JE SUIS TRANS O ano mal tinha começado e o mundo já estava solidário aos ses após o atendado ao jornal satírico Charlie Hebdo. Entretanto, não podemos dizer que a comoção foi unânime, vários segmentos dos movimentos sociais que até então eram satirizados pela revista, encamparam uma contrapartida a esta “solidariedade”, montando uma bela campanha de memória às vítimas do sistema patriarcal, conservador e capitalista. Nomes como Amarildo e Cláudia da Silva foram ressuscitados pelos ativistas. Além das vítimas do sistema militar brasileiro, da herança colonial, das desigualdades sociais, do machismo, do racismo, da homofobia, temos uma parcela da sociedade que é vítima de uma atrocidade histórica de o aos seus direitos fundamentais a quem dedico este texto. Refiro-me às pessoas trans, aquelas que, em determinado momento de suas vidas, assumem uma identidade de gênero diferente daquela designada no momento de nascimento. Dentre as letras LGBT, todas as orientações, expressões e identidades sexuais e de gênero são vítimas das violências da sociedade patriarcal-heteronormativa. Contudo, as pessoas trans são aquelas que mais sofrem com o modelo social, pois ao estabelecer sua nova identidade, não costuma “homogeneizar-se” às pessoas cis¹. Se um gay ou uma lésbica for ao supermercado ou ao posto de saúde e não mencionar a sua orientação sexual, provavelmente ninguém se intrometerá na sua intimidade, já no caso de uma mulher trans, por exemplo, a todo o momento ela será alvo de especulação e humilhação de pessoas preconceituosas e intolerantes. Ser trans é uma resistência diária. Em 29 de Janeiro celebra-se o dia da visibilidade trans, data importante para discutirmos o fator principal de toda exclusão de transgêneros. A luta pela visibilidade pode soar estranha às pessoas que não vivenciam a realidade de uma vida marginal, ou seja, a necessidade de lutar pela inclusão nos espaços convencionais da vida contemporânea. Geralmente, a maioria das travestis é associada diretamente com o oficio da prostituição, ao universo de casas noturnas, a hiperssexualização e a promiscuidade que os veículos de comunicação às atribuem como de sua designação natural. O mais grave é que este quadro simbólico se replica na realidade, uma vez que as travestis são constantemente vítimas de humilhações em espaços como escolas, universidades, mercado de trabalho e etc. Quantas vezes em um hospital você foi atendido por uma médica trans? Ou se lembra de quando foi a última vez que procurou uma representação legal e sua advogada era uma travesti? Quando falamos de transgêneros é preciso ter em mente que não estamos nos referindo apenas a travestis femininos, mas também aos homens trans, as mulheres trans e a todas as identidades de gênero dentre os polos masculino e feminino, os denominados transexuais não-binários. Como exemplo de inibilidade dos direitos básicos que as pessoas trans vivem, cito o caso de um trans homem. No livro “Viagem Solitária” de João W. Nery, o autor que é considerado o primeiro transhomem do Brasil, conta a própria história e relata como teve de abandonar o diploma de psicologia por não poder regulamentar seu
nome social em outro documento, tendo então que optar pelo trabalho braçal mesmo com formação acadêmica. Existem tragédias que acontecem diariamente em todo o mundo e que resistem cotidianamente. Não é preciso ir longe para se deparar com tragédias para solidarizar-se. O Brasil lidera o ranking de violência homofóbica, e é também o país que registra mais morte de travestis e transexuais no mundo. Embora a constituição nacional defina o Brasil como um estado laico, a influência do fundamentalismo religioso impede importantes avanços na conquista dos direitos LGBTs, sobretudo no cenário político. É importante ressaltar que a luta dos movimentos LGBTs, com destaque ao movimento trans, é garantir o o às políticas públicas, aos direitos civis e a uma vida como de qualquer outro cidadão. Esta é uma luta que precisa de apoio. Em Janeiro de 2004, 27 pessoas trans expam no Congresso Nacional a campanha “Travesti e Respeito, já está na hora dos dois serem vistos juntos: em casa, na boate, na escola, no trabalho, na vida” e até hoje esta luta está longe de triunfar. Não temos representante na esfera política nacional, nem estadual que seja trans, como não temos abertura para essas pessoas em muitos outros espaços. No Brasil morreram mais travestis em 2014 do que houve inscrições de pessoas com nome social no ENEM do mesmo ano. Estima-se que 90% das travestis ganham a vida com a prostituição e nenhuma estimativa de quantas fazem por opção. Estas brasileiras e brasileiros estão mais próximas do que você pode imaginar e precisam da sua solidariedade. Não é preciso ser negro para lutar contra o racismo, não é só papel da mulher lutar contra o machismo, também não precisa ser trans para lutar contra a transfobia.
NOTA DE RODAPÉ 1 – Pessoas cis: são as pessoas que se identificam com o gênero que lhe designaram no nascimento. Pessoas não trans.