Conde V; eram moedas e moedas retiradas de um dos bolsos do professor e de Cíprian — parecia até algo um tanto mágico, ou sei lá, multiplicavam-se a cada busca de suas mãos insistentes.

233

e o Morcego da Pensilvânia

— Vocês não querem ir à montanha-russa? — perguntou Drágus debochadamente, olhando para os colegas.

Estavam com medo — menos ele. Nunca haviam experimentado tal brinquedo. Polly principalmente, como os outros, com exceção de Drágus, nunca havia visto um parque antes, e se lembrou da praça quando os Lee costumavam fazer seus piqueniques semanais. Entristeceu-se ali, diante dos brinquedos em movimento. Mas quando o rosto enjoado de sua irmã Deborah apareceu na frente de seus olhos mentais, logo lhe causou náuseas e certa antipatia. Então, ela retornou ao estado normal e se irou com o que via no parque em movimento.

— Vamos logo! — gritava o garoto atrevido e entusiasmado.

— Drágus cuidado! — disse a moça, preocupada. — Não vá insultar o perigo.

— Eu sei me cuidar, tia Cíprian. Vamos, amiguinhos!

As três garotas o seguiram correndo, menos Polly e Gustavo, que se sentaram num daqueles bancos de praça por sobre uma grama rala e não tão verde.

— Deixe eles aproveitarem — disse o professor.

A moça serenou o cenho. Ele, então, continuou: — Lá em Voivoda será muito mais divertido do que qualquer parque de diversões do mundo inteiro. Os

“neurotipos” não sabem o que é se divertir de verdade.

— Conte-me sobre o senhor, professor. Ouvi muito falar sobre seus feitos mentais.

— Aah, foi? Ouviu o quê, por exemplo?

— Tantas coisas. Tenho lido muito suas matérias nesses últimos meses nos jornais de Sighişoara. Para lhe ser franca, sou sua fã número um, já lhe disse isso — falou, deixando escapar um sorriso meigo.

234

Polly Lee

— Fã número um?

— Foi isso que ouviu, sou... sou sua fã de carteirinha.

Como eu havia dito, sempre o irei.

O professor Diego ficou tal qual uma pimenta vermelha com aquelas palavras de carinho de Cíprian. Ela, então, continuou: — Não precisa se envergonhar, estou sendo sincera com minhas palavras, e nada melhor do que algo para deixar-nos bem.

— É que eu nunca ouvi alguém falar assim que... que...

— Que o senhor é bom no que faz? — disse atropelando-lhe. — Claro que é. E lhe digo mais: é o melhor de todos que já houve, pelas pesquisas que eu fiz antes de me candidatar ao cargo. Acho que o amigo não deve ligar para o que os outros invejosos dizem a seu respeito em Sighişoara.

Ela silenciou, serenando o cenho em respiração um tanto aguçada.

— Pegue na minha mão.

— O quê? — disse, surpreso.

— Pegue. Sinta meu nervosismo.

— Realmente você está tremendo.

— Sim. É por sua causa, sabia?

— Por minha causa?

— Sim. Falei que sou sua fã. O senhor ainda não acreditou em mim? Não é possível!

Antes que aquela conversa tomasse outros rumos, Polly e Gustavo se aproximaram deles, sentando-se à mesa.

— Professor Diego — perguntou Polly —, o senhor não poderia comprar um algodão-doce, porque eu...

— Claro, Polly — rebateu antes que ela terminasse de falar, deixando que de seu rosto extenso saísse um sorriso 235

e o Morcego da Pensilvânia amável como o de um pai, que quer ver sua filha satisfeita. —

Aqui estão as pratas, peguem e vão lá comprar!

E retirou do bolso largo e fundo algumas moedas de cor acinzentadas, como se fossem sujas, onde estava escrito Leus.

Entregou-as nas mãos miúdas da menina que, logo, junto ao amiguinho, correu ao encontro de um senhor de barba suja que vendia o doce numa carroça velha, em roupas que pareciam trapos. Nesse momento, os olhares do professor Diego e de Cíprian se misturaram como nos filmes de cinema. O silêncio ficou entre os dois, até que ele resolveu quebrá-lo, dizendo:

— Cíprian, não é?

Ela assentiu. E ele continuou: — A senhorita já teve alguma experiência com crianças e jovens?

Ela olhou para ele como se algo de muito terrível fosse ouvir daqueles lábios rústicos e secos, onde dava para se ver fumaça sair devido ao frio intenso. E respondeu:

— Não. Será minha primeira experiência.

O professor, então, sorriu vagamente olhando para ela, como se quisesse realmente dizer algo muito sério. Ela retomou:

— Por que a pergunta, professor?

— Você faz ideia do que vai encontrar naquela Competição?

— Não. Ouvi falar de alguns Iniciados indisciplinados, mas...

— Indisciplinados? — disse, mudando o semblante e lhe cortando suas palavras. — São verdadeiros loucos. Acredite.

Os olhos da moça ficaram arregalados como duas jabuticabas, querendo saltar do rosto sério e magro. No semblante dela estampava-se medo, pavor e surpresa. Ela levou seus olhos para Polly e Gustavo que, sentados, lambiam aquele doce colorido em azul e rosa, desejando que nunca se acabasse, 236

Polly Lee

e serenou sem nem piscar um só minuto. E, de repente, disse, ainda olhando para as crianças entretidas:

— Quem dera professor... se todas fossem como eles...

Agora eram os dois contemplando as duas crianças satisfeitas com o açúcar volumoso agarrado a um palito grosso e comprido. E Diego falou em tom filosófico:

— Se todas as crianças fossem iguais, Srta. Cíprian, não existiriam sonhos nem escolhas, e o mundo seria enfadonho e sem perspectiva alguma. As diferenças precisam existir para que haja questionamentos e personalidades. Esse é o motivo que faz a

moça

existir

como

psicóloga;

as

diferenças

de

comportamentos dos demais seres. Essa é a maior problemática dos “neurotipos”: querer compreender as personalidades das pessoas, ou as tornarem iguais, tentando compará-las umas com as outras.

Ela assentiu em silêncio. Ouvia aquelas palavras sábias, ainda olhando para as duas crianças sentadas no banco de madeira. Mas estar diante de uma personalidade como a do professor Diego Dalca, para ela, era um privilégio ímpar. Era como realizar um sonho de uma verdadeira aluna desejosa de aprender.

— De onde você é, Srta. Cíprian? — perguntou, tirando-a do transe momentâneo.

— Eu... eu sou de Síbiu. Nasci lá, transferi-me para Brasov e me instalei na Comuna de Bran. Não conheço muito do lugar porque logo deram-me essa

incumbência de ir à cidade de Graz buscar Drágus. Eu havia acabado de me formar na matéria que vou exercer, quando o Conde V me enviou uma carta bem detalhada convidando-me para tal função. Eu não esperava tanta honra assim. E confesso, professor, não cheguei 237

e o Morcego da Pensilvânia nem a fazer meu estágio direito e tive que me mudar repentinamente. Então, quase nada sei na prática da psicologia, mas fui a primeira nas provas da Universidade de Síbiu, aluna número 1. Fiz um curto curso sobre mente, mas...

— Foi o que eu imaginei — disse, sem deixar que ela finalizasse suas palavras, segurando seu próprio queixo. — Vai precisar de algumas aulas antes de entrar em ação. Vejo que você é como uma criança que está prestes a entrar num jogo que ainda não tem as regras para jogar, e isso é muito perigoso, pois vai depararse com personalidades, na Competição, que mudarão totalmente seus conceitos de psicologia. Teremos inimigos à frente, todos sábios e repletos de malícia. A prática nem sempre se iguala à teoria, senhorita. A prática, acredite, é sempre mais cruel. É o grande problema de alguns “neurotipos”.

E a moça também irá ver e conhecer a astúcia dos Moldavos.

Mas, dependendo de nossa mente, a prática poderá tornar-se algo um tanto leve e prazerosa.

Ela apenas ouvia em silêncio. E ele a perguntou, continuando: — O que dizia em sua carta Real, vinda do Conde V, além do convite? Se é que posso saber.

— Apenas que eu deveria me preparar para o próximo o.

— Hum. Foi o que eu imaginei. Você terá uma instrutora muito rígida de nome Elisabeta Florea, a mais severa das instrutoras de Sighişoara. Cuidado com ela!

— O quê? O que tem ela? Assim o amigo me deixa assustada.

— A Sra. Elisabeta adora vasculhar os segredos e intimidades dos candidatos ao cargo de psicologia, porque ela considera esse papel um dos mais importantes da Competição e 238

Polly Lee

não deixa qualquer inexperiente o deslumbrar assim, tão fácil. A não ser que... que...

E fez um silêncio.

— A não ser que...? — disse ela, curiosa.

— Que a senhorita tenha um bom padrinho para se apoiar.

A Sra. Elisabeta, logo que encontra uma falha no currículo de vida do candidato, demite-o, antes mesmo de ele iniciar sua função na Competição. Além das perguntas maliciosas na entrevista que terá com ela. Fique atenta. Vi alguns serem cortados da função instantaneamente.

A moça mostrava-se um tanto assustada e amedrontada.

Ele, então, continuou mudando o semblante: — Mas não se preocupe, senhorita, eu não quero assustá-la, apenas previno sobre a suposta instrutora carrasca e para que se prepare antes do encontro com ela. Acredito que irá se sair bem — disse estampando alegria, escorando-se no encosto da cadeira.

— Obrigada, senhor, pela observação! — disse sem graça.

— Não precisa me chamar de senhor, Srta. Cíprian, porque não o de um professor rabugento e medíocre.

— Não o vejo assim, e venho acompanhando todo o seu projeto na Competição de Sighişoara, como eu já lhe havia dito.

— É mesmo?

Ela assentiu e perguntou:

— Só não entendo até hoje, como se chega à Voivoda?

Nenhum livro ou escrito fala de tal mistério. Nem o amigo escreveu tal lugar em seus textos. É como se esse local não existisse no mapa de Sighişoara.

— Esse é um segredo que há pouco me foi confidenciado, Srta. Cíprian. Mas acho que teremos agora mais uma pessoa que receberá essa chave.

239

e o Morcego da Pensilvânia

— De quem está falando?

— Isso, me desculpe, eu não posso falar.

— Entendo. Desculpe-me a intromissão!

— Tudo bem. Há segredos naquele lugar, que vivem há milênios sem poder serem revelados. Apenas poucos Iniciados terão, ou nenhum. Entre Síbiu, Bran e Sighişoara, há um grande mistério que fica a sete chaves. Nem o Sr. Laurentiu Balan, que é o braço direito do Conde V há muitos anos, em quem ele confia cegamente, tem o a esse mistério tão confidencial e a certos segredos de família. Os segredos precisam ser guardados devido aos Moldavos, porque é o que eles mais desejam saber. Mas acho que chegou a hora de eles serem abertos a alguém bem especial.

Após ter falado isso, ele silenciou com semblante franzido.

— O que foi, professor? O amigo está bem?

— Sim, estou. Apenas senti um mal-estar momentâneo.

— Deve ser esse tempo abafado.

— Não.

— Não?

— Não. Depois preciso lhe contar algo que todos que vão a Bran devem ficar sabendo.

— Do que está falando? Está me deixando assustada novamente.

— E fique mesmo, porque é algo muito sério. Mas agora não poderei dizer nada. Assim que chegarmos à Transilvânia, conversaremos a respeito.

Ela assentiu, curiosa, entrelaçando seus dedos numa tensão forte, e seus olhos pareciam dois ouvidos atentos. Diego, percebendo seu clima tenso, disse:

240

Polly Lee

— Não fique assim, senhorita, porque só a calma nos traz sabedoria nesses

momentos tensos. Relaxe.

— Professor Diego — disse Polly, chegando na companhia de Gustavo —, não vamos embarcar novamente no trem?

Ele então falou amavelmente, olhando em seu relógio de pulso:

— Sim, sim, Srta. Polly. Ele já está se aproximando.

Preparem-se!

E levantou-se com seu corpo avantajado, dizendo com voz ofegante: — Preciso mesmo fazer alguns exercícios. Estou muito gordo.

Os meninos e a Srta. Cíprian olharam-no com um sorriso fechado.

— Vamos, Polly — disse Cíprian, puxando-a pela mão —, vamos chamar os outros, senão eles não largam aqueles brinquedos!

Acho que provavelmente vocês, leitores, devem estar se perguntando sobre Killer. O que ele tem feito durante esse tempo no parque?

———————————————

O bolso do casaco de Polly, vocês sabem, era seu refúgio nesses momentos. Nenhum pio, nem algum movimento, mas a fome era seu pior inimigo e, durante o degustar das crianças com aqueles doces no palito, alguns pedaços melados foram jogados para ele, sujando todo seu focinho pontiagudo e cinzento, mas sua língua comprida e fina resolveu entrar em 241

e o Morcego da Pensilvânia ação e misturar-se ao doce delicioso, degustando feito uma inocente criança.

— O que está fazendo, Polly? — perguntou Gustavo, percebendo seus movimentos secretos.

— Não estou fazendo nada. Por quê?

— O que tem aí dentro desse seu bolso, que você vive jogando alimentos? Por acaso você cria algum animalzinho?

Algum rato?

— Não tenho nada, eu só...

— Não tente me enrolar — disse, cortando-lhe as palavras

—, eu sei que você tem um bichinho aí dentro do seu bolso, e vive dando de comer a ele o tempo todo.

— Não. É que eu... eu... eu não...

— Pare de tentar mentir. E fale logo. Não se preocupe, não vou dizer a ninguém.

— É melhor contar logo, Srta. Polly. — disse Killer, já saindo do bolso e deixando Gustavo assustado por ver um tipo de animal não convencional tão próximo de alguém. — Eu já não aguento mais ficar aqui encolhido tanto tempo nesse seu bolso fedendo a roupa velha e mofada.

Gustavo, nesse momento, além do susto e da surpresa, deixou sair um riso de deboche e perguntou:

— Você fala?

O transparente animal jogou suas largas e transparentes asas tentando espreguiçar-se, e retrucou:

— Não vejo graça nisso, garoto! E quem é você?

— Gustavo Dumitrescu. — disse Polly.

— Você cria um morcego falante no bolso, Polly? —

perguntou Gustavo, irado e ainda assustado.

— Não, eu...

242

Polly Lee

— Olhe bem aqui, mocinho — falou Killer, atropelando Polly e levantando suas asas —, eu não sou bem um morcego desses qualquer que você vê voando por aí entre os

“neurotipos”, sou bem mais especial e...

— Não — fez Polly, sem deixar que ele terminasse a explicação para a pergunta de Gustavo. — Eu o encontrei lá em casa.

— O quê? — Espantou-se Gustavo. — Na sua casa? E

ele... ele...

Ela assentiu em silêncio. E Gustavo continuou: — E o que faz um morcego dentro de uma casa?

— Olhe aqui, garoto atrevido — berrou Killer com semblante enraivecido, tomando a frente dela novamente —, já lhe disse que não sou um qualquer que vive voando por aí em noites frias de inverno, rodeando as casas iluminadas desse Mundo. Eu sou... eu sou um...

— Ele apareceu no meu quarto e eu adorei sua companhia

— observou Polly, tentando acalmar Killer ao atropelar novamente suas palavras. — Ele é um morcego muito bonzinho.

Você vai gostar dele.

O minúsculo morcego agora havia dado um voo curto até o braço de Polly, segurando-se para não cair com suas garras afiadas, a ponto de deixar pequenos arranhões na pele dela.

— Desculpe-me, senhorita! — disse o animal notando os arranhões. — Não foi minha intenção. E quem é esse tal aí que fica se achando?

— Tudo bem, Sr. Killer — disse ela. —, acho melhor voltar para meu bolso, antes que os outros vejam-no aqui. E

você, Gustavo, saiba que ninguém pode ficar sabendo, nem mesmo o professor Diego, nem a Srta. Cíprian, sobre Killer.

243

e o Morcego da Pensilvânia Gustavo assentiu. E Killer mergulhou no bolso de súbito.

O trem se aproximou como sempre, com suas palavras que só os maquinistas sabem decifrar. Seguiriam agora para Bucareste; uma cidade altamente cultural e industrial, localizada na parte Sudeste do país, na região histórica da Munténia, nas margens do Rio Demovia, a 60 km do Rio Danúbio, e de lá seguiriam então para Bran, a maior cidade da Romênia, uma Comuna localizada no Distrito de Brasov, no Estado da Transilvânia.

Eu sei que há, nos leitores desta história simples, muita curiosidade, e uma delas, com certeza, é sobre os Lee, mas logo nos transportaremos para lá, e direi o que eles estavam aprontando nesse momento de suas vidas.

Então, subiram no trem que cuspia fumaça. Os meninos do professor e da Srta. Cíprian agora estavam sentados em seus devidos lugares — cansados e exaustos por conta dos brinquedos do parque. A locomotiva deu partida. Dessa vez, até Polly e Gustavo, que de outra vez não adormeceram, foram os primeiros a dormir no banco, um encostado no outro. O

professor Diego olhava para a janela serenamente quando Cíprian tocou em seu ombro e perguntou:

— O professor não vai descansar?

Ele sorriu, ainda olhando para a paisagem montanhosa que ava ligeiramente pelos seus olhos franzidos. E respondeu, virando-se:

— Não... Quero aproveitar que as crianças dormiram e lhe contar algo muito interessante sobre mim, é claro, se estiver interessada em saber.

— Claro, professor — disse ela, entusiasmada, e aproximando-se um pouco mais para perto dele, deixando que saísse de seus pequenos olhos redondos um sorriso conquistador 244

Polly Lee

—, pode falar. Estou pronta. Qualquer detalhe de sua vida me interessa.

Cíprian adorava histórias — era uma pesquisadora nata. E

em se tratando do professor Diego, ela iria longe.

Então ele se aconchegou, pegou seu cachimbo, que ficava, como vocês já sabem,

no bolso do casaco e, deslizando o dedo no isqueiro, acendeu o artefato dando uma pitada longa e profunda, jogando a fumaça pela janela, que voltava tocando seus rostos, devido aos fortes ventos. O fumo parecia acalmar-lhe a alma e os nervos.

— Importa-se, senhorita?

— Fique à vontade, professor. O aroma do fumo puro me agrada muito.

— Hum... Você é uma das poucas pessoas que falam assim do meu fumo — disse, com simpatia.

Mais algumas baforadas e aquela voz calma e aguda começou a narrar sobre seu ado, dizendo:

— Há muito tempo, quando eu ainda era um jovem rapaz de vinte anos, estava na faculdade, quando algo muito estranho me ocorreu, mudando o destino de minha vida...

Fez-se um silêncio curto. Ele pitou longamente o artefato livrando-se da fumaça e continuou: — As ruas úmidas da Transilvânia e os ventos frios me faziam bater os dentes e tremer todo meu corpo, encolhendo-me em meu casaco claro.

Havia chovido no início daquela noite e poucas pessoas se atreveram a andar naquelas ruas e vielas sombrias, estreitas e históricas. O silêncio rondava o ar misterioso, causando-me certo medo... uma espécie de pavor. Andava olhando para os lados, onde casas em estilo germânico se apresentavam em suas arquiteturas belíssimas aos meus olhos curiosos. Eu sempre ouvi 245

e o Morcego da Pensilvânia falar sobre histórias de terror, mas nunca dei ouvido a essas baboseiras de filmes e contos fantásticos de autores, ou de meras revistas em quadrinhos, que eu sempre considerei escritas por um bando de loucos, apesar de enxergá-los como pessoas inteligentíssimas no que sabem fazer. Mas o que ocorreu, naquela noite, fez-me mudar totalmente o conceito sobre certos mitos que a sociedade da Transilvânia alimentava todo esse tempo.

E relatou todo o ocorrido com ele, deixando a moça petrificada e mal respirando, por agora entender porque as orelhas do professor, às vezes, faziam-se peludas e disformes.

Ele notou que Polly não dormia, mantendo seus olhos franzidos e consecutivamente ouvindo tudo que fora relatado à Cíprian.

Agora teria que falar com ela, antes mesmo de chegar a hora certa, sobre alguns assuntos, ou então ela iria comentar com Gustavo, e ele, claro, revelaria tudo, deixando-a um tanto traumatizada.

246

Polly Lee

CAPÍTULO DEZESSEIS

A CHEGADA TRIUFANTE

A BUCURESTI NORD

nquanto o professor e a Srta. Cíprian conversavam, o Etre m acelerava, de forma que suas rodas de puro aço quase flutuavam saindo dos trilhos em faíscas reluzentes. A neve continuava caindo e os ageiros estavam encolhidos em seus bancos. Ficariam na capital da Romênia e pegariam o trem mais vagaroso para Brasov. A locomotiva começava a entrar na capital considerada a mais pobre da União Europeia, onde se via vários pedintes, pessoas em estado de pobreza extrema vagando pelas ruas antigas — e nós sabemos que essa situação se deve à má istração dos governos e à má educação familiar de uma sociedade. A estação de nome Bucuresti Nórd, em romeno, é considerada a maior ferrovia do país, localizada no município de Bucareste.

O trem parou e já se viam os ageiros de pé, em estado de ânsia total. O professor Diego e a Srta. Cíprian guiavam as crianças na direção da porta de metal. Fumaça em sopro se espalhava pelo imenso espaço de oito plataformas, cada qual com 14 leitos ferroviários. Dali saíam mais ou menos uns 200

trens lotados diariamente — era a vida diária daquela sociedade empobrecida.

247

e o Morcego da Pensilvânia

— Por favor — disse o professor, atento —, todos para a plataforma de número 5! Srta. Cíprian, pegue as meninas que eu levo os dois garotos.

Seus os eram apressados. Diego ainda carregava o cachimbo preso por entre os lábios, baforando fumaça pelas narinas e pela boca como o grande trem que eles deixaram para trás. A mala grande na mão esquerda, e os dois garotos o seguiam.

Então olhou para Cíprian e disse quase em sussurros:

— Senhorita, cuidado com esses garotos maltrapilhos, são pedintes, e alguns além disso...

— O quê? — disse ela em tom baixo, sem nada entender.

— Eu quis dizer que, em meio a esses meninos pobres, que perambulam por aqui, existem alguns bandidos disfarçados, e podem roubar sua maleta ou qualquer pertence pessoal.

Ela assentiu olhando para os lados com seus pequenos e assustados olhos. Os os eram rápidos e desconfiados.

Teriam agora que comprar as agens na cabine lateral da plataforma indicada. E sem que eles percebessem, um daqueles pedintes se aproximou da moça descuidada e tomou o lenço de cor vermelha, que dava apenas uma volta em seu fino pescoço, causando-lhe pânico total.

Gritou em desespero:

— O que é isso?! Socorro! Socorro, professor!

— Tudo bem, senhorita. — disse ele. — Acalme-se. Foi apenas seu xale. Venha logo por aqui! Eu lhe avisei.

Na plataforma de número 5, quase não havia ninguém para comprar agens, inclusive nem fila tinha. As crianças, distraídas, não notaram o ocorrido com ela, de tão rápido que foi a cena do roubo — apenas o grito desesperado dela os deixou atarantados. O guichê foi alcançado, e os bilhetes foram 248

Polly Lee

comprados com sucesso. Eram oito bilhetes, seis com a metade da agem e dois inteiros. E ali mesmo eles ficaram à espera do trem para Bran, nas imediações de Brasov. Bran tem um formato estranho de um homem ereto subindo uma suposta montanha — era o que diziam os historiadores e estudiosos do mapa geográfico da cidade, além dos antigos moradores. Eles diziam ser “O filho do dragão”, que resolveu fugir da cidade de Sighişoara para esconder-se no

Castelo, pois o povo estava em fúria pelos seus maus-feitos. Era uma lenda antiga que nunca fora comprovada, mas que se perpetuava entre os moradores até aqueles dias.

Após quase meia hora de espera, o trem apitou aproximando-se da plataforma — seu estado, como aquelas crianças de rua, era deplorável por fora, mas, por dentro, o material de metal em cor bege e janelas imensas e compridas em vidro transparentes e grossos mostrava-se completamente em bom estado; bancos de metal rígido, da mesma cor, brilhavam devido à sua pintura nova e lisa.

E subiram.

Não houve lotação em seu interior. Poucos ageiros ocuparam tantos bancos largos e espaçosos, ficando alguns vazios em todos os vagões. Eles penetraram no primeiro vagão, onde dava quase para se ver o maquinista de uniforme marrom e quepe da mesma cor, com a aba escura. Cada botão daquele uniforme equivalia a um disco grosso, de tão grande e preto.

Mais um apito demorado, fumaça em linha reta para cima espalhando-se e as rodas de ferro gastas pelo tempo iniciavam a viagem mais tensa e vagarosa que aqueles ageiros já tiveram em suas vidas.

249

e o Morcego da Pensilvânia E em um determinado trecho do caminho, o

professor Diego, percebendo-os de olhos fechados, inclusive os da Srta.

Cíprian, levantou-se, tocou no ombro de Polly, e disse em sussurros:

— Venha comigo, senhorita!

Ela se assustou, mas o seguiu atravessando para o outro vagão. Caminharam pelo segundo, e o terceiro foi pulado seguindo adiante aos próximos, até chegarem ao último, onde uma paisagem magnífica de montanhas e florestas avam vagarosamente, pois os trens da Transilvânia não adotavam velocidades extremas para não causar acidentes em seus trilhos, já muito antigos e malconservados pelo Governo do Estado.

Polly e o professor Diego estavam do lado de fora do vagão, segurando na barra de ferro em círculo.

— Que paisagem maravilhosa, professor! — disse Polly com o semblante franzido e olhando tudo detalhadamente, sendo agredida pelos ventos soltos e o som estridente dos trilhos em confronto com as rodas de ferro.

O professor nada falara, apenas observava a menina irada com as paisagens. E após alguns minutos naquela expectativa, ela se virou para ele e perguntou em tom infantil e inocente:

— O que estamos realmente fazendo aqui, professor? Por que viemos para cá?

Antes de responder, ele retirou novamente seu cachimbo alaranjado do bolso e acendeu com muita dificuldade, devido aos ventos que os tocavam, dando algumas pitadas demoradas e observando a fumaça que subia continuamente de suas baforadas longas, misturando-se aos ventos e sumindo no ar. O

trem seguia, deixando metros de trilhos para trás em curvas e distâncias consideráveis. Eles se debruçaram no ferro cru que 250

Polly Lee

protegia o vagão dando uma volta de ponta a ponta, agarrados à lataria rígida. Polly mexia as pernas esperando a resposta daquele homem sério e pensativo com seu cachimbo entre os lábios e sua mão direita. Então ele resolveu falar, após mais uma baforada demorada, dizendo em palavras arrastadas e dificultosas:

— Polly, minha filha, eu... preciso lhe revelar algo que...

você tem que saber de agora em diante... percebi, quando conversava com a Srta. Cíprian, que... você não estava dormindo e ouviu nossa conversa.

— Não, eu não...

— Não precisa ter medo nem ficar assustada, Polly —

disse-lhe, atropelando as palavras. — Já estava na hora de a senhorita começar a saber sobre o seu destino e... sobre sua vida daqui para frente.

— Do que o senhor está falando?

— Tenha calma, que tudo será esclarecido e nos mínimos detalhes. Agora direi apenas o início do que você realmente precisa saber.

Ela assentiu, curiosa, olhando para ele como se olhasse para um pai. Nisso, a locomotiva se aproximou de algumas montanhas que se via ao longe, onde ainda não dava para se ver realmente sua dimensão completa. Era apenas o pico da mais alta de todas elas, que desfilava aos seus olhos curiosos.

— Você está vendo ali — disse ele, apontando para a frente do trem —, aquelas montanhas lá embaixo, onde o sol se deita ao chegar a tarde fria?

Polly assentiu, levando os olhos pregueados a elas, envergando-se para ver na lateral do trem. E ele continuou, agora em voz mais firme: — Uma delas é para aonde estamos 251

e o Morcego da Pensilvânia indo agora. Lá se coloca o mais famoso Castelo da Transilvânia, e se posso ir mais além, da Romênia, onde vive o mais rico Conde da região; o Sr. V, mas quero adiantar-lhe que isso aqui não é um simples eio a um castelo antigo e famoso, e sim uma realização profetizada pelo maior dos “Dragões” de Sighişoara que aquela família já pôde ter em seus dias conturbados.

— Dragão? — fez ela, espantada.

— Sim. O “Dragão” coroado Rei de Bran, que teve um filho primogênito, que até hoje domina sua realeza sem nenhum herdeiro ou herdeira até então. Mas ele, nesses últimos anos, descobriu que uma mulher de nome Mirena Moldavo, descendente dos patriotas que venceram uma guerra contra o Estado há tempos, gritou aos quatro ventos que estava grávida de uma menina, que supostamente seria sua legítima filha, e isso fez com que todo o Castelo estremecesse em ruínas morais. O

Conde V foi acusado de criminoso pela família Moldavo diante da grave acusação da moça, e um entrave ocorreu, comandado pelas autoridades locais, fechando todas as portas do Castelo de Bran. O Sr. V foi preso no próprio Castelo e mantido apenas a pão e água no calabouço mais escuro daquele lugar. Nesse ínterim, quase toda Cidade de Bran foi invadida pelos Moldavos, que organizaram um ataque ao Castelo, inclusive ao país de Sighişoara, para uma suposta dominação e, sem pensar duas vezes, tomariam para eles em total e definitivo. Acho que até a Competição mais famosa da Comuna seria destruída

se não fosse o Conde V. Agora, a agem misteriosa foi lacrada, dando abertura apenas a quem tem o segredo dela.

O trem seguia vagarosamente como se quisesse respeitar aquela narrativa antes que chegassem ao destino previsto. Ele, então, retomou: — Mas, para não ocorrer esse incidente fatal ao 252

Polly Lee

Conde, e consecutivamente à prestigiosa Competição que ele criou, a Srta. Mirena Moldavo, uma das filhas dos Moldavos, o mais perigoso da família, mandou uma carta a V, nela dizia que iria esconder a gravidez, confessando a seus pais e a todos de sua cidade que fora um equívoco aquela suposta gestação, fazendo com que eles desistissem de uma vez por todas dessa infâmia; o Conde seria solto, e não haveria mais nenhuma invasão por parte dos Moldavos à Comuna. E após Mirena ausentar-se na casa de alguns parentes distantes, para esconder sua gestação, sem que seus pais soubessem, deu à luz uma linda menina de olhos escarlates. Assim que a criança nasceu, a Srta.

Mirena, em comum acordo com o Conde, seu grande amor, que estava de acordo com os planos, enviou a própria filha, após ela completar nove meses, a um casal da América, no Estado da Pensilvânia, para que cuidassem dela em troca de uma boa quantia em dinheiro vivo. E foi feito: a criança foi levada por um mensageiro de nome Robert, aquele que a senhorita conheceu. Mas após completar dez anos de idade, ele voltaria para pegá-la e levá-la rumo ao Conde. Por isso estamos aqui.

— Então eu fui mesmo vendida pelos meus...

Ele assentiu, compadecido, antes de ela terminar.

— Robert estava certo — observou ela, já com os olhos em lágrimas.

— Sim. Robert era o mensageiro que residia há alguns anos na Pensilvânia, nos Estados Unidos. Ele foi até a casa de seus futuros pais adotivos para levá-la e entregá-la a eles, assim você poderia ser educada como um “neurotipo”. “Detesto esse nome que foi imposto aos homens pelo povo de Sighişoara, apesar de um dia eu... eu ter sido um... um...” — terminou sussurrando o professor, logo depois silenciando.

253

e o Morcego da Pensilvânia

— O que disse, professor?

— Que seus pais adotivos são meros “neurotipos”, que não têm compaixão de nada, nem deles mesmos. Até hoje não sei o que os deuses pensam dessa raça que povoa a Terra maltratando-a de todas as formas e a si mesmo, além dos outros.

— E o que significa “neurotipos”? Vivo a toda hora ouvindo isso de vocês.

— São nada mais do que as pessoas comuns que vivem nesse “mundo”. Como já disse, os homens maltratam os animais e pessoas em seus diversos gêneros e raças, além da natureza de um modo geral, achando que só eles são os merecedores da Terra, e alguns achando que de todo Universo, mas não am de meros animais assemelhando-se aos irracionais, e sem consciência alguma do que estão fazendo ao seu Mundo. Polly, a senhorita e os demais são uma espécie diferente. Mas só você e Gustavo têm uma posição privilegiada naquele Castelo e, supostamente, em Sighişoara. E a senhorita é a mais importante de todas elas, por ser filha do Conde V, “O filho do grande dragão”, e em suas veias corre o sangue legítimo dele e de seus anteados. Mas, em suas veias, também corre o sangue dos malditos Moldavos.

— Então eu não sou uma pessoa normal?

— Felizmente não. Mas possui uma parte dos

“neurotipos”, graças à sua mãe. Eu tenho uma notícia não tão positiva para você sobre ela, entretanto agora não posso revelar.

Não antes de chegarmos ao nosso destino.

Polly ficou séria e sem mais nenhuma pergunta. Tudo ali, para ela, estava sendo estranho e curioso. E o trem seguiu viagem em apitos contínuos e em velocidade lenta...

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Polly Lee

CAPÍTULO DEZESSETE

UMA PARADA

E UM OCORRIDO CURIOSO

e repente, após uma distância percorrida, o trem Dde sacelerou. Ao redor, a paisagem era constituída de montanhas de todas as formas, e por todos os lados havia florestas e encostas arborizadas, além de alguns estreitos rios em curvas, serpenteando por entre as cordilheiras. E uma revoada de voadores não identificados pelos maquinistas vinha saindo de uma das montanhas, em direção à locomotiva. Não voavam como todo pássaro, pareciam desordenados e cegos, como se batessem uns nos outros. Então espalharam-se, tomando completamente a visão do trem — pareceu até um ataque inesperado. O professor e Polly ainda conversavam lá atrás, sem nada perceberem.

— Por que o trem está parando? — perguntou Polly, percebendo a desaceleração da máquina. — Será que chegamos?

— Não sei, senhorita — retrucou o professor, surpreso. —

Ainda não chegamos. Há alguma coisa de errado nisso.

Dentro dos vagões, algumas pessoas se alvoroçaram curiosas, ao o que olhavam das janelas o bando de voadores aproximando-se. As frestas foram fechadas rapidamente. O

255

e o Morcego da Pensilvânia professor, então, observou de um dos lados do trem na direção contrária e percebeu a invasão e do que se tratava.

— Pelos deuses! — balbuciou ele.

— O que foi, professor?

A locomotiva ainda seguia lentamente, pois estava em uma descida de pouca inclinação.

— Polly, é melhor você entrar rápido no vagão, agora!

Vá! Vá logo!

— Por quê? O que está havendo, professor?

— Não faça perguntas. Entre, rápido. Corra!

O susto naquele trem foi geral. Nesse momento, os voadores enlouquecidos atacavam a locomotiva, tentando invadi-la e cegando os maquinistas, que gritavam desesperados e sem nada entender. Os morcegos batiam nas janelas, esbofeteando-se em sangue e morte fatal. As pessoas gritavam ao ver aquele bando de animais asquerosos. A curta cabine, que estava com as frechas abertas, foi invadida pelos voadores bravios, que penetraram furiosos, atacando os dois maquinistas.

O postigo que dava para as vagonetas estava lacrado — foi a sorte dos ageiros.

— Meu Deus, o que significa isso?! — gritava um dos maquinistas, debatendose com um dos morcegos loucos.

— São morcegos, não está vendo?! — retrucou o outro, também tentando livrarse de alguns.

— Isso é impossível! Morcegos a essa hora do dia, e em bando?! Saiam! Xô! Xô! Saiam logo daqui!

E tangia-os com suas mãos, tentando batê-los. Polly entrou no último vagão, fechou a porta rapidamente e ficou observando o professor Diego, que se concentrava ali de pé, intacto, cerrando os olhos. Alguns morcegos, ao bater na lataria do trem, estendendo-se nas laterais, caíram no chão, mortos, 256

Polly Lee

com a pancada. Via-se sangue escorrer pelos vidros, bem como pedaços de carne e asas tremulando. As pessoas estavam em desespero total. Gritos.

O trem, então, parou bruscamente freado por um dos maquinistas, que estava mais que desesperado. Quase todas as pessoas caíram nos corredores, muitos até por cima dos bancos.

Polly, que não esperava o sopapo, estendeu-se no piso batendo com a cabeça no ferro vertical à sua frente, e desmaiou, via-se sangue em sua testa e que descia pelo seu rosto. Logo foi socorrida por algumas pessoas desconhecidas que presenciavam a cena.

A balbúrdia foi total.

— Levantem-na! — gritavam, aproximando-se da menina.

Lá atrás, o professor continuava concentrado. E quem tinha uma visão extrahumana podia ver de seus olhos uma onda quase invisível direcionar-se aos animais loucos, que recebiam a informação e procuraram afastar-se da máquina intacta e soltando fumaça ao som chiado dos freios. As orelhas do professor

ficaram peludas e disformes, como das outras vezes.

Muitos mamíferos daqueles morreram no impacto com o trem, mas os outros davam meia-volta e se dirigiam ao local de onde saíram, devido às ondas dirigidas pela mente do professor, indo na direção da grande montanha escura — um fato nunca visto por ninguém, nem mesmo pelos maquinistas, que são acostumados a viajar por aquele percurso. De um lado do trem, os vidros estavam quase completamente manchados de vermelho. Parecia cena de terror; pedaços de morcegos grudados com o sangue aos montes. Quando os voadores regressaram, o professor Diego observou, atento, e não mais havia ondas magnéticas desprendendo-se dele, nem pelos em 257

e o Morcego da Pensilvânia suas pequenas orelhas pálidas. A locomotiva continuava estacionada e a impaciência das pessoas aumentava —

assustados e curiosos, sem nada entender. Já estavam próximos do destino. Faltavam poucos quilômetros. O Sr. Diego resolveu entrar e ver a pequena Polly. Encontrou-a deitada e desacordada num dos bancos, rodeada de pessoas curiosas.

— Saiam! Saiam, por favor! — gritou, tentando afastá-los, para que Polly pudesse respirar melhor. — Deixem-na!

— Ela desmaiou, senhor. — disse uma senhora bem idosa.

— E tem sangue em seu rosto.

— Afastem-se! Polly! Polly, acorde. Pelos deuses! Ela está sangrando.

A cena o fez franzir o cenho, suas orelhas se deformaram novamente em pelos sem que ninguém ali percebesse o ocorrido da metamorfose. E logo Polly começou a abrir os olhos.

— Professor — disse ela, sentindo a dor da pancada —, o que houve?

— Sente-se melhor, senhorita? Assim que você melhorar, falarei.

Ela assentiu.

— Venha, levante devagar, vamos voltar ao vagão dos outros. Precisamos ver algum remédio para a pancada em sua cabeça e retirar esse sangue. “Será que isso irá cicatrizar antes que...” — concluiu sussurrando.

Aquela menina era uma preciosidade que não poderia ser ferida nem maltratada por nada — tinha que chegar intacta à Sighişoara. A responsabilidade do professor era grande — ele sabia o que poderia acontecer caso Polly chegasse lá

arrebentada ou morta. Sua pele grossa sofreria o castigo mortal do “filho do dragão”. O professor Diego sabia realmente o que aqueles morcegos queriam no trem.

258

Polly Lee

Polly, ainda estonteada, foi pega nos braços por ele e levada até o vagão onde se encontravam as outras crianças e a Srta. Cíprian. Estavam preocupados com os dois e sem saber o porquê de suas ausências.

— O que houve, professor? Onde estavam? — perguntou Cíprian, em estado de nervo devido ao ocorrido e por não vê-los ali. — O que houve com Polly? Deitea aqui!

— Polly! — gritou Lana ao aproximar-se.

— Polly está bem? — perguntou Gustavo, apoquentado em vê-la daquele jeito.

— Já está tudo bem — retrucou o professor. — Ela apenas se assustou com aqueles voadores. E vocês, estão todos bem?

— Sim, estamos, professor — falou Cíprian. — Aqui também foi um horror, mas está tudo bem agora. E veja quanto sangue nos vidros e restos de morcegos... O que foi isso? “Será que é o que eu estou pensando?” — balbuciou ela olhando para Diego.

Ele a olhou diretamente nos olhos e assentiu em silêncio.

— “Eu imaginava, ele não desiste” — completou Cíprian sussurrando.

O professor novamente assentiu, tentando fazer Polly retornar.

— Veja ali na minha mala — disse para a moça —, tem uma sacola de pano que carrego com alguns remédios para momentos como este. Pegue-a e me traga imediatamente, senhorita, por favor!

Cíprian pegou o artefato envelhecido de pano, e o professor então retirou, de dentro, um vidro transparente que continha um líquido gosmento e de cheiro ativo; pôs o mesmo nas narinas de Polly, que logo acordou do segundo desmaio.

259

e o Morcego da Pensilvânia Pegou também uma pomada incolor cheirando à flores e ou no local atingido, limpando o sangue escorrido com um pedaço de tecido.

— Professor... — disse Polly abrindo os olhos vagarosamente.

— Acalme-se, senhorita, logo você estará bem! Senhorita

— disse, olhando de lado na direção de Cíprian.

— Sim, professor?

— Na mala tem outra sacola de pano que contém algumas ervas. Por favor, pegue dentro dela um pedaço de canela e açúcar, que vou fazer um chá forte para ela. Isso a acalmará. E

aproveite para dar aos outros meninos que estão em estado alterado, e tome um pouco.

— Está certo, professor, farei sim.

Após alguns minutos o chá foi preparado e Polly o tomou, reabilitando-se. Os demais também ingeriram o líquido calmante, menos Cornelius, que logo gritou que odiava chá.

— Por acaso — disse a Srta. Cíprian, direcionando-se ao professor — o senhor é algum tipo de médico natural ou curandeiro, além de...

Ele a olhou, dizendo:

— Nem uma coisa nem outra, senhorita, apenas aprendi a lidar com as ervas, ainda muito jovem, com minha mãe.

— Muito bom isso, professor — disse ela.

Polly voltou à sua cor pálida. As outras crianças também se acalmaram. Algumas delas ainda permanecia trêmulas do susto. Acho que todos naquele trem estavam assustados.

— O que houve com Polly, professor Diego? —

perguntou Lana.

— Foi só um susto — respondeu ele. — Ela está melhor agora.

260

Polly Lee

— Ela teve medo dos morcegos? — perguntou Drágus em tom divertido, querendo fazer graça.

— Garoto — retrucou ele, seriamente —, não é hora para piadas! E sei que você também parecia uma lebre amedrontada.

E riram da cara dobrada de Drágus.

— Sentem-se, crianças — falou Cíprian —, vai ficar tudo bem com Polly.

A locomotiva ficou ali parada mais ou menos uns trinta minutos após o interregno brusco. Ninguém sabia o que havia ocorrido com os maquinistas. O

professor, deixando Polly com a moça, foi averiguar o que estaria acontecendo na locomotiva, porque o trem não dava partida. E chegando lá, deparou-se com um dos maquinistas ferido por um daqueles voadores, já que não conseguira espantá-los. A marca dos dentes do mamífero ficou cravada em seu pescoço. Não sangrava, nem doía. Mas ele estava desmaiado e seu companheiro tentava acordá-lo, também com alguns ferimentos leves e rasgões em sua roupa. O

professor logo se lembrou de algo que lhe acontecera há anos.

— Cláudius! Cláudius, acorde! — dizia o maquinista tentando acordar o amigo.

“Minha nossa, não acredito”, pensou o professor Diego, já sabendo do que se tratava. E perguntou, abaixando-se na direção do enfermo:

— O que houve aqui, amigo?

— Ele foi ferido, senhor, por um daqueles morcegos loucos. Temo por ele... Será que está com veneno? Meu amigo não pode morrer. Nunca vi uma coisa daquelas antes. Morcegos voando durante o dia...

— Não, ele não tem veneno, “mas algo mais sério” —

retrucou o professor, sussurrando as últimas palavras.

261

e o Morcego da Pensilvânia

— Não? Como o senhor sabe disso?

— Eu?

— Sim.

— Eu estudei e pesquisei sobre eles há muito tempo e... e sei que eles não são venenosos, “mas são criminosos” —

balbuciou novamente.

— O que disse, senhor?

— Nada, amigo. Estava tentando lembrar-me do que fazer nessas horas. Espere aqui, tenho alguns remédios na minha mala, já volto!

— O senhor é médico?

E sem responder ao maquinista, o professor voltou à sua cabine às pressas.

— O que houve, professor? — perguntou a Srta. Cíprian, assustada, vendo-o nervosamente procurar algo em sua maleta, feito um louco. Ele pegou outro vidro de cor escura. E os olhares das crianças ficaram arregalados vendo a cena dele.

— Alguma coisa séria, professor? — insistiu Cíprian.

— Calma, senhorita, já volto! Cuide dos meninos. Foi só um acidente com o maquinista.

— Tudo bem.

Ele voltou a locomotiva. Cíprian ficou perto da menina ainda sonolenta.

— O que o senhor está dando para ele? — perguntou o maquinista de nome Cameliu.

O nome dos funcionários estavam bordados em cima dos bolsos.

— Não se preocupe, Sr. Cameliu, ele vai melhorar. Ajude-me a fazê-lo beber isso. Abra a boca dele.

262

Polly Lee

E o remédio foi ingerido pelo homem adormecido. Em poucos minutos ele acordou, ainda meio zonzo, tentando botar o líquido para fora.

— O que... o que houve com... comigo? — disse com dificuldade.

— Calma, Sr. Cláudius — disse o professor —, logo irá melhorar.

— E aqueles animais... Para onde foram? — perguntou o enfermo.

— Fique quieto, amigo — disse o outro —, para que você melhore e possamos continuar a viagem. Já estamos atrasados por demais. Você precisa de um médico.

— O senhor não quer guiar a locomotiva enquanto eu cuido dele? — perguntou o professor.

— Sim, claro.

A máquina, então, deu partida em fumaça e apito gritante.

“Graças aos deuses”, sussurrou a Srta. Cíprian com Polly em seu colo. Gustavo a olhava, piedosamente, dormir, enquanto os outros continuavam curiosos com a menina, sentados no banco de frente, assustados. O trem agora estava na aceleração normal

— lento como uma velha tartaruga. Nenhum sinal de voadores, apenas montanhas e colinas nos arredores.

Então o professor, lá da locomotiva, resolveu pegar o interfone e dar um recado aos ageiros, dizendo:

— Por favor, todos os ageiros, mantenham suas janelas fechadas devido à possibilidade de outros ataques dos morcegos!

— É o professor Diego! — gritou Drágus, reconhecendo a voz aguda.

263

e o Morcego da Pensilvânia E ficaram espantados ao o que olhavam para as janelas.

264

Polly Lee

CAPÍTULO DEZOITO

ELES CHEGAM

À COMUNA DE BRAN

hegava o anoitecer quando o trem se aproximou da Cfronteir

a entre a Transilvânia e a Valáquia, rumo a Bran; uma comuna localizada no Distrito de Brasov, na região histórica da Transilvânia, ao Norte de Bucareste. As montanhas de Cárpatos eram vistas pelos ageiros completamente encantados. Mas de algum lugar da Comuna saía um denso nevoeiro, que se mostrava acima da cidade, em local específico.

A essa altura, a pequena Polly já havia melhorado e o maquinista ainda sentia as furadas dos dentes afiados do grande morcego. Estava aos cuidados do professor Diego. O maquinista abriu os olhos, ainda confuso, dizendo palavras sem nexo.

— Aquele morcego enorme era uma verdadeira fera, senhor — dizia o outro maquinista, assustado e guiando o trem

—, ele não queria largar do pescoço do meu amigo. Eu o puxei pelas asas asquerosas e ele foi se debatendo pela janela, juntando-se aos outros. Nunca havia visto algo tão aterrorizante assim... Um morcego daquela espécie e tamanho... à luz do dia...

nunca mesmo. Não acha isso muito estranho?

265

e o Morcego da Pensilvânia O Sr. Diego apenas ouvia o maquinista, sem nada dizer.

Parecia mesmo que já sabia do que se tratava o ocorrido e de onde vinham aquelas criaturas.

— Estamos chegando, senhor. — observou o maquinista.

— Que bom. Chamaremos a ambulância quando chegarmos à estação.

O trem agora adentrava vagarosamente em Brasov.

Cíprian adormeceu junto às crianças — já estavam cansadas da viagem entediante e vagarosa.

— Senhorita. — disse Polly se levantando do seu colo magro, presenciando

alguns prédios antigos e acinzentados do centro da cidade. — Senhorita! Senhorita, estamos chegando! —

insistia Polly escorada no vidro de sua janela.

A moça, ainda sonolenta, assustou-se ao toque da menina, e aos olhos de Gustavo. Os outros ainda dormiam. Eram quase sete da noite. O frio estava brando e os ventos leves. A cidade tinha uma iluminação bem opaca, as luminárias postas em ferros redondos e pretos se espalhavam por todo lugar, as árvores arborizavam as ruas e avenidas históricas daquele lugar com aparência medieval — uma cidade franjada pelos picos das montanhas Carpathian do Sul e resplandecente com arquitetura gótica, barroca e renascentista. A estação aparentava ser antiga e malconservada. O professor Diego voltou ao vagão enquanto o trem desacelerava, chegando à estação mais importante de Brasov; a Gara Brasov — fora aberta ao tráfego no ano de 1962.

Os sinos da estação, que antecederam os anúncios, representavam algumas notas da opereta de Cíprian Porumbescu-Crai Nou. O nome dado a Srta. Cíprian era uma homenagem que seu pai fizera, pois gostava demais do músico e sua ópera.

266

Polly Lee

— Estamos chegando — disse o professor —, vou precisar, Srta. Cíprian, ir a um

local antes de irmos ao Castelo.

Mas fiquem esperando-me aqui na estação. Não saiam até eu voltar.

Ela assentiu, mas esboçando ar de curiosidade. O próximo trem os levaria à Comuna de Bran. Porém, antes de embarcar, Diego precisava ir à Igreja Negra, nas proximidades de Brasov

— uma das mais antigas igrejas góticas do mundo. Na estação, eles estavam sentados quando o professor sumiu da vista deles.

Cíprian não entendera seu sumiço inesperado, assim, sem que ninguém percebesse.

— Srta. Cíprian — perguntou Lana —, onde está o professor Diego?

Eles também acabaram por fazer a mesma pergunta de uma vez. A moça tomou um susto com o coral de vozes infantis direcionadas a ela.

— Ele foi à igreja, aqui perto, resolver coisas dele.

Fiquem calmos. Logo o professor voltará.

— Mas não o vimos sair, senhorita — disse as irmãs Moldavo, em dueto.

— Eu também não vi — retrucou a moça. — Mas não se preocupem, logo estará de volta. Sentem-se e acomodem-se nesse banco.

— Srta. Cíprian — perguntou Drágus —, ele foi orar?

— Não sei, Drágus — retrucou ela. — Por favor, sente-se!

— O Sr. Diego é religioso? — questionou Lana.

— De qual religião ele é? — perguntou Cornelius.

— Meninos — disse ela —, vamos deixar o professor resolver suas coisas e esperá-lo aqui, conforme ele pediu que 267

e o Morcego da Pensilvânia fizéssemos! E parem de perguntas, vocês estão me deixando louca.

Com pouco tempo o trem, escrito em sua frente “Rumo à Comuna de Bran”, aproximou-se da plataforma e os ageiros que ali estavam começaram a subir rapidamente. E nada do professor Diego voltar. A Srta. Cíprian já estava impaciente por ele não dar sinal de vida. Logo o trem, começou a dar o aviso de partida e foi saindo vagarosamente, deixando-a e aos meninos apavorados por perderem a viagem.

— E o professor, senhorita? — perguntou Drágus. — Não vamos pegar o trem? Vamos ficar aqui, parados?

— Senhorita, o trem está indo embora. — disse Lana, impaciente.

Ela nada respondeu, colocando-se em estado pensativo e apreensivo. E o último vagão sumiu no horizonte, sob seus olhos assustados. Ali ficaram só eles, praticamente, e um funcionário da estação segurando seu enorme apito metálico, recolhendo os bilhetes e colocando-os no bolso do uniforme azul-marinho.

— Por que não embarcaram no trem? — gritou ele, mexendo seu enorme corpo assentado em suas pernas finas, parecendo um balão armado.

Cíprian não sabia o que responder — estava pensativa diante das crianças e do

homem. Ele continuou insistindo na pergunta em tom de cansaço, já próximo aos demais:

— Senhorita, por que não embarcou com esses meninos no trem?

Ela voltou do vago transe de preocupação e disse:

— Não sei. Na verdade, estamos esperando um amigo, mas ele ainda não deu sinal. Estamos todos preocupados.

268

Polly Lee

— Não se apoquente, ficarei com vocês até ele chegar —

falou olhando em seu relógio de bolso. — O próximo chegará após uma hora. Aqui não é um bom lugar para ficarem sozinhos.

— Obrigada, senhor! Esperaremos juntos.

E se juntaram no mesmo banco.

Após mais ou menos meia hora da partida do trem, o professor apareceu despreocupadamente fumando seu cachimbo.

Cíprian se levantou às pressas e ansiosa. Ele vinha a os rápidos. Seu casaco esvoaçava querendo saltar de seu corpo avantajado.

— Vamos, senhorita! — disse Diego, eufórico. — Vamos logo!

— Vamos? — perguntou ela, pedindo alguma explicação.

— Para onde iremos, professor?

— Vamos de charrete!

— Charrete? Do que está falando? Então não pegaremos o próximo trem?

— Não.

— Não? — insistiu ela.

— Nós iremos de charrete. E não tenho tempo agora para lhe explicar nada. Vamos! Vamos rápido! Venham!

Pegaram as crianças e as maletas e seguiram para fora da estação, deixando o funcionário sem nada entender.

Caminharam até os arredores da Igreja Negra, numa rua estreita e escura. Lá havia uma charrete de cor pálida, de modelo alemã, quatro rodas de ferro e uma lona cobrindo-a; do lado de dentro, dois bancos de frente um para o outro esperavam por eles. Diego sentou-se na frente, junto ao cocheiro; um homem já idoso que tossia a toda hora uma tosse seca, guiando dois robustos cavalos na cor escura e bem peludos. Suas patas, até o tornozelo, 269

e o Morcego da Pensilvânia cobriam-se de pelos como cabeleiras soltas. Os demais se pam lá dentro, em bancos duros e desconfortáveis. Aquela estreita rua os levaria à não distante Comuna de Bran, que ficava no Distrito de Brasov; uma região bem histórica da Transilvânia

— um antigo ponto de comércio entre Transilvânia (Brasov.) e a terra romena de Cîmpulung Muscel, toda protegida por um Forte de pedra construído pelo Conde V.

No caminho, pelas densas florestas, sob a curiosidade dos demais dentro da charrete, o professor ouviu algumas palavras daquele guia já velho e cheio de histórias místicas sobre o Castelo de Bran e aquela Comuna. Diego estava atento e curioso.

— O amigo precisa de algum remédio para essa tosse? —

perguntou para o cocheiro, preocupado.

— Já tomei de tudo, amigo — disse ele com a voz baixa e rouca —, e vejo que nada resolveu. Acho que já se tornou crônica.

— Na minha maleta tenho algo muito bom para o senhor.

Assim que pararmos entrego-lhe a receita.

— Obrigado, senhor...?

— Professor Diego Dalca, às suas ordens!

— Adam Bãlan.

E continuaram naquelas estradas de barro e poeira, acidentadas em alguns pontos. Nenhuma viva alma atravessou o caminho deles. Apenas algumas aves noturnas e sons de piados estranhos. Dentro da charrete, os demais se sacolejavam a cada distância percorrida — alguns deles sentiram vontade de vomitar por conta do balanço contínuo e por terem comido demais. Mas a Srta. Cíprian deu-lhes algo que carregava em sua bolsa, evitando o enjoo. E logo se viam alguns telhados em duas 270

Polly Lee

águas (Coberturas divididas em duas partes iguais para as laterais das casas) — era a Comuna de Bran.

Então o cocheiro iniciou, dizendo:

— No alfa do século XIII, a ordem dos Cavaleiros Teutônicos construiu um Forte de madeira, conhecido como Dietrichstein. Após o Forte ser destruído em 1242 pelos mongóis, o rei húngaro Ludovic, em 1377, deu a ordem para a

construção de um castelo de pedra. E por essa redondeza do grande

Castelo,

a

Comuna

de

Bran

começou

seu

desenvolvimento comercial e arquitetônico, fazendo com que o castelo inteiro presenciasse essa rota comercial entre a Transilvânia e a Valáquia. Mas nos meados de 1498, a Comuna chegou à jurisdição de Brasov. Depois que a

Hungria reinou, o império de Otomano o derrotou, tornando-se Bran, no século XVI, parte do principado da Transilvânia, tendo outros domínios até chegar a ser realmente parte do reino da Romênia.

— Por que o senhor está me contando essas coisas, Sr.

Adãm? Posso? — perguntou, retirando o cachimbo do bolso.

— Fique à vontade. Gosto de ar o tempo quando presto serviço. A viagem se torna curta e mais agradável quando temos algo a dizer, não acha? — disse, soltando um riso amigável, como se houvesse contado uma piada acompanhada de tosses. — O amigo conhece bem essa região aqui?

— Não. Apenas vivi em Sighişoara por cinco anos. — E

deu uma baforada forte, jogando fumaça na noite escura.

— Sighişoara?

O professor assentiu em silêncio. O velho deu um quase rosnar meio pigarrento e disse:

— Nunca ouvi falar.

— É um lugar belíssimo.

271

e o Morcego da Pensilvânia

— O amigo é de lá?

Ele, antes de responder àquela pergunta, ficou pensativo por alguns minutos e falou:

— Já estive lá num ado distante... — E pitou com a face sereno.

Houve novamente um silêncio, evidenciando reflexão no semblante do professor. Nisso, a carruagem tropeçou em algo que deveria ser uma pedra enorme, fazendo uma das rodas afrouxar e bambear, perdendo a direção e assustando os cavalos, que relincharam desesperados. Assustaram-se. Alguns gritos na cabine da charrete foram ouvidos. E a cabeça pequena de Cíprian na

janela, curiosa, olhava o que havia se ado, gritando assustada diante da escuridão da noite:

— O que foi isso, senhor?!

— Rô! Rô! — gritou o cocheiro, tentando paralisar os cavalos sem direção. Rô! Rô!

Ouviram-se os gritos da Srta. Cíprian umas três vezes.

— Calma, senhorita! — gritou o professor, descendo com o cocheiro. — Está tudo bem. Fiquem dentro da carruagem. Por favor, não saiam!

Os cavalos pararam de relinchar e a carruagem petrificou.

O cocheiro, ao descer, com muita dificuldade, pegou sua lamparina para averiguar o que teria ocorrido com a roda. O

professor também verificava, olhando para a janela da charrete e insistindo que eles ficassem lá dentro, porque o tempo estava escuro e friorento. Nada viram de obstáculo no caminho —

nenhuma pedra ou algo sólido que pudesse deteriorar a roda.

Um dos pneus furou; assemelhava-se a rodas de bicicleta. Mas, por sorte, o cocheiro tinha uma câmara de ar de reserva na maleta da carruagem e algumas ferramentas guardadas para uso de emergência. Logo consertaram e seguiram adiante.

272

Polly Lee

— O que danificou a roda, Sr. Adãm? — perguntou Diego.

— Não sei, amigo. Por essas redondezas coisas estranhas acontecem a todo momento. Já estou acostumado. Eu não o de um cocheiro — disse com semblante enrustido, e subiu junto com o professor. Agarrou as correias aos gritos puxando-as:

— Rá! Rá! Rá! Rá!

— iro-me em ver que o senhor, um simples cocheiro, saiba tanto do ado de uma região tão antiga como essa —

elogiou o professor, curioso, e pitando seu artefato fedorento. —

Já ouviu falar de alguma Competição por aqui?

— Acho que devemos encerrar este assunto, não acha, senhor? — retrucou o cocheiro seriamente, puxando as rédeas de súbito, freando os cavalos.

E novamente todos lá dentro gritaram. Cíprian, olhando para trás, aproximou-se da lona transparente na direção dos homens e perguntou:

— O que houve agora, professor?! As crianças estão assustadas!

— Nada, senhorita! —– gritou o cocheiro.

— Está tudo bem — disse o professor —, foi apenas um descuido dos cavalos. Volte ao seu lugar e cuide das crianças! E

por favor, não desçam da charrete!

E nessa parada brusca, um grupo de senhoras apareceu do nada, todas portando saias compridas e coloridas, lenços cortando suas cabeças no meio e com alguns artefatos em suas mãos, inclusive lamparinas e velas acesas; aquilo mais parecia uma procissão.

— O que é isso? — perguntou o professor, curioso.

— Ciganas da noite — retrucou o cocheiro.

273

e o Morcego da Pensilvânia

— Boa noite! — disse uma delas, aproximando-se da charrete e olhando para os dois homens. —– Não querem saber sobre suas vidas? Suas sortes futuras?

— Não — respondeu o cocheiro, puxando as rédeas aos gritos:

— Rá! Rá!

Os cavalos relincharam e a carruagem seguiu, deixando as senhoras para trás. Subiram por uma rampa estreita, fazendo com que se segurassem uns nos outros, em cima daqueles bancos duros.

— Por que fez isso, Sr. Adãm? — perguntou Diego, insatisfeito.

— Aquelas mulheres são meras ciganas querendo nossas pratas por um segredo contado, sendo que nem mesmo elas sabem o que estão falando. O futuro pertence aos deuses.

Assim que chegou ao topo do baixo monte, lá estava a Comuna de Bran, repleta de casas, todas em estilo Brasov, com luzes opacas como lâmpadas natalinas. De longe, pareciam vagalumes em ambiente natural. E a carruagem desceu um estreito caminho que dava para o centro do município comercial.

Várias pessoas ainda vendiam suas iguarias, objetos e animais, sempre aos gritos e movimentando-se por entre bancas de madeira erguidas em ferro e lonas, num verde sujo que as cobria as mesmas — era uma feira famosa da região. Os cavalos, relinchando, cavalgavam e arrastavam a carruagem por cima daquelas ruas com pedregulhos rígidos, sob o céu cinzento e nublado da cidade. Árvores enfeitavam a Comuna, trazendo-lhe ar fresco. A visão deixou as crianças iradas, curiosas e, ao mesmo tempo, assustadas.

— Rô! Rô! — gritou novamente o cocheiro, puxando as correias pregadas nas rédeas dos cavalos, que pararam 274

Polly Lee

relinchando, sacudindo suas orelhas e batendo as patas no chão rígido.

Como em toda cidade, os moradores observavam, curiosos, os recém-chegados. Cíprian logo desceu e ajudou cada criança para sair da charrete, cuidadosamente. Polly foi a última a descer, observando tudo em sua pequena visão de menina curiosa.

— Srta. Cíprian — disse o professor, puxando-a até um canto da carruagem —, vamos pousar, esta noite, no Castelo de Bran.

— No castelo?

— Sim. Amanhã pela manhã, antes que o sol dê seu primeiro sorriso ao dia, sairemos todos.

— E para onde iremos tão cedo, professor? — perguntou ela, curiosa.

— Pare de me fazer perguntas difíceis e vamos ao Castelo, que está muito frio aqui. O Castelo fica logo ali, em cima do monte. — disse, apontando.

— Mas por que não pegamos o trem?

— Acalme-se, logo direi o motivo.

— Tudo bem. E iremos a pé ao Castelo?

— Castelo? — gritou Drágus, arregalando os olhos e aproximando-se deles. — Vamos a um castelo?

— Sim. Mas esperaremos outra charrete aqui — disse o professor, observandoos.

— Outra charrete?! — observou Cíprian com semblante enjoado.

Ela não pretendia mais pegar nenhuma carruagem — ao menos se dependesse de sua própria vontade, devido ao que ocorrera na viagem.

275

e o Morcego da Pensilvânia

— Exato. A não ser que queiram ir a pé? — disse Diego em meio sorriso.

Ela, então, silenciou. E logo se aproximaram dois cavalos altos e robustos, ambos relinchando e arquejando. Seus pelos eram em tom marrom e branco — malhados.

— Rô! Rô! — gritava o cocheiro com voz aguda.

Aquilo estranhou-os: o tom da voz.

— O que é isso aqui? — disse o professor, estranhando quem guiava os animais. — Você é uma...

— Uma mulher? — respondeu o guia da charrete. — Sim, sou. O senhor está irado com o quê?

Suas vestes eram um tanto masculinas. O professor ficou em silêncio, observando a moça mandar beijos aos animais e fazendo-os aquietar, educadamente. A Srta. Cíprian não acreditava no que via; uma moça, com aspecto delicado e vestida com roupas de homem, guiando uma charrete com dois cavalos enormes. Aquilo não era comum naquele lugar. E

continuou a cocheira: — Vejo que estão surpresos comigo.

Vocês ainda não viram nada.

Desceu num salto, deixando-os irados. “Pelos deuses, ela é mesmo uma guerreira, professor”, sussurrou Cíprian para ele.

Então a guia se aproximou deles e disse em voz imponente, de modo que dobrou o semblante:

— Adrian Adler, trabalho para o senhor V como guia do Castelo de Bran. Às ordens! E às vezes faço esse tipo de serviço vindo buscar visitantes e convidados dele. Só não sei ainda em que status vocês se enquadram.

Eles olhavam-na, bem espantados. O menino Drágus tentou um comentário, mas

percebeu a cara de reprovação de Cíprian, que o fez ficar em silêncio.

276

Polly Lee

— Vão ficar aí me olhando? — disse a cocheira. — Não temos tempo a perder, vamos! Subam logo!

A carruagem era toda em tom dourado por fora, em material rígido e de uma beleza ímpar, com apenas uma porta em duas bandas que se abriam para fora, contendo vidros no centro de cada lado da abertura; dois degraus no mesmo material dourado, e sua cobertura seguia o mesmo tom em lona rústica e preta, quatro rodas com aro bem resistentes, também dourados com pneus bem grossos. O assento do cocheiro era um tanto acolchoado, as correias que se ligavam aos belos cavalos eram de uma espessura que não poderia ser atorada, nem se quebraria à toa. Por dentro da bela charrete, assentos bastantes macios em tom branco-gelo e com desenhos medievais jaziam um de frente para o outro, encostados nas laterais da carruagem, as paredes internas eram do mesmo desenho dos sofás, deixando-a em tom alegre, e um tapete do mesmo material cobria todo o piso. Era um verdadeiro luxo.

Então, eles subiram sem mais nada dizer, com seus olhos arregalados, exceto o professor, que ficou de pé olhando para a guia, do lado de fora.

— O que está fazendo? — perguntou ela já em seu posto, segurando as rédeas e vendo o professor parado. — Não vai subir na charrete?

— Não — disse ele, determinado. — Vou aí na frente com a senhorita!

— Não vai mesmo! — retrucou, decidida. — Entre logo na cabine e deixe de teimosia! Vamos logo! Senão o deixarei aqui!

Diego, então, resolveu entrar meio chateado e estranhando tanta imponência numa só moça.

277

e o Morcego da Pensilvânia

— O que houve, professor? — perguntou Cíprian sob os olhares das crianças, quase rindo ao ver a cara dele com uma expressão de decepção.

— Nada. O que a fazem rir? — disse ele, de cara dobrada.

Ela segurou seu riso para que o professor não ficasse emburrado. E seguiram aos gritos agudos da Srta. Adrian, que puxava as correias com sons sutis direcionados aos cavalos, também soltando alguns beijos seguidos:

— Rá! Rá!

“Isso não pode estar acontecendo”, sussurrou o professor, encostando-se no assento com a respiração forçada. Cíprian estava novamente com o semblante com riso debochado por ver um homem bem machista à sua frente, que não aceitava receber ordens de uma simples moça que guiava uma charrete atrelada a dois imensos e robustos cavalos. Aconchegaram-se nas cadeiras confortáveis e macias. E em menos de meia hora, eles chegariam ao Castelo.

278

Polly Lee

CAPÍTULO DEZENOVE

O CASTELO DE BRAN E O Sr. Mihai

charrete adentrava vários becos e ruas, sendo Aobse

rvada pelos moradores curiosos nas janelas. Era uma cidade onde a desconfiança fazia parte da vida dos moradores, devido aos mistérios e acontecimentos em relação ao Castelo e ao próprio lugar. A neblina aumentava junto com o frio seco.

— Rá! Rá! — gritava a moça do lado de fora puxando as rédeas e deixando o professor cada vez mais irado.

Ao atravessarem por baixo de um curto túnel que ficava nas imediações de uma igreja de aparência gótica, uma rua depressiva foi vista. A alameda ficava próxima ao Castelo. Ao cruzarem a rua, alguém gritou, postando-se na frente da charrete, saindo de dentro de um local bem asqueroso e aos maus-tratos:

— Parem! Parem!

— Rô! Rô! — fez a Srta. Adrian, puxando as correias e soltando alguns beijos.

Os cavalos pararam de súbito, causando um reboliço dentro da carruagem. Eles se assustaram novamente ao olhar pelo vidro das portas. “Não é possível”, sussurrou Cíprian por ter ado pela terceira vez por esse vexame.

279

e o Morcego da Pensilvânia

— O que foi, senhor? — perguntou a guia para o suposto homem que atropelou a carruagem.

O esquisito homem estava com a mão erguida; tinha um porte avantajado e trajava uma capa longa acinzentada, um chapéu que mais parecia asas de morcego preto, com uma fita vermelha em volta dele, suas botas alongadas engoliam uma calça preta e folgada de tecido fino, seu nariz era bem grande, grosso e torto para baixo, e seus olhos eram avermelhados como brasa, pareciam luzes na noite neblinada, seus cabelos esguelhados lembravam arames de cerca, de tão duros, bem como os de Robert — acho que eles nunca haviam sido penteados ou visto alguma escova antes, muito menos alguma água.

— Sou Petru de Cristea, preciso falar com o professor Diego! Sei que ele está aí

nessa charrete, fui avisado de sua vinda à cidade e, consecutivamente, ao Castelo de Bran.

— Petru de Cristea? — balbuciou Diego eufórico dentro da carruagem, ouvindo aquela voz rouca e aquele nome familiar.

— De quem o senhor está falando, professor? —

perguntou Cíprian.

— De um grande amigo, senhorita. Esperem aqui.

E abrindo a porta rapidamente, foi ao encontro do amigo de tempos idos. Ao se encontrarem, os dois deram as mãos e um longo abraço amigável ocorreu. As crianças e Cíprian apenas observavam lá de dentro, atentos. Petru de Cristea era um homem em relaxo total: seus dentes amarelados e gastos lhe estampavam um sorriso horripilante, suas mãos encardidas e espessas, as unhas estragadas e gastas causavam nojo só de olhá-las. Ele era realmente um trapo em forma de homem. Mas havia algo nele que valia mais do que qualquer adjetivo já conhecido: amor. Ele era o amor em forma de pessoa. Residia 280

Polly Lee

nas imediações do Castelo. Era um antigo funcionário do Conde V quando ainda reinavam os tempos de paz e prosperidade em Sighişoara.

— Há quanto tempo, professor! — disse, ainda abraçados.

— Como vai o amigo?

Petru de Cristea tinha olhos que viam além dos obstáculos à sua frente. A cocheira, lá de cima, esperava com ar de fúria e impaciência — não estava ali para caprichos ou reencontros entre amigos — estava a serviço do Conde V, e precisava cumpri-lo imediatamente. Tampouco sabia de quem se tratava o estranho.

— Estou ótimo, professor. E quem são essas pessoas dentro da carruagem? — perguntou Petru.

— Novos Iniciados na Competição. A moça é a mais nova psicóloga de Voivoda.

— Não quer entrar para tomar um vinho comigo? Tenho alguns de longa data guardados. Tirei-os do pote do porão do Castelo ontem — disse euforicamente.

— Não. Hoje não vai dar, amigo. Vamos deixar para a próxima oportunidade, tudo bem? Tenho que levá-los ao Castelo antes que a noite se estenda. E observe a cara da cocheira! —

disse debochadamente.

— Percebi que era uma moça. Já não se fazem mais cocheiros como antes — disse Petru, deixando também um riso escapar. — É uma pena, professor, porque o vinho está ótimo.

— Acredito, Sr. Petru. Amanhã quem sabe tomaremos seu vinho. E como vão as coisas por aqui? Ainda continua vendendo seus artefatos místicos?

— Do mesmo jeito que o amigo deixou da última vez que veio. Veja lá dentro! — disse isso apontando o dedo indicador 281

e o Morcego da Pensilvânia ao local. — Nada mais de interessante. Para mim, professor, os tempos se foram, e acho que não voltam mais.

— Entendo. Mas este ano tudo irá mudar, amigo.

— Do que o professor está falando?

— Do que você não mais acredita.

E os dois se abraçaram novamente. Em seguida, Diego se despediu do amigo e entrou na carruagem, que já estava quase de saída; a impaciência da guia era evidente e podia-se ouvir os rinchares dos cavalos pisoteando as pedras e sacudindo os focinhos para os lados.

— Rá! Rá! — gritou ela sacolejando as correias e fazendo com que os robustos animais em cores malhadas dessem seus rápidos galopes, quase açoitando Petru, que se afastou de súbito.

O semblante da guia demonstrava raiva total.

— Que homem sujo é aquele, professor? — questionou Lana, enojada.

— Também concordo — observou Cíprian, franzindo o cenho.

— Um amigo — retrucou o professor. — Ele fica dias sem tomar banho. Foi o que ele me disse da outra vez.

— Isso é mesmo verdade, professor? — perguntou Drágus.

— Que nojo. — observou Lana, amassando a cara. —

Deve estar fedendo.

— Parece até com a Cosmina — falou sua irmã, com deboche, fazendo com que a irmã enublasse a face.

— Não fale assim menina com sua irmã — disse Cíprian.

— Não sentiram o mau cheiro das roupas dele? — falou o professor com ar de riso. — Incensou tudo aqui! Mas eu gosto dele, é um sujeito bom.

282

Polly Lee

O clima ali foi de descontração entre eles. A carruagem seguiu para o Castelo de estilo medieval.

— Por que as portas e janelas dessas casas possuem aquelas coisas? — observou Gustavo, curioso.

— Está falando das cabeças de alhos e artefatos metálicos, Gustavo? — perguntou o professor.

O menino assentiu.

— Também estranhei isso — disse a Srta. Cíprian.

— Vou responder para a senhorita e para Gustavo, porque sei que a curiosidade os incomoda — observou Diego. — Há uma antiga lenda nesta cidade que diz que quando o relógio marca meia-noite em seus ponteiros velhos e sujos, um ser detestável dos “neurotipos” aparece na forma de ave feroz e toma cada morador da comuna que não estiver em sua casa, entre as portas e janelas, cruzes douradas, ou cabeças de alhos dependuradas. Mas acreditem, é só superstição dos moradores da Vila. Nada mais que isso. Lenda dos antigos.

A carruagem prosseguia aos gritos da guia, que não parava de mexer as rédeas dos cavalos, fazendo-os correr em disparada, sacolejando a todos.

— Andei muito por aqui e fiz vários amigos — continuou o professor serenamente —, mas vamos parar de conversa.

Estamos quase lá.

A carruagem parou aos gritos e beijos de Adrian.

— Rô! Rô!

“Já não aguento mais ouvi-la com seus gritos agudos e esses beijos ináveis”, balbuciou o professor, estampando em seu rosto algo como chateação preconceituosa. E desceram e se depararam com um jardim opaco e uma imensa porta de madeira alta e rústica, desenhada e arredondada na sua 283

e o Morcego da Pensilvânia extremidade superior, uma fechadura enorme em forma triangular requeria uma grande chave de metal também no mesmo formato, que o professor retirou de um dos seus bolsos do casaco e enfiou-a, dando duas voltas. Não era a entrada principal do grande Castelo.

— Que lugar é este, professor? — perguntou Polly.

Estavam curiosos e com os olhos atentos.

— Uma parte do Castelo de Bran — respondeu ele, retirando vagarosamente a chave da porta. O ranger foi ouvido.

Lá dentro, um homem os esperava segurando um candeeiro aceso na mão direita acima de sua cabeça, tentando ver de quem se tratava a visita já esperada. A carruagem se foi aos gritos delicados da guia jovial, que nem ao menos se despedira deles.

— Saluton, Sinjoro Mihai! (Olá, Sr. Mihai!) — disse o professor no idioma Real amigavelmente, vendo-o segurar o artefato aceso acima daquela cabeça, que mais parecia uma abóbora achatada, já quase sem cabelos. — Como vai o senhor?

Desculpe-me não ter avisado de minha vinda hoje.

— Bone, professoro (Tudo bem, professor) — respondeu ele em voz calma e jovial, usando o vernáculo do Reino — os demais não entendiam nada.

— Que dialeto é esse, senhor? Não estou entendendo —

perguntou a Srta. Cíprian, curiosa.

— O original Dialeto de Sighişoara. Depois falaremos sobre isso.

Mihai era um sujeito alto, magro, corcunda e desengonçado, com cara de repolho maduro devido aos seus olhos mortos alaranjados e, por ser careca, apenas se via algumas moitas de cabelos dos lados de sua cabeça, tinha a voz que mais parecia estar sempre sorrindo, mas ele era tão paciente quanto um monge, um trejeito delicado, olhos fundos e nariz 284

Polly Lee

achatado, seus dedos das mãos e dos pés eram compridos e mantinham unhas imensas, que davam dobras no final de cada uma delas. Não era responsável por uma visão muito agradável.

Nem um pouco, na verdade. Polly e Gustavo logo se ligaram nas unhas avantajadas do estranho, quase soltando um riso de deboche. Drágus, porém, não se conteve e riu alto, fazendo alguns comentários desagradáveis. E todas as crianças riram juntas sem som.

— O que está fazendo, menino? — perguntou Diego, seriamente.

— Desculpe-me, professor! É que eu não...

— Nunca mais faça isso. E por favor, tenha modos! —

observou ele, lhe cortando suas palavras.

— Drágus! — disse Cíprian, chamando-lhe a atenção.

— Estou ótimo, professor, e o amigo, como anda? —

respondeu Mihai, indiferente às brincadeiras do menino.

— Com mais uma missão das que o amigo já sabe —

respondeu o professor amigavelmente. — Desculpe-me pelas crianças!

— Não ligo, professor, são apenas crianças, e crianças são apenas crianças. E para ser sincero, não sou mesmo um sujeito bonito, não vê? — observou ele. — Como sempre, vindo aqui para um descanso longo?

Ele caminhava com o artefato na mão direita tentando enxergar o ambiente; eram cômodos estreitos e escuros de tijolos crus e bem rústicos, alguns móveis antigos e velhos se via no desgaste das madeiras, bem como quadros mal pregados na parede cheias de teias de aranha e um piso grosso com pedras grandes e mal assentadas, todas disformes.

285

e o Morcego da Pensilvânia

— Sim. São seis Iniciados que estou levando à Competição deste ano — falou o professor. — E essa aqui é a Srta. Cíprian, a mais nova psicóloga contratada pelo Sr. V.

— Muito prazer em conhecê-la, senhorita! — disse Mihai, apertando sua mão.

Cíprian, de antemão, sentiu-se indiferente àquela mão com dedos e unhas imensas e afiadas, mas o cumprimentou, sentindo o arranhar das pontas de suas úngulas, e quase se encolheu toda de agonia dizendo:

— O prazer é todo meu, Sr. Mihai!

Na verdade, a aparência daquele homem era realmente horripilante.

— Pronto, é aqui! — disse ele. — Fiquem à vontade para o descanso. Sintam-se em casa. Segure aqui essa lamparina, professor, que vou buscar outra. Tenho dois quartos enormes, como o senhor já sabe, para todos vocês arem a noite bem.

Não fui avisado da vinda de vocês hoje, senão teria me preparado melhor — concluiu saindo em busca do artefato luminoso.

— Obrigado, Sr. Mihai! — disse o professor. — Não precisa se preocupar conosco, qualquer coisa já será de bom tamanho. Ficaremos bem, amigo.

Os olhos de Gustavo e da pequena Polly, como os dos outros, desviavam pelo ambiente escuro e bem diversificado de objetos estranhos nas paredes e roupas diversas em tom opaco e encarnado. Suas sombras se moviam ao movimento da chama do candeeiro por todo o ambiente.

— Hoje aremos a noite aqui — afirmou o professor para os demais.

— Pensei que seria dentro do Castelo — observou Cíprian com ar de plena

decepção.

286

Polly Lee

— E é — disse ele. — Aqui é o Castelo de Bran. Estamos todos dentro dele. Mas, claro, num de seus compartimentos externos. Diz o Sr. Mihai que aqui foi moradia de alguns serviçais do Castelo nos tempos idos.

— Mas eu pensei que iríamos para...

— Não podemos ainda, senhorita — retrucou o professor em tom ivo, cortando-lhe as palavras —, antes temos que receber ordem do Conde V para que possamos conhecer o interior do mais belo Castelo de Bran.

E um postigo foi visto, ainda entreaberto. Não havia ferrolho nem fechadura nela, era automática — fechava-se por algum tempo, até reabrir novamente; um sistema não compreendido por todos que entravam por ela. Ficava após uma porta lateral de onde eles estavam.

— Venham, entrem! — disse Mihai, voltando e segurando agora um candeeiro velho e estranho.

E adentraram o ambiente iluminado por algo que ninguém sabia dizer o que era. Logo foram apagadas as luzes artificiais, mas o ambiente continuou aceso. “De onde vem essa iluminação?”, pensou Cíprian com olhar assustado.

— Deixe, professor — disse Drágus inocentemente, adentrando por último —, eu fecho a porta.

E o Sr. Mihai falou no seu modo de ser:

— Não conseguiria esse feito, meu caro rapaz. Quando essa porta quer se fechar, não tem quem a segure, ela se fecha com a força de um touro e pesa mais de algumas toneladas. E só abre quando quer.

— O quê? — retrucou o menino, sem nada entender. — É

uma porta mágica?

287

e o Morcego da Pensilvânia Eles estavam curiosos e assustados com as palavras

daquele homem enigmático.

— Venham, não queiram entender! — disse Mihai. —

Peguem aqueles sacos ali. São seus cobertores e travesseiros para a noite fria. Ficarão aqui por esta madrugada. O tempo lá fora mostra que a noite será bastante friorenta. Se quiserem algo para comer, estarei ali na sala, à disposição de vocês.

E dois sacos de pano grosso de cor de carne estavam nas mãos dos meninos, abertos e sendo retirados deles os artefatos de tecido quente.

— Sr. Diego — disse Mihai, puxando-o para um canto —, aproxime-se! Logo teremos que ir buscar os Leus de Polly, que estão guardados no cofre do Castelo. Ela irá precisar e o amigo sabe que sou o responsável por toda moeda do Castelo de Bran, por isso preciso me disfarçar, para não dar na vista dos assaltantes da região, que são muitos.

— Tudo bem, amigo, também vou precisar de alguns. E a fortuna de Polly já foi liberada pelo Conde? — perguntou o professor em voz baixa.

— Sim. Assim que a notícia correu em Sighişoara sua conta foi concretizada e tudo depositado nos mínimos detalhes.

Vamos deixar os personagens aqui, acomodando-se nos fundos do Castelo, e voltemos à família Lee, que agora estava bem longe da rua 666 e de Lancaster.

O Sr. e a Sra. Lee festejavam o novo ano em clima de mudança. A mansão fora fechada por um bom tempo, ao o que eles se mudaram para o litoral americano. Deborah, em êxtase de felicidade, brincava com seu mais novo amigo de estimação, o cãozinho Tobe; um peludo misto de Poodle com 288

Polly Lee

Basset Hound na cor cinza-escuro. O animalzinho corria atrás dela pela beira da praia e o casal Lee saboreava uma iguaria marítima, ambos deitados em cadeiras flexíveis. A casa tinha alçapão e uma lareira bem apresentável, os cômodos de descanso ficavam na parte de baixo, diferente da mansão antiga.

Desde que eles se mudaram para o litoral que não viram mais nenhum morcego rodeando a casa, apenas pássaros e corujas à noite em seus chirriares misteriosos. Polly, para os Lee, era apenas ado. De vez em quando Donald se pegava em lembranças nostálgicas ao ver em seus pensamentos a pequena Polly; um sentimento de remorso lhe tomava, às vezes, quando deitado em seu novo travesseiro. E assim os Lee iam vivendo seus novos dias de prosperidade, gastando tudo que receberam sem nem perceberem que dinheiro se desfaz quando não multiplicado. Os Lee retiraram o que o Conde V havia mandado em cifras e pam numa caixa na biblioteca da nova casa.

Foram utilizando o dinheiro com presentes e eventos caríssimos no decorrer dos

dias e meses.

Voltaremos agora ao Castelo de Bran.

Na estreita hospedaria de Bran, Cíprian e as crianças se alojaram em um dos quartos maiores. Os colchões foram espalhados pelo chão de pedras envelhecidas, e deitaram ali, para um descanso curto, até que a madrugada chegasse. O

relógio antigo da sala marcava quase nove horas da noite. Lá fora, o frio aumentava e as pessoas procuravam as tabernas para um bom vinho, ou outras bebidas quentes. Um lanche fora servido aos visitantes e o Sr. Mihai se aconchegou em seus aposentos, nos fundos daquela larga sala. E a madrugada fora tomada de uivos de lobos distantes, cantos de corujas e gritos 289

e o Morcego da Pensilvânia rasgados de corvos que sobrevoavam o Castelo, além de alguns grilos silvestres.

290

Polly Lee

CAPÍTULO VINTE

O BILHETE DO PROFESSOR Dalca

ntes do amanhecer, o professor Diego resolveu Abusc

ar, na calada da noite, alguém um tanto caro para ele. Saiu em silêncio, de forma que nem mesmo Mihai ficou sabendo de sua ausência, deixando um curto bilhete para a Srta.

Cíprian em cima da mesa de madeira da sala. Percorreu algumas ruas estreitas daquela Comuna e sentiu o frio mais intenso da cidade. Viu alguns morcegos sobrevoarem a noite silenciosa, mas percebeu que se tratava dos mais normais mamíferos voadores que já conhecia. Nenhum sinal daqueles animais estranhos e ferozes que atacaram o trem, mordendo o maquinista. E chegou ao seu destino. Bateu palmas e alguém veio atendê-lo.

Quando o dia amanheceu, o sol ainda não se mostrava no quarto onde dormiam os pequenos e Cíprian, mas ela despertou vagarosamente de seu profundo sono. E logo que abriu os olhos, observou-os e foi ao aposento onde ficou o professor. Bateu na porta algumas vezes com pancadas leves e nada de resposta.

Assustou-se. “Por que não abre a porta, será que ronca até agora em sono pesado?”, pensou. “Ou resolveu sair e dar uma daquelas fugidas misteriosas que sempre faz?” E voltou ao 291

e o Morcego da Pensilvânia quarto sussurrando e se deitou novamente, era ainda muito cedo.

Seus olhos observavam a janela com cortina amarelada e suja, esvoaçando ao toque dos ventos suaves e frios. Lembrou-se do tempo em que ainda estava na faculdade de Síbiu e fora convocada pelo Conde V — sentia certo medo com o que pretendia fazer em Sighişoara. “O professor, ao seu ver, estava certo: um lugar desconhecido e uma Competição totalmente diferente das tradicionais, além de ter que encarar garotos completamente loucos e indisciplinados, vindos de vários lugares... Mas qual é a Competição que não tem certos tipos de pessoas?”, pensava. “Há personalidades diversas, essa é a realidade, e Sighişoara não seria diferente de outros mundos”, continuava sua reflexão. Sabia que na Competição haveria tipos diferentes de Iniciados, como entre os “neurotipos”. E deitou a cabeça no travesseiro, tentando pegar no sono novamente.

Um pouco distante dali, numa mansão em estilo germânico, onde a lareira era acesa todos os dias e noites de inverno, o professor ara toda a madrugada na companhia de um amigo muito próximo dele — o Sr. Gutemberg Nagy; um médico e cientista da Universidade de Bran. Ele era um experimentalista e estudioso de aves de todas as espécies. E

embora não fossem aves, também estudava com afinco os morcegos. Com seus pequenos e esquisitos óculos e um bigode aloirado e cheio, de cabelos totalmente grisalhos e curtos e corte social, vivia em um compacto laboratório farmacêutico, acompanhado de sua longa bata branca, que montara em sua própria mansão. O professor Diego precisava saber o porquê daquele ataque repentino dos enormes e furiosos morcegos ao trem no qual viajava, e de algo a mais, se possível. Ele sabia que o amigo era um perito no assunto, em se tratando de mamífero da espécie e suas histórias milenares. Então o procurou durante 292

Polly Lee

a noite, porque sabia que o doutor Gutemberg varava a madrugada acordado com seus experimentos loucos. E durante aquela noite, após uma conversa extensa na sala, um livro grosso foi aberto em cima de uma imensa e comprida mesa fosca, diante dos olhos curiosos de Diego, enquanto a esposa do Doutor Gutemberg se acomodava em seu quarto aconchegante, em sono profundo — a Sra. Lurdes Nagy; uma mulher bem aparente e muito educada, com seu porte alto e forte. Ela era bem mais jovem do que seu esposo, que já havia completado seus setenta anos. Eles pertenciam à classe média da sociedade e moravam em um bairro burguês da cidade.

— O professor está vendo aqui? — disse o doutor, levando o dedo a um parágrafo bem extenso.

O espesso livro de mais de 500 páginas fora paginado por alguns minutos antes de chegar ao capítulo exato pelo Doutor Gutemberg. Ele continuou: — Veja quantos casos desses mamíferos voadores! Marquei aqui os mais esquisitos. Trata-se dos maiores e não comuns, que foram os que atacaram o trem, eu imagino.

E olhou para o professor com um ar esquisito. Então, reiniciou: — Há anos que por essa região esses mamíferos vêm aparecendo, professor.

O professor olhava minunciosamente a página, curioso. E

Gutemberg continuou dizendo: — Esses que atacaram o trem à luz do dia, não correspondem a um caso normal de morcegos naturais, eles devem ter algo a mais neles para que possam sair em plena claridade atacando, e em bando, que também não é muito normal. E seus tamanhos, como eu lhe falei, são avantajados e quase todos têm em suas asas uma mancha acinzentada — tonalidade não convencional aos morcegos 293

e o Morcego da Pensilvânia naturais. Até hoje não pude explicar o porquê dessas asas manchadas.

O professor Diego ouvia atento a cada palavra do sábio pesquisador.

— Então o senhor acha que foi mesmo da parte do tal, o ocorrido? — perguntou ele.

— Disso, professor, eu não tenho nenhuma certeza, mas posso averiguar. O problema é que existem dois tipos de casos como esse que ocorreu. E o amigo sabe que eu não acredito nessas histórias antigas. Sou um tanto cético quanto a isso.

E folheou mais algumas páginas à frente e disse:

— Aqui, achei, veja, professor!

— O que achou?

— Como havia dito, são dois tipos: um deles são munidos de artefatos, e o outro caso é mais complicado porque...

E silenciou, ando os dedos nas linhas escritas. Por fim, disse empolgado: — Aqui, veja! Neste caso, eu precisava de uma amostra do sangue do animal ou de quem foi mordido por um deles. Preciso experimentar o líquido em meu laboratório. Há alguns anos venho preparando e desenvolvendo uma poção que me trará exatamente a resposta e será um antídoto milagroso aos que forem atacados, deixando-os curados da mordida e de seus efeitos. E... é claro, terei a resposta de onde eles procedem.

O silêncio tomou os dois ali, que se olharam serenamente.

De repente, o professor gritou:

— O maquinista!

— O quê? Maquinista? Do que o amigo está falando?

— Um dos maquinistas do trem que vinha para Bran foi mordido por um daqueles enormes morcegos no ataque em bando. Isso! Tenho que falar com ele.

294

Polly Lee

Levantou-se repentinamente como se fosse sair dali, ao que escorou na porta.

— Professor — observou Gutemberg —, calma, não vá fazer besteira! E é cedo para o senhor sair de casa. O sol ainda não deu bom-dia à Comuna.

— É a única chance que temos para saber a verdade, Doutor Gutemberg.

— Eu sei, mas...

— O que foi, doutor?

— Tem como eu ver esse homem?

— Acho que sim, por quê?

— Deixe comigo, eu tenho um plano. Quando partirá para Sighişoara?

— Amanhã, logo cedo, partiremos, eu, a Srta. Cíprian e as crianças.

— Ok. Então hoje ainda iremos procurar esse maquinista que foi mordido. O senhor ainda está com essa mania de cicerone, professor. — disse essas últimas palavras em tom irônico.

Diego assentiu e foram descansar um pouco.

Assim que Cíprian se levantou e procurou a porta, para ir lá fora sentir o tempo e o sol em seus raios fulgurantes e mornos, foi abordada por Mihai, ainda na sala, que disse em tom amigável:

— Senhorita, o professor Diego lhe deixou isso.

— O que é? — perguntou, com cara de sono.

— Um bilhete — disse, estendendo-lhe a mão com o papel dobrado.

— Bilhete?

295

e o Morcego da Pensilvânia E logo abriu o pedaço o escrito às pressas e começou a ler.

No bilhete, o professor dizia que precisava ir ao encontro de um amigo muito estimado, e que ela, juntamente das crianças, deveriam esperar ali, na companhia de Mihai, porque no dia seguinte, pela manhã, eles partiriam para Sighişoara. Neste momento, aquele mesmo voador de asas manchadas que beirou por muitos dias a mansão dos Lee, sobrevoou aquela localidade onde estavam instalados.

— Olha lá! — dizia a pequena Lana para Polly, debruçada na janela um tanto velha e gasta na cor opaca e apontando a criatura em voo desordenado. — É um morcego de asas manchadas, e enorme!

— O que está fazendo aí, Lana? — perguntou Cíprian, voltando ao quarto ainda com o papel na mão.

— Um enorme morcego, senhorita, veja! — insistiu a menina, apontando.

— Pelos deuses! — disse ela. — Isso é muito estranho.

Saiam logo dessa janela! Estamos numa altura bastante considerável do Castelo e é muito perigoso, vocês podem cair. E

fechem logo essa porta antes que esse morcego queira invadir e atacá-los! Esqueceram do trem?

— Olha lá, senhorita — gritou Lana, novamente apontando —, ele é enorme!

— Venham! Fechem essa janela. Rápido!

E olhavam pela fresta o voador dar alguns voos próximo às árvores e pousar de cabeça para baixo em galhos finos, olhando para eles com sua fina língua vermelha em movimentos.

— E o professor Diego, senhorita? — perguntou Drágus Vasile.

296

Polly Lee

— É... senhorita — disse Lana —, onde está o professor?

Ainda não acordou? Não devemos ir lá e bater na porta?

Polly logo entristeceu o cenho quando não o viu no quarto, entre eles.

— Não fique assim, Polly — observou a moça, vendo a menina piegas —, porque ele não pôde ficar essa noite conosco, teve que ir resolver algo, mas logo voltará para que possamos seguir à Sighişoara.

— Seguir para onde? — perguntou Cornelius com a cara amassada.

— Assim que ele chegar conversaremos com vocês sobre o que vão fazer de verdade e para onde estamos indo — disse Cíprian.

— E eu vou me separar de Polly? — perguntou Lana, tristonha.

— Vamos parar logo com esse assunto — rebateu Cíprian.

Todos silenciaram. E ela falou com ar de riso:

— Vamos! Vamos ao desjejum! Vamos ver o que o Sr.

Mihai tem para comermos nesta manhã clara, neste lugar estranho.

— O que tem, senhorita, para comermos aqui? —

perguntou Lana com seus cachos sacudindo-se.

— Ele me disse algo ainda agora, mas não vou contar.

Vamos lá ver! É surpresa. Mas todos, antes, ao banheiro para lavar seus rostos.

E saíram animados.

Na mansão do Doutor Gutemberg, após despertarem do curto sono, eles fecharam o livro e se dirigiram ao laboratório, que ficava nas imediações do porão. O professor observava tudo 297

e o Morcego da Pensilvânia atento e curioso. Uma pequena porta foi aberta e, diante de seus olhos, um compartimento lotado de vidros de tamanhos e espessuras diferentes foi visto. Aparelhos e equipamentos dos mais variados, por ele nunca visto em sua vida, arrumados e separados por letra, em cima de prateleiras em madeira trabalhada e envernizada. O ambiente era bem limpo e com paredes na cor branca; o teto de madeira crua e, no chão, um imenso tapete se estendia por toda a sala. Havia alguns pequenos armários com vidraças, escuros, lotados de recipientes, repletos de líquidos de diversas cores. Alguns incolores.

— Venha, professor! — disse Gutemberg ao entrar na sala. — Entre.

O professor entrou a os cuidadosos e olhos arregalados, observando cada detalhe daquele lugar mágico para ele. Era uma visão muito estranha para um simples mestre de mente. Havia fumaça subindo de vidros em formatos esquisitos, líquidos borbulhando como se fervessem em fogo alto em aparelhos de formatos estranhos, e nada de fogão aceso, nem mesmo algum tipo de chama

— era mesmo tudo muito mágico, para ele. Até então, Diego Dalca nada havia estudado sobre química ou coisa dessa espécie — reações e misturas.

— Veja, professor — dizia o médico —, é aqui que faço as minhas experiências e trabalhos para a Faculdade na qual ensino.

— Ainda está ensinando na...

— Sim, sim — disse, cortando-lhe as palavras. — Nunca abandonei as aulas. E nem se eu vier a me aposentar, algum dia, abandonarei meus alunos. Isso aqui é minha vida de pesquisas e sonhos. Veja! Isso tudo é palpável e você pode ver e conferir.

Não é como suas aulas, na qual nada se comprova.

298

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— Mas acontece aos olhos nus — observou o professor Diego, querendo defender-se.

— Isso eu preciso ver com meus próprios olhos, amigo —

disse o Sr. Gutemberg debochando, segurando um Balón Volumétrico em fumaça consecutiva e um cheiro estranho saindo dele. — Sinta esse cheiro aqui!

O professor, aproximando suas narinas, deu uma aspirada de ar forte na boca do vidro.

— Pelos deuses, o que é isso, doutor?

— O que achou, amigo?

— Muito bom esse aroma. O que tem aqui?

E falou Gutemberg ao se dirigir à outra mesa, enquanto pegava um Balón de Destilação:

— Venha, professor! Veja o que vai acontecer.

Despejou em um recipiente, que já continha um líquido vermelho, umas gotas do que havia no Balón, e uma reação química ocorreu, cuspindo fumaças coloridas ao ar sem nenhum barulho assustador, apenas um chiado rápido. Diego deu alguns os para trás, amedrontado e arregalou os olhos.

— Tudo bem, professor? É só uma reação química. É isso que chamo de real, amigo. Você está vendo acontecer e se comprovar diante de seus olhos. É físico. Mas agora... vou mostrar o que, no momento, interessa ao amigo e a mim também. Venha! Venha logo ver isso!

E o levou a um armário pregado na parede, que ficava fechado a chaves, onde escondia em uma gaveta de um armário bem menor. O professor observou, atento, o Doutor Gutemberg pegar a chave e enfiar na fechadura da pequena porta de vidro de uma espécie de cristaleira, e abri-la vagarosamente. Então, uma porção de vidros pequenos foram vistos, com líquidos e 299

e o Morcego da Pensilvânia pedaços de algo, como plantas ressecadas e não reconhecíveis aos olhos do professor que, irado, observava um por um.

Diego conhecia um pouco sobre ervas, mas aquelas ele nunca vira antes.

— O que significa isso tudo, doutor, dentro desses vidros?

São plantas secas?

Então, Gutemberg olhou seriamente para ele e disse, surpreendendo-o:

— Para a sua surpresa, meu amigo, comecei uma nova experiência com alguns tipos de morcegos. Não são plantas secas, mas pedaços de asas do mamífero que mais me impressiona.

— Morcegos?

— Sim, morcegos. E agradeço pelo senhor ter vindo até a minha casa falar sobre o ocorrido no trem. Preciso continuar essa minha experiência, mas faltava algo que, agora, parece que terei em mãos — disse com grande entusiasmo. — Tenho visto casos e casos com morcegos, por essa região, todos muito misteriosos, uma vez que não se explicam.

— Do que se trata, senhor?

— Ainda não percebeu?

O professor balançou a cabeça para os lados, em silêncio, e o Sr. Gutemberg

expôs, dizendo:

— Sangue de morcegos, ou algum sangue contaminado deles. É disso que estou precisando, amigo.

— Mas por que não pega por aqui? Há tantos voando à noite e...

— Já tentei desses, mas nada ocorreu. — disse cortando-lhe. —Preciso dos que atacam à luz do dia. Esses sim devem ter algo a mais, algo bem especial, como diz o livro. Eles não são naturais. Lembra do ocorrido com o amigo anos atrás?

300

Polly Lee

O professor assentiu, mudando o semblante. E o Doutor Gutemberg completou: — São desses que estou falando.

— Onde o doutor conseguiu aquele livro?

— Esse, meu amigo — disse em tom misterioso —, é uma longa história que um dia lhe contarei. Com certeza lhe contarei detalhadamente.

— Então terei que trazer para o senhor algo como uma amostra do sangue do maquinista?

Gutemberg assentiu, olhando-o seriamente. Seu rosto franzido demonstrava a alegria que sentia. E Diego continuou:

— Não sei se consigo ver novamente aquele maquinista. Tenho que procurá-lo. Acho que ele irá pegar alguns dias de descanso devido aos ferimentos no pescoço. Eu o mediquei, mas vejo que aqueles animais são muito mais estranhos do que eu imaginava.

— E como descobrirá onde ele está?

— Falarei com o outro maquinista que estava com ele; seu companheiro de trem — poderá nos levar até o homem ferido.

— Você se lembra daquele assunto, que me confidenciou há alguns anos?

O professor Diego confirmou e perguntou, entusiasmado:

— O senhor descobriu algo para...

— Ainda não — disse, cortando suas palavras —, mas quem sabe agora consiga alguma coisa. É só me trazer as gotas de sangue e farei a experiência. Mas tenho a plena certeza de que dará certo.

O professor, aparentava um olhar de esperança do que desejava e balbuciou algumas palavras: “Até que enfim chegou a hora”, e sentou-se na cadeira giratória que Gutemberg utilizava para fazer suas anotações.

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e o Morcego da Pensilvânia No ambiente estranho do Castelo, onde vivia o Sr. Mihai, via-se ao redor de uma mesa quadrada, em madeira crua, Cíprian e as crianças, todas alimentando-se de algo um tanto peculiar da região de Bran; cordas de linguiça fritas com suco de uva. Era a iguaria da Realeza do Castelo, principalmente a do

“Filho do dragão”.

— Eu não estou gostando de comer essa comida detestável! — disse Cosmina, a

mais enjoada e prepotente. —

Mamãe teria me servido algo mais apetitoso lá em casa.

— Desculpem-me, crianças! — retrucou Mihai. — Eu não sabia que teria a visita tão inesperada de vocês aqui. Poderia ter feito algo mais saudável.

Cíprian observava as atitudes da menina e refletia o que viria mais para frente naquela Competição que iria enfrentar.

— Desculpe-me por ela, Sr. Mihai! — disse a moça, tentando mudar o quadro.

— Tudo bem, senhorita, são apenas crianças — observou Mihai, simpaticamente.

— Eu estou gostando — disse Lana, devorando sua parte da corda de linguiça e tomando seu suco rapidamente.

— Você é uma nojenta! — retrucou Drágus, sorrindo. —

Gostar disso aqui... só você mesma, Lana.

— Parem logo com isso. — gritou Cíprian. —

Comportem-se, por favor!

— Tudo bem, senhorita — disse Mihai, muito paciente. —

Como já lhe disse, são apenas crianças. Com criança não se discute.

E deixou escapar um sorriso aberto.

— Foi ele, senhorita — disse Lana, queixando-se. — Foi esse aí que me provocou.

302

Polly Lee

— Mas você é mesmo uma nojenta! — gritou Cosmina, cuspindo no chão.

— Menina, não faça isso! — retrucou a moça, já enervada.

— Tenha modos.

Polly e Gustavo, mastigando devagar aquela iguaria frita, apenas observavam o comportamento dos demais.

— Mana, você prometeu à mamãe comportar-se com os adultos — Cornelius advertia a irmã. — Direi tudo a ela quando voltarmos.

— Sua irmã é uma perturbada. — observou Drágus, deixando escapulir uma gargalhada.

E os meninos riram. Menos a própria Cosmina, que espichou um bico largo e gritou:

— Eu não sou uma perturbada! Não sou!

E o barulho começou entre talheres em cima da mesa, deixando Cíprian assustada. O Sr. Mihai estava com o riso aberto ao ver aquela bagunça toda — ele nunca havia presenciado tal cena em seus aposentos. Para ele, era uma novidade aquilo. E continuou a mostrar seus dentes amarelados e espaçosos.

— Parem! Parem logo com isso! — gritava Cíprian, abrindo os olhos e levantando as sobrancelhas. — Agora basta, vamos voltar ao quarto! Se continuarem assim, sairemos da mesa e não terão sobremesa.

— Calma, senhorita! — disse Mihai. — São só crianças.

As crianças não pararam de brigar e fazer bagunça. Então, a moça os levou para o aposento, resmungando: “Vocês me envergonham”. E não tiveram direito ao doce, que foi feito pela Sra. Scarlet, que em páginas adiante, teremos o prazer de conhecer.

303

e o Morcego da Pensilvânia

— Sentem aqui, precisamos conversar. — disse ela, sentando-se na beira da cama.

— Por causa de vocês — observou Lana — não teremos a sobremesa.

— Mas você só pensa em comer. — falou Drágus.

E subiram na imensa cama de madeira com colchão de molas, forrada com grossos lençóis de retalhos.

———————————————

— Eu preciso voltar lá. — disse o professor Diego, serenando o cenho.

— Eu vou com o amigo. Vai me fazer bem sair um pouco dessa casa que me sufoca há anos.

— Então vamos logo, antes que percamos o outro maquinista.

Eles saíram vestindo seus casacos de frio após um delicioso café. O tempo estava fechado e escuro. O inverno iniciava em todo o Estado da Transilvânia, e aquela Comuna não escaparia do frio rigoroso que adentrava com a mudança de clima e se estenderia por entre sua estação.

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Polly Lee

CAPÍTULO VINTE E UM

O MAQUINISTA

E A SURPRESA DESAGRADÁVEL

dia se ou e os dois homens de capuz, devido ao Ofrio,

andavam pelas ruas estreitas e antigas de Bran.

Os prédios medievais traziam um clima fúnebre e cinzento aos olhos mais curiosos e detalhistas. Poucas pessoas, naquela tarde, trafegavam por ali. Do alto da torre da principal igreja da comuna, próximo ao imenso sino metálico e preto, o padre acenava para eles; um senhor de aparência já envelhecida que, com certeza, escondia e guardava longas histórias misteriosas daquela cidade. Eles olharam para cima com os olhos franzidos tentando vê-lo melhor, e o Sr. Gutemberg deu um aceno.

— Quem é o padre? — perguntou o professor.

— Pouco sei sobre ele, amigo. Meu trabalho não me aproxima da igreja porque a religião, desde a época medieval, vem tentando se livrar da ciência, e isso faz com que a sociedade pare no tempo. Naquela época em que o mundo era regido pelas doutrinas, que se diziam cristãs, a ciência foi impedida de salvar muitas vidas de pestes e doenças que pessoas como eu e como o amigo, com suas ervas, poderiam ter evitado.

Mas eles se diziam os salvadores e pertencentes das vidas de um povo largado e esquecido pelos poderosos, morrendo de fome e 305

e o Morcego da Pensilvânia de abandono, como hoje ainda se vê por aí. A higiene era péssima por não terem como agir. E tinha que viver daquela forma. Isso me deixa envergonhado da igreja à qual fui educado e direcionado até certa idade.

— Como sabe tanto, Sr. Gutemberg?

— Meus livros me falam quando quero ouvi-los, meu amigo. As religiões ignorantes e cheias de orgulho e ganância são a queda do mundo. Sempre foram. Mas um dia chegaremos a uma nova era de amor e paz para essa e todas as terras, neste Mundo de lágrimas e de dor, em gritos que não são ouvidos nem atendidos.

Os ventos sopravam forte fazendo com que os dois homens se encolhessem a cada minuto em suas próprias roupas.

Seus os aumentavam constantemente. O Doutor Gutemberg gostava de usar chapéu na cabeça quando saía de sua mansão, mas, naquela manhã de frio, apenas o carregou na mão devido ao capuz que ocupava seu lugar. O professor Diego não usava chapéu, nunca gostou, e seus cabelos estavam presos agora ao artefato que lembrava asas de morcegos, impedindo que os fortes ventos os esvoaçassem. Suas cabeças achavam-se baixas enquanto caminhavam e conversavam.

Chegaram na estação quase ao meio-dia, por terem ido a pé e parado em alguns lugares para se aquecerem com tragos de vinhos. Poucos ageiros por ali esperavam o próximo trem.

Os dois homens subiram na plataforma e seguiram para o guichê, e pediram informação sobre os maquinistas. O professor sabia o nome deles por ter ficado um bom tempo com os dois na máquina, naquele dia do ataque dos mamíferos voadores. Então foi dito a eles, por algum funcionário da cabine, que os maquinistas estariam em suas funções, se não houvesse a 306

Polly Lee

tragédia com um deles, e que apenas só um estaria ali, para trabalhar.

— É... o homem piorou — observou o professor, desanimado.

— Não desanime, amigo, perguntaremos ao companheiro dele.

— Espero que ele não morra.

— Se isso acontecer, professor, ainda poderemos recolher uma amostra do sangue no seu corpo inerte.

— Do morto?

— Sim. Sempre há partes que ainda mantêm algumas gotas de sangue aquecido, mesmo o indivíduo estando morto.

Após alguns minutos, o funcionário apareceu. ou no guichê e procurou seu posto — andava acelerado com o quepe preto na mão esquerda e, na outra, um cigarro aceso. Ele parecia muito nervoso. Tenso. Algo havia ocorrido de muito sério para que ele estivesse assim.

— Amigo! — gritou o professor, já aproximando-se. —

Olá!

O maquinista se virou rapidamente sem reconhece-lo de imediato. Mas logo se lembrou de quem se tratava.

— O senhor? — disse, espantado. — O que o traz aqui a essa hora do dia?

— Precisamos falar com você — falou o professor, apressadamente.

— O que quer?

— Este é o Doutor Gutemberg, da Universidade de Bran

— disse o professor.

Houve alguns cumprimentos entre eles.

307

e o Morcego da Pensilvânia

— Como está o maquinista Cláudius? — perguntou o Doutor Gutemberg.

— Por que a pergunta, senhor? Eu nem o conheço.

— É muito importante sabermos dele — adiantou-se o professor.

— O que quer com ele? — insistiu o maquinista enquanto olhava para Gutemberg. — O que vocês querem, na verdade, com meu amigo?

— Como posso chamá-lo? — perguntou o médico, tentando ler a plaqueta em seu uniforme.

— Maurícius — disse ele.

O funcionário ainda não estava com seu uniforme, nem com seu crachá.

— Então, Maurícius — disse Gutemberg —, temos algo muito sério a resolver e precisamos saber do seu amigo. Tem alguns minutos?

Em seguida, ele olhou no relógio que ficava no bolso de sua calça preta, e respondeu seriamente:

— Tenho ainda meia hora. O trem chega ao meio-dia e terei que tomar posse

dele. Sou o rendeiro da tarde.

— Tudo bem — retrucou Gutemberg. — É o bastante.

— Onde podemos conversar? — perguntou o professor.

— Venham comigo! — disse o maquinista, seguindo para uma saleta que ficava por trás do guichê.

O funcionário deu algumas tragadas no cigarro e jogou por entre os trilhos vazios. Abriu a porta retangular e baixa e entraram, descendo dois ou três degraus. Então, ele acendeu a luz fraca e se sentou por trás de uma pequena mesa, convidando os dois a fazerem o mesmo.

— Obrigado! — disse o professor Diego.

308

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— Vamos ao que interessa — falou o maquinista Maurícius, juntando as duas mãos entrelaçadas por cima do birô de madeira enquanto olhava para os dois homens, já sentados em suas cadeiras, de frente para ele. O professor começou a falar em detalhes do que se tratava o assunto. A cada palavra, o maquinista apertava as sobrancelhas e franzia o cenho.

Nos aposentos do Sr. Mihai, o dia se ou com brincadeiras entre as crianças na sala. Cíprian, na janela do quarto, reflexiva, olhava a natureza envolvendo aquela cidade antiga e opaca em sua cor natural. Os ventos eram frios em sua pele pálida. Seus olhos buscavam todo o panorama da paisagem externa — cada detalhe a fazia suspirar mais forte. Aqueles telhados avermelhados, e outros quase sem cor, que cobriam as antigas casas, mostravam que os tempos ainda permaneciam naquela Comuna medieval.

———————————————

— Você me parece ter um segredo, amigo — dizia o professor ao maquinista, que ouvia atentamente.

— Eu... eu não tenho nenhum segredo, amigos — falou, virando-se para o lado e trêmulo.

— Pode falar, não vamos contar nada para ninguém —

disse o doutor.

— Isso que vou contar — observou ele, vencido e com a voz ainda tremelicosa — é muito sério e confidencial.

E narrou o que sabia aos dois homens, que olhavam para ele curiosos e surpresos. “Meu... Deus”, balbuciou o Doutor Gutemberg em palavras espaçosas.

309

e o Morcego da Pensilvânia

———————————————

Cíprian, ainda na janela, já estava preocupada com a demora do professor, mas quando voltou os olhos ao quarto, as crianças encontravam-se quase todas dormindo. Apenas Lana mantinha seus olhos abertos e endereçados ao teto. Parecia contar alguma coisa nos dedos. Todas as crianças haviam entrado no quarto sem que ela percebesse, tamanha era a concentração que mantinha em seus pensamentos. O Sr. Mihai os levou em silêncio, após um lanche rápido na cozinha desmantelada e cheia de teia de aranha.

— Não dormiu, Lana? — perguntou Cíprian de lá da janela, virando-se.

— Não, Srta. Cíprian — retrucou a menina com a voz forte como a de um menino. — Sinto saudade de minha mãe.

Os olhos da Srta. Cíprian se entristeceram. Então, aproximou-se da pequena Lana e acariciou sua cabeça de tranças. E ao olhar para a janela, viu quando um morcego imenso ou voando. “Pelos deuses, o que é isso?”, sussurrou a moça, espantada. “O que está havendo?”, pensou.

— O que foi, senhorita? — perguntou Lana, sentando-se na cama.

— Um morcego enorme ou por ali.

Para Cíprian, poderia ser um daqueles que atacaram o trem, devido ao seu tamanho. Ficou assustada. E logo fechou a janela.

— Onde, senhorita? — perguntou a menina.

— Não mais o vejo. Acho que voltou para a sua toca, como todos fazem, ou está pousado em algum galho por aí.

310

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———————————————

Na saleta da plataforma, os três homens ainda conversavam sobre o maquinista. Nesse ínterim, uma mensagem telegrafada chegou na cabine — era sobre o tal maquinista que fora mordido. Poderia ser uma má notícia para o professor e o Sr. Gutemberg. E logo bateram na porta. O mensageiro gritava do lado de fora.

— Quem é? — perguntou Maurícius, erguendo o rosto.

As pancadas e os gritos insistiram. O maquinista se levantou e foi até a porta. Os dois homens se olharam, curiosos.

Então ele abriu rapidamente e deparou-se com outro funcionário vindo do guichê com um pedaço de papel fino na mão.

— Você? — perguntou o maquinista, olhando o relógio em seu braço. — Ainda está cedo, tenho mais quinze minutos.

— Não vim chamá-lo para o trabalho, amigo — observou o rapaz com olhar abatido.

— E o que veio fazer, então?

— Tenho um recado do chefe.

— Recado?

Ele assentiu e entregou-lhe o papel impresso em letras pretas. O maquinista agradeceu e fechou a porta, sentando-se no mesmo lugar, de frente para os dois homens que esperavam aflitos pela novidade.

— O que foi, amigo? — perguntou o professor, curioso, vendo-o observar aquela folha por alguns minutos.

— Meu Deus — balbuciou o maquinista com os olhos arregalados para o papel, lendo cada palavra extremamente surpreso.

311

e o Morcego da Pensilvânia

— O que aconteceu? — insistiu o professor Diego. —

Está nos deixando curiosos.

— Cláudius... — disse, dobrando a folha e erguendo o rosto franzido.

E silenciou.

— Deixe-me ver aqui! — falou o professor, tomando-lhe a folha. E leu as primeiras linhas, que diziam: Amigo Maurícius, nesse momento, Cláudius faleceu devido ao sangramento contínuo do pescoço, que não foi possível estancar. Diego, sem mais querer ler o restante da carta, soltou o papel em cima da mesa com o rosto petrificado, e balbuciou:

— Aos deuses, é pior do que eu imaginei.

— O que houve? — perguntou o Dr. Gutemberg, olhando para o professor e lidando com os dois assustados e em silêncio, ambos com os olhos abertos ao máximo.

— Ocorreu o que não queríamos que acontecesse, doutor

— observou o professor, desanimado.

— O que houve? — insistiu o médico.

— O maquinista... morreu — disse pausadamente.

— Precisamos ir lá imediatamente, professor — falou Gutemberg —, antes que o enterrem.

Neste momento, o maquinista havia se levantado e se posto na porta, entristecido. O bilhete contava tudo sobre o defunto e onde iria ser enterrado, caso seu companheiro quisesse ir ao enterro. Quando desviaram os olhos, o maquinista estava chorando — foram anos juntos naquela locomotiva. E uma despedida sempre traz alguma tristeza e algum desânimo para quem fica. É como se toda esperança se desfizesse no ar por uma questão de minutos.

— Minhas desculpas, amigo — disse o professor, comovido, tocando-lhe o ombro.

312

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— Sinto muito, rapaz — falou o Dr. Gutemberg.

— Tudo bem — disse o maquinista em voz chorosa. — É

que eu... eu convivi muito tempo com ele aqui nesta profissão.

Ele sempre adorou guiar essa lataria. Vou sentir muita falta do amigo, que era mais do que um simples amigo — era um irmão de verdade. O enterro será amanhã pela manhã, vocês estão interessados em ir ao velório comigo?

E as lágrimas pingavam no piso de lajota. Os homens se entreolharam e assentiram ao mesmo tempo. E saíram dali com o apitar do trem chegando. O doutor e o professor resolveram pegar a locomotiva — foram na cabine junto com o maquinista e seu novo ajudante; um rapaz bem mais jovem, Nicolau, de cabelos lisos e pretos, óculos grandes e bem culto. Ele foi designado a ser o substituto temporário de Cláudius, mas agora seria um funcionário definitivo junto a Maurícius. As palavras do rapaz encantavam o Sr. Gutemberg e o professor. A viagem foi bem agradável naquele trem, apesar do clima fúnebre do funcionário. O novato estava iniciando na profissão, mas parecia saber tudo

sobre locomotivas, principalmente em se tratando de história e peças que compõem as máquinas. Houve descontração, mas o professor não tirava suas ideias da mente e estava sensibilizado com Maurícius, que apenas ouvia as conversas deles ali, sério e triste, guiando o trem. Por sorte do professor e do Dr. Gutemberg, o trem aria exatamente no bairro onde morava o maquinista que falecera. “Como iremos conseguir a amostra, amigo?”, sussurrava Gutemberg no ouvido do professor Diego. “Não sei, estou aqui maquinando uma forma de...”, disse o professor em voz baixa.

— Amigo — observou o novo maquinista, referindo-se a Maurícius —, pode descansar que eu guio a máquina sozinho.

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e o Morcego da Pensilvânia Vejo que está muito triste e desanimado. Se você quiser, pode até ir para algum vagão sentar-se e dormir. Darei conta da máquina sozinho.

314

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CAPÍTULO VINTE E DOIS

O ENTERRO

E A DECEPÇÃO DE Diego

uando o trem chegou ao local, já eram quase cinco da Q tarde. E para decepção deles, a família do morto resolveu mudar os planos e enterrá-lo no mesmo dia, devido ao sofrimento de sua mãe, que era imenso. Ao chegar no endereço escrito na folha, as portas estavam todas fechadas. Bateram palmas e nada. Foi quando um vizinho disse em voz firme, debruçado numa das janelas à vista:

— Eles foram enterrar o filho logo cedo, às duas horas!

— O quê? — disse o professor, surpreso, olhando para o doutor. — Não pode ser.

— Calma, amigo! — falou Gutemberg com a mão em seu ombro. — Se é o que estamos pensando, nada podemos fazer agora. É melhor voltarmos no próximo trem. Venha! Viagem perdida.

— Não ouviram? — gritou novamente o homem de lá da janela. — Eles já saíram! O defunto a esta hora já está a cinco palmos da terra!

— Tudo bem — gritou o professor, olhando para ele —, obrigado, senhor!

315

e o Morcego da Pensilvânia E seguiram para a estação. E sem saberem, pegaram o trem errado, como se fossem voltar para a cidade mais próxima.

Logo eles perceberam o erro e resolveram descer na estação seguinte. Mas algo de estranho aconteceu no caminho. Algo foi visto pelos maquinistas, caído bem no meio dos trilhos. E

resolveram desacelerar a máquina para verificar mais de perto do que se tratava o fato esquisito — uma visão escura, bem no meio dos trilhos, como se fosse um entulho.

— O que houve? — perguntou o professor ao lado do amigo, num dos bancos próximo à cabine. — O trem está parando.

— Alguma coisa aconteceu — falou Gutemberg, indo apressadamente até lá.

O professor o seguiu, curioso. Bateram no postigo chamando os maquinistas. Um deles apareceu, de imediato.

— O que houve, amigos? — perguntou o doutor.

— Ainda não sabemos, senhor — retrucou um dos maquinistas de estatura baixa e gordo —, é uma espécie de entulho nos trilhos, vejam!

O trem, quase parando, aproximava-se do que viam.

— Não, não —– disse o outro —, são vários entulhos.

Olha lá, vejo sangue!

O professor e o doutor se olharam num entusiasmo.

“Será?”, disse o doutor em voz baixa. “Se for, somos as pessoas de mais sorte nesse mundo”, observou o professor. “Sorte sua, amigo”, concluiu o médico, entusiasmado. O trem parou quase encostando o bico no entulho, e logo eles desceram, os quatro, para observar do que se tratava. E por sorte deles, eram mesmo alguns morcegos mortos, de tamanhos enormes, quase estraçalhados nos trilhos. Bastava saber agora de que espécie se tratava. Mas viram manchas em suas asas. Os ageiros 316

Polly Lee

estavam curiosos, olhando pelas janelas. O doutor se abaixou e, tirando algo do seu casaco — uma espécie de seringa —, mexeu nos animais que ainda estavam moles e quentes, por ter ocorrido há pouco suas mortes, e retirou algum sangue, guardando novamente o recipiente em seu bolso.

— O que está fazendo? — perguntou um dos maquinistas, aproximando-se dele. — O senhor é veterinário?

— Não. Apenas observando se eles ainda estão quentes.

Sou um estudioso dos mamíferos voadores.

— Saiam daí, e deixe que eu e meu companheiro aqui vamos jogá-los para o lado! — gritou o outro maquinista, mais alto e magrelo, de cara fechada, que parecia o de patente mais alta. — Vamos limpar tudo, Richard!

— Tudo bem — retrucou Gutemberg, saindo dali —, fiquem à vontade.

Então os dois funcionários, levantando os animais mortos, jogaram-nos do lado dos trilhos, por entre os capins, com alguma ferramenta.

— Seria bom enterrá-los, não? — insinuou o professor.

— Não precisa, logo eles serão comidos por outros animais — observou o maquinista de cara séria —, ou vão se desfazer aí com o tempo.

O trem, então, seguiu viagem.

O professor e Gutemberg desceram na próxima estação, pegando outro de volta que seguiria para Bran. Estavam satisfeitos. Conseguiram a amostra de sangue e iriam naquele dia mesmo fazer a experiência no laboratório. Seria mais uma noite de trabalho. Quando o trem chegou na estação de Bran, o 317

e o Morcego da Pensilvânia professor e o doutor voltaram à sua mansão, às pressas, pegando uma charrete de aluguel.

Nos aposentos do Sr. Mihai, no Castelo, a Srta. Cíprian ainda se mantinha acordada e aflita à espera do professor.

Olhava em seu relógio e os ponteiros marcavam quase oito da noite. “Onde está o professor?”, pensava enquanto olhava pela janela.

———————————————

— Vamos logo, professor — dizia o amigo —, que as horas urgem! Quero ver se já lhe entrego hoje ainda o antídoto.

— Seria uma maravilha, senhor — disse Diego entusiasmado.

— O que é isso na sua orelha, amigo? — observou o doutor ao fitá-lo.

— O quê?

— Esses pelos que há pouco não existiam.

— Nada. Esqueci de cortar nessa manhã.

— Pelos?

— É melhor nos apressarmos, não acha doutor? — falou tentando fugir do assunto.

As orelhas do professor Diego estavam novamente peludas e pontiagudas devido ao que vira nos trilhos — era uma reação que se repetia ao ver alguma espécie de sangue, ou coisa assim.

A mansão já estava próxima. Ao chegarem, entraram e seguiram para o laboratório.

— Chegou, querido? — gritou sua esposa, lá da cozinha.

— Sim, sim. Mas estou indo ao laboratório!

318

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— Não vai comer?

— Depois iremos, querida.

— Iremos? Quem está aí com você?

O laboratório foi trancado sem resposta para a mulher, que se manteve no cômodo, e os dois se pam na bancada pegando alguns recipientes apressadamente. Ao misturar o sangue retido do animal e os líquidos indicados dentro do tubo de ensaio, uma reação foi vista. A fumaça não era normal —

fez-se em cores brilhosas e odor malcheiroso. Eles se olharam, espantados. Havia uma diversidade de pigmentações imensas.

— Nossa — falou Gutemberg, encolhendo o semblante e apertando o nariz —, como cheira mal isso. Mas as cores são lindas, professor, veja isso! Nunca tive uma reação desse tipo.

Parece mágico.

— Realmente, senhor, péssimo odor mesmo — disse o professor, franzindo o cenho. — As cores são lindas. Mas espero que isso resolva.

— Minhas esperanças, professor, são positivas — afirmou o doutor entusiasmado. — Pode agradecer aos céus, seu problema será resolvido. Uma reação como essa é coisa inédita na química.

Os olhos do professor Diego brilharam com as palavras do amigo e as cores saídas do recipiente. Depois de tantos anos, ele alcançaria o que mais desejara em sua vida. Claro, se a experiência desse certo.

— Agora vou despejar aqui nesse vidrinho fino — disse ele — e vedá-lo para que leve com você. Mas, por favor, não abra em menos de uma hora! Precisa que fique mais tempo fechado, para que obtenha uma melhor reação quando o amigo ingerir.

319

e o Morcego da Pensilvânia

— Tudo bem, doutor. Obrigado, amigo! Guardarei a sete chaves.

Então o Sr. Gutemberg entregou a ele o antídoto produzido e o professor o colocou no bolso do casaco rapidamente. Resolveu sair do laboratório. Voltaria naquela mesma noite ao Castelo.

— Não esqueça, amigo: após uma hora poderá tomar! —

enfatizou olhando por cima dos óculos.

— Ok.

— Sem querer ser inconveniente... Onde o senhor está instalado aqui na Comuna?

— No Castelo de Bran.

O Doutor Gutemberg nada mais falou. O professor não via a hora de tomar o líquido mágico — ao seu ver. E saiu em busca da porta da frente da mansão, despedindo-se do amigo.

— Até mais, amigo! Até mais, senhora!

— O senhor já vai? — perguntou Lurdes Nagy com sua voz anasalada, sem saber de quem se tratava a visita. — Quem era, querido?

— Apenas um amigo que está com pressa.

Lá fora, o céu de Bran pretendia abrir-se, dando para se ver algumas estrelas

cintilarem, ainda acanhadas por entre nuvens sujas, algumas flocadas, outras espalhando-se sob o azul-celeste, mas os ventos gelados ainda tocavam o rosto nu, amadurecido e completamente esperançoso do professor Diego.

As árvores da cidade estavam adormecidas com seus galhos quase sem folhas, dando certo tom de filme de terror àquele ambiente quase sem cor. Diego caminhou alguns os solitários encolhido em seu casaco pesado, quando um enorme morcego de asas manchadas sobrevoou sua cabeça em voos rasos, deixando-o assustado. Ele se abaixava a cada mergulho 320

Polly Lee

daquela ave deslocada, que quase lambia seus cabelos. Tentava livrar-se com seu braço colado no rosto franzido. O animal insistia em sua perseguição. “Será?”, balbuciou ele, seguindo seus os indecisos. O professor agora tinha o antídoto. Seria por isso que aquele morcego o perseguia? Era seu pensamento enquanto caminhava a os rápidos, fugindo do louco animal.

A cena se repetia aos seus olhos: a noite solitária, as ruas em pedregulhos rústicos, galhos de árvores mexendo-se sem cor ao toque dos ventos e um morcego sobrevoando sua cabeça. O

animal continuava com seus voos desorganizados, seguindo-o.

O homem estava quase parando para espantá-lo ou agredi-lo, se fosse o caso —

não desejava usar sua mente. Seus os eram nervosos.

Então ele dobrou numa rua mais estreita; era uma viela.

Continuou o caminho, achando que encontraria alguma agem. “Agora essa”, sussurrou. Parou ali, dando de cara com algumas casas à sua frente, pegou seu artefato no bolso e acendeu, dando algumas baforadas demoradas, tentando acalmar-se. Era a única coisa que o fazia relaxar — seu cachimbo. Estava respirando com dificuldade — ofegante. O

morcego também manteve-se sobrevoando loucamente por cima de sua cabeça por algum tempo.

Agora era uma rua estreita e sem saída, e um morcego misterioso sobrevoando a área.

De repente, algum morador dali acendeu a luz do quarto.

A claridade tomou quase a rua inteira, de tão estreita e curta que era. O professor deu mais alguns tragos demorados no seu cachimbo de cabo longo e torto e olhou na direção da casa, esquecendo-se do animal insistente. Quando voltou a si, o morcego já havia sumido dali devido à claridade intensa da luz 321

e o Morcego da Pensilvânia vinda do cômodo, ficando só ele e seu artefato em fumaça rala, quase apagado. Ele, então, dissipou a pouca brasa e guardou-o no bolso novamente, seguindo seu caminho. O céu agora havia ficado sujo por completo e o frio tomou o ambiente, mais severo com seus ventos cortantes. O professor novamente se encolheu em seu casaco e se apertou em seu corpo volumoso, arrumou o cabelo que caía sobre a testa para o lado, baixou a cabeça e seguiu adiante.

Já eram mais de nove horas da noite quando ele ouviu as badaladas insistentes vindas da catedral da comuna. Estava quase em frente a ela. O padre local costumava avisar aos moradores quando a hora do sono se aproximava — uma espécie de hábito milenar da igreja. Eram dois imensos sinos espessos de cor morta que soavam estridentemente num balanço harmonioso. Ele estava próximo e tapou os ouvidos com as mãos, tentando fugir daquele som agudo que o incomodava. Os ponteiros do relógio da torre marcavam exatamente quinze para as dez. No interior da igreja, quando o professor resolveu parar e desviar o olhar para aquelas imensas portas rústicas, altas, desenhadas numa cultura secular e escancaradas, viu o mesmo padre em sua batina negra de braços abertos, orando naquele glorioso altar sem que uma viva alma estivesse ali sentada ouvindo sua oração. Ele costumava fazer isso todas as noites antes de fechar as portas do templo. O reverendo era deveras velho — um senhor repleto de histórias góticas e misteriosas, como eu havia falado antes. E iniciava agora suas palavras olhando à sua frente o livro mais conhecido do Mundo, no qual, por uma questão de cegueira, faz com que muitas pessoas se escravizem guiadas por suas superstições, as quais o tempo nunca apaga. O professor ficou ali por alguns minutos, parado e observando algo com o qual ele nunca havia se preocupado em 322

Polly Lee

sua vida, e percebeu que, por trás daquele ancião de batas escuras e um chapéu curto e igualmente escuro na cabeça, uma imagem emblemática do Cordeiro

deitado e ensanguentado em martírio — era a arte em destaque. Aquilo o deixou extasiado.

Petrificado. E perguntou-se em sussurros: “Mas como pode um Rei ser rejeitado pelo próprio povo? Será esse o grande motivo dos judeus sofrerem tanto e arem por tantas torturas, naquele holocausto?” E ficou refletindo quando o padre de lá o observou com os braços para o alto, orando. Eles se fitaram por algum tempo e o professor saiu dali apressadamente, voltando aos aposentos do Sr. Mihai antes que aquele ancião viesse até ele e, quem sabe, convidasse-o para a próxima missa.

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e o Morcego da Pensilvânia

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CAPÍTULO VINTE E TRÊS

A PARTIDA PARA SIGHIÇOARA

a janela, quando os ponteiros do relógio da Srta.

DCí prian marcavam quinze para as dez da noite daquele país, ela percebeu, olhando de lá, os os rápidos do professor Diego afastando alguns arbustos ressecados do sol do dia. Ele se aproximava do Castelo. Afastava as folhagens das plantas mais baixas, tentando desviá-las para que elas não tombassem com seu rosto.

— Ainda acordada, Srta. Cíprian? — disse ele lá de baixo, tentando enxergá-la e tirando-a da distração.

Ela logo mudou o semblante e lhe acenou, dizendo:

— Sim. Estava preocupada com o senhor, professor!

— Agora já pode ir deitar se quiser! — falou deixando escapar um sorriso e entrou, fugindo do vento frio.

— Bonan nokton, instruisto! (Boa noite, professor!) —

disse o Sr. Mihai em seu idioma legítimo, sentado na sala com uma caneca de vinho na mão e um cachimbo de cabo longo e torto na outra, dando umas baforadas sob o aquecimento da lareira assim que o professor adentrou a sala.

— Bona vespero, amiko! (Boa noite, amigo!) — retrucou o professor.

325

e o Morcego da Pensilvânia

— Mi pensis, ke mi ne venus hodiaŭ, profesoro. (Pensei que não viria mais hoje, professor.)

— Mi devis solvi ion tre gravan, sed ĝi estas tute solvita.

(Tive que resolver algo muito importante, mas já está tudo resolvido.)

— Continua falando bem nossa língua — observou Mihai, deixando saltar um

riso amigável. — Um gole de vinho e algumas baforadas, como nos velhos tempos?

— Ando treinando sempre para não perder o jeito, amigo.

Um bom vinho e umas baforadas seriam o ideal nesse momento de tensão.

— Ok. Vou buscar uma caneca para o amigo. Ou quer uma daquelas latas mais antigas?

— Pode ser apenas uma caneca, para relembrar o ado

— falou o professor, descontraído.

Então Mihai, lá dentro, despejou o líquido enchendo o recipiente de alumínio e voltou, dizendo:

— Está aqui! Esse eu guardo há mais de quinze anos. Vejo que está com cara de quem encontrou o mais valioso tesouro de sua vida.

— Obrigado, amigo! Deve ser o melhor que tem. Estava mesmo precisando para relaxar. Realmente encontrei o que tanto procurava.

E logo acendeu seu artefato para compartilhar as baforadas com o amigo em conversas e risos longos e simpáticos. A noite, então, foi curta para os homens que muitos mistérios tinham em comum. Seus linguajares eram diferentes do normal — falavam a língua ensinada aos Iniciados de Voivoda.

E o dia surgiu em alta neblina.

326

Polly Lee

Estava de pé quando o relógio da parede da saleta marcava seis e meia da manhã em som estridente, acordando os demais.

O frio tomava o ambiente, a lareira era mantida sempre acesa, em chamas brandas e mudando de cor, tentando alcançar o teto.

O desjejum foi servido por Mihai e a espera pela carruagem foi sucinta lá fora. Os olhos do professor Diego estavam cansados da noite em claro. E logo apareceu, do nada, por entre a neblina densa, dois cavalos robustos e o cocheiro, guiando-os em gritos graves:

— Rô! Rô!

Os animais pararam relinchando e sacudindo suas orelhas e focinhos com rédeas grossas. A comuna ainda dormia em silêncio. Apenas alguns morcegos e corujas, ainda se despedindo da noite fria, voavam por ali, saltando por entre os galhos das árvores altas. As crianças e Cíprian estavam todas agasalhadas e sonolentas. O cocheiro, então, desceu e ajudou o professor Diego a subir a moça e os demais na charrete.

— Eu vou com vocês até lá, professor. — disse o Sr.

Mihai, postando-se entre eles.

— Vai? — perguntou, surpreso, o professor.

— É o que o amigo ouviu — disse, tomando o lugar do cocheiro que desceu da carruagem. — Levarei todos porque preciso ter um diálogo com a Sra. Scarlet e levá-los aonde será preciso ir. E claro, saborear uma deliciosa torta de morango com chantili, que só ela sabe preparar com chá de canela.

— Não iremos de trem, professor? — perguntou Cíprian, amassando o semblante.

— Não, não existe trem para lá.

— Não aguento mais os sacolejos dessas troças —

observou ela, aparentando desânimo.

327

e o Morcego da Pensilvânia

— De novo não. — disse Lana, que teve vários enjoos nas outras viagens.

— Aah, não! — falou Drágus. — Não quero mais ir de carruagem.

— Tenham paciência — observou Mihai, já segurando as rédeas —, é logo ali!

— Srta. Cíprian — disse o professor em tom de esclarecimento —, a Sighişoara que estamos indo não pertence aos “neurotipos”.

Ela, ainda sem entender suas palavras, fez um ar interrogativo. Então, Diego, tentando explicar-lhe mais detalhadamente e com euforia, completou:

— A senhorita, e as crianças, agora seguirão para o mais incrível dos lugares que poderiam presenciar em suas vidas. A misteriosa Sighişoara dos Iniciados, que fica por entre o Nevoeiro e o centro das três Comunas, que formam o famoso Triângulo Mágico da Transilvânia.

Cíprian continuava sem nada entender — assim como as crianças — quando o professor jogou as cartas na mesa, dizendo em palavras claras:

— Senhorita, crianças, saibam que Sighişoara dos Iniciados, a Cidade Real do Sr. V, fica do outro lado do Portal do nevoeiro que nos levará até lá, a uma velocidade não compreendida ainda pelos “neurotipos”. Entraremos numa outra realidade.

— Portal? — perguntou Cíprian com jeito assustado. —

Do que o professor está falando?

— Não se assuste, nem fique irada, porque é uma realidade. Do outro lado do Portal há uma Terra, onde a vida é totalmente diferente e cheia de mistérios. Agora se preparem para a viagem mais curta e rápida que já tiveram em suas vidas!

328

Polly Lee

As crianças nem vão perceber — falou, deixando escapar um riso misterioso. A viagem seria sumária, mas bastante mística. A carruagem estava preparada. O cocheiro se despediu dos demais e o Sr. Mihai se posicionou em seu lugar. Segurou as rédeas firme e gritou:

— Rá! Rá!

Deu duas sacolejadas e os cavalos com elegância relincharam, partindo em cavalgadas lentas pelas ruas de pedra misturadas à neblina forte. O professor se sentou próximo à Srta. Cíprian que ainda estava confusa e curiosa. “Ao chegarmos à Sighişoara, seguirei a casa da Sra. Scarlet apenas com Polly, a senhorita e os demais meninos podem seguir para Voivoda”, balbuciou ele aproximando-se dela. A moça assentiu, ainda perdida. “Preciso resolver umas coisas com ela, e depois, levarei Polly ao cofre no grande prédio, onde ocorre a Competição”, continuou o professor, sussurrando. Cíprian continuava assustada com as palavras dele. Ela não havia acreditado no que ele dissera. Para ela, era

tudo novo.

A carruagem, após sair da Comuna, seguiu uma boa distância com chão de terra seca, onde a poeira subia misturada ao Nevoeiro que logo se apresentou, volumoso e denso. E a grande bruma seguiu à frente da charrete assustando os cavalos, Cíprian e as crianças. Estavam atônitos. Nada mais viam além da fumaça esbranquiçada e um misterioso toque de mágica —

um som bem longe e suave, ruídos não entendidos pelos viajores, conversas diversas de pessoas invisíveis e um calor começaram a tomar a luxuosa carruagem, fazendo-os dentro dela, sentirem-se desconfortáveis. Mas a charrete continuava a seguir. E após alguns segundos, a fumaça foi desfazendo-se gradativamente, as vozes aumentando, os sons estranhos e 329

e o Morcego da Pensilvânia ficando mais nítidos aos seus ouvidos. E de repente, um lugar se mostrou aos olhos curiosos dos visitantes. A carruagem adentrou, misteriosamente, ao mais exuberante lugar, onde o sol reinava sem nenhuma nuvem no céu, nem frio no ar sereno e, claro, sem nenhuma neblina. Viam-se alguns pássaros enormes sobrevoarem aquele novo céu. Estavam em Sighişoara; lugar onde tudo é possível quando o pensamento é equilibrado na direção dos desejos. Uma agem que se fazia por entre aquele Nevoeiro, que separava, como havia dito, três Comunas distintas no mesmo lugar, mas que levava o mesmo nome daquela que fez do mais famoso “Dragão” sua Terra — a famosa e antiga Targus Mouros.

— Que lugar é esse? — perguntou Cíprian, assustada com o que via. — Onde estamos, professor? Não me lembro deste lugar em algum mapa romeno. E foi tão... tão mágica essa viagem.

E o frio ali fora devorado pelo calor permanente e uma magia maldosa.

— Para onde foi a neblina e o frio? — perguntou Lana, olhando para fora. E os outros fizeram a mesma pergunta assustados. Realmente o lugar que adentraram era magnífico aos olhos; cores nunca vistas e um clima não muito agradável. As crianças também ficaram curiosas e sem saber como se deu aquilo — de um lugar frio e escuro fez-se, aos seus olhos infantis, uma Terra clara e aquecida, de forma que o calor queimava intensamente suas peles. E uma paisagem esplêndida e de sol aberto surgia aos olhos curiosos dos viajores aos gritos do Sr. Mihai:

— Rô! Rô!

— Por Deus, o que é isso? — fez a Srta. Cíprian, abismada.

330

Polly Lee

— Sighişoara — repetiu o professor, eufórico —, um lugar mágico e cheio de aventuras. Mas ameaçada por mentes maldosas.

— Mas... onde é isso? — insistia ela, sem nada entender.

— Aqui não é a Cidade de Sighişoara, onde habitam os homens?

— Não — observou o professor —, aqui é a Sighişoara do Conde V; é um lugar além da realidade dos “neurotipos”. O Sr.

V usou o nome-primo pelo fato de ter nascido e se criado nela.

Foi uma homenagem à Comuna e ao Castelo de Bran.

— Isso é muito mágico, professor — dizia ela, estupefata.

As crianças, por ainda serem muito jovens, nada interrogaram, ando despercebidas a tudo. A não ser Lana, em relação à neve. Era como se apenas tivessem viajado à outra cidade qualquer em tempo curto. Naquele lugar havia de cara um grande jardim florido e amplo e algumas árvores baixas, plantadas entre as gramas ralas e amareladas do calor. Havia também alguns chafarizes soltando água límpida e contínua em uma espécie de pequenos lagos triangulares, e uma imagem de um imenso morcego de asas abertas, feito de bronze, seguro por um enorme ferro preto e espesso enfeitando o centro do

jardim; posto por trás do belo vergel, um prédio todo em cerâmica gótica de largura e tamanho similares a uma enorme pirâmide deitada na cor de gelo. Não apresentava nenhuma espécie de torre, o que não lhe conferia aparência de castelo algum, mostrando. Também, tinha o desenho de um enorme morcego no centro da arquitetura, todo em cor cinza com os olhos vermelhos e uma língua fina, comprida e avermelhada saindo de sua boca — era o grande símbolo Real. Havia também um muro separando a arquitetura, algo como um campo de força que 331

e o Morcego da Pensilvânia protegia o local emblemático e exuberante que estava ameaçado.

Várias crianças chegavam a toda hora em charretes de vários modelos e tamanhos, que saíam do Portal Mágico, todas sorridentes e seguindo em direção do prédio raso e triangular, acompanhadas por algum cicerone — pareciam alunos em busca da escola mais desejada da cidade. Pássaros estranhos voavam pelo ar quente em seus voos longos e baixos, soavam cânticos melodiosos, mas em tom triste, devido ao clima escaldante.

Flores eram vistas em cores diversas, enfeitando a paisagem natural. No céu daquele lugar, poucas nuvens flocadas e esbranquiçadas pairavam sob um azul nítido, alguns animais híbridos, que se pareciam com lobos, gatos, raposas, aves diversas e outros mais que não irei detalhar agora, mas ao decorrer da história, aparecerão em seus aspectos mais espantosos — eram seres que povoavam aquele Mundo, misturados aos demais.

A Srta. Cíprian e as crianças desceram com suas maletas um tanto curiosos e espantados, indo juntar-se aos outros, que também seguiam na direção daquele esplendido prédio. O

professor, Polly e o Sr. Mihai se mantiveram no interior da carroça — iriam ao casebre mais estranho que Sighişoara mostrava existir. Mihai manteve a charrete em movimento lento, enquanto os demais meninos se despediam de Polly e do professor. Então Diego mostrou à menina, apontando, os compartimentos do prédio e o que significavam. E seguiram nas imediações aos puxões nas correias dos cavalos do Sr. Mihai, fazendo os robustos e peludos animais relincharem em suas cavalgadas lentas. Alguns lobos de olhos azulados e domesticados, com seus guias, caminhavam em eios rotineiros. A música, aos ouvidos deles, era num tom gótico e 332

Polly Lee

suave que tomava toda a área externa vinda das laterais do prédio triangular.

— Aonde iremos, professor? — perguntou Polly. — Por que não descemos juntos com os outros?

— Ainda não — disse ele reflexivo. — Precisamos, antes, ir a um local onde descansaremos por algumas horas, e depois iremos fazer o que devemos fazer.

A carruagem seguiu para um uma região sombria, que ficava próximo ao Norte dali — iriam a um casebre bem antigo, construído com pedras rústicas e disformes de telhado em material não compreendido, uma chaminé de tijolos crus e rodeado de árvores bem arborizadas e altas. O sol aquecia em seus raios

brandos e o céu era aberto, sem que se visse uma nuvem solta ou flocos de neve naquelas imediações. Borboletas de diversas cores planavam pelo caminho que seguiam, arrodeando o casebre e deixando-o mais colorido. A charrete continuava seguindo o caminho estreito de barro. aram por um riacho bem raso, onde se via a areia branca no fundo dele.

A carroça seguiu.

Lá, mais adiante, uma imensa floresta que beirava o Riacho Claro, era robusta e rica em diversidade de vidas.

— É ali! — disse Mihai, apontando.

Como eu havia falado, o caminho era estreito. Os gritos do Sr. Mihai soaram aos ouvidos dos cavalos, que logo o obedeceram, desacelerando a charrete. Pararam em frente ao local silencioso, onde uma chaminé saía do telhado cuspindo fumaça a toda hora. Na porta, havia dois lobos de pelo branco e olhos cor de mel, parados, de guarda — estavam soltos e atentos. Mihai desceu, dirigindo-se à porta da charrete, abriu e convidou os visitantes a desembarcarem.

333

e o Morcego da Pensilvânia

— São lobos. — observou Polly com ar de medo.

— Sim, são — disse Mihai, tentando aquietar sua tensão.

— Não tenha medo, Srta. Polly, eles reconhecem os amigos de longe.

— Amigos? — perguntou a menina, arregalando os olhos.

— Não seremos atacados?

— Se vocês se mantiverem quietos — retrucou Mihai —, eles nada farão, são obedientes e mansos. Os animais daqui de Sighişoara não são como os que vivem com os “neurotipos”, Polly. Aqui nós os tratamos com amor e respeito.

— Então podemos confiar? — perguntou ela, ainda assustada.

Ele assentiu em silêncio e observou:

— Como eu já disse, não se amedrontem com eles, são amigos de quem os

amam. E não somos “neurotipos”, pertencemos a uma classe privilegiada aqui neste lugar. Apesar de alguns não serem legítimos.

Quanto a isso, ele se referia ao professor, mas com muito respeito. E diante do limiar da carruagem, o Sr. Mihai ajudou a menina a descer, ainda assustada com os dois lobos atentos aos movimentos dos visitantes.

Então, um dos enormes animais entrou porta adentro de súbito, como se quisesse avisar algo ao dono da casa, após ter tido uma conversa fugaz com o outro lobo. O outro permaneceu ali, de guarda, postando-se no centro da abertura. Os visitantes esperaram o retorno do animal, que logo voltou acompanhado de uma senhora de semblante enrugado, pele avermelhada, olhos fundos e em tom de mel, nariz afilado, cabelos grisalhos presos a uma espécie de capuz branco ligado a uma longa capa preta —

esta cobria todo seu corpo redondo, deixando apenas a se ver um par de sapatos de bico fino e virados para cima. Em sua mão 334

Polly Lee

direita um livro e, por entre seus lábios dobrados, um cachimbo preto de cabo longo e curvado em fumaças; tragava-o descontraidamente.

— Bonan matenon, fraŭlino Scarlet! (Bom dia, Sra.

Scarlet!) — disse Mihai, adiantando-se.

Os dois lobos se uniram novamente próximos à Scarlet num ato de proteção à velha senhora.

— Bonan matenon, sinjoro Mihai! (Bom dia, Sr. Mihai!)

— retribuiu ela, em voz espremida. — Kio kondukas vin al ĉi tiu humila domo sub tiu klara suno? (O que o traz a essa humilde casa debaixo desse sol claro?) Ele, então, aproximou-se acariciando os animais, que retribuíram deixando suas línguas earem em sua mão grossa com unhas imensas. “O que estão falando, professor?”, sussurrou Polly para ele. “O dialeto do Reino”, retrucou ele, um tanto baixo, e continuou, “mais tarde você e os demais Iniciados vão ter que aprender, faz parte da Competição e da vida em Voivoda”.

— Será que é quem eu estou pensando, ou estou completamente enganada? — observou a velha, tentando enxergar o professor e a menina de semblante oriental.

— Sim. Venham! Aproximem-se! — disse Mihai para o professor Diego e a menina. — A senhora está diante do mais respeitado professor da Competição, Sra. Scarlet. Diego Dalca de Síbiu, e Polly Lee, uma das iniciadas.

— Bom dia, senhora! — disse o professor, baixando a cabeça em reverência.

— A que devo saudosa visita, amigo Mihai? — perguntou a velha.

335

e o Morcego da Pensilvânia

— Não poderia deixar de vir à sua modesta casa ao pisar em Sighişoara, Sra. Scarlet. Tenho algo importante a tratar por aqui.

— Mas eu não vejo o Robert com vocês. Onde ele está?

— perguntou ela, ando os olhos pela charrete.

— Ele se aposentou, senhora — disse Mihai. — E não sei se volta para cá por esses dias.

— E de quem se trata a Iniciada?

— Quero apresenta-la, como já lhe disse — falou Mihai, exaltando-se —, Polly Lee, a herdeira do Conde V. A Srta. Polly foi trazida pelo Sr. Robert até certo ponto do caminho e entregue ao professor Diego. Neste ano teremos o que tanto Sighişoara vem esperando, e voltará ao que era antigamente.

— Que os deuses te ouçam, Sr. Mihai! — falou a velha em movimentos de gratidão. — Porque Sighişoara está à beira do abismo. Tudo bem, senhorita, Polly? Então estou diante da herdeira do “filho do dragão!?” Seja bem-vinda, minha criança!

Que os deuses te protejam.

E fez uma reverência à menina que nada entendia.

— Os demais Iniciados — continuou Mihai — que trouxemos e que pretendem alcançar o respeito do “filho do dragão” ficaram no Prédio Real com a Srta. Cíprian, a mais nova psicóloga da Competição.

— Venham! — falou Scarlet com sua voz espremida e aguda. — Venham todos para dentro!

Polly estava ainda retraída por causa dos animais, que se pareciam ferozes.

— O quê? — disse Scarlet, percebendo o medo da menina diante dos lobos. — Não tenha medo.

E de um por um, vendo os animais ali, petrificados, e observando-os, eles se aproximaram da porta em estado 336

Polly Lee

deplorável. Mas quando Polly se aproximou da anciã com os olhos observadores, a mulher disse:

— Vejo algo na senhorita que me agrada a alma.

Até os dois animais se sentaram, percebendo de quem se tratava aquela criança. Parecia que eles haviam entendido tamanha importância da visita infantil.

— Do que fala, Sra. Scarlet? — perguntou Mihai.

— Sinto nela a força do “filho do dragão” e algo que ainda não compreendo. Venham, entrem! A casa é pequena, mas há lugar sobrando para todos. E com essa menina por aqui, temos agora que ter mais cautela quando estivermos ao ar livre. Os olhos observadores dos Moldavos vão tentar persegui-la a todo custo pelo que estou sabendo. Com certeza eles já devem estar a par de sua presença nessas terras, e se não sabem ainda, logo ficarão sabendo.

Os visitantes adentraram a sala. Nisso, os lobos tentaram segui-los, mas foram barrados pela Sra. Scarlet, que disse em tom amável e sussurrado:

— Nur la vizitantoj, miaj karaj. (Apenas os visitantes, meus queridos).

— Neniu danĝero, sinjorino? (Não tem perigo, minha senhora?) — sussurrou um dos animais em relação ao professor Diego.

— Estas bone, restu certa. (Está tudo bem, fiquem quietos).

Eles, então, se aquietaram ali na entrada. A porta foi fechada; era baixa e arredondada. Por dentro, o casebre cheirava a erva cidreira e fumo de rolo. As paredes eram repletas de cabeças de animais empalhados e alguns quadros de pessoas antigas; algumas aranhas foram vistas por Polly, dependuradas 337

e o Morcego da Pensilvânia em suas teias, todas quietas, como se descansassem após suas caçadas a insetos pertinentes. No chão de madeira, um enorme tapete em pelo escuro.

— São minhas amigas — disse a velha, percebendo a estranheza da menina ao fitar as aranhas e suas teias tecidas e fiadas.

A lareira não era acesa já fazia algum tempo. Algumas cadeiras de madeira de lona no assento com pinturas de gatos pretos e um sofá vermelho de dois lugares com lona encontravam-se encostados na parede. Uma cristaleira de madeira ficava perto da lareira de tijolos crus, pequena e com portas de vidro, contendo em suas prateleiras alguns duendes, mágicos, bruxinhas, gatos, lobos, morcego e um pequeno caldeirão na cor preta junto a uma cabeça de caveira acinzentada, que olhava para fora como se estivesse rindo, todos em cera. Na parte de baixo do móvel, alguns jarros de cerâmica e de barro de tamanhos diferentes, e a parte superior da cristaleira era em forma de telhado. Havia também, por trás da porta, uma vassoura de palha com cabo de madeira preta, jogada, e as palhas na parte inferior dela eram presas por duas fitas amarelas. Polly observava tudo curiosamente e assustada

— nunca havia visto tanta coisa estranha aos seus olhos. Havia também uma mesa quadrada de madeira escura e cadeiras todas na mesma cor, com uma teia de aranha desenhada em seus encostos e, por cima dos assentos, o mesmo desenho — era realmente uma casa assustadora. Percebendo a curiosidade e estranheza de Polly, a Sra. Scarlet disse, sorrindo e soltando em cima da mesa um livro de capa preta, na qual havia uma aranha desenhada por entre teias espichadas: 338

Polly Lee

— Para a sorte de vocês, eu fiz hoje cedo uma torta de morangos com chantili bem deliciosa. Também fiz suco de abóbora. Esperem aqui que vou buscar!

— Era o que eu esperava — observou Mihai, com ar sorridente e segurando sua barriga volumosa.

Eles se sentaram no sofá vermelho-escuro que ficava encostado numa das paredes sujas. Polly logo se lembrou de sua casa devido à poltrona. Ela espiava tudo minuciosamente. O

professor Diego também estava muito curioso com aquela casa, porque, apesar de ter participado de algumas competições de Sighişoara, não havia conhecido nada ainda, devido a Sra.

Scarlet ter se aposentado antes. Mihai ficou de pé, olhando pela janela curta o ambiente lá fora — estava preocupado. Agora eles teriam ali, em Sighişoara, uma personagem ímpar e que poderia mudar todo o arsenal daquele país encoberto por uma maldade sem limite.

Após alguns minutos, a Sra. Scarlet estava de volta com uma bandeja contendo potes e colheres, repletos de torta de morango. O olhar infantil de Polly quase deitou em cima do doce quando o viu; possuía uma aparência que despertava desejo. Lembrou-se imediatamente de sua casa, dos momentos em que sua mãe servia seu lanche no prato.

— Espere aqui que já trago o suco, Polly! — disse ela. —

E os dois, o que vão querer?

— Eu vou provar do suco, Sra. Scarlet — respondeu Mihai com cara de felicidade, como uma criança que há tempos não via seu lanche preferido.

— Você não tem jeito — retrucou a velha, sorridente —, parece até criança. E o professor Diego, o que vai tomar?

— Pode ser um vinho, senhora. Pode me servir?

339

e o Morcego da Pensilvânia Ela assentiu e se foi satisfeita. O professor se levantou e começou a observar cada detalhe da cristaleira, curioso.

Enquanto isso, Polly se deliciava com a torta, lambuzando-se e derramando pedacinhos por cima do sofá e de sua roupa. Do seu bolso, Killer, que estava quieto há muito, deu o ar da graça por ouvir falar e sentir o cheiro da torta.

Mexia-se agoniado e faminto. Polly logo percebeu sua inquietação e teve medo de sua reação. Mas ela, na distração da conversa dos dois homens, deixou cair em seu bolso um pedaço considerável da torta, fazendo com que o Sr. Killer se deliciasse do doce como uma criança faminta. Ele — podem acreditar — ficou todo lambuzado, já que a torta era bem mole. Seu pelo se misturava ao doce e sua língua se movimentava a toda hora.

— Aqui estão — disse Scarlet, voltando com outra bandeja — os sucos que preparei! As abóboras foram colhidas ontem, mas ainda estão frescas. Tomem e comam tudo, porque tem muito mais lá dentro. Está aqui, Sr. Mihai, o seu suco!

Eles agradeceram. Eram copos com desenhos de aranhas e gatos, na cor preta. Depois foi à cristaleira e pegou uma garrafa pequena e três canecas grandes e, retirando a rolha de uma garrafa meio gorda, despejou o vinho, enchendo cada uma delas e entregando aos dois homens. O Sr. Mihai se deliciava com o doce feito menino. Engoliu toda torta numa só abertura de boca, despejando tudo dentro da garganta. Polly olhava para ele, espantada com o que via, mas Mihai não estava nem aí para o que eles iriam dizer — parecia mesmo uma criança diante de seu mais preferido doce.

— Obrigado, Sra. Scarlet! — disse Mihai com semblante de felicidade.

— Não há de que, amigo — retrucou ela, sorrindo. — Sei que adora meu doce.

340

Polly Lee

Naquela

casa

de

aparência

pequena

havia

um

compartimento escondido, de onde tirariam artefatos necessários aos Iniciados — fora a conversa travada entre o Sr. Mihai, o professor Diego e a velha Scarlet, enquanto Polly se deliciava com o lanche saboroso junto ao seu amiguinho

Killer, dentro do bolso.

— Assim que terminarem todo o lanche — observou Scarlet — e descansarem por algumas horas, iremos todos à sala dos artefatos.

— E como anda Sighişoara por esses tempos, Sra. Scarlet?

— falou Mihai. — Soube que está sucumbindo.

— Desde a última temporada, com a perda do Conde V e sua equipe de Iniciados, que Sighişoara não é mais a mesma —

disse ela, mudando o tom de sua voz e deixando um silêncio no ar. Mihai e o professor ouviam as palavras da anciã, atentos.

Então, ela continuou: — A família Moldavo conseguiu reverter o quadro e Sighişoara agora se tornou um caos. Eles pretendem prolongar a situação por muito tempo caso vençam novamente esse ano. Espero que tenhamos uma boa equipe de Iniciados para a Competição. E acho que encontramos uma parceira forte.

— e eufórica, olhou para Polly, que bebia o suco alaranjado e se lambuzava.

— Do que a senhora está falando? — perguntou Mihai.

— Não tenho certeza — observou ela —, mas aquela criança ali, que come tranquila, possui a energia rara que poderá, bem equilibrada e treinada, vencer o lado negro da Competição, que vem deixando Sighişoara sem chuva há muito tempo. A água aqui está ficando escassa, senhores. Esse é o resultado da maldade dos Moldavos, com suas mentes 341

e o Morcego da Pensilvânia desequilibradas e egoístas de seres detestáveis. Os riachos aqui perto não são mais tão volumosos como antes.

— Eu percebi, Sra. Scarlet — observou Mihai.

Os dedos das mãos da velha Scarlet eram repletos de anéis com cabeças de animais dos mais variados que se possa imaginar.

— O Sr. Diego estava lá na última temporada? —

perguntou a anciã.

— Sim. Mas eu não ava de um simples assistente de um dos professores do Conde. Conseguimos vencer algumas provas e perdemos a mais importante, na qual fomos um fracasso. Como disse a senhora, faltou um líder na equipe dos Iniciados do Conde.

— O amigo está falando do Bastão mágico? — perguntou ela.

Ele assentiu. E ela continuou:

— É... realmente é uma competição muito difícil. Nem todos conseguem. Ali é a mais perfeita prova de que precisamos mesmo de equilíbrios em nossas vidas. Esse é o verdadeiro sentido do artefato. Eu estava lá... eu estava lá, quando os Moldavos venceram essa modalidade. Mostraram-se mais equilibrados, mas com uma diferença: o mal é o seu objetivo.

Foi realmente um momento de aflição para toda a equipe.

— Robert mandou-lhe um abraço forte — disse o professor —, e deixou bem claro que este ano ele não estará aqui para torcer a favor de nossa equipe.

O semblante da Sra. Scarlet se encheu de desconfiança esperançosa e mistério ao

ouvir aquelas palavras do professor sobre Robert, como se ela soubesse de algo que eles não estavam a par.

342

Polly Lee

— Igual a Robert ainda não vi aqui em toda Sighişoara —

falou ela, deixando escapar um ar de satisfação. — Que pena que já se aposentou.

— Sim, claro. É mesmo uma pena — enfatizou o professor.

— E a Srta. Cíprian — perguntou ela, olhando para eles

—, já teve a entrevista com a Sra. Elisabeta Florea?

— Ainda não — retrucou o professor —, chegamos hoje em Sighişoara. Mas estou certo de que ela já está marcando a tal entrevista.

— A moça vai precisar de orientação, não acha, Sr.

Diego? O senhor bem conhece a senhora Elisabeta, já que participou como ajudante da Competição — observou ela.

Ele assentiu.

— É mesmo uma carrasca — disse Mihai. — Que os deuses me livrem daquela víbora! Às vezes penso que ela está do lado dos Moldavos.

E soltou uma gargalhada.

— Não se preocupem com a Srta. Cíprian — disse a anciã

—, conversaremos depois com ela sobre a carrasca e como Cíprian deverá se comportar. Sua entrevista ainda levará umas duas semanas para se realizar. Depois tragam ela aqui em minha casa, quero ter uma conversa próxima.

— Professor — gritou Polly —, já terminei o lanche.

Estava toda lambuzada dos pés à cabeça. Eles riram ao ver a cena infantil e notaram algo estranho na proximidade do bolso do seu casaco.

— Agora — disse Scarlet levantando-se e aproximando-se de Polly — quero você no lavável para se limpar. Vamos!

— Ajudarei a senhora — disse o professor Diego.

343

e o Morcego da Pensilvânia

— Não precisa, amigo. Deixe que eu cuide dela. Robert os espera lá na biblioteca.

— Como disse? — perguntou o professor, surpreso. —

Robert aqui?

Aquele nome no ambiente soou como motivo de felicidade para eles.

— O Sr. Robert está aqui? — perguntou Polly, arregalando os olhos.

A velha assentiu.

— Como ele chegou aqui antes de nós? — perguntou Diego, olhando para Mihai. — Você já sabia, amigo?

— Acho que ainda não conhece Robert, Professor —

observou Mihai. — Eu não sabia, mas desconfiava de que ele estaria aqui. Ele não perderia essa Competição por nada em sua vida. Até porque temos, do nosso lado, essa pérola que irá fazer a diferença.

— Quero vê-lo! — gritou Polly eufórica dirigindo-se à sala de livros, afastandose da senhora. — Quero vê-lo! Robert!

Sr. Robert!

E saiu às pressas na direção de uma das portas daquele casebre velho, estampando júbilo.

— Criança! — gritou Scarlet, tentando pará-la. — Polly, espere!

Alguma coisa não estava certa, ou havia algo de curioso ali. Mas Polly o considerava como um pai, e não pararia por nada. Algo de estranho estava acontecendo para que a Sra.

Scarlet não quisesse que a menina fosse ao encontro dele. “Ela não deveria ter ido vê-lo, ainda não era a hora” balbuciou a velha para os homens.

— O que está havendo, Sra. Scarlet? — perguntou o professor.

344

Polly Lee

— Então não sabe ainda, professor? — fez Mihai. —

Aqui, Robert não é mais aquele a quem ela conheceu na América.

— Aos deuses! — observou o professor, preocupado.

E no quarto, o reencontro inusitado entre Robert e Polly foi motivo de muito espanto e desconfiança para ela. A porta foi escancarada de súbito pela menina, e lá dentro sua visão encontrou um ser que se colocava de costas para a porta, sentado numa cadeira de madeira, fumando seu cachimbo de cabo curto de barro e olhando para o horizonte pela janela aberta.

— Robert? — gritou Polly entusiasmada, já dentro do quarto.

O ser não se mexeu. Continuou intacto com seu cachimbo por entre os lábios grossos vendo a fumaça subir por entre seus olhos franzidos. Ele não esperava pela chegada da menina.

Apresentaria-se para ela numa outra oportunidade, de forma mais conveniente. O ser que Polly observava tinha uma cabeça quase humana — uma mistura, por entre seu pescoço e seu rosto, alguns pelos ralos acinzentados; apresentava um par de orelhas agudas em sua ponta superior, similares às de morcego, com pelos também acinzentados. Tinha duas pernas normais, mas seus braços e mãos estavam também repletos de pelos da mesma cor gasta, e sua cabeça era desproporcional ao corpo.

— Onde está Robert? — perguntou, aflita, vendo aquele ser estranho no quarto. Seu coração acelerava, sentia certo medo do que via. Pensou, por alguns minutos, que Robert havia sido engolido por aquele ser estranho — coisa de criança. Mas antes de ela sair dali correndo, ele se virou vagarosamente, ainda com o cachimbo preso aos lábios em baforadas fumacentas, deixando 345

e o Morcego da Pensilvânia à mostra dois afiados dentes saindo da parte superior de sua boca. Polly assustou-se ao ver o ser híbrido virar-se e quase caiu para trás. Ele então perguntou em voz familiar:

— Como vai, Srta. Polly Lee?

— Robert?!

346

Polly Lee

Sumário

PREFÁCIO 9

CAPÍTULO UM 11

A INTRUSA 11

31

CAPÍTULO DOIS 31

UM SÁBADO DIFERENTE 31

43

CAPÍTULO TRÊS 43

UM GATO SE AFOGANDO 43

73

CAPÍTULO QUATRO 73

O ESTRANHO VISITANTE 73

89

CAPÍTULO CINCO 89

A LEITURA DA CARTA 89

347

e o Morcego da Pensilvânia

E DO CONTRATO 89

113

CAPÍTULO SEIS 113

A RESPOSTA DE Robert 113

A MENINA PERDIDA 133

EM LANCASTER 133

149

CAPÍTULO OITO 149

A NOVA ESTAÇÃO 149

165

CAPÍTULO NOVE 165

O NAVIO E DOIS NOVOS INICIADOS 165

O SUSTO 177

189

CAPÍTULO ONZE 189

O ENCONTRO 189

O PROFESSOR Diego Dalca 199

E A NOVA DESPEDIDA 199

209

348

Polly Lee

CAPÍTULO TREZE 209

AS GARGALHADAS NO TREM 209

GRAZ E UM INICIADO DIVERTIDO 219

233

CAPÍTULO QUINZE 233

UMA CONVERSA FILOSÓFICA 233

247

CAPÍTULO DEZESSEIS 247

A CHEGADA TRIUFANTE 247

A BUCURESTI NORD 247

255

CAPÍTULO DEZESSETE 255

UMA PARADA 255

E UM OCORRIDO CURIOSO 255

265

CAPÍTULO DEZOITO 265

ELES CHEGAM 265

À COMUNA DE BRAN 265

279

349

e o Morcego da Pensilvânia

CAPÍTULO DEZENOVE 279

O CASTELO DE BRAN E O Sr. Mihai 279

291

CAPÍTULO VINTE 291

O BILHETE DO PROFESSOR Dalca 291

305

CAPÍTULO VINTE E UM 305

O MAQUINISTA 305

E A SURPRESA DESAGRADÁVEL 305

O ENTERRO 315

E A DECEPÇÃO DE Diego 315

325

CAPÍTULO VINTE E TRÊS 325

A PARTIDA PARA SIGHIÇOARA 325

350

Polly Lee

351

e o Morcego da Pensilvânia

352