ISSN 1516-9162
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REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE EXPEDIENTE Publicação Interna n. 41-42, jul. 2011/jun. 2012
ISSN 1516-9162
Título deste número: Psicanálise: invenção e intervenção Editores: Maria Ângela Bulhões e Sandra Djambolakdjan Torossian Comissão Editorial: Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Gláucia Escalier Braga, Maria Ângela Bulhões, Marisa Terezinha Garcia de Oliveira, Otávio Augusto W. Nunes, Rosana de Souza Coelho e Sandra Djambolskdjan Torossian. Colaboradores deste número: Álvaro B. Olmedo, Comissão de Aperiódicos, Edson Sousa, Isadora Braga Seganfredo e Maria Lúcia Stein Editoração: Jaqueline M. Nascente Consultoria linguística: Dino del Pino Capa: Clóvis Borba Linha Editorial: A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da venda avulsa, a Revista é distribuída a s e membros da APPOA e em permuta e/ou doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.
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ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICADE PORTO ALEGRE Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS Fone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922 E-mail:
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Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação Psicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Semestral ISSN 1516-9162 1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre CDU 159.964.2(05) CDD 616.891.7 Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837 Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/) Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br Impressa em maio 2013. Tiragem 500 exemplares.
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UWOıTKQ EDITORIAL .............................. 07 TEXTOS
As fórmulas da sexuação e a psicanálise em extensão ................. 09 The sexualization formulas and psychoanalysis in extension
Jaime Alberto Betts O colonialismo .......................... 22 The colonialism
Hugo D. Ruda Psicanálise implicada: vicissitudes das práticas clinicopolíticas ........... 29 Implicated psychoanalysis: vicissitudes of clinical political practices
Miriam Debieux Rosa Saber e trabalho na vida secreta das palavras ....................... 41 Knowledge and work in the secret life of words
ardo Bonifácio Gomes Júnior Daisy Moreira Cunha Yves Schwartz Entre conversas e descobertas: dispositivos de intervenção diante das urgências de uma escola de São Paulo ....................... 54 Amidst conversations and discoveries: intervention strategies vis-à-vis the urgencies of a school in São Paulo
Oficinas em saúde mental: costuras entre o real, simbólico e imaginário ..................... 86 Workshops in mental health: seams between real, symbolic and imaginary
Andréa M. C. Guerra Entre .................................................. 101 Between
Simone Moschen SÓ. SÓ Uma experiência de inscrição, de sustentação de um devir, no ato de trilhar corda numa manhã na Casa dos Cata-Ventos .................... 111 An experience of inscription, for a becoming, in the act of jump rope in a Casa dos Cata-Ventos morning
Renata Maria Conte de Almeida Construções da clínica em um CAPS .................................... 118 Clinical construtions in a CAPS
Ester Luiza Trevisan A histerização do discurso na enfermaria psiquiátrica .............. 128 The hysterization of the speach at the psychiatric nursery
Luciane Loss Jardim
Ana Paula Musatti Braga Viviani S. C. Catroli Miriam Debieux Rosa
Com a palavra, os analistas: a psicanálise nos CAPS .................. 139
Psicanálise e o SUS: uma experiência em saúde pública ............................. 71
Volnei Antonio Dassoler
Now with the speech, the analysts: psychoanalysis in CAPS
Psychoanalysis and the SUS an experience in public health
Quando a escuta se faz morada ................................... 153
Sandra Luiza de Souza Alencar
When listening becomes adress
Lívia Zanchet
Intervenções clínicas em contextos de RECORDAR, REPETIR, exclusão: reassentamento, ELABORAR um lugar a construir ........................ 164 Psicanálise e ideologia ................... 216 Clinical interventions in the contexts of exclusion: resettlement: a place to build
Janete Nunes Soares Luciane Susin Marisa Batista Warpechowski
Psychoanalysis and ideology
Abrão Slavutzky Ernildo Stein Hélio Pellegrino
Q"swg"tgvqtpc"pc"enîpkec"fc" VARIAÇÕES atenção primária à saúde? ............ 173 Sobre o fazer clínico diante What returns in clinic of primary health care? dos distúrbios de linguagem: Eliana Mello o tempo e as condições para a enunciação ...................................... 236 A violência nossa de cada dia: On the “clinical act” on language disorders: o racismo à brasileira ...................... 183 the time and the conditions for the enunciation Our daily violence: racism in a brazillian way Sonia Luiza Dalpiaz Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi O superego da criança e a crueldade Poder e violência no na escola .......................................... 249 discurso capitalista ......................... 194 The superego of the child and Power and violence in the capitalist discourse
Rosana de Souza Coelho Políticas reparatórias e reconceituação do dano em delitos de lesa-humanidade: análise de um caso .......................... 203 Repairing politics and re-conceptualization of damages in crimes against humanity: analysis of a case
Fabiana Rousseaux
ENTREVISTA
Psicanálise e seus litorais ............. 210 Psychoanalysis and its littorals
Maria Cristina Kupfer
the cruelty at school
Alba Flesler Política, cultura e mercado num mundo sem valores: diálogos entre psicanálise e estética ...................... 256 Politics, culture and market in a world without values: Dialogs between Psychoanalysis and aesthetic
Paulo Endo
EDITORIAL
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reud sustentava que “toda psicologia individual é, ao mesmo tempo e desde um princípio, psicologia social”; assim, já no seu começo a psicanálise rompeu a fronteira estabelecida entre indivíduo e sociedade. Tendo então sido fruto de inúmeros debates, tal afirmação continua reverberando nos vários espaços de trabalho institucionais e pode ser retomada a cada texto aqui publicado como um guia de leitura. A psicanálise sempre foi foco de polêmicas e tensões quando colocada na pauta das leituras do social. É frequentemente acusada de ser uma prática burguesa e individualista. Não obstante, são inúmeros os psicanalistas que, inseridos em diversas organizações, sustentam sua prática na ética psicanalítica, rompendo com o pensamento dualista e dicotômico do mundo. Uma das contribuições fundamentais da psicanálise é saber-se aberta e, por isso mesmo, sem intenções de dar conta de todas as possibilidades analíticas do campo social e institucional. É justamente nesse ponto de abertura que se faz tocar por outros campos do conhecimento. As interrogações sobre essas práticas inauguram alguns dos textos aqui publicados, os quais são fruto da estreita relação entre a APPOA e o Instituto APPOA – clínica, intervenção e pesquisa em psicanálise. Os autores norteiam-se, a exemplo de Freud, por essa tradição de abertura, ou seja, ao serem interrogados por outros campos, produzem torções nos litorais da psicanálise. As tensões-torções decorrentes de diversas inquietações enlaçam os textos apresentados. Eles têm em comum a interrogação sobre a possibilidade de inscrever, nas práticas sociais e políticas, as questões que a 7
EDITORIAL
clínica do sujeito e o reconhecimento da hipótese do inconsciente colocam à psicanálise. Pensamos que se trata de um começo de produção teórica, um tempo que se poderia aproximar aos tempos de ver e compreender propostos por Lacan. Em 1967, Lacan propôs dois novos termos: psicanálise em intensão e psicanálise em extensão. A leitura destes foi, por vezes, realizada numa lógica de separação, de oposição. A prática psicanalítica, pelo contrário, indica a necessidade de uma leitura moebiana desses conceitos. Não será essa leitura que nos permitirá avançar para além de uma compreensão dicotômica entre textos metapsicológicos e culturais de Freud? Assim como entre indivíduo e sociedade? Psicanálise em intensão e em extensão? Não é demais lembrar que Lacan, ao nomear a intensão e a extensão, refere-se à formação do analista e ressalta que a extensão diz respeito à função presentificadora da psicanálise no mundo e a intensão “não faz mais do que preparar operadores para ela”. Assim, pela via da intensão ∞ extensão, convidamos os leitores a se aventurarem pelo percurso de reflexões de nossos colegas e desejamos uma boa leitura e inspiração para novas produções!
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 9-21, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
CU"HłTOWNCU"FC"UGZWCÑ’Q"G" C"RUKEıNKUG"GO"GZVGPU’Q3 Jaime Alberto Betts2
Tguwoq< Esse texto aborda a psicanálise em extensão. O autor trabalha os quatro discursos de Lacan, as fórmulas da sexuação e a patologia das comunidades culturais para melhor situar a clínica da psicanálise em extensão e a ética do desejo. Rcncxtcu/ejcxg< psicanálise em extensão, laço social, instituições, ética do desejo. VJG"UGZWCNK\CVKQP"HQTOWNCU" F"RU[EJQCN[UKU"KP"GZVGPUKQP Cduvtcev<"This paper discusses psychoanalysis in extensión. The author approaches Lacan’s four discourses, the formulas of sexualization and the pathology of cultural communities to better situate clinical psychoanalysis in extensión and ethics of desire. Mg{yqtfu< psychoanalysis in extension, social bond, institutions, ethics of desire. A psicanálise está à altura de falar o que quer que seja a respeito da vida da instituição, de contribuir para a vida coletiva, inclusive para o político? Jean-Pierre Lebrun (2009) ... podemos esperar que, um dia, alguém se aventure a se empenhar na elaboração de uma patologia das comunidades culturais. Sigmund Freud (1929 – Mal-estar na civilização) 1 Trabalho apresentado na Jornada Clínica da APPOA – Ainda mais Sobre o Gozo, em novembro de 2012, resultado do trabalho de cartel realizado pela Linha de Trabalho O Desejo do Analista nas Práticas Institucionais do Instituto APPOA. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Instituto APPOA; Co-autor dos livros Sob o véu transparente – recortes do processo criativo com Claudia Stern. Porto Alegre: Território das Artes, 2005; e (Re)velações do olhar – recortes do processo criativo com Liana Timm. Porto Alegre: Território das Artes, 2005. E-mail:
[email protected]
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que as fórmulas da sexuação, propostas por Lacan ([1972-1973] 1982), têm a ver com a psicanálise em extensão? Partindo do título do trabalho, vamos iniciar colocando a questão: o que é a psicanálise em intensão e em extensão? Lacan fala, na Proposição de 9 de outubro ([1967] 2003, p. 251), de dois momentos da psicanálise. São dois momentos na junção entre a “psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo e a psicanálise em intensão, ou seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela”. O que é presentificar a psicanálise no mundo? A psicanálise em intensão presentifica a psicanálise através da clínica individual do sujeito, ou seja, preparando operadores para ela, lembrando aqui a afirmação de Lacan de que toda análise que chega a seu fim, forma um analista, seja ele praticante ou não. A psicanálise em extensão pode presentificar a psicanálise no mundo de diferentes maneiras: seja como conhecimento e campo de pesquisa na universidade, por exemplo, seja como campo da clínica ampliada, em que faz clínica, pesquisa e intervenção em diferentes âmbitos do laço social, como nas instituições, em equipes de trabalho, na política, em comunidades e nos laços conjugais e familiares. Segundo Rinaldi (2010), a psicanálise em extensão vai além da transmissão da psicanálise por via das instituições de formação de analistas, seja pelo ensino ou pelo testemunho que os analistas aí podem dar de seu percurso, mas também pela prática da psicanálise no âmbito das instituições públicas de assistência. No mesmo escrito, Lacan ([1967] 2003, p. 255) diz que o que deve predispor o psicanalista é “a prevalência, manifesta onde quer que seja – tanto na psicanálise em extensão como na psicanálise em intensão –, daquilo que chamarei de saber textual...”. Segue: “Em todos os objetos que a linguagem propõe não apenas ao saber, mas que inicialmente trouxe ao mundo da realidade, da realidade da exploração inter-humana, não se pode dizer que o psicanalista seja perito. Isso seria bom, mas, na verdade, é muito pouco”. A tendência de reduzir a psicanálise à psicanálise em intensão será uma das formas de resistência à psicanálise? O que deve predispor o psicanalista é a prevalência do saber textual onde quer que se manifeste. O inconsciente é um saber textual, insabido. Presentificar a psicanálise no mundo é presentificar a ética do desejo no laço social. Aqui se coloca a questão de como fazer. Como operar a prevalência do saber textual-ética do desejo na psicanálise em extensão? Segundo Lebrun (2009, p.79), o desafio do psicanalista é analisar “uma nova distribuição de gozos”, imposto pela mutação em curso no laço social.
As fórmulas da sexuação...
Q"swg"guvtwvwtc"q"ncèq"uqekcnA O que institui o laço social entre os seres humanos? Freud, em Totem e tabu ([1913] 1976), propõe o mito da horda primitiva como explicação para a instituição da kultur/civilização se sobrepondo à natureza. Nesse mito, havia um pai primevo da horda, tirânico e cruel, possuidor de todas as mulheres e detentor do gozo absoluto. Tomados de ódio, os filhos desse pai se revoltam e, entre irmãos, decidem matá-lo. Tendo feito isso, devoram o corpo do pai assassinado, na tentativa de incorporar sua potência. Os irmãos são tomados pela ambivalência entre o ódio que levou ao assassinato e o amor àquele pai poderoso que poderia protegê-los. A culpa resultante leva ao recalque do assassinato e institui a ordem social em que fica terminantemente proibido a qualquer um deles ocupar o lugar do pai da pré-história. Na sequência da narrativa freudiana, os irmãos instauram o totem como primeiro representante simbólico do pai morto e periodicamente o animal totêmico é sacrificado e comido. Constitui-se, desse modo, a aliança fraterna – laço social – de aceitação de um gozo limitado para cada um, o que fortalece os vínculos amorosos, diminui a rivalidade e intensifica o respeito à lei paterna. Institui-se assim o laço social civilizatório, sempre frágil, coibindo a satisfação imediata e irrestrita das pulsões sexuais e da violência assassina do homem. Freud também refere que, nesse mito, a morte e seu reconhecimento são origem da moral e da religião, em que o sentimento de desamparo leva à nostalgia do pai todo-poderoso não-castrado, que a comunidade de irmãos reverencia e cultua na figura do totem, num ser superior divino, na moral e nos bons costumes, bem como nas figuras de autoridade. O destino do ato violento funda a lei primordial, que proíbe encarnar o poder arbitrário e o o ao gozo sem limites, bem como institui o laço social, em que o incesto e o assassinato são interditados e a exogamia é prescrita. Freud sempre sustentou, diante das críticas, que seu texto Totem e tabu recebeu, que o assassinato do pai da horda e o canibalismo são os atos de fundação do simbólico e da cultura. Q"okvq"fq"rck"fc"jqtfc"rtkokvkxc"g"c"vgqtkc"fqu"6"fkuewtuqu"fg"Nce Com o retorno a Freud, promovido por Lacan, a interpretação do mito freudiano ganha todo seu fundamento e alcance. Valendo-se dos recursos da linguística estruturalista, Lacan indica que o mito da horda primitiva assinala em seus mitemas as leis estruturais da linguagem, que constituem tanto o sujeito quanto o laço social em suas diferentes formas. 11
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Cabe ressaltar que as leis da linguagem implicam o imperativo da castração. Implicam uma divisão operante entre S1 e S2 – sendo S1 o significante mestre que ex-siste ao conjunto e representa o sujeito diante de S2, o conjunto de significantes que virão significar S1 no ‘só depois’. Entre S1 e S2 opera a instância da letra, que divide o sujeito e escreve um saber textual da presença real de um vazio, impossível de simbolizar, assim como a presença da falta de objeto, ou seja, a presença do ‘objeto a’ que causa o desejo. Aqui podemos tomar duas formulações de Lacan. A primeira, do seminário O avesso da psicanálise ([1969-1979] 1992), em que formula a teoria dos quatro discursos. Lacan propõe o conceito de discurso como a estrutura que organiza o laço social, pois articula o campo do sujeito com o campo do Outro. O conceito de discurso, estrito senso, trata da realidade social da comunicação e da mutação que aí sofrem os elementos da cadeia signifi-cante. Um discurso é uma organização pela linguagem da comunicação específica das relações do sujeito aos significantes e aos objetos, as quais são determinantes para o indivíduo e regulam as formas do laço social. O discurso determina as diversas formas que poderá assumir a relação do sujeito com seu desejo, com seu fantasma, com o objeto que tenta reencontrar e com os ideais que o orientam. (Chemama, 1995, p. 47-48).
A teoria dos discursos se “interessa pelo que produz o sujeito e produz, com ele, a ordem social na qual se inscreve.” (Chemama, 1995, p.50). A estrutura topológica do tetraedro, que orienta as relações entre os quatro lugares do discurso (sujeito e verdade no campo do sujeito, o outro e a produção no campo do Outro), permite perguntar: quem ocupa o lugar de agente do discurso e que verdade o impulsiona, a que outro agente e a verdade se dirigem, qual é a produção desse discurso, e como a produção retorna sobre o agente? (fig. 1) Figura 1: os lugares na estrutura dos quatro discursos de Lacan
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Nesse sentido, o discurso do mestre é a estrutura que funda o laço social e articula a constituição do sujeito – trata-se de uma formulação estrutural do mito do pai da horda primitiva. No discurso do mestre, o S1 está na posição de agente, o sujeito no lugar da verdade recalcada do agente, ambos intervêm sobre o S2 na posição do outro, e têm como produto, simultaneamente, de um lado, uma perda de gozo (perda do gozo do Outro, gozo absoluto suposto ao pai da horda primitiva, ou do significante mestre personificado como amo), e de outro, um plus-de-gozo, que é a possibilidade de um gozo limitado, de poder gozar falicamente na linguagem a partir do objeto que falta e causa o desejar (objeto a). Essa produção, por sua vez retorna sobre o agente, permitindo, pela perda de gozo da produção, a distinção entre o significante mestre (S1) como agente do discurso e sua encarnação imaginária na figura do amo. Lacan cria o neologismo ‘ex-timo’ para designar esse objeto que é, ao mesmo tempo, o mais íntimo e o mais estranho ao sujeito, constituindo o ponto de articulação entre a psicanálise em intensão e em extensão. Cu"hôtowncu"fc"nôikec"fc"ugzwcèçq A segunda formulação que tomaremos é feita por Lacan no seminário seguinte – Mais, ainda ([1972-1973] 1982) – em que ele expõe as fórmulas da lógica da sexuação. Faz algumas precisões fundamentais em relação às posições de Freud a respeito da sexualidade masculina e da sexualidade feminina, em função dos destinos do complexo de castração em relação à primazia do falo. Propõe duas lógicas suplementares, uma para o lado masculino e outra para o lado feminino (fig. 2). Figura 2: as fórmulas da lógica da sexuação de Lacan
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É importante ressaltar dois aspectos. Primeiro, que são lógicas suplementares e não complementares – masculino e feminino não completam um ao outro, não formam Um. Segundo, que as duas lógicas são indissociáveis uma da outra em sua suplementaridade, muito embora seja comum presenciar o funcionamento dissociado das mesmas. Do lado masculino, podemos fazer uma leitura do mito freudiano do pai da horda primitiva como a estrutura da divisão operante na linguagem, em que a diferença de lugares entre S1 e S2 designa respectivamente o lugar do ‘existe Um não submetido à castração’ e o conjunto resultante de ‘todos submetidos à castração’, em que a exceção faz a regra do conjunto. S1 é o significante que fica fora para dar consistência e possibilidade de significação ao conjunto do ‘todos submetidos à castração’ e com o à significação e ao gozo fálicos. O sujeito masculino vai buscar do lado feminino o objeto a que causa seu desejar. Do lado feminino, Lacan se propõe ir além do limite freudiano da rocha da castração. Ele parte do desdobramento, dos quantificadores aristotélicos, e propõe que ‘não existe um, não submetido à castração’, o que implica que o sujeito sexuado na lógica feminina esteja ‘não todo na castração’. Isso traz algumas consequências. Por não haver a exceção do Um, não há conjunto fechado e, portanto, o sujeito deve ser levado em conta um a um, cada um e cada uma em sua singularidade. Entretanto, seu lugar é duplo, ou melhor, opera com duas lógicas distintas simultâneas: por um lado está na castração, ou seja, está na lógica estabelecida pelo ‘existe Um não submetido à castração’, o que constitui sua condição de ser falante, submetido, como todos, à castração e ao gozo fálico. Mas, por outro lado, está ‘não todo na castração’. Ao formular a lógica do ‘não todo na castração’, Lacan propõe do lado feminino uma lógica que vai além da rocha da castração, ou seja, além dos limites fálicos da linguagem. O falo simbólico, inscrito por Lacan do lado masculino, é o significante da falta, resultado da operação de castração que incide sobre o falo imaginário do lado do sujeito. Do lado feminino, inscreve o S(A) – significante da falta no Outro –, indicando o vazio do real impossível de simbolizar, ou seja a castração do lado do Outro, indicando também que A mulher não existe. Isto é, que a mulher é uma a uma. Ou, ainda, que o sujeito, do lado feminino, deve ser levado em conta, escutado, em sua singularidade. Do lado feminino, como A mulher não existe, o sujeito se liga ao real de duas formas, buscando do lado feminino o significante da falta no outro e do lado masculino o falo simbólico, o significante da falta resultante da castração. Além da rocha da castração há um gozo Outro, feminino, que o sujeito pode experimentar, mas que é impossível articular pela linguagem. A lógica do 14 14
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‘não todo na castração’ abre-se para o real, o que é de fundamental importância, mas que não deixa de ter consequências do lado do sintoma, como veremos mais adiante em relação ao laço social que organiza. Cu"hôtowncu"fc"ugzwcèçq."c"rcvqnqikc"fcu"eqowpkfcfgu"ewnvwtcku"g"c" enîpkec"fc"rukeânkug"go"gzvgpuçq5 Jean-Pierre Lebrun, em sua obra Clínica da instituição: o que a psicanálise contribui para a vida coletiva (2009), propõe uma clínica das instituições fazendo uso da ferramenta conceitual das fórmulas lógicas da sexuação elaboradas por Lacan no seminário Mais, ainda ([1972-1973] 1982). Nessa obra, Lebrun demonstra como as mesmas articulam as instituições, seus modos de funcionamento e as formas de relacionamento que determinam entre seus integrantes, bem como o laço que estabelecem com as pessoas que procuram seus serviços ou produtos. Lebrun faz aqui uma verdadeira contribuição na direção do que Freud afirmou em Mal-estar na civilização ([1929] 1976), a respeito de esperar que algum dia alguém se empenhasse na elaboração de uma patologia das comunidades culturais. Lebrun propõe uma leitura da mutação do laço social a partir da modernidade baseada nessas fórmulas de Lacan, com a consequente formação de novas patologias das comunidades culturais. Essas patologias do laço social (tradicionais ou novas) decorrem respectivamente das vicissitudes do complexo de castração segundo se deem de forma predominante do lado da lógica de sexuação masculina ou na lógica da sexuação feminina. A mutação contemporânea do laço social se caracteriza pela pulverização das tradições e é provocada pelo deslocamento de sua organização predominante no ado em torno do ‘Existe Um’ da sexuação masculina e um laço social relativamente consistente dos sujeitos submetidos à castração (incompletos), para o lado feminino de predominância do ‘Não há Um’. Esse deslocamento produz um laço social relativamente inconsistente de sujeitos “não todo” submetidos à castração, e por isso tendendo para uma completude imaginaria. Nas instituições organizadas predominantemente pela lógica do lado masculino, o laço social se caracteriza por uma hierarquia mais ou menos vertical, que ordena a organização do trabalho e as possibilidades de laço
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Este subtítulo é uma ampliação de ideias propostas em Betts, 2011.
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social decorrentes da mesma, como é o caso da igreja e do exército – tão bem analisadas por Freud em Psicologia das massas e Análise do eu ([1921] 1976) – assim como as corporações empresariais. Nessas instituições, a autoridade ocupa o lugar da exceção, seja na figura de deus, de sacerdote, do comandante militar – cujas ordens a tropa desafia à morte para cumpri-las – ou do chefe nas empresas – ‘manda quem pode e obedece quem tem juízo’. Nas equipes de saúde mental, geralmente chefiadas por um médico, o gozo estabelecido pelo discurso médico tende a se perpetuar sem maiores questionamentos, ou levando a práticas dissociadas dos profissionais de diferentes disciplinas. Aqui se apresenta o sintoma que a lógica masculina costuma engendrar. No sintoma do lado masculino, a tendência é do sujeito no lugar de exceção, no lugar do ‘um não submetido à castração’, se identificar ao falo do poder e se achar no direito de cometer toda sorte de excessos do poder, como autoritarismos, arbitrariedades, abusos da pequena autoridade ou atos de tirania, traduzíveis pelas expressões “eu sou a lei”, também caracterizado no conhecido bordão “para os amigos tudo, para os inimigos, a lei”. A lógica do lado masculino também pode se caracterizar pelos excessos burocráticos e apego às certezas instituídas de qualquer natureza que sejam. Na patologia do laço social organizado do lado masculino também temos os efeitos imaginários de grupo e das massas. Em Função e campo da palavra e da linguagem, Lacan ([1953] 1998, p. 285) fala das subjetividades coletivas da igreja e do exército, referindo o efeito imaginário de identificação ao líder, que é tomado como objeto de identificação e introjetado no ideal de eu, permitindo com isso a identificação imaginária entre os ‘eus’, constituindo a subjetividade coletiva dos grupos ou das massas. Cabe ressaltar aqui que não existe sujeito coletivo, ou seja, que o lugar de enunciação é sempre singular, mas o agenciamento das resistências comumente é coletivo (Leclaire, apud Lebrun, 2009, p. 80). Surge também uma dificuldade comum na leitura da fórmula da lógica masculina, que encontra seus exemplos nas realidades referidas acima. É tendência de se tomar o lugar de ‘existe Um’ de modo imaginário, ou seja, é tomar como amo aquele que ocupa contingencialmente o lugar de sustentar a ex-sistência do significante mestre. É encarnar imaginariamente o S1 em alguém ou em alguma coisa, ao invés de entender esse lugar como uma função simbólica, como um operador lógico que cabe àquele que ocupa o lugar de exceção a função de exercer. O lugar da exceção é simbólico e, como se sabe, o símbolo é a morte da coisa. Cabe esperar que quem ocupa o lugar da exceção tenha bem operada a divisão subjetiva resultante da castração, que incide sobre o falo imaginário, 16 16
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bem como para os sujeitos que compõem o lugar conjunto formado pelo lugar de exceção. A esse respeito, observe-se que, nas fórmulas da sexuação, Lacan escreve F, significante do falo simbólico, e não o (-ϕ), falo imaginário. Ou seja, o F indica a borda do simbólico com o real, a falta de objeto que se procura frequentemente recobrir com o falo imaginário do poder. Aqui nos aproximamos do tema do desejo do analista. Trata-se do desejo que sustenta o analista em seu ato. É o desejo de que surja a diferença, de que o impossível seja reconhecido. Na psicanálise em extensão, é o desejo que o impossível – ‘que não cessa de não se escrever’ – e a diferença de lugares que produz possa ser reconhecida pelos sujeitos que compõem o laço social em questão. A diferença é produzida pelo real que ‘não cessa de não se escrever’, fazendo hiato entre S1 e S2. Ou seja, mesmo alguém ocupando o lugar de exceção ao conjunto, esse lugar é ocupado pontualmente, tem um mandato e depois é substituído. Mesmo ocupando esse lugar diferenciado, quem o ocupa está também submetido à lei da castração, como os demais. O lugar diferenciado do ‘existe um’ é o lugar do pai simbólico, do pai morto. Lacan refere que este é o lugar do Nome-do-Pai, o significante operador da lei da castração que interdita o desejo do Outro materno, tornando possível ao sujeito uma significação fálica, e do lado feminino acrescenta-se a possibilidade lógica de um gozo Outro, especificamente feminino, além da castração. O problema é que em função do desamparo, referido por Freud em Totem e tabu, resta a esperança de que haja um todo poderoso que possa proteger ou que se deva temer. A tendência que insiste é imaginária, isto é, de afirmar ou ter a esperança de que quem ocupa o lugar do ‘existe Um’ não esteja submetido à castração; de que ocupar esse lugar diferenciado, exercer a função do significante mestre, é encarnar o lugar do amo, detentor do falo, representante do pai tirano (ameaçador ou protetor) do mito da horda primitiva. Assim, podemos entender a servidão voluntária – descrita por La Boétie (1986) como um discurso já no século XVI – como a esperança neurótica de que se alguém temê-lo e servi-lo bem, o ser poderoso estará velando por ele, protegendo-o de todo mal. Nesse sentido, no seminário da Angústia, Lacan ([1962-1963] 2005) refere que a castração é mais facilmente ada pelo sujeito em relação a si mesmo que ar a operação de castração na segunda volta do oito interior, em que se defronta com a castração do Outro. As instituições organizadas predominantemente na lógica do lado feminino surgem com os ideais da modernidade, inaugurada pelos ideais da Revolução sa de liberdade, igualdade, fraternidade, e com seu desdobramento com a invenção da democracia no Novo Mundo, promovendo a horizontalidade nas organizações, a igualdade diante da lei e o individualismo.
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O laço social estabelecido predominantemente pela lógica da sexuação feminina apresenta, por sua vez, outras vicissitudes do complexo de castração. Num contexto de progressivo predomínio da lógica feminina do ‘não todo’, o exercício da autoridade tende a ficar enfraquecido pelo aspecto estrutural de que não há o ‘Um que não está submetido à lei da castração’. A patologia da comunidade cultural se dá na medida em que se desliza do ‘não todo na castração’ para um ‘todo não na castração’, com a recusa de qualquer diferenciação de lugares. Ou seja, trata-se de uma forma de evitação da castração do lado da lógica feminina. Com isso, a igualdade imaginária se expande e a tendência é de que nenhuma diferenciação de lugares seja tolerada. A busca é de decisões tomadas por unanimidade entre iguais, sendo que ninguém está autorizado a propor um projeto e levá-lo adiante, ou que alguém possa bater o martelo e tomar uma decisão, porque isso implicaria se diferenciar de algum modo. Ou seja, a cada reunião tudo pode voltar a ser questionado por quem quer que seja, levando no extremo, pela falta de um limite, a uma impossibilidade de chegar a uma decisão, cristalizando uma “paralisia holofrásica da decisão” (Lebrun, 2009, p. 102) na realização dos objetivos da instituição. A miragem da completude em direção à qual desliza o imaginário do ‘todo não na castração’ é traduzível pelo bordão do marketing da sociedade de consumo de ‘sua plena satisfação ou seu dinheiro de volta’. Övkec"fq"fguglq."rqnîvkec"g"rukeânkug"go"gzvgpuçq
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Rinaldi (1999), ao retomar o texto Totem e tabu, propõe que o mito da horda primitiva possa ser considerado um mito político, em que o lugar do poder absoluto daquele que detém o gozo é um lugar vazio, fundando um pacto simbólico, instituindo o laço social, conforme dissemos acima, mas também um pacto político. Ela propõe ainda que a partir da lei primordial, puramente simbólica, se derivam os “jogos e arranjos simbólico-imaginários que governam as relações entre os homens, sempre contingenciais, mas que, ao cristalizarem-se, recalcam a sua origem”. No seminário da Ética, Lacan ([1959-1960] 1988) opõe a ética do desejo à moral do poder ou do que ele chama de serviço dos bens. A ética do desejo implica o imperativo da castração, em que o sujeito está suficientemente alertado de que no horizonte do desejo não há nenhum bem, apenas uma falta de objeto. Se a ética do desejo se referencia, portanto, ao impossível, a política é o campo do exercício do poder, em que através do serviço dos bens se istra a ilusão da existência de bens que poderiam satisfazer o desejo. Fica evidente que isso traz consigo a rivalidade e a disputa, como é tragicamente visível nos
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conflitos armados ao redor do mundo, ou em muitas separações litigiosas do laço conjugal, em que as partes brigam à morte, ao ponto de disputarem quem fica com o número ímpar de talheres, onde a solução salomônica seria cortar o garfo-falo em questão ao meio. Lacan enfatiza que o poder em nenhuma circunstância está interessado no desejo, o que faz muitos pensarem que é impossível sustentar a ética do desejo fora da psicanálise em intensão. Rinaldi (1999) pondera, no entanto, que, se considerarmos que a origem do laço social e do pacto político que institui, se dá na lei primordial simbólica (e real, real pela morte da coisa, lugar vazio), a política pode ser pensada como o “campo de possibilidades de o – através da palavra, da troca simbólica e da negociação – a um gozo que será sempre parcial e contingente”. Lebrun, por sua vez, aponta que “somente existe antagonismo entre ética do serviço dos bens e ética do desejo quando, em nome do bem, o que esperamos é comandar o desejo” (2009, p. 71). O autor ressalta que as instituições sempre têm critérios, em seu funcionamento, que pertencem à ética do serviço dos bens, como, por exemplo, a cura e a preocupação pedagógica. Entendemos que o serviço dos bens sempre estará presente nas instituições e laço social, e que se torna um problema na medida em participar da ordem instituída silencie o sujeito desejante. O ato analítico no âmbito da psicanálise em extensão é o de apontar, em contexto transferencial – numa situação de supervisão de equipe, por exemplo –, o impossível que a diferença de lugares indica e que resulta do vazio (divisão) operante na linguagem e da falta de objeto e perda de gozo que opera: a castração que cabe a cada sujeito ar. Nesse sentido, a questão fundamental da vida de um sujeito nos diferentes laços sociais de que participa não é da ordem da utilidade ou da moral do serviço dos bens, mas se sua ação está em conformidade com seu desejo. Isso se contrapõe à política, particularmente quando ela a do campo do contingente (do ‘para de não se escrever’) e se inscreve no campo do necessário (‘não para de se escrever’), ou seja, como “sintoma das relações sociais que vêm recalcar o movimento desejante, através das cristalizações imaginárias, do engessamento burocrático e da moralizante luta pelo poder” (Rinaldi, 1999). No ato analítico, na psicanálise em extensão, trata-se de apontar o impossível em jogo no laço social, seja no de psicanalisar, seja no de governar, no de educar, ou no de dois fazerem Um no amor. Remontar a política ao seu fundamento simbólico é exercê-la como prática do impossível, o que significa na prática explorar o possível sem soldá-lo ao necessário, e aceitar que o resultado será sempre contingente, limitado,
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insatisfatório quando comparado ao ideal. Lebrun (2009, p. 78) se pergunta: o que seria uma boa instituição? Duas respostas. A primeira: é “uma instituição – quer favoreça a posição do Um, quer aquela do Outro – que testemunharia em seu funcionamento o lugar do terceiro”. A segunda resposta: “é aquela onde cada um, no lugar que esteja, assume seu desejo em sua solidão, em sua solidão com o outro, sabendo que esse ponto é de fato assintomático”. Dispensar o pai mediante a condição de servir-se dele, como diz Lacan, no laço social implica que “a pertinência do lugar do ao-menos-um seja identificada e reconhecida por cada um – ao um-por-um – para que ele disponha da legitimidade que lhe é indispensável para poder funcionar” (Lebrun, 2009, p. 216). Ou seja, é possível funcionar institucionalmente sem que um chefe diga aos demais o que têm que fazer desde que cada um reconheça a diferença dos lugares que sua presença indica e situa (Lebrun, 2009, p.107). O autor segue dizendo que, na modernidade, a terceiridade do lugar do ‘existe-um’ “não é mais dada de saída como uma aquisição, ela está a cargo de cada um, e cabe a este ou esta que ocupa o lugar de exceção tornar sua necessidade sensível junto a quem ele ou ela se dirige” (Lebrun, 2009, p. 218-219). Trata-se de que quem ocupa o lugar do ‘existe-um’ reconheça e seja reconhecido pelos demais que está a serviço de uma lei que ultraa a todos e que ele próprio se reconhece também submetido à mesma. Cabe ao psicanalista, na clínica em extensão, trabalhar os dois lados. Segundo Lebrun (2009, p.108), “o que constitui a ossatura da vida institucional é esse corte entre os lugares S1-S2 e não unicamente o S1, como frequentemente pensam aqueles que vêm ocupar a posição dele”, bem como pensam aqueles que referendam a ocultação do vazio que caracteriza esse lugar de exceção pela sua ocupação por um líder, assim como por parte daqueles que se opõem que o lugar diferenciado seja ocupado por alguém circunstancialmente. A lógica do ‘não todo’ implica reconhecer que é o vazio que nos governa, vazio introduzido pela linguagem, que organiza a irredutível diferença de lugares e a falta que causa o desejar, tanto do lado masculino, quanto do lado feminino. Nesse sentido, seja na predominância da lógica de sexuação masculina, seja na predominância da lógica da sexuação feminina, a função do discurso do analista, tanto na análise pessoal, quanto na clínica das instituições ou intervenções psicanalíticas no laço social, é a de fazer reconhecer pelos sujeitos implicados o impossível – o real, como vazio e como objeto a – que constitui o ‘buraco angular’ que institui lugares diferenciados no laço social e causa a divisão do sujeito. 20 20
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REFERÊNCIAS BETTS, Jaime A. Estruturas coletivas, suas lógicas e modos de subjetivação: instrumentos para uma clínica psicanalítica da instituição. Correio da APPOA. ISSN 1983-5337. Porto Alegre, n. 200, abril 2011. CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. FREUD, Sigmund. Totem e tabu [1913]. In: ______. Obras completas. Vol. XIV, ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976. ______. Psicologia das massas e análise do eu [1921]. In: ______. Obras completas. Vol. XVIII, ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976. ______. Mal-estar na civilização [1929]. In: ______. Obras completas. Vol. XXI, ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976. LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1988. ______. O seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. ______. Escritos. Função e campo da fala e da linguagem [1953]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. ______. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. ______. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1982. ______. Proposição de 9 de outubro [1967]. In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. LA BOÉTIE. Discurso sobre a servidão voluntária. Lisboa: Antígona. 1986. LEBRUN, Jean-Pierre. Clínica da instituição: o que a psicanálise contribui para a vida coletiva. Porto Alegre: CMC Ed., 2009. RINALDI, Doris. Ética e política: questões para a psicanálise hoje. Homepage da Intersecção Psicanalítica do Brasil, 1999. Disponível em: www.interseccaopsicanalitica. com.br/int-participantes/Doris_Rinaldi. ________. O desejo do psicanalista no campo da saúde mental – problemas e imes da inserção da psicanálise em um hospital universitário. In: PIMENTAL, Adelma et al. (Org.). Itinerários de pesquisa em psicologia. Belém: Amazônia Editora, 2010, v., p. 17-32. Recebido em 22/10/2012 Aceito em 30/11/2012 Revisado por Gláucia Escalier Braga
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 22-28, jul. 2011/jun. 2012
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Q"EQNQPKCNKUOQ3 Hugo D. Ruda2
Tguwoq< O artigo propõe encarar o discurso desde a lógica que preside a posição psicanalítica, a qual surge da escuta de um discurso em continuidade. Ao perder suas teorizações semiotizantes, tal discurso pode abordar o sujeito em relação ao coletivo, ali onde se implicam seu corpo, seu gozo e seu desejo, lugar constituinte de sua experiência e de seu devir ético, poiético e político. Rcncxtcu/ejcxg< colonialismo, posição do analista, discurso, política. VJG"EQNQPKCNKUO Cduvtcev< The paper proposes confront the speech from the logic of the psychoanalytic position, which comes from in the listening to speech in continuity. By losing their theorizing imbued with meanings, such discourse can approach the subject in relation to the collective, precisely where your body, your enjoyment and your desire are implicated, constituent place of your experience and your becoming ethical, political and poietic. Mg{yqtfu< colonialism, position of the analyst, discourse, political. “O mundo tal como é não necessita a poesia, mas tal como é, ou seja, inável”. Henri Meschonnic Trabalho apresentado no V Congresso Internacional da Convergência: O ato analítico: suas incidências clínicas, políticas e sociais, em Porto Alegre, junho de 2011. 2 Psicanalista. Membro da Escuela Psicoanalítica Argentina.E-mail:
[email protected] Traduzido por Paulo Gleich. 1
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omeço com uma citação tomada do livro La poesía como crítica del sentido, de Henri Meschonnic (2007), para introduzir um escritor, linguista e tradutor francês que subverteu a teoria positivista da tradução a partir de seu trabalho com a Bíblia hebraica. Ao propor que não há nela nem prosa, nem poesia, mas canto, rompe com a política do signo, destitui a métrica e promove o ritmo, propondo-nos, assim, um modo de encarar o discurso que vai nos guiar em nossa exposição. O disparador a partir do qual decidi abordar o tema foi uma referência de Lacan ([1970] 1997), da lição de 18 de fevereiro do seminário XVII O avesso da psicanálise. Ali, conta que depois da guerra tomou em análise três médicos oriundos de Togo (colônia sa). Diz: Eu não pude encontrar em suas análises marcas dos usos e crenças tribais, que não haviam esquecido, que conheciam, mas do ponto de vista da etnografia… seu inconsciente funcionava segundo as boas regras do Édipo. Era o inconsciente que lhes havia sido vendido ao mesmo tempo que as leis da colonização, forma exótica, regressiva do discurso do Mestre, aspecto do capitalismo que se chamou imperialismo. Em nome da ciência lhes havia sido expropriada sua infância (Lacan, [1970] 1997, p.78).
Lacan faz notar que é a ciência, a etnografia, que tomou o relevo das recordações de infância, sendo ela a encarregada de realizar o ideal colonialista, consistente neste caso não apenas, nem necessariamente, na ocupação territorial, nem na apropriação do produto do trabalho do colonizado, mas em conquistar a posição de transformar seu próprio ideal, o do colonizador, em ideal de todos, deixando para aqueles que não participam dele a condição de “selvagem”. Vou tentar comentar esse parágrafo de Lacan e acrescentar alguns exemplos, tanto de minha clínica como de acontecimentos conhecidos por todos, partindo da premissa de que não há temas psicanalíticos, mas escuta psicanalítica, o que implica que entre as condições de uma análise em intensão e a presença de um analista fora do dispositivo analítico existe, por meio do seu ato, uma lógica que se especifica por eludir as condições binárias próprias do algoritmo científico, com sua política do signo pela qual o conhecimento se divide em unidades mínimas e opera por pares antitéticos. Sujeitoobjeto, indivíduo-sociedade, poesia-prosa, escrita-oralidade, racional-emotivo, civilização-barbárie. Suas pequenas unidades: palavra, fonema, significantesignificado, semantema, mitema, etc. 23
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Contrariamente, a lógica que preside à posição psicanalítica surge da escuta de um discurso em continuidade, de modo a poder captar suas escansões, seu ritmo, seu sabor (taam*) – como diz Henri Meschonnic –, suas pontuações, suas rupturas, etc. A partir dessa perspectiva, o discurso, ao perder suas teorizações semiotizantes, pode abordar o sujeito em relação ao coletivo, enquanto é ali onde se implicam o corpo, seus gozos, seu desejo e sua indeterminação mesma, não como uma especialidade das “ciências humanas”, mas como o lugar constituinte da experiência do sujeito em seu devir ético, poiético e político. Dirá Meschonnic (2007) que não há lugar ali para que as palavras se comentem a si mesmas, a estupidez, desde o princípio, triunfa e conclui. Tomarei “a realidade” como um texto a ser interpretado, ainda em condições diferentes de como o texto de um analisante é oferecido em transferência à análise. Voltando a nossos doutores-analisantes de Togo, diria que Lacan situa o colonialismo não apenas a partir de uma perspectiva social e política, mas clínica, o que lhe permite advertir que no colonialismo se trata de uma obediência inadvertida, da qual resultam capazes nossas categorias mentais. Nesse aspecto, o da obediência, surge o que me interroga, dado o contexto colonial no qual se desenvolve nossa prática, tanto do ponto de vista social, político e clínico. Refiro-me à aderência àqueles significantes que coagulam o sujeito e dos quais a palavra proferida em uma análise deve livrá-lo. Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem e se ordena em discurso em uma análise, é a este discurso e a suas condições de produção a que quero me referir. Tirarei proveito da distinção entre linguagem e discurso. Para isso, poremos do lado da linguagem as categorias tradicionais da linguística, semântica, sintaxe, retórica, dialética, metáfora, metonímia, etc. Do lado do discurso o ritmo, caracterizado por Meschonnic (2007) como “a organização contínua da linguagem por um sujeito, de tal maneira que esta organização transforma as regras de jogo pela parte que ele joga e que é o único a jogar. Desse modo, só há travessia do sujeito quando uma linguagem inteira é Eu. A voz restabelece a corporalidade, a gestualidade no modo de significar. O discurso já não é, ali, uma escolha da língua nem operadores lógicos, mas a atividade de um homem que realmente está falando”. Para Heráclito, o ritmo consistia na organização do que está em movimento, oposto à estrutura, que organiza o imóvel.
* “Sabor” em hebraico. (N.T.)
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Em nosso caso, me importa, como sempre, a posição do analista. Perguntar-me o que permitiu a Lacan ([1970] 1997) não ficar escutando comodamente em um discurso “as boas regras do Édipo”? Há ali muito mais para pensar que em sua genialidade. Há uma posição política que, em primeiro lugar, é a do analista capaz de pôr seu saber de lado. Em uma palavra, ele mesmo deve ser dotado de uma escuta não colonizada, emancipada. Evidentemente que, assim como não há analista todo o tempo, tampouco a emancipação é um estado da alma, que alguns têm e outros não. Gostaria de chamar esse analista, capaz de interrogar permanentemente seu saber, como o faz Jacques Nassif (2011), o “analista implicado”. O outro, coagulado em seu saber referencial, tomado como “o que é”, gostaria de chamar o “analista colonizado”. Essa questão da colonização se diferencia das operações de alienaçãoseparação, próprias da constituição do sujeito pelas características que o Outro adota. Assim como nos foi explicado na mesa inaugural deste congresso, a respeito do capital financeiro e seu modo de parasitar o pensamento do sujeito de nossa época, ao construir seus ideais de “felicidade e progresso”, esse Outro só goza desse sujeito tornando-o mero objeto em uma operação de acumulação voraz. Proponho que quem se oferece para ocupar o lugar do analista é fundamental que esteja advertido desses fenômenos do colonialismo. Em particular daqueles que podem afetar nossa maneira de nos situarmos frente à própria doutrina psicanalítica, tornando-se ela mesma produtora de um saber já sabido, tomado como o único saber possível, ao qual estamos tediosamente acostumados, mais do que gostaríamos. Vou ar a relatar alguns recortes tomados de diferentes discursos que me serão necessários para encurtar caminho. Há vários anos, tomei em análise um senhor, recém-casado com uma bela e enamorada mulher, médica, que, como consequência de uma desavença – por supor que ele havia estado com uma prostituta –, negava-se a ter relações sexuais praticamente desde a lua-de-mel. Não obstante, estava obstinada em ter um filho com seu esposo por meio de uma fertilização in vitro, realizada com esperma de seu marido. Este se prestou e assim realizam várias tentativas frustradas. Pouco tempo depois, o paciente teve um acidente fatal, realizando um esporte no qual, apesar do alto risco, ele se considerava expert. Depois de morto, a ciência teve sucesso e nasceu um menino. O milagre da santa concepção da Virgem Maria foi possível graças à ciência. Um ano depois, a mãe-virgem morreu em um acidente automobilístico, dirigindo em estado de embriaguez. Por razões, desta vez ligadas à ciência econômica, falhou a voz da 25
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ministra de trabalho da Itália enquanto informava publicamente cortes nas aposentadorias, no preciso momento de dizer que com isso se rompia a ligação entre gerações. O Gerente-Presidente Monti continuou, sem que sua voz tremesse. Certamente não houve nenhum analista que fizesse a ministra escutar essa falha, graças a que, pôde seguir em seu cargo, convencida de estar falando de irrefutáveis questões de números. No ano ado, durante uma manifestação em Tel-Aviv, uma multidão gritava “para o governo somos apenas um número”. Estariam advertidos das ressonâncias das quais esse grito era portador aqueles descendentes de avôs portadores do ignominioso número que os nazistas tatuaram em seus braços? Na capital do império do número, os “indignados” de Wall Street se nomearam “somos 99%”, dando mostras de que até para se indignar não podem deixar de se pensar mais que como percentagens de um Todo. Uma questão de obediência. Na biografia da “jovem homossexual” de Freud ([1920] 1986) há esclarecimentos dos quais tomamos conhecimento ao ser publicada a biografia da paciente, que põem o tema da obediência novamente sobre o tapete. O pai da jovem, o qual havia acumulado uma grande fortuna, queria ser reconhecido pela sociedade aristocrática de sua época (igual a Freud, pelos gentios universitários). Como sua origem judaica o impedia (Freud acreditava igual), um casamento “conveniente” de sua filha poderia habilitá-lo. Claro que a cocote não entrava nesses planos. O sonho de engano, que a jovem trama com sua amante, em um bar da esquina da rua onde se encontrava seu próprio consultório, poderia ter servido a Freud como interpretação da posição que fazia impossível sua escuta. Tampouco houve um analista que o pudesse advertir, com respeito ao que os clássicos chamavam “seus pontos cegos”. E Lacan ainda não havia dito que as resistências são do analista. Em oposição a esses discursos, o presidente da Bolívia, Evo Morales, ao se referir à experiência política pela qual a América Latina está ando, negou-se a usar a palavra “socialismo”, para dizer que se trata do inominável de uma situação inédita. Na mesma linha, em oposição ao conceito tecnocrático de “gestão”, o vice-presidente García Linera definiu a política como “o sentimento de tensão que nunca cessa, o estremecimento abismal de que sempre há algo a escolher entre forças contrapostas e que essa inconclusão dramática é finalmente a que preside as grandes construções históricas”. Em certa sintonia com a fala de Linares, Lacan, depois de nos dizer que renuncie quem não tenha em seu horizonte a subjetividade de sua época… acrescenta que “o analista deve saber de sua função de intérprete na discórdia das linguagens. Pois como poderia fazer de sua vida o eixo de tantas vidas 26 26
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quem não soubesse nada da dialética que o lança com essas vidas em um movimento simbólico?” Sublinho “discórdia das linguagens”. Parece que demos volta no sentido do título de nosso congresso. Estamos interrogando as incidências do social, do político e do clínico no momento do ato analítico. Assim mesmo, fomos levados a interrogar-nos mais uma vez pelo saber do analista e por sua formação, o que, por sua vez, nos obriga a perguntarmos por nosso trabalho de escola, por nosso trabalho institucional, pelo que às vezes é um pouco vagamente chamado transferência de trabalho e finalmente pela comunidade de experiência, que em outras oportunidades gostamos de chamar, com Blanchot, “a comunidade dos que não têm comunidade” (Blanchot, 1972). Precisamente, é Maurice Blanchot quem nos propõe uma versão da transferência que tem pelo menos a utilidade de não cair na oposição binária indivíduo-sociedade. Diz: “A fala analítica se sustenta na possibilidade que a palavra tem de viajar através dos corpos e dos tempos, capacidade de disseminação entre falantes, que Freud chamou transferência” (Blanchot, 1972, p.51). Voltando a nossas escolas, nos perguntamos que lugar ocupa nelas a obediência como fator de coesão institucional. Claro que tal obediência não tem por que ser especialmente a uma pessoa, pode sê-lo, como vimos, aos paradigmas de uma teoria que não é interrogada. Império do que Lacan chama, em L’Étourdit (1973), o thombreo (unindo teoria e homem), tributário do para todos, precursor, como diz ali, da ideia de raça, cultor dos universais e impossibilitador de qualquer singularidade que seja invenção. Primo, ao descrever a tediosa e resignada obediência dos soldados do lager, os chamou “o produto de uma escola”. Pensamos a comunidade de experiência como um instrumento político para buscar uma saída “à universalização do sujeito da ciência, do fenômeno fundamental cuja erupção o campo de concentração pôs em evidência, quem não vê no nazismo só o papel de um reativo precursor” (Lacan, 2003, p.22-23). Já a partir do título, este congresso rompe com a divisão abstrata entre o social e o político, interrogando a política dos analistas a respeito. Isso impõe uma decisão. Ou a psicanálise tenta situar-se no acordo das ciências com seu lado mais semiotizante, ou opta, como nos propõe Lacan em L’Insu, por apostar em produzir um despertar ligado aos efeitos de verdade que uma interpretação porta por ser poética, ou seja, por ser capaz de afetar os corpos. Isso não significa atirar pela janela nenhum aspecto fundamental da obra de nossos mestres, mas voltar a fazer, como Lacan fez seu jardim à sa, nosso próprio jardim para sustentar a vitalidade da psicanálise. E isso será assim se nós, os analistas-analisantes, pudermos estar à altura das encruzilhadas em que nossa época nos coloca.
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 29-40, jul. 2011/jun. 2012
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RUKEıNKUG"KORNKECFC<" xkekuukvwfgu"fcu"rtâvkecu" enkpkeqrqnîvkecu Miriam Debieux Rosa1
Tguwoq< Este trabalho apresenta a prática psicanalítica clinicopolítica e seu campo epistemológico teórico-clínico de articulação entre psicanálise, sociedade e política. Essa prática lança desafios e exige estratégias em dois âmbitos: do sujeito e das práticas sociais. A escuta de sujeitos em contextos sociais violentos nos permitiu traçar coordenadas da clínica do traumático e suas estratégias e dispositivos. A direção possível de tratamento, sua ética e política baseiam-se em: restituir um campo mínimo de significantes referidos ao campo do Outro; articular o privado ao singular que promove a articulação ao laço social; romper com o discurso violento que se apresenta como simbólico e marcar a supressão de qualquer participação nesse gozo. Rcncxtcu/ejcxg< prática psicanalítica, trauma, psicanálise, angústia, luto. KORNKECVGF"RU[EJQCN[UKU<" xkekuukvwfgu"qh"enkpkecn"rqnkvkecn"rtcevkegu Cduvtcev< This paper presents the clinical-political psychoanalytical practice and its clinical-theoretical epistemological field of articulation between psychoanalysis, society and politics. This practice throws challenges and demands strategies in two areas: of the individual and of the social practices. We also present the coordinates of the clinic of the traumatic and its strategies and devices. The possible direction of treatment, its ethics and politics are based on: restoring a minimum field of significants referred to the field of the Other; articulating the private turned to the singular, which promotes the articulation to the social bond; breaking with the violent discourse that presents itself as symbolic and mark the supression of any participation in this enjoyment. Mg{yqtfu< practice of psychoanalysis, trauma, psychoanalysis, anxiety, grief. Psicanalista; Professora dos programas de pós-graduação em Psicologia Social (PUC-SP) e em Psicologia Clínica (IP-USP); Coordenadora do Laboratório Psicanálise e Sociedade e Projeto Migração e Cultura do IP-USP. E-mail:
[email protected]
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s experiências de atendimento psicanalítico em comunidades marcadas pela exclusão social e política e a escuta dos sujeitos afetados diretamente por situações sociais críticas lançam desafios e exigem problematizações teórico-conceituais necessárias para desvendar o enredamento do sujeito nas artimanhas do poder, assim como para apontar as especificidades dessa que chamamos de prática psicanalítica clinicopolítica. A articulação entre sujeito e enlaçamento social e político lança-nos na discussão da relação entre psicanálise dita em extensão ou psicanálise aplicada fora da clínica, dado que se beneficia também das contribuições dos autores da sociologia e da política. No entanto, a perspectiva que apresentamos neste trabalho é de que nos mantemos na esfera da clínica, pois política e sociedade são termos que relançam e explicitam a articulação da constituição subjetiva com o desejo, o gozo e a dimensão dos laços sociais como laços discursivos. Assim, entendemos essa prática não tanto como psicanálise aplicada, mas como psicanálise implicada, ou seja, aquela constituída pela escuta dos sujeitos situados precariamente no campo social que permite teorizações sobre os modos como são capturados e enredados pela maquinaria do poder. Tal teorização também constrói ou realça táticas clínicas junto a esses sujeitos, que remetem tanto à sua posição desejante no laço com o outro, como às modalidades de resistência aos processos de alienação social. Nossa prática psicanalítica tem elegido escutar as vidas secas (Rosa, 2002) – pessoas vivendo em situação de miserabilidade, adolescentes em conflito com a lei, pessoas que am por experiências desenraizantes – imigrantes, migrantes não documentados, refugiados. São trabalhos que rompem o silenciamento mortífero desses que se veem assujeitados a discursos que lhes vedam a condição de sujeitos. Entre outros, refiro-me a alguns estudos sobre a imigração japonesa (Carignato, 2002); deslocamentos migratórios, que lançam o sujeito em uma errância sem fim (Rosa; Carignato; Berta, 2006); violência doméstica (Cerruti, 2007); imes dos sujeitos em situação de guerra, a particularidade do luto e angústia promovidos pelo desaparecimento das pessoas contrárias à ditadura na Argentina (Berta, 2007); produção do luto impedido em situações atendidas por Alencar (2011), na periferia de S. Paulo; os militantes sem terra ameaçados de morte (Domingues, 2011); os sujeitos diante dos racismos, os adolescentes com dificuldades de inscrição no campo social (Carmo, 2011; Vicentin, 2010); a guerra aos ditos drogados (Alencar, 2011), entre outros temas que têm ocupado nosso grupo de trabalho. As especificidades dessa prática nos remetem a articulações em dois âmbitos: junto ao sujeito e junto às instituições e discursos sociais. O enredamento nos processos de constituição e de destituição do sujeito ao discurso 30 30
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ideológico pode ser elucidado tanto diretamente na abordagem clínica estrito senso, que encontra seus limites nesses contextos, como pela intervenção no plano discursivo e pela via da historização dos laços sociais em dados grupos sociais. As intervenções, nesses casos, visam criar condições de alterações do campo simbólico – subjetivo, social e político. É nessa medida que a psicanálise pode comparecer com elementos para favorecer modos de resistência à instrumentalização social do gozo e à manipulação da vida e da morte no campo social – um terrorismo do ponto de vista do poder soberano. Diz Lacan, em A ciência e a verdade: “Por nossa posição de sujeito sempre somos responsáveis. Que chamem a isto como quiserem, terrorismo” (1966, p.873). Tais práticas levantam questões metodológicas (individuais e-ou coletivas), armadilhas (intervir em nome do bem do outro) e imes quanto ao desejo do analista. A abordagem psicanalítica clinicopolítica do lado das instituições e práticas sociais (educacionais, saúde, jurídicas) dá destaque à alienação do sujeito aos discursos hegemônicos, de modo a visar ao avesso dos mecanismos de individualização, criminalização e patologização por eles produzidos. Propõe-se a sinalizar e intervir nas formas sutis de preconceitos de classe, de raça ou de gênero, presentes nesses mecanismos, que se efetivam de vários modos, inclusive através de práticas ditas científicas, que desvinculam os acontecimentos da história pessoal, familiar, institucional, social e política dos implicados na cena. Difere de uma abordagem de diagnósticos autoexplicativos, posição que se dá externamente à cena institucional em que o sujeito fica abstratamente suspenso da trajetória institucional, do contexto social e histórico, e seu comportamento pode ser imaginarizado como destituído de sentido, e desde aí remetido ao campo do orgânico, portador de patologias (Vicentin; Gramkow; Rosa, 2010). A prática clinicopolítica nesse âmbito relança as demandas institucionais, em geral focadas naqueles indivíduos que desorganizam ou atacam as normas institucionais. Essas são relançadas para diagnosticar, não o indivíduo, mas os laços sociais que atualizam os processos de exclusão em curso, e buscar reverter e inverter a direção das práticas, de modo a permitir a todos a elaboração de seu lugar na cena social. A direção de tratamento proposta junto às instituições parte da demanda e do sintoma referidos à instituição e seus efeitos no sujeito, em um posicionamento implicado na cena, na qual o que está em jogo são os lugares do sujeito no discurso, na relação do sujeito com a instituição, com o instituído e o instituinte. Elucida as trajetórias institucionais e efeitos, seja de ofertar um lugar simbólico, seja de induzir identidades imaginárias – nestas últimas, em lugar das histórias que podem ser contadas, produz-se silêncio e impedimento.
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A trajetória usual do trabalho analítico escuta o sujeito em sofrimento e o conduz ao confronto com sua equivocação quando, referido ao significante e ao campo do real, pode situar-se no simbólico em relação ao enigma que o constitui. No entanto, muitas vezes, pelo efeito da alienação e silenciamento promovidos pelas situações acima referidas e pelos imes no confronto com o discurso hegemônico, o trabalho necessita de estratégias de enfrentamento, mesmo porque dificilmente os sujeitos procuram ou têm o aos modos tradicionais da clínica. Nessa medida que acrescentamos, à clinica, o aspecto político. O campo das práticas psicanalíticas clinicopolíticas nos põe em contato com situações clínicas que, se não lhes são exclusivas, se destacam. Ou seja, nessas circunstâncias encontramos sujeitos sob o efeito disruptivo da exposição à manifestação violenta da face obscena do Outro e impactados pela angústia em sua dimensão traumática, que muitas vezes é impeditivo da construção de sua demanda ao atendimento clínico. C"enîpkec"fq"vtcwoâvkeq A prática clinicopolítica do lado do sujeito depara-se com a questão da angústia e do luto em sua face política, ou seja, a produção sociopolítica da angústia e o impedimento dos processos subjetivos do luto. Trata-se dos casos em que o sujeito não construiu uma resposta metafórica, um sintoma através do qual possa falar de seu sofrimento e endereçar uma demanda. Através dos atendimentos, avançamos na formulação sobre as intervenções psicanalíticas nas situações de falta de endereçamento ao Outro, articulada às dimensões de trauma e luto; muitas vezes, luto impedido ou negado às pessoas que sofrem as diversas modalidades de violências e rupturas (Rosa et al. 2002, 2006, 2012). Em situações de violência pode haver a suspensão do luto e uma posição melancólica em que o sujeito não nomeia a dor eternizada, que não a. A angústia surge justamente quando não há distância entre a demanda inconsciente e a resposta do Outro, quando se perde a distância entre o enunciado e a enunciação. Nessa distância que se produziria a condição do desejo, ou seja, quando a metonímia atravessa a ficção de sujeito construída, mas desconstruída e reinventada, mantendo o deslizamento significante do discurso e marcando a condição errante e nômade do desejo. A ficção do sujeito, metáfora e nível sincrônico do discurso, alude ao ponto de basta que circunscreve, revela e veda a verdade do sujeito. Ambos são concomitantes e compõem a historicização do sujeito. As situações de violência favorecem 32 32
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dissociações nesse processo. De um lado, um movimento contínuo sem ponto de báscula, que pode resultar no desenraizamento do sujeito e numa errância sem fim; ou, de outro lado, a identidade cristalizada alienante que retira o sujeito de sua condição desejante (Rosa; Carignato; Berta, 2006). O excesso de consistência do acontecimento ou, dito de outro modo, o embate com a violência obscena do Outro, lança o sujeito na condição de “não poder não recordar”, modo como Agamben (2002) descreve a condição de pessoas nos campos de concentração. Trata-se de um impedimento do esquecimento, do recalque necessário para separar-se do acontecimento. Pudemos identificar nos sujeitos que se confrontam com essa dimensão do Outro uma perda do laço identificatório com o semelhante, um abalo narcísico que o lança à angústia e ao desamparo discursivo, que desarticulam sua ficção fantasmática e promovem um sem-lugar no discurso, impossibilitando-os do contorno simbólico do sintoma e de construir uma demanda. A angústia, nesses casos, apresenta-se não como manifestação sintomática (caso da angústia neurótica em Freud), tampouco como fuga, mas como um tempo no qual o sujeito custa a se localizar e que, por essa razão, é vinculado ao sentimento de estranheza, o unheimlich freudiano (2006). Esse tempo, no qual o sujeito custa a se localizar, tem efeitos em sua posição subjetiva e no laço social. Tais condições se traduzem num silenciamento: silenciado sob o signo da morte, o sujeito é fadado a vagar sem pouso, sendo-lhe vedada a experiência compartilhada, a posição de ador da cultura. E, muitas vezes, no lugar do significante que possibilite apresentar a ausência do Outro, assim como o excesso de presença, sob um véu, apresentam-se imagens ao modo da loucura individual ou coletiva (Lacan, 1958/59). Esse silêncio, a dor e a falta de demanda são as vicissitudes do psicanalista nessa clínica. Se não há demanda, se a dor é presumida pelos fatos e pelo vazio do silêncio, o que sustenta a posição do analista? Que direção dar a essa clínica? Woc"fktgèçq"rquuîxgn"fg"vtcvcogpvq"gvkec"g"rqnîvkec As vicissitudes da prática psicanalítica nos remetem à formulação de uma direção possível de tratamento, que leve em conta que, nas situações sociais críticas, para tratar o trauma provocado pela intervenção do Outro totalitário, que pretende apagar todas as marcas da subjetividade e reduzir os homens a restos. Nessas circunstâncias, é necessário um trabalho que finque suas bases na reconstituição do laço social, norteadora do funcionamento do campo social. Essas estratégias visam restituir um campo mínimo de significantes,
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referidos ao campo do Outro, para que possam circular, o que permite ao sujeito localizar-se e poder dar valor e sentido à sua experiência de dor, articulando um apelo que o retire do silenciamento. Ou seja, visa-se à transformação do trauma em experiência compartilhada e na construção da posição de testemunha, transmissor da cultura. Além disso, usamos as estratégias que levam em consideração as precondições sociopolíticas e subjetivas necessárias para a elaboração do luto, para fazer valer a dimensão do desejo, melhor defesa contra o gozo mortífero. Os casos de Isac e Nahib (nomes fictícios de pessoas atendidas por Christian Haritçalde, da equipe do projeto Migração e Cultura, da USP2) nos introduz às nossas considerações. De volta ao lar, depois do trabalho, Isac e o irmão, africanos do Congo, encontraram sua casa, com os pais e outros irmãos, incendiada por rebeldes. Em pânico, os irmãos fogem, cada um em uma direção, para garantir chances de sobrevivência para pelo menos um deles. Isac pega um navio e vem para o Brasil, e aqui é abrigado na Casa do Migrante. Tem insônia e crises de angústia com as imagens da casa incendiada. Considera que seu maior sofrimento é não saber o destino ou paradeiro do irmão e não ter como ou onde procurá-lo. Nahib quer morrer e tenta se matar. Depois de assassinados seus pais, por questões políticas em Angola, foge e, ao chegar ao Brasil, tem a notícia de que as duas irmãs que ficaram foram também assassinadas. Como abordar a questão da angústia e do luto, tanto considerando a produção sociopolítica da angústia, como o impedimento político do processamento subjetivo das situações traumáticas? Os sujeitos sob o efeito destrutivo de situações traumáticas podem desarticular sua ficção fantasmática e perder o laço identificatório dos semelhantes para com eles – estes tendem a recuar diante do terror – com o que perdem a sua solidariedade e são lançados fora da política. Tais condições promovem um sem lugar no discurso, impossibilitando
Trata-se de trabalho de extensão universitária desenvolvida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e teve seu início em 2004, a partir do pós-doutorado “História, Clínica e a Cultura em Psicanálise”, de Taeco Toma Carignato. Faz parte das atividades do Laboratório Psicanálise e Sociedade do IP-USP e do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Curso de Pós-graduação de Psicologia Social da PUC-SP. A Casa do Migrante visa acolher migrantes brasileiros recém-chegados; imigrantes e refugiados, indivíduos envolvidos no drama mundial da mobilidade humana, sem distinção de sexo, etnia, cor, credo, nacionalidade ou qualquer outra forma ível de discriminação. Trata-se de um trabalho da Missão Escalabriniana junto aos migrantes. As intervenções são realizadas por estagiários e supervisionadas por psicanalistas e coordenadas por mim.
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os sujeitos de construírem uma demanda. Isso se traduz num silenciamento, sob o signo da solidão e da morte. O que está em jogo é a potência enlouquecedora do traumático, pois, segundo Pujó, o encontro com uma mesmidade, sem maior deslocamento, nem metaforização, desnuda a incoercível resistência do trauma à sua tramitação. As condições de degradação põem em destaque a necessidade vital de velamento do caráter mortificante do impacto pulsional, ou seja, “a necessidade de faltar ao Outro ali onde o sujeito experimenta-se gozado” (Pujó, 2000, p.29). Nas guerras, com ou sem nome, trava-se outra guerra, entre a resistência do sujeito e a resistência do trauma e sua insistência em enlouquecer o sujeito de sua completude. Fcu"ctvkojcu"fq"rqfgt"ä"cnkgpcèçq"guvtwvwtcn"cq"fkuewtuq"fq"Qwvtq A prática clinicopolítica, nessas circunstâncias, encontra um primeiro desafio: é fundamental separar o enredamento da alienação estrutural ao discurso do Outro das artimanhas ideológicas do poder. A perspectiva do inconsciente como discurso do Outro, tesouro dos significantes, nesses casos, perde sua eficácia para ganhar destaque como modalidade de poder sobre o sujeito ¯ há efeitos alienantes, por vezes trágicos, do modo como o discurso social e político, carregado de interesses e sede de poder, se traveste de discurso do Outro, para capturar o sujeito em suas malhas, seja na constituição subjetiva, seja nas circunstâncias que promovem certa destituição subjetiva. O sujeito é instado a se equivocar e tomar esse discurso totalitário como referência ao Outro, ao campo da linguagem. Por essa estratégia de manipulação, esse discurso busca confundir a dimensão do impossível (referida à castração), com a dimensão do proibido (referido à lei). Tal discurso, por vezes convertido em práticas sociais, apresenta um Outro consistente e-ou não-castrado, regido por uma voracidade, por vezes de uma violência obscena, e interessado na manutenção sociopolítica. Apresentado como hegemônico e universalizado, desarvora o sujeito quanto a seu lugar discursivo, destacado que se torna da sua história pessoal, familiar ou sociocultural e política. Incide sobre o sujeito e sua trajetória, na cena familiar e na cena social – sobre seu luto, seu enlace em novos grupos e sua reorganização subjetiva, seu embate com a lei. O trabalho analítico nessa direção é baseado na escuta clínica, mas ocorre na diversidade das intervenções: em atividades grupais sobre várias temáticas, em oficinas, em escutas singulares, nas intervenções institucionais, na articulação de redes de atenção e na publicização dos acontecimentos e conflitos nas instituições e na vida social. Põe à prova o desejo do analista e 35
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seus ideais de análise baseado nas estratégias convencionais, o que pode ser fundamental na formação de um analista! A oferta de uma escuta que “supõe romper barreiras e resgatar a experiência compartilhada com o outro, deve ser uma escuta como testemunho e resgate da memória” (Rosa, 2002, p.47). Escuta em que se utiliza a presença e a palavra. Presença em que o analista é convocado a ar e servir de mola ao relançamento das significações. Nesse sentido, ressaltamos que a “presença da palavra” se a pela “presença do analista”. A clínica do traumático convoca o analista a tensionar um espaço entre enunciado e enunciação, abrindo espaço para a fala, a dizer “diga mais” e, a partir daí, podem se instalar as condições necessárias para a localização subjetiva. Pois existe uma diferença fundamental entre o silêncio mortífero e o silêncio sintomático. Sintomatizar o silêncio – cavado na angústia, no instante perpétuo, no estado melancólico – é a isso que apontamos nesse tipo de intervenções clínicas. No entanto, essa é uma meta e não ponto de partida. Meta que pode ser constituída de intervenções a partir do ponto em que esse sujeito está localizado – algumas vezes falamos com ele, outras acompanhamos nas trajetórias pela cidade, outras procuramos com ele seus pares e apoios afetivos – são estratégias que provocam o rompimento da alienação e redesenham uma ficção de si mesmo e do outro, para apoio na produção de um lugar discursivo. Fq"vtcwoc"ä"gzrgtkgpekc"eqorctvknjcfc
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Isac viu-se diante de um ime que exigiu uma resposta em face do horror que a ele se apresentou: salvou sua vida com a fuga do país. A escolha de Isac precipitou-o em um para aquém da fantasia ou da culpa. Paralisado na perenidade traumática, fica sem lugar de onde poder falar. Parte do país, mas não se parte, não se divide, não se separa. No silêncio mortífero do exílio fica reduzido a ser a dor, mensageiro da morte e do fracasso. Mais ainda, perde o laço identificatório dos semelhantes para com ele, sua solidariedade, pois tendem a recuar diante do horror, tal, como veremos, foi abordado por Agamben (2002) através da figura do “mulçumano”. Em seu livro Lo que queda de Auschwitz, Agamben (2002) apresenta a figura do “mulçumano” – nome que designava os mortos-vivos nos campos de concentração, emblemática do estado limite a que chegaram algumas pessoas e que pode expressar uma alegoria da condição de exclusão. Consideramos (Rosa; Poli, 2009) que a condição desse muçulmano, de “não poder não recordar”, faz pensar em um impedimento do esquecimento, do recalque necessário para separar-se do acontecimento. O excesso de consistência do
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acontecimento lança o sujeito em um monótono e desesperançoso presente, lança o sujeito aparentemente fora da política e retira-o da experiência compartilhada que escreveria a história do sujeito e da comunidade. Para recompor um lugar discursivo, para que se faça laço social, é preciso se partir – romper com o lugar alienado instituído pelo discurso ideológico. Condição essa necessária para reconstruir a história perdida na memória, reconstrução que já implica uma deformação, permitindo o luto e uma resposta reinterpretando o ado, construindo uma narrativa ficcional que o situe no laço social. Consideramos que, concebidos assim, os recursos aos significantes advindos e articulados à experiência constituem pressupostos éticos que transcendem o campo ideológico, dizendo respeito antes ao domínio da política (o laço com os outros) e da cultura (a relação ao Outro). Esse trabalho tem sua eficácia na articulação entre o privado, transformado em patológico ou criminalizado, e a eficácia da circulação significante, no público, no coletivo, ou, mais precisamente, no laço social, na aposta pública de que é possível, no laço, um outro lugar para o sujeito. ar por acontecimentos em relação aos quais não se tem a menor possibilidade de reconhecimento, pois sucedem ao largo do imaginável ou imaginarizável, leva a novo ime ético e clínico. É um ime que implica não a responsabilização do sujeito, mas o rompimento com esse campo simbólico; não o assentimento subjetivo de sua participação, mas a supressão de qualquer participação nesse gozo. A partir dessas considerações, podese conceber um trabalho clínico que possibilite a construção da posição de testemunha, transmissora da cultura, como diz Hassoun, que componha a trama ficcional pela elaboração não toda do luto impossível de significar, na transformação do trauma em experiência compartilhada. Restituir um campo mínimo de significantes que possam circular, referidos ao campo do Outro, permite ao sujeito localizar-se e poder dar valor e sentido à sua experiência, articulando um apelo que o retire do silenciamento. Está em jogo não somente a reconstituição narcísica de sua imagem, mas também a recomposição do lugar a partir do qual se vê amável para o Outro (ideal do eu), reafirmando uma posição que lhe permita localizar-se no mundo e estabelecer laços sociais, inclusive os analíticos. As dimensões públicas e coletivas dessa prática, que se traduzem de modos diferentes em cada caso, costumam supor uma elaboração coletiva do trauma. Parece ser, por meio da recuperação da história social e política, mas também da explicitação das distorções do campo imaginário/simbólico, social e político, que o sujeito se situa em uma história, reconstituindo o campo ficcional. A base teórica dessa dimensão está presente em Lacan – em trabalho 37
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sobre Hamlet, oferece a base teórica para tratar da perda que, rejeitada no simbólico, reaparece no real. Lacan destaca a dimensão ritual e coletiva como precondição à elaboração individual do luto. Diz: “Os ritos são a intervenção maciça de todo jogo simbólico – uma satisfação dada ao que se produz de desordem em razão da insuficiência dos significantes para fazer face ao buraco criado na existência” (Lacan, 2002, p.100). Essa constatação pode ser traduzida em estratégia clínica: para tratar o trauma provocado pela intervenção do Outro totalitário, que tenta apagar todas as marcas da subjetividade, é necessária uma elaboração que finque suas bases na reconstituição das leis que norteiam o funcionamento do campo social. Essa é a razão pela qual sustentamos que o fenômeno social traumático deve ser inscrito e elaborado no nível coletivo, sem desmerecer as respostas singulares. A prática clinicopolítica e a clínica do traumático lançam desafios e exigem intervenções não convencionais. A publicização pode favorecer a desidentificação do sujeito à vertente imaginária do acontecimento, travestida de simbólica, para que prevaleça demarcar a dimensão histórica e cultural dos fatos sociais e políticos. Nesse processo é fundamental a possibilidade de oferecer um reencontro com o Outro receptivo à escuta, disponível para oferecer um campo de saber capaz de desestabilizar e colocar entre aspas a série de identificações que desqualificam e aprisionam o sujeito fora do campo social. Nossa aposta está na recuperação da polissemia da palavra, para que ela não seja apenas instrumento de gozo. As estratégias de intervenção apresentadas neste artigo foram modos de enlaçar uma palavra perdida, à deriva, - que na infância é confrontada à angustia das origens e, na adolescência, com a possibilidade do encontro com o sexual -, através da composição de uma trama ficcional que pudesse os proteger da difícil presença do real. Desse ângulo, há situações em que o espaço público, seja na rua ou nas instituições, é o lugar privilegiado de um trabalho analítico onde se pode autenticar outra posição para o sujeito. Fica evidente a articulação à ética da psicanálise. Com Zizek, consideramos que, “É preciso arriscar e decidir.... Não busque apoio em nenhuma forma de Outro maiúsculo – mesmo que esse Outro maiúsculo seja totalmente vazio. É preciso arriscar o ato sem garantias. Nesse sentido, o fundamento supremo da ética é político” (Zizek, 2005, p.201). Nessa afirmação, o autor subverte a relação que empalidece a política em face da ética ou que afirma a ética como fundamento da política. Ele ainda diz que, em Lacan, a ética despolitizada é uma traição ética, porque significa confiança em alguma imagem do grande Outro. Mas o ato lacaniano é, precisamente, o ato em que se presume que 38 38
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não existe grande Outro. É nessa dimensão que a escuta psicanalítica pode contribuir para emergência de um sujeito que se separa dessa ordenação, para comparecer como questionamento a essa ordem e se movimenta, criando ações de transformação; nessa dimensão, é reconhecendo-se como falta-aser que a alteridade, a diferença, não é significada como ameaça, mas como encontro, com o qual se faz o novo. REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. Homo sacer: lo que queda de Auschwitz: el archivo y el testigo. (Vol. III). Valencia: Pré-textos, 2002. ALENCAR, Rodrigo. O crack no laço social: rupturas em um discurso consensual. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2012. ALENCAR, Sandra Luisa de Souza. A experiencia do luto em situação de violência: entre duas mortes. 2011. XX f. Tese (Doutorado em Psicologia Social). Faculdade de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011. BERTA, S. L. O exílio: vicissitudes do luto. Reflexões sobre o exílio político dos argentinos (1976-1983). 132 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo, 2007. CARIGNATO, Taeco Toma. Porque eles migram? In: Carignato, T. T. et al Psicanálise, cultura e migração. São Paulo: YM Editora & Grafica, 2002, p.55-66. CARMO, Viviane Sousa do. O anonimato da morte: laço social na adolescência. 2011. Tese (Doutorado em Psicologia Social). Faculdade de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011. CERRUTI, Marta Quaglia. Bate-se em uma mulher: imes da vitimização. 2001. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo. 2007. DOMINGUES, Eliane. Os dilemas do militante no MST. 2011. Tese (Doutorado em Psicologia Social). Faculdade de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011. HASSOUN, Jacques. Los contrabandistas de la memoria. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1996. Col. Inconsciente Y Cultura. KNUDSEN, Patricia Porchat Pereira da Silva. Gênero, psicanálise e Judith Butler: do transexualismo à política. 2007. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica). Faculdade de Psicologia. Universidade de São Paulo. 2007. LACAN, Jacques. O seminário. Livro VI. O desejo e sua interpretação. [1958-1959]. Tradução da Associação Psicanalítica de Porto Alegre a partir do texto estabelecido pela Association Freudienne Internationale, 2002. LACAN, Jacques. A ciência e a verdade. [1966-1988] In______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. PUJÓ, Mario. Trauma e desamparo. Revista Psicoanálisis y el hospital, Clínica do Desamparo, Buenos Aires: Ediciones Del Seminário, vol. 17, p.29, 2000.
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 41-53, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
UCDGT"G"VTCDCNJQ"PC"XKFC" UGETGVC"FCU"RCNCXTCU ardo Bonifácio Gomes Júnior1 Daisy Moreira Cunha2 Yves Schwartz3
Tguwoq< Este artigo busca pensar a relação entre trabalho e saber a partir do filme A vida secreta das palavras, de Isabel Coixet, 2005. O conceito ergológico de uso de si e a noção psicanalítica de saber fazer com o sintoma são aqui articulados como forma de pensarmos as possibilidades de um ganho de saber com o trabalho na vida secreta das palavras. Rcncxtcu/ejcxg< trabalho, saber, uso de si, sintoma. MPQYNGFIG"F"YQTM"KP"VJG"UGETGV"NKHG"QH"YQTFU Cduvtcev<"This paper seeks to reflect on the relationship between work and knowledge from the film The Secret Life of Words, Isabel Coixet, 2005. The ergologic concept of the use of onself and the psychoanalytic notion of know-how to deal with the symptom are articulated in this study as a way of thinking about the possibilities of some knowledge gain with the work in the secret life of words. Mg{yqtfu< work, knowledge, use of onself, symptom.
Professor da Faculdade de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Minas Gerais; Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e em Ergologia pelo Instituto de Ergologia da Universidade Aix-Marseille. E-mail:
[email protected] 1
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ardo Bonifácio Gomes Júnior, Daisy Moreira Cunha e Yves Schwartz
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que é o trabalho? Até que ponto a concepção que temos dele não porta, ela mesma, poderosos preconceitos que operam profundos processos de exclusão? Não seria a separação da dimensão do trabalho stricto sensu daquela do ato mesmo de viver, do trabalho da vida, uma potente forma de exclusão? O que a não separação entre trabalho e vida pode operar como ganho de saber? As experiências do lar, da escola e do trabalho fazem circular valores, nesses campos, que os tornam inseparáveis. Dos primeiros aprendizados no lar, do tempo de escola àquele do trabalho, os traços, as linhas, as marcas de nossas vivências, com maior ou menor violência, vão compondo a experiência de vida de cada um de nós. As palavras aí, como a psicanálise nos ensina, criam sua vida secreta. Nossos sintomas não prescindem do que fazemos com as palavras, que dão vida a nossas vivências e experiências. São elas que lhes dão a estrutura. A saída aí, sempre singular, parece incluir um savoir y faire com o sintoma, que guarda suas relações com savoir-faire que o trabalho comporta, um saber fazer aí com nosso modo sintomático de viver. Nossa atividade na vida que chamamos “trabalho” é sempre investida nesse saber fazer aí com isso. Fq"hknog."cniq"uqdtg"q"vtcdcnjq"g"c"xkfc
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“No fundo, há tão poucas coisas. Milhões e milhões de toneladas de água, rochas e gás. Afeto. Sangue. Cem minutos. Mil anos. Cinzas. Luz. Agora. Agora mesmo. Um tempo atrás. Disse-lhes antes, não foi? Há muito poucas coisas: silêncio e palavras”. Essas palavras narradas por uma voz de criança iniciam a película A vida secreta das palavras (Isabel Coixet, 2005). O filme da diretora Isabel Coixet conta a história de Hanna (Sarah Polley), uma mulher de 30 anos, parcialmente surda, solitária, silenciosa e fechada em seu mundo. Empregada exemplar em uma fábrica têxtil, certo dia, no fim da jornada de trabalho é advertida por um colega para ligar seu aparelho de surdez, pois está sendo chamada pelo serviço de alto-falante da fábrica para comparecer à diretoria. Lá é convencida pelo diretor a tirar um mês de férias. Há pressão do sindicato e dos colegas contra seu padrão excessivamente adequado à produção. Seguindo a sugestão de seu chefe, ela segue de férias para um pequeno povoado costeiro. Antes de sua partida, vemos Hanna em casa, comendo os mesmos nuggets, arroz e meia maçã de sua refeição diária. Na bagagem para a viagem, ela coloca vários sabonetes, todos iguais, como elementos que compõem sua rotina. No local das férias ela escuta da conversa de um desconhecido ao telefone que estão precisando de enfermeira para cuidar de um trabalhador
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acidentado em uma plataforma petrolífera. Decidida do que fazer com o vazio do tempo das férias, ela se oferece para realizar o trabalho. Hanna se expressa pouco, mesmo seu rosto tem sempre a mesma expressão séria, entristecida e concentrada. As poucas palavras que fala denotam uma objetividade quase constrangedora. Aos poucos descobrimos que Hanna é enfermeira, trabalhou com queimados e que é estrangeira. Mas há muito mais a descobrir. Na plataforma de petróleo, desativada devido a recente acidente, ela encontra seu paciente, Josef (Tim Robbins), um homem que sofreu uma série de queimaduras que o deixaram temporariamente cego e bastante comprometido para remoção até o hospital. No primeiro contato dos dois, Josef, cego, procura com as palavras se aproximar de Hanna e criar alguma imagem da mulher que dele cuida, não sem tentar estabelecer com Hanna alguma intimidade. Os contatos entre os dois personagens são estabelecidos pelos cuidados de enfermagem prestados por Hanna e pelas constantes questões que Josef faz sobre a vida e o cotidiano de Hanna. Ela se restringe às obrigações de enfermeira, sem respostas, sem intimidade, sem nem mesmo dizer seu nome, que Josef tentara adivinhar e acaba por nomeá-la Cora. Era o nome de uma freira que cuidou de um jovem e que, diante da morte deste, ela descobre que o amava. Um encontro delicado e belo começa a se estabelecer entre estes dois personagens, quando a cegueira temporária de Josef, que lhe impõe a necessidade de recriar as imagens de seu mundo com palavras, se depara com o mundo particular de Hanna, um meio mantido sob controle, como que ao alcance do botão de seu aparelho de surdez. Nesse encontro entre a audição, agora necessária para Hanna, e a fala como único recurso para Josef, imobilizado e cego, as palavras ganham uma inigualável força vital, desvelando segredos. Aos poucos, as frases engraçadas, brincadeiras e piadas que Josef cria no contato com Hanna vão fazendo sua expressão facial mudar, pequenos sorrisos se esboçam e algumas confissões tomam o lugar do silêncio e da defesa. Os então habitantes da plataforma de petróleo são Hanna e Josef, um ganso que se chama Lisa, e mais seis homens: Simon, Abdul, Dimitri, Martin, Scott e Liam. A singular história de cada um desses habitantes vai saindo da boca, aos poucos, desses portadores da vida secreta das palavras. Personagens que escolheram um trabalho que lhes preserva a solidão como forma de viver em paz. Simon é um exímio cozinheiro, diz que, para ar o tédio do local e não ficar louco, cozinha pratos de diferentes nacionalidades ao som das músicas de cada país. Martin é oceanógrafo e gosta de jogar basquete sozinho. Seu trabalho é medir o número de ondas que se chocam contra a plataforma todo dia, a força do mar. Scott e Liam cuidam da casa de máquinas; eles têm, cada um, sua família e filhos e vivem ali, na plataforma, uma relação amorosa. Abdul trata da limpeza. Delicadamente, Hanna se integra àqueles
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habitantes exatamente por se sentir confortável em meio a seus inabituais mas familiares silêncios e palavras, repletos de solidão e lembranças. Dimitri, o encarregado geral, é quem um dia relata, a pedido de Hanna, o acidente que feriu Josef e matou o melhor amigo deste. As palavras de Dimitri sobre a morte do amigo de Josef são: Esse homem queria se matar. Se lançou às chamas. Josef tentou salvá-lo, mas... tudo aconteceu muito rápido. Todos vimos ele se jogando às chamas. Não dissemos à companhia tudo o que se ou. Deixamos que pensassem que foi um acidente. Esse homem deixou uma mulher e dois filhos. Por que dizer a verdade? Deixamos que pensassem que morreu acidentalmente. Isso deixaria dinheiro para a família. E... no fundo... tudo é um acidente.
O filme segue. Haveria muito mais para contar... mas ficaremos por aqui. Vtcdcnjq"g"wuq"fg"uk O termo “uso de si” é apresentado no artigo Trabalho e uso de si (Schwartz, 2000). A escolha das palavras para intitular este artigo já nos dá importante indicação do conteúdo das ideias que serão apresentadas. Esse título faz a conjunção de duas noções centrais para a démarche ergológica4, “trabalho” e “uso de si”. Essa conjunção já nos conduz a pensar no nexo que se estabelecerá entre o trabalho e a expressão “uso de si”, de conotação enigmática, que causa estranhamento por tomar o “si” por objeto de um “uso”. Um estranhamento que se intensifica pela suposta clareza denotativa dos termos “uso” e “si” quando tomados separadamente. A problemática sobre a qual a tese do texto será erigida aparece em sua primeira linha: “O trabalho é um lugar adequado para se abordar o problema
Démarche de análise da atividade de trabalho desenvolvida pelo Departamento de Ergologia da Universidade de Provence (www.ergologie.com). Seguindo a tradição de George Canguilhem na epistemologia sa, o ergológico é apreendido em relação ao epistêmico. Se o esforço epistêmico corresponde à exigência de trabalho de construir, precisar e complexificar os conceitos, libertando-os de sua aderência local às normas e valores da dimensão histórica dos fenômenos, da vida em geral, o esforço ergológico num movimento inverso, busca aproximar os conceitos de suas aderências locais e sempre singulares para fazê-los avançar assim como desenvolver a atividade em questão. Na ergologia, o trabalho é analisado como atividade humana implicando sempre um “uso de si”, por si e pelo outro, noção esta que busca operar com o mais singular das atividades humanas.
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da subjetividade?” É sobre essa questão que será desenvolvida a argumentação do texto que: [...] enfoca o trabalho como lugar de debate, um espaço de possíveis sempre a negociar onde não existe execução, mas uso, e o indivíduo no seu todo é convocado na atividade. Assim, o trabalho envolve sempre uso de si. Há uso de si pelos outros, já que o trabalho é, em parte, heterodeterminado por meio de normas, prescrições e valores constituídos historicamente. Porém, há também uso de si por si, já que os trabalhadores renormalizam as prescrições, e criam estratégias singulares para enfrentar os desafios de seu meio (Schwartz, 2000, p.34).
O termo “uso” é tomado para marcar essa dimensão de uma “demanda específica e incontornável feita a uma entidade que se supõe de algum modo uma livre disposição de um capital pessoal” (Schwartz, 2000, p.41). Para nomear essa entidade, a escolha do “si” é justificada pela tentativa de evitar outros termos como “sujeito” e “subjetividade”, já bastante “codificados” por outros campos, como a filosofia, a psicologia e a psicanálise. O termo deveria ser novo, causar certo desconforto, não acomodar rapidamente o entendimento do que se destacava nos quadros conceituais já existentes. Mas, por outro lado, deveria preservar a herança de George Canguilhem no entendimento da dinâmica da vida. Se o texto, ao cunhar o conceito de “uso de si”, busca deslocar a noção de subjetividade, reivindicando a potência do campo do trabalho humano como lugar para abordá-la, também o faz buscando deslocar a própria ideia de trabalho, propondo a noção de “atividades industriosas”. O industrioso aqui denota o engenhoso, a indústria no sentido de astúcia em se fazer algo. Esse termo é utilizado prenunciando outra referência que não aquela dos estereótipos das ideias associadas ao trabalho: “o lugar do mecânico e do repetitivo”; quando a “seriação das coisas” e a “codificação dos procedimentos” postulam a “indiferenciação dos seres”; “trabalho que constrange”, “operador de embrutecimento, de escravidão e de despersonalização”. Pois se há estereótipos das ideias associadas ao trabalho, eles não estão disjuntos de outros estereótipos que dissociam o campo da subjetividade daquele da produção social, na crença de que este último não pode exprimir “senão parcialmente os traços de sua presença” (Schwartz, 2000, p.35). O “uso de si” está presente na cena do trabalho como espaço de uma tensão, sempre problemática, de possíveis a se negociar. Ele inclui o uso que 45
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é feito do sujeito e aquele que ele faz de si mesmo. O trabalho é sempre um lugar de debate, no qual, sob o ponto de vista ergológico, não há propriamente execução, realização de algo, mas uso, aplicação, emprego, prática, hábitos e costumes. Há assim duas dimensões intercambiantes e inseparáveis: “o uso pelos outros” – identificáveis na dimensão de heterodeterminação do trabalho presente nas normas, prescrições e valores constituídos historicamente; e “o uso por si” – presente nas renormalizações que o sujeito faz das prescrições da tarefa e na criação de estratégias singulares de enfrentamento das situações de trabalho. “A maneira como se organiza a relação entre os dois sentidos do “uso” importa muito para a investigação sobre o sujeito” (Schwartz, 2000, p.42). Q"vtcdcnjq"g"q"ucxqkt"{"hcktg"fc"xkfc"eqvkfkc Queremos aqui pensar o que pode haver de ordinário no próprio saber fazer com o sintoma no campo do trabalho. Freud ([1901] 1976) nos deixou o legado de uma Psicopatologia da vida cotidiana, título que expõe um paradoxo, pois não se espera dos fenômenos patológicos da vida psíquica uma presença no cotidiano. De certa forma, o que Freud faz neste texto é demonstrar a atividade do sintoma no coração da prática cotidiana da vida social, interrogando a “normalidade” cotidiana no e pelo registro do sintoma (Assoun, 2009). Não podemos também pensar em um savoir y faire da vida cotidiana quando trazemos a dimensão do uso de si no trabalho da vida? É remarcável nas histórias de vidas, assim como nos relatos de casos de analisantes, a frequência com que as saídas dos imes da vida acontecem pela via de um saber fazer com o amor e o trabalho, como novos destinos às pulsões outrora fixadas ao sintoma, como novas rotinas inventivas. Por outro lado, é também frequente o amor e o trabalho como foco das idealizações e recalques próprios à estrutura e manutenção do sintoma como um problema, como uma rotina mortificada, sem invenção. Esses campos, o amor e o trabalho, que enlaçam nossa vida íntima e social, parecem mesmo férteis ao cultivo de formas, deslocadas em seu objetivo, de satisfação da pulsão. Mas se o campo do amor nos permite certa configuração do domínio da sexualidade, nos parece que é principalmente pelo trabalho que a dessexualização da pulsão encontra a via preferencial de um objetivo sublimatório da pulsão. É Freud ([1930] 1976, p.99) quem nos afirma em uma nota, em O malestar na civilização: Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho,
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pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de compo-nentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade. A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto é, se, por meio de sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de moções pulsionais5 persistentes ou constitucionalmente reforçados.
O trabalho para Freud tem um valor indispensável em afirmar e justificar para cada um sua existência na sociedade. Freud deixa claro também que o trabalho como fonte de satisfação inclui uma “livre escolha”. Essa liberdade de escolha inclui o uso de algo de si que já está lá, que persiste, que se impõe como uma inclinação, como algo constitucional. Institui-se sobre o constituído das moções pulsionais. A satisfação no trabalho acontece então pela sublimação, por certo uso das moções pulsionais. Na sublimação, encontramos uma satisfação da pulsão parcial, mas de forma inibida e-ou desviada quanto a seu objetivo. Se, por um lado, a pulsão na sublimação está investida na criação de objetos com forte valorização social, ou seja, em ligação com o processo de civilização, por outro, está inibida quanto a seu caráter exclusivamente sexual, agressivo e disruptivo da dimensão social. A sublimação difere da idealização; nesta estamos mais próximos da função do recalcamento na causação da neurose. No seminário De um Outro ao outro, Lacan ([1968-1969] 2008, p.209), ao retomar esse mesmo ponto da argumentação de Freud, destaca que na sublimação: [...] ao contrário da interferência censora que caracteriza a Verdrängung [o recalcamento], e, numa palavra, do princípio que cria obstáculos à emergência do trabalho, a sublimação como tal, propriamente falando, é uma modalidade de satisfação da pulsão.
Optamos aqui pela expressão, traduzida do texto em francês, motions pulsionnelles que denota melhor o que está em jogo, que a expressão em português “impulsos instintivos”.
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Parece haver na sublimação um saber em questão que seria da ordem daquilo que o sujeito adquire da satisfação do que faz com a pulsão. Uma sublime ação com a pulsão. Lacan enfatiza esse fazer “com” na sublimação, afirmando que esta “caracteriza-se por um mit dem Trieb, com a pulsão” (p.209) e retoma a formulação de Aristóteles: “Não se deve dizer que a alma pensa, mas que o homem pensa com sua alma” e afirma que “é cativante reencontrála aqui na pluma de Freud. Alguma coisa se satisfaz com a pulsão” (Lacan, [1968-1969] 2008, p.215). É nesse seminário ainda que Lacan nos fala do savoir y faire. Ele o introduz para responder à questão: “A que satisfação pode responder o próprio saber?” (p. 202). Lacan aproxima o saber fazer aí do savoir-faire e o distancia deste, ao mesmo tempo, com um savoir y être. Nesse seminário em francês encontramos a seguinte frase: “Ce savoir y faire est un peu trop proche encore du savoir-faire, sur lequel il a pu y avoir tout à l’heure un malentendu que j’ai favorisé d’ailleurs, histoire de vous attraper là où il faut, au ventre.C’est plutôt savoir y être”. Um saber fazer aí, que se aproxima do saber-fazer, mas que é mais um saber estar aí. Curiosamente, essa riqueza das expressões escolhidas por Lacan parece perder sua força pela forma escolhida na tradução brasileira: “Esse saber haver-se ainda é meio próximo demais do savoir-faire, sobre o qual pode ter havido um mal-entendido agora há pouco, o qual aliás favoreci, para agarrar vocês por onde convém, pelo ventre. Trata-se mais de um saber haver-se” (Lacan, [1968-1969] 2008, p.202). Lacan nos afirma que o que a descoberta freudiana avança é que “on peut y être sans savoir qu’on y est”, ou seja, “podemos estar nisso sem saber que estamos” (p. 203). E, mais ainda, que quando nos enganamos é exatamente em nossa certeza de nos proteger de aí estar (y être), julgando-nos noutro lugar, noutro saber. É no seminário L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre (19761977), primeiro em sua aula do dia 16/11/1976 e depois no dia 15/02/1977, que Lacan vai retomar o savoir y faire, relacionando-o ao sintoma, um saber fazer com o sintoma. Das duas lições, podemos tomar a noção de “saber fazer aí com” (savoir y faire avec), e depreender dela a questão do que se pode conhecer em uma análise, ou seja, as relações entre saber e sintoma. Lacan localiza o conhecimento no sintoma: “[...] a saber que o sintoma, tomado neste sentido, é o que se conhece, e inclusive o que se conhece melhor. Assim ‘conhecer’ seu sintoma quer dizer saber fazer com, saber desembrulhá-lo, manipulá-lo” (Lacan, 1976-1977). O processo de uma análise conduz o sujeito a uma mudança de posição frente ao sofrimento. Há, nesse percurso, uma reintegração de algo que o sujeito não queria saber, e que inclui a satisfação obtida com o sintoma. 48 48
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Se convocarmos a psicanálise para pensar o trabalho como “uso de si”, as dimensões do trabalho do sonho, do trabalho do luto, do trabalho da rememoração e da elaboração, somos levados a reconhecer que essas são importantes dimensões que colocam a vida a se pensar e a se conhecer. São dimensões que Freud aponta como sendo do trabalho inconsciente. É o trabalho do aparelho psíquico. A dimensão do trabalho stricto sensu, para ganhar o sustento da vida, com todas as possibilidades, necessidades, contingências e impossibilidades que essa atividade social atualiza, faz uso dessas dimensões “subjetivas” do trabalho sobre si mesmo. Há um fazer, um uso, de si e por si que não é sem o outro. O que desse uso nos possibilita obter um ganho de saber? Se pensarmos na báscula do sintoma, como problema e como solução, a via de saída por um bom uso de si no trabalho parece incluir sempre um saber fazer “ordinário” com o sintoma, que pode guardar relações com o savoir y faire, que Lacan localiza no final de uma análise com a produção de um sinthoma6. É claro que não queremos reduzir o savoir y faire a sublimações ordinárias que possibilitariam uma salutar localização do campo profissional na dinâmica pulsional do sujeito. Mas, por outro lado, nos parece importante, também, não idealizar o que se pode aí fazer a ponto de inibir, no âmbito da transferência de trabalho7 analítico, o reconhecimento de possíveis saídas ordinárias com o sinthoma. No artigo escrito por Morel (1999) sobre a função do sintoma, essa autora nos afirma que “todo neurótico tem ao menos um sintoma que assume a função de sinthoma”. Ou seja, um sintoma que vai manter, mesmo que por vezes precariamente, a amarração dos registros do real, simbólico e imaginário; uma função de suplência que é diferente na neurose e na psicose. Nesta última estrutura, se existir um sinthoma como algo que mantenha juntos o simbólico, o imaginário e o real, esse sinthoma não estará articulado ao significante do Nome-do-pai, mas justamente ele suprirá a foraclusão do Nome-do-pai, esta falta no simbólico.
Com o conceito de sinthoma, Lacan faz trabalhar no seminário O sinthoma ao mesmo tempo a grafia antiga no francês da palavra sintoma, sua homofonia em francês saint homme (santo homem), assim como o sin, que em inglês significa pecado, para pensar a função do sintoma na estrutura que enlaça os registros do real, simbólico e imaginário. Como nos afirma Miller (2011, p. 82), Lacan inventa esse conceito para pensar o caso de James Joyce, assim como Freud, no caso Schreber, um caso sem análise, sem decifração do inconsciente, sem a prática da associação livre. Lacan afirma que Joyce era desabonado do inconsciente. 7 “O ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito ao outro pelas vias de uma transferência de trabalho”. Lacan, J. Ato de fundação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 242. 6
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Com a leitura do seminário De um Outro ao outro, de Lacan ([1968-1969] 2008), é justo afirmar que não é o trabalho que dá o ao saber, porque o saber se adquire ao preço da renúncia ao gozo. Não é porque o trabalho pode implicar essa renúncia que toda renúncia ao gozo se fará pelo trabalho. A dimensão sintomática do trabalho deve ser tomada aqui como uma verdade inconsciente a trabalho, que só pela renúncia ao gozo que lhe é inerente se a um ganho de saber. Que o trabalho não contenha em si o o ao saber, a neurose obsessiva nos dá prova. Na obsessão, o sujeito necessita do trabalho forçado. O trabalho aí é meio de gozo. Trabalha-se para não saber. O sintoma indica uma verdade a trabalho no inconsciente. O saber no trabalho, para Lacan, está do lado do que é inconsciente e se repete. Só há ganho de saber com um novo uso disso que se repete. O saber aí provém do uso, provém de algo que se faz com isso de mais genuíno que se repete no sintoma. Segundo Miller (2009, p.143-144), “[...] saber fazer alguma coisa com seu ser de sinthoma” (p. 143) não é decifrá-lo, pois, “o sinthoma, como o mais singular, é indecifrável” (p. 144), não é da ordem da cifra, daquilo que se troca, e sim da ordem do uso; um “uso do sinthoma” (p. 144). “Em psicanálise, a forma tomada por essa troca é a interpretação” (p. 144). E segue: “O termo uso visa precisamente alguma coisa diferente da interpretação, outro modo operatório” (p.144). Ucdgt"g"vtcdcnjq"pc"xkfc"ugetgvc"fcu"rcncxtcu É A vida secreta das palavras um filme que nos permite refletir sobre o saber na relação homem-trabalho? Parece-nos que se pensarmos o trabalho como “uso de si”, ele é inteiramente uma reflexão sobre muita coisa do que se a nessa relação. É um filme no qual fica claro que as escolhas que cada pessoa faz ali, no campo do trabalho, diz muito sobre a dimensão “subjetiva” de cada uma delas. A diretora Isabel Coixet soube trazer para a história toda a dramática do uso que cada personagem faz ali, de si, na relação com o trabalho. No filme, trabalho e vida não se separam, eles estão na mesma plataforma. Depois que descobrimos alguns dos segredos das palavras que contam a história de Hanna, entendemos melhor o uso que a personagem parece fazer de si na fábrica têxtil. O trabalho ali é o da contenção, na repetição de uma rotina sem muita invenção. A mesma comida todos os dias, o mesmo trabalho repetitivo, quatro anos sem aparente interrupção. Tudo isso indica cumprir uma função. Seu modo sintomático de viver busca amarrar registros por demais disjuntos pelos traumas vividos. A vida secreta das palavras de Hanna, na fábrica, segue seu rumo, 50 50
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organizado de forma a “conter”. Manter dentro de si. Sob certo uso. Sem risco de transbordar e inundar a vida de lágrimas. Mas eis que algo interrompe sua surdez, também controlada. O eventual, a contingência, o inesperado, o acidental: as férias forçadas que a conduzem ao litoral. No ônibus, a caminho das férias, podemos ver Hanna bordando um pedaço de pano. Nesse novo lugar, o trabalho de bordado é dispensado numa lixeira. Prenúncio de um novo uso de si? Do uso de “conter” para o uso de “contar” a vida secreta das palavras? Sou enfermeira, diz Hanna, ao seu vizinho de mesa de quem ela escutava a conversa. É surpreendente a forma decidida com que Hanna se apresenta. Naquele momento as palavras servem para “contar” algo de muito importante da sua história. Sou enfermeira. Um significante que a nomeia. Uma palavra que a identifica, e cujo emprego acaba por expô-la ao trabalho de contar sua vida. O trabalho de enfermeira reenvia Hanna à sua vida no ponto em que ela foi paralisada. Quando ela brutalmente foi obrigada a se conter. Uma formação interrompida pela guerra. Uma escolha impedida. Um projeto de uso de si violentamente abortado. Retomar essa atividade, esse uso de seu corpo na função de cuidar do outro, parece ir aos poucos permitindo fazer conviver experiências incomunicáveis: o antes e o depois das atrocidades vividas. Nesse trabalho, um novo uso do corpo que lhe exige reordenar as palavras às novas experiências do encontro com alguém que lhe demanda cuidado e afeto. Um encontro no qual o amor e a confiança permitem que ela possa dizer afinal algo de seu trabalho e de si. Uma manhã, Hanna ao limpar o corpo de Josef relata: Quando estudava em Dubrovnik, sempre temia o momento de limpar os pacientes. Sentia-me desconfortável... pensando que eles estavam com vergonha. Mas percebi que as pessoas gostam de estar limpas. Não importa como você os limpa... ou quem limpa, eles gostam de estar nas suas mãos. Gostam de te confiar o seu corpo. Como se dissessem: É apenas o meu corpo. Só um corpo. Você nunca vai saber o que penso realmente, quem sou.
Essa é a frase que desencadeia a sequência de palavras que descortinam algumas das doses do horror guardadas em segredo pela personagem. Na cena, Hanna diz dos cortes e cicatrizes que levaram à morte aquela que vivia com ela e era sua melhor “amiga”. E ela desnuda seu corpo para que seu paciente cego possa tocar e sentir as cicatrizes que o marcam. A última palavra dita nessa sequência responde à pergunta de Josef: Como se chamava a tua amiga? Hanna, ela responde. Só então Josef pôde saber seu nome. Nesse ato, corpo, história e nome se enlaçam. Amor e trabalho nesse momento pa51
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recem cumprir mais um o no caminho da sublimação da pulsão de morte contida e contada nesse corpo. Mais um o em saber fazer aí com o sintoma começa a ser produzido, a um só e mesmo tempo em que o saber-fazer de sua escolha profissional de enfermeira o reconvoca em seu uso de si no trabalho. Lembremos de Freud, acima citado, da ênfase concedida ao trabalho, da livre escolha, do uso das moções pulsionais, do que a sublimação nesse domínio pode operar. Lembremos de Lacan, para entender que o saber que aí se produz não é da ordem da troca, do sentido, do pensamento, da interpretação. Ele é uso, é emprego, é fazer com. Não é que não possa ser aprendido, mas é que não se deixa apreender no formalismo do ensino, nos programas disciplinares, nas prescrições do trabalho, nas sugestões terapêuticas, etc. Não é um saber da racionalidade orientada pelos conceitos, mas pela dialética destes com a atividade da vida (Schwartz, 2003, p.32). É um saber que permite lidar com o fato de que na vida secreta das palavras, como disse o encarregado Dimitri, “tudo é um acidente”. Aberto às contingências, às múltiplas causalidades, às arbitragens, às variações de possibilidades de ordenar as palavras e com elas ampliar os sentidos de seu uso. Ao final do filme, a voz de criança que narrava parte da vida de Hanna a acompanhava, e a acolhia, pode se dizer mais ausente. Essa presença imaginária que ajudava Hanna a se enlaçar é substituída pela presença real de uma família que ela pode constituir. O amor dedicado ao marido, às crianças, e o trabalho de cuidar contido no lar parecem fazer prosseguir a pulsão por um destino mais sublime. REFERÊNCIAS ASSOUN, P.-L. Dictionnaire des oeuvres psychanalytiques. Paris: PUF, 2009. FREUD, S. A psicopatologia da vida cotidiana [1901]. In:______. Edição standard brasileira das obras completas, v. VI. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.13-332. FREUD, S. O mal-estar na civilização [1930]. In:______. Edição standard brasileira das obras completas, v..XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 75-171. LACAN, J. O seminário, livro 16: de um outro ao Outro [1968-1969]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. ______. O seminário, livro 24: lo no sabido que sabe de la una-equivocación se ampara en la morra [1976-1977] In: ______. Obras completas de Lacan em cd-rom. MILLER, J-A. Perspectivas do seminário 23 de Lacan. O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 54-70, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
GPVTG"EQPXGTUCU"G" FGUEQDGTVCU<"fkurqukvkxqu"fg" kpvgtxgpèçq"fkvg"fcu"wtigpekcu" fg"woc"gueqnc"fg"Uçq"Rcwnq Ana Paula Musatti Braga1, Viviani S. C. Catroli2 e Miriam Debieux Rosa3
Tguwoq< Este artigo pretende relatar dois dispositivos de intervenção, Oficina de Descobertas e Grupo de Conversa, realizados dentro de uma escola pública de ensino fundamental da cidade de São Paulo. Ambos os dispositivos se inscrevem no campo das práticas que convencionamos chamar clinicopolíticas, na medida em que se constituem como estratégias de intervenção, grupais, orientadas pela teoria psicanalítica implicada com o contexto social no qual se inserem. Para fins deste artigo, trataremos de descrever, a partir de alguns fragmentos de caso, os dois dispositivos e o campo metodológico adotado. Rcncxtcu/ejcxg< psicanálise, educação, psicanálise-instituições, infância, adolescência. COKFUV"EQPXGTUCVKQPU"F"FKUEQXGTKGU<" kpvgtxgpvkqp"uvtcvgikgu"xku/ä/xku"vjg"wtigpekgu"qh"c"uejqqn"kp"Uçq"Rcwnq" Cduvtcev<"This paper intends to report two intervention devices: the Workshop of Findings and the Chat Group, performed in a public secondary school in the city of Sao Paulo. Both devices belong in the field of clinical practices that we opted to call clinical-political, in that they constitute group intervention strategies guided by the psychoanalytic theory implicated in the social context where they operate. For purposes of this article, we describe, based on a few fragments of a case, both devices and the methodology framework adopted. Mg{yqtfu< psychoanalisis and education, psychoanalysis-institutions, childhood, adolescence. Doutoranda em Psicologia Clínica pela USP; Membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade da USP. E-mail:
[email protected] 3 Professora do Programa de Psicologia Clínica da USP; Coordenadora do Laboratório Psicanálise e Sociedade e do Projeto Migração e Cultura; Profª. Titular do Programa de Pós-Graduação da Psicologia Social da PUC-SP; Coordenadora do Núcleo Psicanálise e Política. E-mail: debieux@ terra.com.br 1
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ste artigo apresenta e fundamenta metodologia de intervenção e dispositivos que se inscrevem no campo da prática psicanalítica que convencionamos denominar clinicopolítica, caracterizada por sua implicação com o contexto de produção dos fenômenos sociais e subjetivos. Trata-se de intervenção no laço social que desloca o foco dos indivíduos e sua normatização para incidir nas modalidades de discursos produzidos na cena institucional, visando à produção de novos lugares para os sujeitos. A metodologia utilizada lança mão de dispositivos grupais para destituir significados e identidades e produzir novas articulações, assim revitalizando a polissemia da palavra no terreno coletivo. As estratégias são contextualizadas nas instituições e criadas a partir das demandas e resistências. Serão apresentados dois dispositivos, a Oficina de Descobertas e o Grupo de Conversa, realizados em uma escola pública de ensino fundamental da cidade de São Paulo. A escola pública em questão atende cerca de oitocentos alunos e é bastante heterogênea do ponto de vista social, cultural e socioeconômico. Em 2003, contando com o apoio da direção, de um grupo de educadores e da comunidade de pais, realizou-se um mapeamento da situação crítica em que esta se encontrava: alta evasão escolar, frequente falta de professores, indisciplina, falta de interesse dos alunos e baixos índices de aprendizagem. Como tentativa de modificar esse quadro, a comunidade da escola, através do seu Conselho de Escola, formulou, no ano seguinte, um novo Projeto Político Pedagógico ancorado na prática de transmissão do saber não mais baseada na docência expositiva e solitária, mas numa prática ou experiência pedagógica compartilhada e solidária. Nesse mesmo período, quatro psicanalistas voluntárias constituíram um Grupo de Estratégias em Educação4, cuja intenção era colaborar, inicialmente, na inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais. Rapidamente, porém, ficou evidente que não se tratava de incluir alunos específicos, mas de auxiliar na criação de um campo em que pudessem ser incluídas as questões que esses alunos despertavam no seio da escola: seus ritmos não usuais, as limitações dos seus corpos, suas dificuldades de aprendizagem. Tratou-se de tornar possível que cada um significasse seu temor do fracasso, os limites do corpo, a angústia de aprender, o desamparo e o medo.
O Grupo de Estratégias constituiu-se inicialmente com Ana Paula Musatti Braga, Simone Camargo Silva, Larissa Patti Gomes e Evelyn Madeira. Posteriormente, integraram-se também a esse grupo Raquel Foresti, Viviani S.C. Catroli e Helena CantoGusso.
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O trabalho desse Grupo de Estratégias rapidamente se ampliou, criando dispositivos de intervenção que visavam tratar, de modo coletivo, questões enunciadas ou manifestadas por alguns estudantes. Dentre eles, destacamos a Oficina de Descobertas e os Grupos de Conversa – dispositivos grupais construídos a partir da orientação psicanalítica. Q"vtcdcnjq"eqo"qu"itwrqu."uwcu"rquukdknkfcfgu"g"korcuugu
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Freud começa seu trabalho Psicologia de grupo e análise do ego ([1921] 1996) afirmando que toda psicologia é social, deslocando a oposição indivíduo x social para a tensão entre processos narcísicos e sociais. a a desenvolver trabalho que desvenda os mecanismos presentes nas massas, grupos e instituições. Nesse artigo, Freud irá afirmar ainda que todo laço social é laço de amor. Ressalta, no entanto, que toda identificação via amor carrega em si a ambivalência de sentimentos, trazendo também a agressividade advinda da renúncia pulsional necessária à entrada do sujeito na civilização. Não haveria laço sem mal-estar, já que o homem carrega em si toda a agressividade pela frustração de ter aberto mão da satisfação da pulsão sexual. Freud ([1921] 1996) propõe-se, então, a analisar dois tipos de grupos e as formas de os indivíduos a eles se ligarem: a igreja e o exército. Temos, então, dois processos que se sucedem na formação dos grupos: a substituição do ideal do eu pelo objeto, no caso, o líder, ou um princípio, e a identificação com outros indivíduos que aram, individualmente, pelo mesmo processo de substituição anterior. O ponto-pivô do sistema de Freud é que, para se garantir a consistência do grupo, o líder, o Um, não poderá ser equivocado em sua função. Essa função do Um só se sustenta porque está ancorada num ponto de exterioridade que reúne o grupo e impede sua dissolução. Esse ponto externo é aquele que deverá ser combatido, o inimigo-comum. Temos então, de um lado, o amor ao líder; do outro, o ódio ao diferente. O que inquieta, na teoria elaborada por Freud, é que o grupo só poderia se manter quando ancorado num ponto de exterioridade, que deveria ser o objeto sobre o qual recairia toda violência. Ou seja, a coesão do grupo depende de que se eleja um objeto exterior, alvo da violência. Porém, caso o objeto exterior seja exterminado, não é certo que o grupo se mantenha. É o que Freud ([1921] 1996) vai chamar de narcisismo das pequenas diferenças. Será no trabalho de dois psiquiatras ingleses, Bion e Rickman, que Lacan achará inspiração para pensar os grupos para além daquele proposto por Freud, assentado na identificação ao Um. Esses autores apresentam uma experiência de grupo em um hospital militar, que, aos olhos de Lacan, carrega a riqueza da criação de um novo método de terapêutica aplicada ao grupo.
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Ora, o que Bion percebe é o mesmo que Freud em Psicologia dos grupos e análise do ego ([1921]1996), ou seja, que o grupo se mantém organizado em torno da figura do líder e que, quando essa função do líder é equivocada, as massas se dispersam, a civilização entra em pane. Mas haveria uma forma de enlaçar quando o Outro não assegura e estabelece o sentido? É assim que Lacan ([1947] 2003), em seu texto A psiquiatria inglesa e a guerra, de 1947, irá descobrir nos pequenos grupos criados por Bion, na Inglaterra do após Segunda Guerra, a saída para o problema dos grupos artificiais de Freud e o perigo do coletivo fundado na função do Um. Essa discussão nos é cara por dois aspectos. Primeiramente, para pensar a possibilidade de uma clínica dos grupos pautada na desidentificação ao Um, que seria ultraar o laço empreendido pelo discurso do Mestre, em direção ao laço proposto pelo discurso do Analista. Isso daria ao sujeito a possibilidade de se descolar dos significantes-mestres que o marcaram em sua história, possibilitando seu movimento desejante num espaço de intervalo entre sentidos. Em segundo lugar, se concordamos que vivemos numa sociedade caracterizada pela saída de cena progressiva do Outro da posição de mestre, urge pensarmos numa alternativa coletiva que não seja o pânico das massas ao perceberem que o piloto sumiu! O que há de tão inovador nos grupos terapêuticos de Bion (1965)? A inclusão de um princípio capaz de diferenciar a massa do grupo. Bion decide criar três tipos de atividades terapêuticas que eram o reflexo da sociedade, nessa época de pós-guerra, dividida entre militares e civis. Ele irá incluir, além dessas duas categorias de atividades, civis e militares, uma a mais, que daria conta da expressão da impotência neurótica dos doentes (Bion, 1965, p.6). Ele aponta um elemento terceiro que poderia, ao invés de algo da segregação, descompletar um todo, ser seu ponto de exterioridade, impedindo assim que a função identitária imprimisse seu modo de laço segregatório. Esse ponto de exterioridade é o que permitirá o avanço do tratamento em grupo. Nas palavras de Barros (2008), Este traço permite que um pequeno grupo não seja universal, devendo-se lembrar que o fato de o grupo ser pequeno não quer dizer que ele não seja universal. É o fato de haver uma dimensão que descompleta o somatório que assegura que este não seja universal. Dito de outro modo, a dimensão sintomática racha com a inteireza do somatório entre militares e civis. [...] Reintroduzir a dimensão sintomática nessa grande divisão da humanidade entre civis e militares corresponde a combater o supereu como imperativo
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de gozo, como um “goza!” sem sentido. Trata-se aqui do imperativo superegoico no momento em que o Outro não responde, ou seja, quando uma utopia universal não responde (Barros, 2008, p. 66).
Sabe-se que os pequenos grupos sem líder, de Bion, são a origem da inspiração dos pequenos grupos de trabalho de Lacan, os cartéis. Lacan no Ato de fundação da Escola Freudiana de Paris (1964) irá falar de um trabalho que deve restaurar a relha cortante (Lacan, [1964] 2003, p.235) da verdade, introduzida por Freud, que denuncie também seus desvios e degradações. Para a execução desse trabalho, nos diz Lacan ([1964] 2003): “adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo. Cada um deles [...] se comporá de no mínimo três pessoas e no máximo cinco, sendo quatro a justa medida. MAIS UM encarregado da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um” (Lacan, [1964] 2003, p. 235). Concordamos com essa forma de conceber o trabalho do psicanalista nos grupos: ele terá esse papel do mais um, de agente revelador das falhas da lógica das identificações, tão importantes ao imaginário social e sua política de atribuição de lugares a serem ocupados pelo sujeito. De acordo com Miller (1986), o psicanalista no grupo deverá vir como sujeito dividido, questionador, como agente provocador, como um ponto de exterioridade no grupo (Carmo, 2011). Pierre-Gilles Gueguen (2001), em artigo intitulado L’intime, l’extimeetlapsychanalyse, se debruça sobre a função do êxtimo em psicanálise. Segundo ele, o êxtimo viria para romper com o íntimo, que aparece na análise sob a forma do testemunho individual, criando uma brecha na série de identificações que designam um lugar para o sujeito, saber do qual ele padece. Vemos como o ponto de exterioridade encontra-se inscrito no interior do próprio grupo, é ele que impede que o grupo caia na armadilha identificatória ao líder, que, como sabemos, conduziu a humanidade para caminhos deveras sombrios. Assim, não haveria um grupo situado em seu exterior, que deveria ser segregado e eliminado, como no caso do narcisismo das pequenas diferenças de Freud. Sairíamos, com Bion, da segregação própria aos grupos identitários, e aríamos ao plano da singularização de cada sujeito, que poderá agora se situar em função de seu próprio sintoma (Barros, 2008). Fugir da identificação universalizante, quebrá-la, é esse todo o desafio da psicanálise no social, para transformar o ime da situação na força viva da intervenção (Lacan, [1947] 2003).
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Q"Pcuekogpvq"fc"Qhkekpc"fg"Fgueqdgtvcu “Quando eu estava na barriga da minha mãe, ela estava no México dançando Hula-Hula” (aluno de sete anos). “Minha mãe teve um namorado com o mesmo nome do meu pai; daí brigaram, conheceu meu pai e eu nasci” (aluna de sete anos). “A gente nasce, daí cresce, vira adolescente, aí vai ficando velhinho, velhinho... e quando é bem velhinho morre. Sabe, meu avô morreu” (aluno de seis anos).
Em 2006, estudantes da primeira série do Ensino Fundamental, entre seis e sete anos, despertaram preocupação nos adultos, pois tinham comportamentos que lhes pareciam por demais erotizados: com frequência mexiam no corpo das meninas ou imitavam uma relação sexual com riqueza de detalhes. Na mesma classe, uma aluna com síndrome de Down que, por ser alguns anos mais velha tinha seu corpo mais desenvolvido que o das outras meninas, expunha com frequência seu corpo, levantando sua blusa na classe e no recreio, atendendo à curiosidade daqueles que a observavam. O procedimento mais comum, nesses casos, seria convocar as famílias e indagar sobre seus hábitos. O psicólogo da escola tentaria promover um “aconselhamento dos comportamentos ditos saudáveis”, ou iria sugerir um atendimento psicológico individualizado para esses alunos. Esses modos de encaminhar as situações em que a sexualidade infantil se manifesta no ambiente escolar tomam como razão explicativa o efeito de um ambiente familiar desregulado ou, ainda, ligado a hábitos de determinada classe social. O risco desse tipo de redução simplista é o da produção de diagnósticos psicológicos equivocados e encaminhamentos prematuros e desnecessários. Rosa (2007) nos alerta para os riscos dessas conduções: “A resistência à escuta do discurso de tais pessoas manifesta-se, do lado do psicanalista, sob vários efeitos. Um deles é o de ficar exclusivamente sob o peso da situação social. A complexidade da situação social dificulta a relação intersubjetiva necessária ao atendimento clínico” (Rosa, 2007, p. 188). Em relação à outra aluna, uma constante dificuldade em acolher a sexualidade nos casos de inclusão já tem sido apontada como algo bastante frequente. De acordo com Prioste, “As manifestações da sexualidade da pessoa com deficiência intelectual são interpretadas como desvio de conduta, ao invés de serem percebidas como curiosidade e desejo de saber” (Prioste, 2010, p. 14). Em ambos os casos, seja com uma hipótese de causalidade atribuída aos comportamentos familiares e sociais, seja pela prevalência do viés biológico 59
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constitutivo, os ditos “desvios” e “excessos” da sexualidade recaem sobre os próprios alunos e, com isso, as intervenções se restringem ao âmbito individual e-ou familiar. Levar em conta a realidade social de cada família e a organização espacial a que estão sujeitos, no caso, alunos que vivem em casas de apenas um cômodo e usam banheiros coletivos, é algo fundamental que deve ser considerado em nosso trabalho. Nossa intenção, ao considerar as peculiaridades das organizações familiares dos alunos, deve-se à preocupação de nos descentralizar de toda possível interpretação amparada na imagem ideal da “típica família burguesa brasileira”, e suas noções de intimidade, privacidade e de laços conjugais. Se alguns alunos, por questões de moradia, não tinham como não dormir num espaço reservado dos pais, tornando-se testemunhas da vida conjugal deles, isso deveria estar incluído em nossa intervenção: não para apontar qualquer tipo de causalidade ou estereótipo, atribuindo-lhes o estigma de uma sexualidade exacerbada ou inadequada, mas para garantir um espaço, dentro da escola, em que os efeitos dessa proximidade intergeracional pudessem ganhar expressão. Conforme Dolto, essas crianças deveriam, ainda mais que as outras, ser “esclarecidas sobre o sentido real e a validade da sensualidade e da sexualidade” (Dolto, 1999, p.95). Foram os atos desses alunos da primeira série, em que o corpo e o erotismo se fizeram presentes, que, pelas suas ressonâncias, nos fizeram atentar para a imensidão de questões que todos os alunos, recém-chegados da Educação Infantil, estavam vivendo. A chave da intervenção clinicopolítica, nesse caso, foi entender esses atos disparadores como oportunidades mais do que bem-vindas para a criação de um dispositivo de intervenção. Empregamos aqui a lógica freudiana de que o ato falho é sempre um ato bem-sucedido, que busca significação. Assim, diante dessa situação, era necessário criar uma estratégia de intervenção capaz de retirar desses alunos essa marca de “inadequação” e de “imoralidade”, e de recuperar a potencialidade dessas questões colocadas em ato. A Oficina de Descobertas5 foi um espaço de circulação da palavra, para que ela pudesse ressoar, oferecendo a cada criança a possibilidade de pensar o momento que vivia: suas interrogações sobre o crescimento, o nascimento e a morte. Esse dispositivo, povoado por conversas, pela criação de jogos
Sobre a Oficina de Descobertas, ver também artigo “Quem pergunta quer saber: oficina de descobertas numa escola pública de São Paulo” de autoria de BRAGA, Ana Paula M. O infantil. Correio APPOA, Porto Alegre, maio 2011.
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em grupo e desenhos, tinha como objetivo deslocar o embaraço individual da sexualidade infantil para o plano coletivo do grupo. Desde o ano de 2006 até 2010 realizamos essa Oficina com todos os alunos da primeira série da escola. Para viabilizá-la, estabelecemos alguns contornos, tais como um mínimo de dois meses de trabalho, com um encontro semanal, em grupos que não ultraassem vinte alunos. Qhkekpc"fg"Fgueqdgtvcu<" guvtcvgikc"eqngvkxc"rctc"woc"guewvc"fq"ukpiwnct" “Meus pais pediram para eu te perguntar se você sabe a idade da gente para ficar falando dessas coisas” (aluna de sete anos).
Dolto (1997) nos lembra que as questões sobre a origem, o nascimento, o desejo, a sexualidade deveriam ser abordadas na escola, desde o maternal, sempre que as crianças trouxessem essas indagações. A proposta de Orientação Sexual para as séries iniciais do Ensino Fundamental fixada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) incentiva o trabalho dos educadores sobre as questões da sexualidade de maneira não-diretiva e sempre que houver situações disparadoras. A premissa fundamental desse documento é a de que “as curiosidades das crianças a respeito da sexualidade são questões muito significativas para subjetividade na medida em que se relacionam com o conhecimento das origens de cada um e com o desejo de saber” (PCN, vol.10, p.77). Vale esclarecer, no entanto, que, embora esses sejam Parâmetros Nacionais, o que se observa entre os professores é uma imensa dificuldade em fazer esse trabalho, principalmente com essa faixa etária. Com os alunos mais velhos, geralmente trabalham as questões reprodutivas, visando unicamente à diminuição das taxas de gravidez na adolescência e de doenças sexualmente transmissíveis. Com as crianças pequenas, entendem a necessidade de trabalhar sobre o corpo, a origem e o desenvolvimento; mas fazem-no de um modo absolutamente fisiológico (limitam-se a mostrar filmes sobre a fecundação e esquemas detalhados dos aparelhos genitais) ou enfatizando a semelhança do ser humano com os outros mamíferos (com filmes ou figuras de animais). Entendemos que, tanto num caso como no outro, o que se transmite à criança é somente a dimensão instintiva, e o que fica suprimido é justamente a dimensão pulsional e desejante, característica das relações humanas. E isso não é ao acaso; falar do sexo remete ao corpo, à morte e ao gozo; ou seja, remete ao real, ao que “se funda por não ter sentido, por excluir 61
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o sentido ou, mais exatamente, por decantar ao ser excluído dele” (Lacan, [1975] 2007, p.63). Ao tratar a sexualidade pela via da necessidade, do orgânico e do biológico, os educadores buscam se proteger do que é imprevisível, imponderável, inominável e que só se pode tocar pelas bordas. Pensamos que tratar o sexual pela via do biológico escamoteia o que parece inável de ser enunciado, a saber, que em relação ao sexual há muitas informações, mas não há um saber; a sexualidade escapa à norma e a uma referência a priori, apontando sempre para o inominável, da mesma forma que a morte. Falar, desenhar e conversar sobre o corpo das mulheres, dos homens, papais e mamães, meninos e meninas foi algo que permeou muitos encontros dessa Oficina. Tal estratégia visava operar uma agem do plano imaginário ao simbólico, deslocando as inadequações e respostas morais para o desejo de saber. Com isso, as encenações sexuais rapidamente cederam lugar a indagações como: “E quando duas mulheres namoram, nasce nenê?” (aluna de seis anos). “Minha vizinha teve um nenê que morreu dentro da barriga, como isso acontece?” (aluna de sete anos). “Como nasceu a primeira pessoa?” (aluno de sete anos). “Se fica fazendo sexo mais tempo é que nasce mais filhos?” (aluna de sete anos). “Do que é que a gente foi feito?” (aluno de sete anos). “Por onde as meninas fazem cocô? É igual aos meninos?” (aluno de seis anos).
Trazer algumas explicações sobre as relações sexuais, sobre os bebezinhos dentro da barriga, sobre as diferenças do corpo dos homens e das mulheres, na medida em que as perguntas assim o exigiam, não significava acreditar que isso fosse dar conta de como cada um se enreda na trama familiar; mas, sim, respeitar a convocação do enigma do sexual. “Dizem que sou igual ao meu avô que eu nem conheci. Como isso acontece?” (aluno de sete anos). “Por que nasce parecido com o pai ou com a mãe? Eu sou parecido com meu pai e meu irmão com minha mãe!” (aluno de sete anos). “Por que às vezes nasce menino e às vezes nasce menina? E gêmeos?” (aluna de sete anos).
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Ao trazer para um espaço coletivo as falas, as perguntas, os interesses dos diversos alunos da primeira série, partimos de uma premissa básica: a de que os considerávamos todos e cada um, no laço social, e que o grupo que compunham não era uma reunião de indivíduos. “O inconsciente freudiano é incompatível com a ilusão do individual, da autonomia e da independência no homem, uma vez que afirma a dependência simbólica do desejo do Outro” (Rosa, 2004, p.338). Tornou-se imprescindível realizar paralelamente um trabalho junto aos pais: em alguns momentos marcávamos reuniões com os familiares de todos os alunos do primeiro ano, conjuntamente; em outros, fosse pela urgência ou pelo pedido de algo mais reservado, recebíamos somente os pais ou responsáveis de uma criança e, na presença desta, buscávamos trabalhar e localizar o que tinha sido despertado naquela família. Sustentar junto aos pais dos alunos que compunham a Oficina de Descobertas que, ao estarem no grupo, as questões que surgiam ali já diziam respeito aos seus filhos, demarcava claramente nossa concepção de que a relação com a escola não pode ser pensada a partir dos alunos destacados da relação com o outro, indivíduos dissociados de sua dimensão pulsional. Muitos pais, impregnados de um imaginário social que supunha ser pertinente o trabalho das Oficinas somente para alguns alunos – aqueles que seriam carentes não só de bens, como também, de informação –, exigiam que seus filhos fossem poupados e protegidos do conteúdo dessas conversas; como se pudessem ficar à parte do encontro com os outros, buscando transformar esses acontecimentos e encontros em produtos a serem consumidos, sem história e sem desejo, inócuos e previsíveis. “Tudo bem pras pessoas que não têm informação, você fazer essa Oficina; mas para o meu filho, eu não quero, ele não precisa. Eu tenho informação, eu conto na hora que achar importante” (mãe de aluno de sete anos). Assim, acreditavam poder escolher, controlar e calcular o momento em que cada questão seria pertinente a seus filhos. A nossa intervenção, apostando na capacidade transgressora da psicanálise, intervindo e subvertendo esses modos de enlaçamento contemporâneo, que convocam o indivíduo no lugar do sujeito, sustentava a busca pelo singular – entendido como o que só pode ser formulado levando-se em conta a relação e o laço com o outro, que não pode e não deve ser confundido com o individual. Pensamos, com Lacadée, que A esperança – da conversação – reside sempre no elemento de novidade que cada criança traz consigo. Parte da esperança e da ilusão que ela deve fazer compartilhar, sabendo acolher e lhe dando
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seu devido lugar. Saber acolher é atribuir-lhe um lugar, de onde ela terá a possibilidade de entrar num discurso, em uma tomada de enunciação. Dar-lhe a palavra a partir do que se é, a partir de sua singularidade, e da parte de novidade que traz em si. A prática da conversação dá a chance ao discurso de cada um” (Lacadée, 2008, p. 20, tradução nossa).6
Vejamos agora como essa conversação se deu com os adolescentes. Qu"Itwrqu"fg"Eqpxgtuc<" gpvtg"c"gueqnc."c"fgofc"g"qu"uwlgkvqu"cfqnguegpvgu Os Grupos de Conversa foram criados como resposta a outra situação de urgência: um dos alunos foi pego pela polícia furtando de uma casa em frente à escola. Algumas reuniões foram realizadas com os adolescentes da escola na tentativa de deslocar esse episódio de uma problemática individual e inscrevê-lo num contexto coletivo. Os adolescentes puderam apontar algumas situações em que se viam, ou viam outros alunos, colocando-se numa situação de risco. Os Grupos de Conversa, de orientação psicanalítica, foram criados como um espaço para a palavra adolescente. Essa estratégia clínica, destinada aos adolescentes, permitiu-nos intervir e antecipar situações de desamparo ou de deriva iminente. Após a criação desses grupos, fizemos a descoberta de sua proximidade ética e metodológica com o trabalho do Centro Interdisciplinar sobre a Infância (CIEN)7. Foi no trabalho do CIEN que buscamos, après coup, as ferramentas para teorização de nossa experiência clínica com os adolescentes.
Do original consultado: L’espoir – de la conversation – réside toujours dans l’élément de nouveauté que chaque enfant apporte avec lui. Part d’espoir et d’illusion qu’il lui faut faire partager en sachant accueillir et lui donner sa place. Savoir l’accueillir, c’est lui donner une place d’où il aura la possibilité d’entrer dans une discours, dans une prise d’énonciation. C’est lui donner la parole à partir de ce qu’il est, à partir de sa singularité, et de la part de nouveauté qu’il porte en lui. La practique de la conversation donne chance de discours à chacun.” LACADÉE, P. (2008) De la norme de la conservation au détail de la conversation. In: Comment se faire entendre à l´école?. CRDP, Aquitaine. p.20. 7 O CIEN foi criado na França, em 1996, por Jacques-Alain Miller, com a proposta de abordar de forma interdisciplinar as dificuldades encontradas pelas crianças e pelos adolescentes no laço social, utilizando de forma privilegiada a prática da conversação. Desde a década de noventa existem experiências em inúmeros países sob a forma de “laboratórios de investigação”, com estilos bastante diversos. No Brasil, existem laboratórios no Rio de Janeiro e Belo Horizonte há alguns anos e, mais recentemente, no Maranhão e em Recife. 6
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O objetivo de nossos Grupos de Conversa foi o de permitir, ao sujeito adolescente, o encontro com um Outro receptivo e pronto a lhe fornecer um saber-Outro, não-fechado, capaz de desestabilizar as identificações que o aprisionam e de acompanhá-lo para além de todo saber constituído como verdade. Possibilitar ao sujeito adolescente um reencontro com uma palavra prenhe de sentido é lhe dar garantias de uma existência como pertencimento, graças ao enlaçamento de sua palavra perdida numa trama ficcional coletiva. Para isso, buscamos nos apoiar no trabalho de Lacan e sua teorização sobre os pequenos grupos, principalmente no que concerne ao lugar que pudemos ocupar como coordenadores, trabalhando pela desidentificação aos significantes-mestres fixos do discurso social. A demanda dessa escola nos chegou sob a forma de uma pergunta enunciada por sua diretora: “O que se a com alguns desses meninos, pois temos a sensação de que nossa palavra os atravessa sem deixar marcas, sem produzir efeitos?” Não se tratava, como podemos observar, de um problema de evasão escolar ou de violência dos alunos, mesmo se isso fizesse parte também do cotidiano da escola. Tratava-se de uma questão que tocava no âmago da estrutura do sujeito, que em nossos dias enfrenta algumas torções; problema de uma palavra que não consegue fazer marca no corpo. A angústia da diretora é a evidência de que o saber escolar é não-todo, e esse furo, sua insistência, é sentido como inável pela equipe pedagógica. É isso o que é colocado em cena pelo comportamento resistente dos adolescentes. O corpo adolescente resiste a fazer semblante da completude imaginária do discurso normativo escolar e, assim, a palavra dos responsáveis pela instituição escolar ecoa no vazio. A autoridade falha, as tentativas de escuta não produzem grandes efeitos. Os adolescentes oscilam entre o falatório e o emudecimento. Se podemos pensar que o que sustentava o sujeito adolescente dentro da escola, nos tempos de Freud, era a relação intrínseca produzida pelo ideal do eu, chegamos ao ponto de partida que nos permitirá entender algumas das razões pelas quais a palavra emitida pela instituição escolar nos dias de hoje atravessa o corpo adolescente sem produzir qualquer marca ou traço. A adolescência é o tempo do sujeito que pressupõe o fim do complexo de Édipo e a construção do fantasma que lhe permitirá representar, simbolicamente, o impossível da satisfação. É por isso que o adolescente deverá “fazer cair” a cena familiar, na qual a satisfação será sempre da ordem de uma promessa impossível, para aceder ao espaço social e se aventurar em busca do amor capaz de fazer suplência a essa falta do objeto. A escola, lugar encarregado de fomentar no adolescente o interesse pelo mundo, deverá ajudá-lo 65
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a construir as ferramentas necessárias para seguir adiante, tendo a figura do educador – que o aluno deverá tomar como seu ideal de eu – como pilar central dessa fase de transição. No entanto, em nossos dias, esse processo encontra-se comprome-tido; haveria um curto-circuito dos ideais exercidos pela função Nome-do-pai e, paradoxalmente, a recrudescência dos agrupamentos identificatórios segregacionistas. Esse aspecto leva-nos em direção às questões de grupo trabalhadas no fragmento clínico que traremos logo a seguir. Os Grupos de Conversa foram realizados num espaço insólito da instituição escolar. Trata-se de uma oca, uma Opy-Guasu, um espaço consagrado do povo guarani. Uma espécie de reduto da palavra, construído pelos próprios guaranis juntamente com os alunos, que se situa fisicamente no jardim da escola; num entre a instituição e a rua. Esses grupos ocorriam semanalmente, no horário das aulas, podendo se estender por alguns meses ou por até dois anos; tinham composição bem variada, em função do número de alunos, seus horários, de algumas resistências e outras desistências. Qu"vgogtâtkqu:<" qu"ghgkvqu"uwdlgvkxqu"fg"wo"ncèq"rgnc"xkc"ugitgicvôtkc"fc"kfgpvkhkecèçq Roberto, um adolescente de aproximadamente 15 anos pede-nos para participar de um Grupo de Conversa composto apenas por meninas. Ele havia participado de alguns encontros desse mesmo grupo no ano anterior e gostaria, novamente, de fazer parte. Decide expor sua vontade de integrar o grupo às meninas. Roberto havia sido reprovado no ano anterior e chega ao grupo de meninas dizendo que queria um lugar onde ele pudesse conversar e não apenas falar besteiras, o que ele dizia que sempre acontecia, já que os meninos de sua classe eram todos mais novos do que ele. Perguntamos se ele tinha conseguido cumprir as tarefas necessárias a sua aprovação e consequente saída da escola, ao que ele responde que sim, e que por isso não
8 Este caso clínico foi anteriormente trabalhado no artigo “O laço social na adolescência: a violência como ficção de uma vida desqualificada”, de autoria de Catroli, Viviani S.C. e Rosa, Miriam D., enviado à revista Estilos da Clínica. No entanto, neste artigo, as análises feitas sobre o material clínico em questão eram utilizadas para divulgar as teses defendidas no doutorado de Catroli, Viviani, S.C. (2011), a saber, que quando os sujeitos adolescentes se encontram diante da violenta desqualificação de suas vidas e da falta de perspectivas de inscrição em um laço indicador de participação fálica no social, podem fazer da violência sua própria forma de ficção de si.
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entende o porquê de ter sido reprovado. Nesse momento, o grupo o interpela e pergunta se ele tinha feito mesmo todos os trabalhos. Ao que ele responde sim, mas diz que não com sua própria letra. Ele diz que tomou de empréstimo a letra de outra pessoa. No caso, a letra de seu pai, que foi quem fez suas tarefas escolares. Roberto, ao escrever com a mão de seu pai, encontra-se apartado do que lhe acontece em sua existência; é um sujeito não-responsável por aquilo que lhe acontece. Não entende o que lhe acontece, pois não foi o responsável por seu destino. Perguntamos-lhe sobre sua responsabilidade, e não sua culpa, por sua reprovação, o que o distanciou dos amigos com os quais podia conversar. Ele acaba nos dizendo que compreende o que lhe aconteceu e, ao nos dizer de seu ato – tomar de empréstimo a letra de seu pai -, ele se reconhece como ator de sua reprovação, e nos diz que, de fato, “viajou”. Perguntamos que tipo de “viagem” foi essa. Ele começa a nos contar a história de uma viagem com sua mãe pelo Afeganistão, no centro de uma zona de guerra, onde, segundo ele, seria o único lugar pra onde os pobres têm direito a viajar nas férias. A construção dessa ficção se assemelhava a uma narrativa fantástica, construída numa métrica precisa, até mesmo musical, que nos embalou por alguns minutos. Roberto aparece como sujeito da história que estava sendo narrada. Entretanto o narrador, este, desaparecia ao fazer de seu poema de exílio uma saída de segurança para sua angústia. O sujeito que viajou para o Afeganistão era um sujeito exilado por sua própria história. O que será que aconteceu com Roberto, que, quando questionado sobre sua responsabilidade sobre os rumos de sua vida, “viaja”, ou melhor, busca exílio em sua história de guerra e de tiros? Roberto era aquele que ocupava, no imaginário escolar e no imaginário social, um lugar de resto, do refugo. A saída para falar de seu desejo será pela via da construção de uma ficção socialmente desqualificada, que terá na violência urbana contemporânea sua linha de narração. Após Roberto contar sua história, o restante do grupo, apenas meninas, decide por acolhê-lo. No entanto, no encontro seguinte, Roberto chega acompanhado de um amigo. E, depois, leva outro amigo, o que será o motivo de sua expulsão do grupo, pois as meninas do grupo acabam se reposicionando diante do que chamaram uma invasão de meninos que não tinham nada a dizer, mas que queriam apenas espionar suas histórias. O grupo não se mostra capaz de sustentar a presença barulhenta desses meninos. Propusemo-nos, então, a acolher os meninos em outro grupo, um grupo que porta como marca de nascença a aderência ao significante não-confiáveis. Após duas primeiras conversas atribuladas com esse grupo, cinco novos meninos entram no grupo, todos eles um pouco mais novos que aqueles 67
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iniciais. Nossos encontros semanais aconteciam no mesmo espaço da oca, no jardim da escola. Cerca de duas semanas após o início do grupo, esses meninos começaram a “catar” algumas pedras e paus que ficavam no chão do jardim e a trazê-los para o grupo, arremessando-os contra o muro e contra as paredes da escola. Essas pedras faziam parte da oca. Normalmente, eles ocupavam parte de nosso tempo arremessando as pedras, enquanto ávamos parte de nosso tempo esperando e pedindo para que deixassem as pedras do lado de fora para iniciarmos nossa conversa. Uma vez do lado de dentro, iniciado o grupo, as pedras continuavam a interromper as falas e se espatifavam nas paredes da oca. As pedras não cessavam. Mas dessa vez, ao invés de esperar que eles desistissem de lançá-las ou de pedir-lhes que as deixassem de lado, autorizamos a entrada das pedras no grupo; que levassem as pedras para a conversação. Ao que eles nos dizem, nós entraremos com as pedras, mas prometemos não tacá-las! Dizemos, ok, então nós temos um trato. O grupo transcorre tranquilamente com assuntos cotidianos, futebol, o trabalho de alguns no clube de tênis, o que eles gostariam de ser quando crescerem. Foi quando percebermos que as pedras não cessaram; elas vinham de fora, estavam sendo lançadas por alguém de fora da oca. O menino que nos fez a promessa de não lançar as pedras alerta-nos, dizendo: e agora, o que fazemos? (já que dessa vez eles não poderiam responder com suas pedras, pois tínhamos um trato). Estamos tentando conversar, mas eles não nos deixam em paz! As pedras que pegavam pelo caminho, antes de entrarem na oca, tinham sua função: eram a forma que encontraram de se defenderem do efeito devastador produzido pelo olhar do Outro, que entrava pelos furinhos da oca. Esse grupo tinha se constituído a partir da exclusão, como um grupo que não poderia fazer parte de outro. Grupo dos não-confiáveis. No entanto, mais do que não-incluídos no grupo das meninas, esses meninos já estavam anteriormente aderidos, colados, ao lugar de resto na instituição escolar, nomeados como os piores. As pedras que chegavam de fora eram para que não se esquecessem do lugar que ocupavam, lugar de resto. As pedras eram lançadas pelos mais novos da escola, que tinham aquele horário como seu horário de recreio, e que usavam esse tempo lançando seus olhinhos pelas frestas e pelos buracos criados da parede da oca. A cada pedaço de barro tirado da parede, uma pedra, um furo que permitia a entrada do olhar do Outro. Os meninos resistiam, com pedras, a serem adivinhados pelo olhar do Outro. As meninas lançaram como uma pedra o significante não-confiável e esse ato retornava, a cada semana, nas mãos dos pequenos que os cercavam de fora. Ao ocuparem o espaço da oca, transformado em lugar de palavra, esses meninos tentavam sair do lugar 68 68
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que se havia instituído para eles, de resto-mudo; mas, ao tentarem sair dessa posição, foram alvo de mais hostilidade. Observa-se a reprodução da invasão do espaço do outro – do furto que gerou a demanda da escola – que é encenada às avessas, na escola. Cria-se um espaço para a palavra, mas o lugar de dejeto é afirmado e, literalmente, vai atrás desses adolescentes. Mas com uma diferença, pois dessa vez os psicanalistas estão presentes e são convidados a testemunhar. No último encontro do semestre com esse grupo, todos os meninos mais novos, que desestabilizavam a fala dos mais velhos, vão embora. Apenas depois que todos partiram é que foi possível para esses três meninos sustentarem sua fala. Eles dizem, “ainda temos 5 minutos, o que vamos fazer?”. A sugestão é: “nós vamos limpar a oca e catar essas pedras”. Limpamos o espaço, conversamos, e a porta da oca é esquecida aberta. Um dos meninos, que a cada encontro insistia em tentar esconder o cadeado da porta, avisa-nos desse esquecimento e fecha a oca, dizendo: “é uma pena que essa porta não fique sempre aberta”. Nessa fala, um voto, um desejo é pronunciado. O caminho da palavra se abriu apenas quando tudo o que excedia e que levava a uma experiência de puro gozo pôde abandonar o grupo. Nosso objetivo, nesses Grupos de Conversa, foi oferecer aos adolescentes a possibilidade de um reencontro com um Outro receptivo à escuta, disponível para lhes oferecer um campo de saber capaz de desestabilizar, e de colocar entre aspas, a série de identificações que os desqualificam e os aprisionam fora do campo social. Nossa aposta foi a de criar garantias para o sentido da palavra adolescente, para que ela não seja apenas instrumento de gozo, e garantias de uma existência enquanto pertencimento não-desqualificado no campo social, como forma de evitar seja a agem ao ato, sejam os actingouts, graças a uma aposta na palavra. As estratégias de intervenção apresentadas neste artigo foram modos de enlaçar uma palavra perdida, à deriva – que na infância é confrontada com a angústia das origens, e na adolescência com a possibilidade do encontro com o sexual – através da composição de uma trama ficcional que pudesse protegê-los da difícil presença do real. REFERÊNCIAS BARROS, Romildo Rêgo. Da massa freudiana ao pequeno grupo lacaniano. In: Psicanálise na favela – Projeto Digaí-Maré: a clínica dos grupos. Rio de Janeiro: Assoc. Digaí-Maré, 2008. BION, Wilfred Ruprecht. Recherches sur les petits groupes. Paris: Presses Universitaires de , 1965.
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 71-85, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
RUKEıNKUG"G"Q"UWU<" woc"gzrgtkgpekc"go" ucûfg"rûdnkec3 Sandra Luzia de Souza Alencar2
Tguwoq<"A partir de uma experiência desenvolvida durante dois anos (2003–2004) em uma região da periferia de São Paulo, objetivamos descrever aspectos dessa experiência e, simultaneamente, problematizar o fazer do psicanalista na saúde pública, em um serviço de saúde mental. Também é nosso objetivo problematizar o que constitui uma intervenção orientada pelas noções de saúde pública e coletiva nesse campo de saberes, ações e práticas. Rcncxtcu/ejcxg<"psicanálise, saúde pública, violência. RU[EJQCN[UKU"F"UWU<""GZRGTKGPEG"KP"RWDNKE"JGCNVJ Cduvtcev< From an experience developed during two years (2003-2004) in a region on the outskirts of São Paulo, we objectify to describe aspects of that experience and, simultaneously, to problematize the practices of the psychoanalyst in public health, in a mental health service. It is also our objective to problematize what constitutes an intervention guided by notions of public health and coletive health in this field of knowledge, actions and practices. Mg{yqtmu<"psychoanalysis, public health, violence.
Este texto tem como referência a pesquisa desenvolvida pela autora, em nível de doutorado, cuja tese foi intitulada A experiência do luto em situação de violência: entre duas mortes. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2011. 2 Mestre e doutora em Psicologia Social pela PUC–SP; Membro do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Política da PUC – SP; Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. E-mail:
[email protected] 1
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partir de uma experiência desenvolvida durante dois anos (2003–2004) em uma região da periferia de São Paulo, objetivamos neste artigo descrever aspectos dessa experiência e, simultaneamente, problematizar o fazer do psicanalista na saúde pública, em um serviço de saúde mental, assim como o que constitui uma intervenção orientada pelas noções de saúde pública e coletiva neste campo de saberes, ações e práticas. O ponto de partida é a crítica à importação, para a saúde pública, de um fazer clínico do âmbito privado de atendimento individual. Nessa observação crítica não se localiza apenas o trabalho de psicanalistas, mas de indistintas orientações teóricas dos trabalhadores das diversas formações que atuam nos serviços de saúde mental. É importante também ressaltar que a crítica não destaca os atendimentos individuais como critério para a noção de importação. Pois, comumente, nas instituições e serviços de saúde mental, a perspectiva de um trabalho de saúde pública de caráter progressista e pautado nos princípios da Reforma Psiquiátrica tem como referência o trabalho em grupo. Em desacordo com esse critério de avaliação, o que marcamos é que o trabalho em grupo ou individual pode estar regido pela mesma concepção individualista. Nesse sentido, a oferta de atendimento em grupo não se constitui em garantia de progressismo da ação. Os atendimentos, em grupo ou individuais, podem ser igualmente alienantes e cronificantes, a depender da orientação eticopolítica que os rege. Assim, as reflexões apresentadas neste texto não se norteiam pelo grupalismo, mas procuraremos apresentar a complexidade das situações e, em consequência destas, a necessidade de complexidade das respostas, sem, com isso, ter garantias. Htciogpvq"Enîpkeq
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A vinheta de um caso clínico pode auxiliar nesta formulação que estamos procurando realizar. Uma mulher a qual nomeamos Flor procura o serviço de saúde mental. A procura é motivada por seus sintomas: está sufocada, não consegue respirar, não fala com as colegas no trabalho. O significado que dá a sua situação é de que está em depressão; recebeu este diagnóstico de um psiquiatra. Na primeira entrevista, ela conta que há um mês perdeu, por assassinato, seu filho, mas não chorou e não consegue chorar. O contexto da morte do filho é o que vai assumir o espaço da sessão, subsumindo a morte e, com ela, a perda. Assim, não conversar, não respirar, estar sufocada, associase a não chorar. Acompanhando seu relato, interpretamos que é chorar que
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está impedindo e impede respirar, conversar, contar a vida e morte do filho. Flor está impedida de chorar a morte do filho e não pode fazer o luto; assim, seu luto está impedido. Flor se detém na descrição das cenas que se relacionam com a morte do filho. Diz Flor: “Ele não dormiu em casa, quando ei em casa para me trocar para ir para o meu outro emprego [Flor trabalha em dois empregos, em um deles faz plantões noturnos] fiquei sabendo. Aí quando cheguei lá [na instituição onde trabalha] fiquei ligando para o telefone celular dele, mas ele não atendia... Eu fiquei ligando... aí uma mulher atendeu e ela me perguntou se eu conhecia o dono daquele telefone, porque ele estava morto, caído lá no chão. Eu dei um grito e caí. As pessoas lá no... (local de trabalho) vieram correndo, me ajudaram a levantar”. Após ter a notícia da morte do filho, Flor foi com o marido ao local indicado. O filho estava ali, diz Flor: “Estava ali, jogado no chão, morto, morto como um cachorro!” Essa é uma cena que vai se repetir no discurso dessa mulher. Foram cerca de oito encontros com Flor. Neles, deteve-se a narrar as circunstâncias em que o filho morreu: encontrado no chão, numa rua em uma favela, com o corpo marcado por agressões. Essa cena a faz associar o filho morto a uma condição não humana – “Estava ali, jogado no chão, morto, morto como um cachorro!” –, o que constitui o inável para Flor, mais do que a própria morte. Algo entre seus sintomas assume destaque para Flor: não consegue chorar. Ao descrever os sintomas, embora não o verbalize, sua fala destaca o estranhamento de viver silenciosamente a morte do filho. Uma morte seca, tomando aqui a referência de Allouch (2004). Indago sobre sua relação religiosa. Flor é católica, mas não encomendou missa, também não cuidou da sepultura, não foi ao enterro. Às circunstâncias da morte são atribuídos valores morais que recobrem a própria morte e, com isso, a a ser negado o direito da família e a necessidade legal de averiguação e de responsabilização da autoria do crime. Na noção de responsabilização e de autoria, referimo-nos não apenas a um indivíduo, mas a um sistema político e social que produz uma sociedade violenta, revelada pela própria desigualdade das condições de vida e de morte. As circunstâncias da morte são transformadas em justificativas e, dessa forma, estão dadas condições para a negação da necessidade de funcionamento das instâncias legais, o que produz como corolário a naturalização de uma realidade na qual determinadas vidas e vidas determinadas são perdidas. Mas a justificativa encobre a perda. E isso não é indiferente a Flor. Ao ir à delegacia de polícia, já que queria saber quem matou seu filho, em nome de quê ou de quem ele foi assassinado – posição legítima no Estado de direito 73
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brasileiro –, tem negado esse direito. Na delegacia, o que Flor escuta é que ela não deve querer saber, não deve buscar informação; essas são as palavras que recebe da autoridade policial: “Nestes casos é melhor não mexer, é melhor deixar isso para lá.” Quais casos, porém, são esses a que se refere o policial? O que ele sabia sobre o filho dessa mulher? O que escutamos é que as palavras proferidas pela autoridade da instituição pública se constituíram em ordenamento: Flor devia silenciar. Com essas palavras e de “onde” elas são proferidas constituem-se os sintomas de Flor; os sintomas mostram sua articulação com o campo social, referido, por sua vez, ao campo do Outro. Flor está proibida de chorar a morte de seu filho e seu luto se torna impedido. Uma morte que não pode ser chorada nos fez associar o caso de Flor com Antígona, tragédia de Sófocles ([441 a.C.] 2003). Tal como Antígona, Flor também recebeu uma proibição proferida pela autoridade legal. Antígona foi proibida, por um decreto real, de realizar o luto pela morte do irmão, pois ele foi considerado inimigo da cidade de Tebas: [...] Polinices – que voltou do exílio jurando destruir a ferro e fogo a terra onde nascera – e conduziu seu próprio povo à escravidão, esse ficará como os que lutavam a seu lado – cara ao sol, sem sepultura. Ninguém poderá enterrá-lo, velar-lhe o corpo, chorar por ele, prestarlhe enfim qualquer atenção póstuma. Que fique exposto à voracidade dos cães e dos abutres, se é que esses quererão se alimentar em sua carcaça odienta (Sófocles [441 a. C.] 2003, p. 14).
As circunstâncias da morte impedem que se disponibilizem, assim como em Antígona, os recursos culturais com os quais se recobre um corpo e possa se entrar em luto. Inferimos que o caso de Flor, em sua associação com Antígona, revela o político que há no luto. Q"ogvqfq"rukecnîvkeq"enkpkeqrqnîvkeq"g"uwc"ctvkewncèçq"eqo"q"UWU Quais as consequências que se dão para o que se escuta e aparece como sintoma no espaço de um serviço público de saúde mental? O atendimento de Flor transcorreu em sessões individuais. E até esse ponto de descrição do caso, podemos dizer que há uma intervenção clínica, mas, tal como descrita, que essa intervenção poderia ter se ado em um espaço privado de atendimento psicológico e-ou psicanalítico. A qualidade do atendimento público está em reproduzir o mais próximo possível, no espaço 74 74
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público, as condições de atendimento do espaço privado? Caso Flor possuísse recursos financeiros, o melhor seria buscar um atendimento privado? Rosa (2004) aborda e delimita a noção de sintoma que guia a prática psicanalítica, apontando que Freud se volta para as questões da cultura e da sociedade tendo como base e referência a experiência clínica: Freud considerou impróprias as categorias de racionalidade e objetividade para a compreensão do homem, uma vez que este vive através do mundo simbólico da linguagem. Inventou, então, um procedimento para desvelar o sentido da palavra do homem, dar-lhe voz. O tratamento psicanalítico destaca a escuta do inconsciente, opera na transferência, com as associações do sujeito; escuta os efeitos do inconsciente, tanto no sujeito, como nos laços que produz, para a produção do saber inconsciente na transferência. Freud inventou um procedimento para que a verdade falasse: revelar os processos inconscientes que produzem os sintomas (realização do desejo), sustentados por uma fantasia, propondo, portanto, a reconstrução da fantasia inconsciente. Freud construiu conhecimento a partir dos imes da clínica, formulando seu método – como quando chamou os efeitos de amor na relação terapêutica de transferência – e reformulando toda a sua própria teoria diante de novos imes. O método é a escuta e a interpretação do sujeito do desejo, em que o saber está no sujeito, um saber que ele não sabe que tem e que produz na relação, que será chamada de transferencial. Nessa medida, o psicanalista escuta o sofrimento e descobre que não deve eliminálo, mas criar uma nova posição diante do seu sentido. O sintoma é realização do desejo, o lugar da verdade do sujeito, uma mensagem, um enigma a ser decifrado; nele está o cerne da subjetividade (Rosa, 2004, p. 340-341).
Indagar sobre sentidos que os sintomas portam, a quem estão endereçados, quais os mecanismos de suas formações, se se trata de eliminá-los, curá-los ou, antes, reconhecê-los como constituídos de verdades que singularizam cada indivíduo, sem deixar de considerar sua dimensão, que ultraa o princípio do prazer e se rege por um além do princípio do prazer, são questões que foram formuladas por Freud e estão na própria origem da psicanálise. Questões que, longe de terem sido superadas, chegam aos nossos dias com atualidade e não somente ocupam as reflexões e indagações dos psicanalistas, bem como constituem campo de disputa que não é sem corte ideológico. 75
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Considerar os sintomas como portando sentidos, tal como os sonhos, os atos falhos, os chistes, constitui o solo que a psicanálise constrói. A psicanálise funda um modo próprio de abordar e desvelar o pathos humano, em sua vertente de paixões e sofrimento e, nesse sentido, ainda carrega seu germe de “peste”. Assim, o modo de escutar e abordar os sintomas não perdeu seu lugar de radicalidade e de desafio na prática com as quais os psicanalistas necessitam enfrentar-se no espaço da clínica, seja pública ou privada, e do debate acadêmico. Aprender, ainda com Freud, que os sintomas portam sentidos e verdades, que são solução de compromisso, portanto, que estão na articulação com os laços sociais nos quais os indivíduos se constituem e vivem, representa uma posição em disputa e que muitas vezes é difícil sustentar. As manifestações psicopatológicas dos indivíduos incomodam, desconcertam, quebram a harmonia, “travam a marcha”, acompanharemos Lacan ([1969-1970] 1992) dizer; têm efeito de greve ao ordenamento de funcionamento social, mas também fazem sofrer em sua produção como recurso de existência, de sobrevivência, de negação-afirmação de verdades. Apropriar-se da dupla dimensão do sintoma e posicionar-se em acordo com essa apropriação faz enfrentamento com as abordagens hegemônicas no campo social. A psiquiatria, hegemônica no campo de saberes sobre o pathos, o observa e aborda segundo sua escala de normatividade; nesse campo, os sintomas são tratados como algo externo a ser eliminado. Podemos concluir, com efeito, que não há espaço para a pergunta sobre de que forma o indivíduo nele está implicado. Trabalhar no sentido de eliminação dos sintomas pode ter o efeito apenas de manter a marcha. O caso de Flor não se constituía em caso isolado, mas em um caso emblemático. A morte de jovens em circunstâncias violentas assumia proporções elevadas, constituindo, nos anos referidos acima, a morte por homicídio, na primeira causa de mortalidade de pessoas entre 15 a 34 anos3. Esse caso aponta a complexidade de questões que a ação na saúde pública coloca para os trabalhadores da saúde mental, e como a psicanálise pode ser um diferencial na compreensão da intervenção para além da intervenção clínica estrito senso. Se apontamos os dados de morte por homicídio, e isso se constitui em uma questão declaradamente social, o sofrimento psíquico pela perda, com as
Segundo dados do relatório do Programa de Aperfeiçoamento de Informações de Mortalidade (PRO AIM), de 1996 a 2005, a região de São Mateus registrou 2.233 óbitos em decorrência de homicídios. Destes, 1.709 foram de pessoas na faixa etária entre 15 e 34 anos.
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questões que interpretamos do impedimento do luto de Flor, não é tão explícita. O que trazemos aqui, com o e teórico da psicanálise, é a política no sofrimento e de como este, ao ser escutado, pode revelar as determinações sociais e políticas que o produzem. Com as questões até aqui levantadas, indagamos: qual a particularidade de esse atendimento ocorrer no espaço de um serviço público de saúde? O que caracteriza uma intervenção orientada pelas diretrizes da saúde pública? Nosso ponto de partida é o de que a clínica na instituição não se descola do acontecer no território, mas, pelo contrário, no singular da clínica é possível – talvez pudéssemos dizer: necessário – escutar o território, dizer a dupla face do território: lugar geográfico e psíquico. Podemos sustentar essa reflexão tomando como base a noção de que só há sujeito no laço social. Ou seja, não há um sujeito autor de si mesmo. Aliás, o si mesmo, o que remete à noção de mônada, é noção que a psicanálise não compartilha, e aponta sua falácia. Contrária a essa perspectiva, a psicanálise se volta para a história, história que não é linear, remetida ao tempo de vida do indivíduo, mas que o sobredetermina, embora dela ele se faça sujeito e a constitua e transforme. O caso de Flor adquiria significação não apenas por a ele se seguirem muitos outros casos, mas porque, a partir do atendimento de Flor, o que foi se colocando foram questões sobre o processo de luto e o campo simbólico e coletivo que operam para a elaboração do luto. Nossas reflexões e práticas, orientadas pelos trabalhos de Rosa (2002; 2004), em que a autora destaca a articulação entre a subjetividade e o campo social e cultural de que partem as mensagens e significantes que atribuem lugares e posições sociais aos sujeitos, voltaram-se para o campo social de onde partiam as proibições em que se detinha o luto de Flor. Essas reflexões marcavam uma orientação de trabalho que dava uma volta, num sentido espiralado, a partir do que se apresentava no espaço de escuta daquele serviço de saúde mental. A análise política que enfatiza a atribuição e a ocupação de lugares sociais, a partir da qual é possível observar e interpretar o que é produzido pelos sujeitos como resultado dessa articulação, constitui a base do que nosso grupo psicanalítico – Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Política (PUC-SP) e Laboratório de Psicanálise e Sociedade (USP) – denomina método clinicopolítico4.
A tese que constitui base para as questões abordadas neste artigo, já anteriormente referida, foi orientada pela Profa. Dra. Miriam Debieux Rosa, coordenadora desses dois espaços de pesquisa, estudo e extensão.
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Ao tomar o campo social como produtor de significantes com os quais se tecem os sintomas enunciados pelos sujeitos em suas queixas do que sofrem numa operação de alienação aos mecanismos que estão em operação nessa relação com o Outro, os atendimentos clínicos, individuais ou em grupo, apontavam a direção da intervenção para o campo social e simbólico. Assim, ocupar a praça, a rua, o encontro, por meio de reuniões e seminários, com outros setores (cultura, educação, assistência, movimento popular, conselhos tutelares e outros) constituíram nossas ações e intervenções. Se delimitamos o referencial teórico-metodológico psicanalítico como orientador de nossas reflexões e intervenções, tomando o espaço de um serviço público de saúde, essas reflexões não desconsideravam as diretrizes do Sistema único de Saúde, Lei 8080/90, que em suas Disposições Gerais estabelece: Art. 3º – A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o o aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País (Brasil, Lei 8.080/1990).
Tomar o SUS em consideração, como lei que regula e orienta as ações da saúde pública, implica necessariamente uma perspectiva de saúde que busca reconhecer os fatores produtores do sofrimento e orientar a ação integrada numa rede que inclua os diversos setores de circulação dos sujeitos, aí considerada a política como eixo que determina, orienta e articula os setores e os sujeitos. Constitui princípio e diretriz do SUS: integralidade da ação, regionalização e hierarquização da rede de serviços, participação da comunidade, organização dos serviços de modo a evitar duplicidade de ações, tal como é possível acompanhar nos incisos do Capítulo II – Dos Princípios e Diretrizes do SUS: I – universalidade de o aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II – integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral;
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IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; V – direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde; VI – divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e sua utilização pelo usuário; VII – utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática; VIII – participação da comunidade; IX – descentralização político-istrativa, com direção única em cada esfera de governo: a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios; b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde; X – integração, em nível executivo, das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico; XI – conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população; XII – capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e XIII – organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos (Brasil, Lei 8.080/1990).
A partir da demanda de tratamento a um serviço de saúde mental, evidenciamos questões e problemáticas, forjadas na realidade social vivida pela população, que ultraam uma formação sintomática individual e isolada, íveis de serem tomadas fora dos laços sociais. Assim, a elevada demanda motivada por situações de violência indica sua origem na organização e dinâmica da região. Além disso, a elevadíssima demanda de atendimento a crianças, feita pelas escolas, sinalizava o envolvimento de pelo menos dois setores: saúde e educação. Todavia, eram recorrentes encaminhamentos feitos pelo Conselho Tutelar, o que corrobora a dimensão coletiva e complexa da situação. Referenciando-nos nas queixas e demandas, constituímos duas grandes áreas de intervenção: a das questões ligadas aos problemas da violência e a das questões relacionadas com a demanda escolar. A título de apresentação das atividades que foram desenvolvidas, seguiremos uma descrição linear, pontuando as ações.
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Ctvkewncèçq"fc"tgfg"fg"ucûfg"ogpvcn<" eqpvtcrqukèçq"ä"htciogpvcèçq Com essas questões teóricas e da política de saúde delineadas, amos a relatar as ações desenvolvidas no período de 2003 e 2004, a partir de um serviço público de saúde: Articulação intersetorial: tendo como ponto de partida a escuta clínica, em grupo e individual, as questões que foram se apresentando, dadas sua recorrência e composição, que apontavam sua articulação com o laço social e a forma de organização desse laço naquela região, apresentamos as questões que nos chegavam nos atendimentos na reunião semanal de equipe. A partir das reflexões nessa reunião, elaboramos como proposta uma reunião para a qual convidaríamos todos os setores que localizávamos como envolvidos com os casos de violência ou que sofriam seu impacto: escolas, conselho tutelar, delegacia de polícia, conselho de segurança da região, fórum da criança e do adolescente da região, organizações não-governamentais que atuam na área da violência, etc. Elaboramos uma carta-convite e a enviamos por diversos meios: e-mail, rede de comunicação interna da coordenadoria de saúde que respondia pelo serviço e pessoalmente, visitando algumas das instituições, como foi o caso do Distrito Policial da região, pois avaliávamos a resistência de participação que esse setor manifestaria e pelo lugar e função que essa instituição ocupa, sobretudo nos casos de violência. Primeira reunião intersetorial: compareceram para a primeira reunião cerca de vinte instituições de caráter público e privado. Explicamos o motivo pelo qual a propuséramos. E a essa explicação seguiu-se uma sucessão de relatos, que assumiram um caráter de desabafo, feitos pelas pessoas que vieram na qualidade de representantes das instituições e movimentos sociais. Com isso, aquela reunião se constituiu em um espaço para as pessoas narrarem suas vivências e comentarem as dos outros, o que criou um corte na solidão e homogeneidade cotidianas com as quais viviam aquelas situações críticas. Como resultado, formou-se um quadro da situação, tendo sido possível observar a extensão do problema. Esses encontros aram a ser regulares e entraram para o calendário do serviço. Constituição de um fórum: com a regularidade dos encontros, dos quais participavam entidades e instituições públicas e privadas, e que contou com apoio da coordenadoria de saúde da região, o grupo se nomeou Fórum Provisório pela Cultura da Paz e apontou para a construção de um seminário regional. Como tarefas desenvolvidas pelos participantes do Fórum Provisório, citamos: relatório das reuniões e seu envio para as instituições participantes 80 80
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e para aquelas que não compareciam ou não vinham regularmente para as reuniões; elaboração de um manifesto de constituição do Fórum Provisório, com distribuição em espaços diversos: feiras, atividades culturais e políticas, etc. Esse manifesto cumpria duplo objetivo: convidar a população para as reuniões do Fórum e dar voz para a situação vivida em decorrência da violência na região; organização de seminários de articulação dos setores, com objetivos de discussão teórica e política da situação e cobrança de envolvimento e ações do poder público local. I Seminário Costurando a Rede: ações integradas no combate à violência, caminhando para a construção de uma cultura de paz: no dia 26 de junho de 2003 realizamos o I Seminário Costurando a Rede: ações integradas no combate à violência, caminhando para a construção de uma cultura de paz, na Subprefeitura de São Mateus5. Participaram desse seminário mais de cem pessoas, grande parte das quais representando os serviços de diversos setores. Como tarefa do seminário foram produzidas propostas de formas de articulação e tratamento ao problema da violência. Uma das propostas foi a realização de uma caminhada de denúncia e enlaçamento das pessoas que haviam vivido violência ou perdas em decorrência de violência. Nesse seminário se oficializou o Fórum pela Cultura da Paz, que até então tinha caráter provisório. Funcionamento do Fórum: a partir do seminário, as reuniões se deslocaram do serviço de saúde para a subprefeitura e seus encontros aram a ser mensais. A mudança de lugar representou o reconhecimento e afirmação do Fórum como um espaço de ação dos diversos setores. Em seu percurso, o Fórum foi se constituindo em polo aglutinador dos diversos setores, representando um espaço orientador para os profissionais e também de demanda, ao qual os setores governamentais e não governamentais recorriam a fim de apresentar questões e problemas que estavam enfrentando. Isso levava à construção conjunta de propostas e de ações. Primeira caminhada pela vida em São Mateus: uma das tarefas do Fórum foi a organização da Primeira Caminhada pela Vida em São Mateus, realizada no dia 04 de dezembro de 2003. Foram marcados três pontos de encontros, de onde as pessoas seguiriam em caminhada até um ponto central. Esses
A mesa foi composta por dois psicanalistas, Emilia Estivalet Bróide e Jorge Bróide; pelo coordenador do Conselho de Segurança da região; pelo subprefeito de São Mateus Franco Torresi; e por dois representantes do Fórum, Jefferson Ramos da Silva (professor de uma escola estadual) e Wilma Lopes (da coordenadoria de saúde de São Mateus).
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três pontos correspondiam aos três distritos que compõem a região. O ponto de encontro foi uma praça localizada na avenida central da região, Mateo Bei. Nesse ponto realizamos um ato público seguido de um ato ecumênico. Uma professora que promovera um concurso de redação organizou um com os textos produzidos pelos alunos. No final do ato ecumênico, flores que haviam sido trazidas foram “plantadas” na praça. Formação dos membros Fórum: Em 2004, as atividades do Fórum incluíram leituras de textos, projeção de documentários tendo como tema central a violência nas escolas e sua articulação com a região e a sociedade em geral; Descentralização: amos a realizar reuniões em serviços que solicitavam algum apoio para organizar e encaminhar situações críticas em consequência de violências. Rede de proteção: a partir das reuniões do Fórum foram se constituindo alguns grupos de trabalho que se juntavam em torno de um problema concreto de uma escola ou que estava sendo enfrentado pelo conselho tutelar, por exemplo. Tomávamos o problema concreto e reuníamos todos os envolvidos: escolas, serviço social e de psicologia da Vara da Infância de cobertura da região. Ou diretora de uma escola, conselho tutelar, psicóloga da Unidade Básica de Saúde. Esses espaços articulavam os setores e suas ações para avançar e amadurecer as experiências intersetoriais. Grupo de educadores na Unidade Básica de Saúde: a partir das demandas de atendimento que chegavam das escolas, convidamos representantes dessas escolas para uma reunião. Compareceram vários educadores que portavam a expectativa de conseguirem atendimento para as crianças, visto que era uma queixa da região a carência de profissionais de saúde mental. Dada a expectativa dos educadores, a primeira reunião iniciou em um contexto de ime. Mas, a partir da fala de um educador, coordenador pedagógico da escola, em que relata a morte de um ex-aluno da escola, assassinado com 14 anos, produz-se um corte na sequência de falas, e a negativa de atendimento foi sobreposta pela proposta de continuidade daquele encontro. Os encontros com os educadores se seguiram em 2003 e 2004. Esse trabalho teve desdobramentos, tais como um espaço de vídeo na unidade de saúde, onde se reuniam estudantes, pais, educadores e os trabalhadores da equipe de saúde mental. Alguns educadores também estavam na fundação e constituição do Fórum, visto que as atividades também se davam paralelamente. Também, como desdobramento dos encontros mensais com educado82 82
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res, a partir da demanda dos pais e deles (educadores) pelo atendimento das crianças, constituímos grupos que tiveram como coordenadores as psicólogas do serviço de saúde e os educadores. O objetivo desses grupos, para os quais predeterminamos oito encontros, era o de conhecer e dialogar com as queixas e demandas dos pais e educadores. Inferimos que a experiência teve efeitos de deslocamentos no posicionamento subjetivo na relação entre educadores e familiares dos alunos. Como elemento que concorria para produzir deslocamento, apontamos o espaço do encontro, uma Unidade Básica de Saúde. Nesse espaço, a palavra e a escuta estavam mediadas por outras referências que as cristalizadas relações de hierarquia e culpabilizações por fracassos escolares das crianças e adolescentes. Essa última questão extrapola nossa condição de abordagem no espaço de trabalho deste texto. II Seminário Costurando a Rede: realizado no dia 29 de junho de 2004, na subprefeitura de São Mateus, no qual foi deliberada a realização da Segunda Caminhada pela Vida em São Mateus. Finalização das atividades: o segundo semestre daquele ano foi marcado por várias questões de dimensões mais amplas. Uma delas foram as eleições para a prefeitura da cidade de São Paulo, um processo cujas proporções também envolve o funcionamento das instituições. Esse aspecto se destaca entre os elementos que inviabilizaram a realização da Segunda Caminhada pela Vida e levaram ao encerramento das atividades tal como vinham sendo desenvolvidas. O governo do Partido dos Trabalhadores, representado por Marta Suplicy, perdeu as eleições, e o prefeito que assumiu, José Serra, do PSDB, em cinco meses de governo, apresentou um projeto de privatização das unidades públicas de saúde, que aram a ser gerenciadas por entidades terceirizadas, com autonomia de gestão. Isso levou ao aprofundamento da fragmentação das ações de saúde. Resistências políticas e subversão dos sujeitos: A região na qual foram desenvolvidas as atividades aqui descritas é uma região com larga história de luta e participação de seus moradores em ações que concorreram para a construção e criação de melhores condições de vida no bairro. As práticas e ações desenvolvidas, conforme relatadas neste espaço do texto, relacionam-se com a história da região. Eqpenwuçq Na tentativa de formular uma forma de intervenção do psicanalista em um serviço público de saúde, reafirmamos esse lugar como o de escuta. Nesse 83
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espaço, a experiência clínica se constitui em direção da ação, a qual se volta para o campo social em que os sujeitos se singularizam em suas articulações no laço social. Os atendimentos clínicos não são sem relação com as outras ações que se desencadeiam e se formulam a partir do que se apresenta como queixa ou demanda em um serviço público de saúde mental. Nessa direção, o que se escuta na clínica diz, não de sintomas individuais, mas de posições singulares que se articulam a dimensões familiares, culturais, sociais e políticas. Nesse ponto, o trabalho do psicanalista é o de sustentar a escuta do que muitas vezes aparece como real demais e produz impotência, desânimo e, como resultado, conformismos e silêncios, que muitas vezes são interpretados como ineficiências e incapacidades dos sujeitos. Em O jovem e o adolescente na cena social: a relação de identificação, ato e inserção no grupo social, Rosa (2010) marca uma direção de intervenção que deve se dar com base no reconhecimento do sofrimento psíquico, no que ele se constitui de elementos da exploração econômico-social. Nesse sentido, ela destaca o sofrimento como efeito da desigualdade e aposta numa prática que possa ser emancipadora das amarras de servidão subjetiva e social: O campo social é um campo de forças e interesses antagônico, complexo e conflituoso [...] No entanto, ao se lidar com esse contexto, observa-se a fragmentação e a oposição entre discursos que se rivalizam pelo poder sobre a criança, o adolescente, a família; promovem-se, por vezes, relações inconscientes ou segmentamse as práticas de intervenção social, seja no campo da saúde, da educação ou no campo jurídico. O conhecimento sobre os indivíduos ignora o contexto de vida do jovem e impõe patologias, retirando do sujeito a efetividade de seu discurso e de sua denúncia. [...] Cuidar do sofrimento psíquico deslocado dos impactos do sofrimento social, da exploração social, cria uma série de distorções que possibilitam que políticas gestadas com objetivos progressistas sejam transformadas em práticas opressivas. E os discursos da saúde podem associar-se aos da justiça para calar o pathos, práticas e discursos sociais tornam-se violentos [...] (Rosa, 2010, p. 12).
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Ocupando o lugar de mediador que atua para a circulação da palavra, nas reuniões e outras atividades, a posição que ocupávamos era a de escuta e de acompanhamento das formulações das propostas e possibilidades dos setores. Com isso, teceu-se um conjunto de práticas entrelaçadas com os atendimentos psicológicos individuais e grupais, criando a conexão entre atendimento individual e práticas intersetoriais.
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O que denominamos de método psicanalítico clinicopolítico é uma posição do psicanalista articulado com as coordenadas de seu tempo, aí implicado, e não como espectador dos laços sociais. REFERÊNCIAS ALENCAR, Sandra Luzia de Souza. A experiência do luto em situação de violência: entre duas mortes. 2011. Tese (Doutorado em Psicologia Social). Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2011. ALLOUCH, Jean. Erótica do luto no tempo da morte seca. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. BRASIL. Lei 8080/90. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. 19 de Setembro de 1990. Disponível em: http://portal.saude. gov.br/portal/arqui vos/pdf/lei8080.pdf. o em: 26 jan. 2013. LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. ROSA, Miriam Debieux. Uma escuta psicanalítica de Vidas Secas. Textura: Revista de Psicanálise, São Paulo, n. 2, p. 42-47, 2002. ______. A pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos: metodologia e fundamentação teórica. Revista Mal-Estar e Subjetividade, Fortaleza, v. 4, n. 2, p. 329-348, set. 2004. ______. O jovem e o adolescente na cena social: a relação identificação, ato e inserção no grupo social. In: Políticas públicas em debate. Seminário Juventudes: presente e devir, Fundap, 2010. SÓFOCLES. Antígona [(441 a.C.]. São Paulo: Paz e Terra, 2003. Recebido em 04/10/2012 Aceito em 08/11/2012 Revisado por Rosana de Souza Coelho
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 86-100, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
QHKEKPCU"GO"UCðFG"OGPVCN<" equvwtcu"gpvtg"q"tgcn." ukodônkeq"g"kocikpâtkq3 Andréa M. C. Guerra2
Tguwoq< O texto discute as oficinas realizadas em saúde mental, partindo de três aportes: a ideia de profanação, a de interdisciplinaridade em ato e a de desinserção. Discute as oficinas e seu potencial de mobilização subjetiva, política e social, enquanto instrumento de intervenção clínica. Conclui por um ponto minimal: o pacto em torno de uma política dos corpos, dos objetos e das palavras, orientada por uma ética que a o mal-estar de todos, a desinserção de cada um e, sobretudo, a falta central na estrutura do saber que essa ética política engendra. Rcncxtcu/ejcxg< psicose, oficinas, reforma psiquiátrica brasileira. YQTMUJQRU"KP"OGPVCN"JGCNVJ<" ugcou"dgvyggp"tgcn."u{odqnke"f"kocikpct{ Cduvtcev< This paper discusses the workshops in mental health from three contributions: the idea of profanation, of interdisciplinarity in act and of detachment. Discusses the workshops and their potential of subjective, political and social mobilization, as a tool for clinical intervention. Concludes with a minimal point: the pact around a policy of bodies, objects and words, guided by an ethic that s the malaise of all, the detachment of each one and, above all, the central lack in the structure of knowledge that this ethics policy engenders. Mg{yqtfu< psychosis, workshops, Brazilian psychiatric reform.
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais, em Porto Alegre, setembro de 2011. 2 Psicanalista; Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e Rennes II-França; Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (Belo Horizonte). E-mail:
[email protected] 1
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vinda a Porto Alegre é sempre motivo de grande entusiasmo de minha parte. Aqui encontro colegas psicanalistas que presentificam a psicanálise no mundo e não se omitem da tarefa política que nos compete, muito pelo contrário. Não à toa, no folder, o argumento dessa Jornada sobre Psicanálise e Intervenções Sociais, nos convida ao trabalho nos seguintes termos: Nas instituições e espaços inter-institucionais, inserimo-nos em um processo de construção coletiva, nos quais encontramos formações discursivas diversas e em tensionamento constante. Torna-se necessário encontrar um ponto mínimo, algo de um projeto comum que reúna os diferentes saberes. Buscamos inscrever nas práticas sociais as questões que a clínica do sujeito coloca à psicanálise. [...] Que significantes encontramos nestes contextos que justificam a presença da escuta e da intervenção da psicanálise? Quais as incidências subjetivas, sociais e políticas do ato analítico?.
Ponto mínimo ou projeto comum entre os diferentes saberes. É sobre esse ponto mínimo que a jornada nos propõe pensar. A mim, chegou o argumento para pensá-lo a partir do tema das oficinas em saúde mental. 1. Parto, portanto, de um pressuposto: o de que temos a liberdade de conferir novos usos aos objetos, profaná-los ou desativar os dispositivos de poder que os indisponibilizaram, devolvendo ao uso comum os espaços confiscados (Agamben, 2007). Profanar é restituir à propriedade e ao uso comum dos homens os objetos sacralizados. E a clínica com as psicoses nos ensina que os objetos se dispõem aos homens para seu uso, e não o contrário. Assim, um carrinho de compras transforma-se em uma parede, numa moradia de rua improvisada por um psicótico, por exemplo, ou em um apoio para a bicicleta sem rodas em outra situação. Um carrinho de compras pode servir a diferentes finalidades, assim como uma palavra. As palavras e as coisas podem ser refuncionalizadas. A atitude profanadora na psicose nos ensina que os objetos materiais estão referidos a outra lógica no mundo. Eles não se inscrevem apenas numa série produtiva e repetitiva que os agrega segundo a dinâmica do sistema capitalista. Os valores atribuídos aos objetos, inclusive, modificam-se, se eles alteram sua inscrição no circuito do consumo. Uma cadeira desenhada por famoso designer, que perde sua trança de assento, torna-se mais útil como varal de roupas. O ato criador (científico e/ou social) está ligado à realização 87
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simples de uma dinâmica combinatória complexa. Dessa maneira, objetos lançados pelo mercado podem nos servir para uso não previsto pelo mercado (Garcia, 2011). 2. Avanço com a proposta de uma interdisciplinaridade em ato na prática feita por vários, ou seja, que se realiza nas decisões e intervenções cotidianas, ando o peso da experiência de limite de cada saber, no arranjo que torna possível o desejo nas mais diferentes invenções subjetivas. Ela se realiza em ato, portanto, pois presentifica em cada espaço institucional a impossibilidade de qualquer saber apreender a realidade toda da experiência. Nesse sentido, abrimo-nos ao encontro com o imponderável e recolhemos, efeito desse encontro, o sujeito que se busca ali produzir, ou seja, a maneira como a causa do desejo toma forma para cada um. Entendamos melhor a proposta. A interdisciplinaridade, historicamente, está associada à complexidade do fenômeno humano e ao desejo de absorvê-lo todo, sabê-lo todo. Quando a psicanálise se faz parceira de outros saberes, ela parte da certeza dessa impossível apreensão toda. Lacan, na década de 50, pensa a estrutura da linguagem, ou o inconsciente estruturado como linguagem, lidando exatamente com a permutação dos elementos na estrutura a partir de uma falta central, que permite o acionamento da língua. O Nome-do-Pai é o responsável pela inscrição desse ponto zero de significação, espaço vazio que permite à linguagem e à cultura se ordenarem (Lacan, [1957] 1998). Como no jogo do Resta Um, é necessário retirar uma peça para que o jogo possa funcionar em suas jogadas possíveis, que, pouco a pouco, vão tornando outros lances impossíveis de serem realizados, firmando assim um campo de possibilidades e outro de impossibilidades. Na medida em que avança em seu ensino, Lacan – assim como aconteceu com Freud – vai destacando esse campo de impossibilidade, não como elemento que faz parar, mas antes como elemento que agencia novos caminhos. Ele chama essa dimensão da realidade de real, dimensão que comporta, de certa maneira, o dado bruto (Miller, 2002). Apercebe-se, então, de que todo o aparato de saber que construímos busca dar conta dessa verdade real de nosso ser, que é, por estrutura, inapreensível (Lacan, [1971-1972] 2011). Assim, aproximarmo-nos da estrutura da verdade exige, sempre, um quantum de ficção 666a ficção que inventamos como tela para ler o mundo. O saber das disciplinas, ditas científicas, não foge a essa lógica. Os conceitos, tanto quanto as palavras, são aparatos que criamos e com os quais pactuamos, utilizamo-los para ler a realidade factual e domesticar a comichão 88 88
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(pulsão) que anima cada um, tornando a convivência entre os homens possível. É porque há um ponto que não apreendemos que produzimos um saber sempre parcial sobre ele. Nesse ponto de seu ensino, Lacan começa a pensar em furos, ali onde pensava em falta. Quando se fala de falta, há a referência a lugares. A falta implica uma ausência que se inscreve num lugar. Pode-se faltar, mas há sempre termos que venham ali se substituir. Daí a falta ser coerente com a ideia de combinatória e de permutação, de linearidade, de cadeia de significantes, de metáfora. ando para essa outra topologia, a do furo, verificamos que, ao contrário, ela comporta o desaparecimento da ordem dos lugares, da ordem da combinatória, evidencia o suplemento inventado pelo sujeito para compor a realidade, sempre psíquica. Lacan concebia a realidade como o resultado da amarração entre três registros: o real, ou aquilo que é da ordem do dado, que tem um certo valor bruto; o imaginário, ou aquilo que é representado enquanto imagem; e o simbólico, ou o que é estruturado e articulado como linguagem (Miller, 2002). O furo seria o efeito da ação de um registro sobre o outro. Como não funcionam dentro da mesma lógica, ao atravessarem um sobre o outro, o efeito seria um furo central em cada um dos registros.
Na medida em que essa falta se formaliza e ganha o nome de objeto a, ela ganha dupla função, de causa e de resto, excedente, destacando a impossibilidade da complementaridade ou, em outros termos, a inexistência da relação sexual. A mulher encarna, em seu gozo suplementar, essa dimensão. Por ser não-toda, ela [mulher] tem, em relação ao que designa de gozo, a função fálica, um gozo suplementar. [...] eu disse suplementar. Se tivesse dito complementar, aonde é que estaríamos! Recairíamos no todo (Lacan, [1972-1973] 1982, p. 99).
A não relação sexual implica, então, um furo. O todo é exatamente a figura que o círculo, na geometria clássica, representa. A psicanálise, por seu turno, opera com outras figuras geométricas, que suplantam a geometria clássica, operando com a topologia de superfícies e dos nós para pensar o 89
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sujeito desejante. Nessas figuras, a torção, o reviramento ou o furo implicam outra forma de abordar o falasser e sua presença no mundo. Assim, seja no toro, seja no nó borromeano, o valor do furo reinscreve a falta na estrutura. O objeto a ganha, então, seu lugar no centro do nó borromeano, cernido (ou currado) pelo atravessamento de um registro sobre o outro. Essa agem desloca a falta para o furo que, transestrutural, implica o efeito do atravessamento de um registro no outro. Como no nó borromeano, o furo é posição própria ao resto, ao que resta da forma como a amarração do nó pode se escrever. “É porquanto o sinthoma faz um falso-furo com o simbólico que há uma práxis qualquer” (Lacan, [1975-1976] 2007, p. 114). Diante dessa perspectiva lacaniana, entendemos a interdisciplinaridade na prática feita por vários como a incidência de uma disciplina sobre a outra, a partir do furo de qualquer saber, sustentado pela não relação sexual. Há uma impossibilidade de qualquer saber em apreender a realidade toda. Assim, apostamos não na complementação entre os saberes, mas nas intervenções suplementares que se estabelecem de uns sobre os outros, transformandoos, a partir de uma ética que a esse furo central. Seria uma espécie de transdisciplinaridade indisciplinada, o que realizamos na prática feita por vários em saúde mental. Esse efeito de furo, por seu turno, não impede que uma práxis se estabeleça entre várias disciplinas. Assim, psicanálise, saúde pública, enfermagem, medicina, terapia ocupacional, assistência social, não se digladiam em campo. Antes constatam, com seu saber, os limites de sua própria disciplina (e das demais) em responder pelo que é o essencialmente humano. Daí poderem inventar saídas, eventualmente pouco ortodoxas ou tradicionais, para os casos atendidos. Com suplementos mais que com complementos, contamos, nessa operação, com o fora do corpo que o significante falo permite organizar no fundamento do laço social e com o fora da linguagem, que o real veicula como substrato sobre o qual a linguagem organizará um campo possível de convivência entre os homens. Na clínica com as psicoses, aprendemos a fazer assim. Dona Aparecida, cozinheira de nosso CAPS3 em Juiz de Fora, onde iniciei minha prática em saúde mental, exemplifica essa interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade em ato. Gilson, que há 20 anos havia esfaqueado a noiva, é hoje um senhor
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Centro de Atenção Psico-social.
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magrinho, fraquinho e muito doido. O CAPS, na figura de seus diferentes saberes: psiquiatria, psicanálise, enfermagem, ainda lia Gilson como o assassino, ao que ele respondia em ato, batendo nas estagiárias, ameaçando funcionários, brigando com usuários. Até certo dia em que entra enlouquecido na cozinha e pega uma faca, dizendo que “vai matar, vai matar”. Os saberes, com seu ponto de impossibilidade, se postam lado a lado e de pé, tensos, na soleira da porta da cozinha, enquanto Dona Aparecida servia o almoço, e os demais usuários almoçavam tranquilamente na sala ao lado. Cada saber buscava uma solução em seu campo quando Dona Aparecida atravessou todos eles e os atou, profanando e realizando em ato o corte que resolveu a tensa situação. “Gilson, você quer almoçar?” – “Hein?” – “Você quer almoçar?” – “Claro!” – “Então me dá a faca pra eu cortar seu bife, anda”. – “Tá aqui, Dona Aparecida, me desculpe...”. 3. Retomo, como terceiro aspecto, a desinserção. O que chamamos de desinserção não equivale à exclusão (social), nem à desadaptação (moral). Há, no nascimento do sujeito enquanto ser de linguagem, uma desinserção originária, estrutural. Primeiro, temos corpo e nome disjuntos; depois, dupla perda, do ser e do sentido, como condição para nomeação e assunção do sujeito ao campo do Outro ou da linguagem. Essa primeira identificação, que comporta a inscrição do significante no sujeito, é o que há de mais apagado do primeiro encontro com o objeto. Ela denuncia uma perda originária, ponto a partir do qual inconsciente e desejo se estruturam. É sobre o apagamento desse traço que, por sua vez, o sujeito poderá falar de si. “O sujeito está, se permitem dizê-lo, em uma exclusão interna a seu objeto” (Lacan, [1965] 1998, p. 825). A “exclusão” ou desinserção, assim, em psicanálise, é lógica e necessária para que, do vazio que dela se instala, o sintoma possa advir como amarração possível do sujeito ao campo do Outro. O sintoma, nessa perspectiva, é menos a proliferação do mal-estar que seu tratamento possível no laço civilizatório. Ele é a consequência lógica e estrutural da constituição do sujeito, e não um mal a ser extirpado. Se o sujeito “encontra sua morada num ponto situado no Outro” (Lacan, [1962-1963]s/d, p. 58), fato é que o faz às custas do sintoma, do que perde de gozo e de sentido ao se inscrever na linguagem. E essa perda nunca se recupera, ela é o preço da entrada na civilização. É o real em jogo no processo civilizatório. Sabemos que o desejo do mestre, da civilização, é o de que tudo funcione por homogeneização, sem falhas. Por outro lado, sabemos também, desde o texto sobre o mal-estar, de Freud ([1929] 1976), que a psicanálise sabe que 91
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a falha é irredutível, que o gozo não se erradica e que a singularidade não faz norma. A contribuição da psicanálise à coisa pública é exatamente a de mostrar que o gozo não se estanca, mas pode se tornar possível e domesticado via sintoma. Encontrarmos formas de ar o que faz exceção seria, hoje, uma das maneiras de contribuir com o pacto civilizatório. Resgatar a dimensão subjetiva presente nas singulares modalidades de desinserção e as vias que permitem, a partir do sintoma de cada um, retomar sua inscrição na trama social, seria sua pragmática (Miller, 2003). Nesse sentido, contra a ideia de precariedades de diferentes ordens por parte dos sujeitos em lidar com o mal-estar na civilização, a psicanálise opera de forma que os sujeitos aprendam, no seu estilo, a saber-fazer com isso (Guerra; Generoso, 2012). Jacques-Alain Miller ([2004-2005] s/d), trabalhando sobre o final do ensino de Lacan, introduz o sintoma como real no vínculo social, permitindo tratar a desinserção como um dos nomes do real de nossa época. Nesse sentido, quanto mais faça obstáculo à existência subjetiva e ao desejo, mais inável será um sintoma – motivo pelo qual ele se torna um elemento central e operatório no trato com a desinserção. Sob a ótica da psicanálise, portanto, o fora-da-norma não se apresenta como “desadaptação” ou “desvio”. Ao contrário, é acolhido, e ganha seu valor central na forma de resistência, invenção subjetiva, singularíssima. Se não há satisfação plena e se não há norma universal, resta a cada um inventar uma solução particular, que se apoie sobre seu sintoma. A solução de cada um pode ser mais ou menos típica, mais ou menos apoiada sobre a tradição e as regras comuns. Ou pode, ao contrário, desejar realçar a ruptura ou uma certa clandestinidade (Laurent, 2006). Assim, a psicanálise não pode determinar sua direção e seu fim em termos de adaptação da singularidade às normas. Ela aborda, ao contrário, a impotência do sujeito em alcançar a satisfação plena, o que se denomina castração. E, em seu percurso, busca conseguir que cada sujeito encontre certo acordo de convivência consigo mesmo e com a civilização. No um-a-um, podem-se abrir novas vias que permitam aos sujeitos extrair o necessário saberfazer com seu sintoma para ultraar os obstáculos e as consequências subjetivas da desinserção. Assim, contando com a dimensão do inconsciente, a psicanálise reinterpreta a experiência da loucura fora do eixo razão-desrazão. Em sua ótica, a desinserção se coloca para todos. A psicose, termo técnico que designa a loucura, é efeito de um posicionamento de rejeição radical do sujeito diante da linguagem, diante da impossível síntese, ou interseção, entre sujeito e Outro. Nesse sentido, leva ao extremo a experiência da desinserção, fazendo-se paradigma de seus modos de solução. O psicótico é o sujeito, por excelência,
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que aprendeu a lidar, a saber fazer com seu sintoma, seja através do delírio, da arte, da escrita ou de outro recurso. Ele nos mostra o uso possível do sintoma na radicalidade da vivência do desamparo em relação ao Outro. O tratamento construído pelo psicótico para trabalhar essa disjunção com o corpo e com o Outro é a direção seguida para lidar com sua desinserção originária. Com isso, seu estilo ganha um valor central na clínica. Além disso, a singularidade de sua história e da lógica que constrói em decorrência dessa posição face à linguagem demarcam a estrutura de sua posição subjetiva e de seu pacto com a civilização. Não há o que adaptar ou incluir, mas antes o que ar desse embaraço da experiência da loucura com a civilização, estabelecida a cada caso. Para ilustrar a desinserção, trago Maria das Flores, usuária de um serviço de Santo André (SP). Com ela, aprendemos que uma casa pode ser habitada de maneiras muito diferentes daquelas dispostas no espaço arquitetônico tradicional das moradias com paredes, portas, janelas e seus cômodos. Quando hipotetizamos que apropriar-se de uma casa perfaz uma ação sociossimbólica na qualidade de reparação ou invenção do ponto de ruptura do sujeito com o Outro ou com o corpo, fazemo-lo em função de situações inusitadas como a que ela nos fez conhecer. Maria vive na cidade de Santo André-SP e, ao apresentar seu espaço de moradia, visita conosco nada menos que dez referências: barracões na estação da cidade, três casas de amigos e uma de familiar (irmã), quatro bares, um hospital, além de ruelas das duas favelas contíguas por onde circula, sem contar a farmácia na qual se maquia. Ela dorme a cada dia em um desses espaços, havendo a preferência pelas casas nas favelas – salvo a da irmã, com quem não conversa mais. Já dormiu muitas vezes na rua com mendigos ou noias, correndo risco de vida e presenciando tiroteios. Nos bares, algumas vezes ajuda com a limpeza em troca de abrigo ou comida, mas nunca se prostituiu, como a convidaram a fazer alguns dos donos desses bares. Além disso, ela diz realizar o roteiro de visita às suas “moradias” todos os dias. E, ao se referir a uma internação hospitalar por conta de uma pneumonia, relata que ali se “hospedou”: “Estava hospedada por alguns dias. Precisava me tratar de uma pneumonia e fiquei hospedada. Fiquei amiga de todo mundo, me trataram muito bem”. Quanto à relação com a família, ela não fala nem com um irmão, nem com uma irmã, mas ainda se relaciona com a mãe. Entretanto, mesmo com essa, não estabelece diálogos ou um laço de afeto, pois, segundo ela, ela tem problemas, não fala direito. Ninguém consegue conversar bem com ela. A mãe sempre foi assim. Do pai, não tem notícias: eu não tenho pai. Não sou irmã de sangue das minhas irmãs. Meu pai não ficou com a minha mãe. Eu o vi uma
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vez, mas era criança e, por isso, nem me lembro. De fato, M. é mais branca que a mãe e as irmãs, com quem não se parece muito. Foi casada e teve um filho, tendo perdido sua guarda para o pai do menino. A cada relacionamento posterior, perdia um vínculo com as coisas do mundo, tendo seu apartamento sido ocupado pelo último namorado, com quem permanece até hoje. Esse laço aparentemente bambo, solto, frágil, parece sinalizar para uma resposta possível, construída por Maria, em sua posição na relação com o Outro. O Outro a espolia, a rouba, não a deseja, perde a paciência com ela. Ela atrapalha. Como resposta, nos parece, Maria não se compromete com ninguém, não se fixa, não pede nada, apenas aceita o que lhe dão, pois não quer ter que dar nada em troca. Sua resposta é a errância em relação ao Outro, com esparsos pontos de fixação. Na falta de um espaço simbólico no campo do Outro, no qual pudesse se alojar, Maria responde com sua falta de lugar, sua dispersão. A cada endereço, um ponto. Poderíamos, diante dos modelos de moradia que conhecemos, dizer que ela não consegue habitar. Se, porém, observamo-la mais de perto, verificamos que ela forja, a sua maneira, uma proteção ao olhar do Outro, uma espécie de intimidade bem particular. Revejamos sua estratégia de ocupação. A cada casa, das três por onde circula, ela deixa parte das, mas nunca todas, suas roupas. Não as recolhe. Dorme, no improviso, sem avisar a ninguém onde se encontra. Se lhe fecham a porta, como aconteceu com uma irmã e uma das donas dessas três casas, ela se vira. Daí em diante, porém, essas pessoas deixam o campo das confiáveis e am para o outro lado, das espoliadoras. Não é mais sua família de coração, aquela eleita e amada por ela. O saber fazer com a habitação que Maria inventa orienta-se pelas pessoas e espaços que elege. E, a partir da relação que estabelece com elas, fixa seus pontos de moradia através das roupas e outros pertences que deixa ali sob os cuidados do outro, resguardados. Parece-nos que, a partir de seus desacertos pela via da normalidade moral, Maria inventa um jeito muito próprio de habitar seus espaços. Até então, ela tem criado um espaço de intimidade resguardada do Outro, espaço de “exclusão interna”, tornando-se hóspede do outro. E tem se virado muito bem com ele a seu modo... 4.
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E discuto finalmente as oficinas e seu potencial de mobilização subjetiva, política e social, enquanto instrumento de intervenção clínica, produzindo seus efeitos diretamente recolhidos pelos oficineiros e técnicos da saúde mental. Nesse quarto e último aspecto, retomo a discussão com a qual iniciei a abordagem do tema, ao descobrir certa “densidade simbólica diferenciada” no trabalho das oficinas. E avanço tentando pensar os diferentes registros
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da realidade psíquica: real, simbólico e imaginário, nessa costura em que a desinserção se apresenta como elemento operatório e a interdisciplinaridade em ato, na prática feita por vários, o solo fértil para um trabalho que a a singularidade do cada um no contexto do “para todos” das políticas públi-cas. Na época de minha prática e pesquisa sobre as oficinas, parti das seguintes questões que, acredito, ainda animam o trabalho de oficineiros em saúde mental: 1) Como podíamos articular a demanda “oficial” do serviço público por ocupação através das oficinas com a demanda pessoal que nem sempre existe 6de cada paciente por atividades? 2) Como recolher no estilo e no texto do sujeito elementos para pensar sua inserção em uma oficina? 3) Vimos, em particular no caso do psicótico, que sua relação com o trabalho, com a produção e com a própria sociabilidade, nem sempre encontra respaldo no universo simbólico que rege o funcionamento das normas sociais. Somos todos desinseridos. Por que, então, tentar inseri-lo nesse campo normativo, seja pela via do trabalho, da atividade, da arte ou da reabilitação social? 4) Como inserir e ar a diferença e a singularidade no campo social? 5) Em que as oficinas nos serviços substitutivos difeririam das antigas experiências artísticas e das terapêuticas ocupacionais que há tempos habitavam os hospícios? 6) E mais, o que se entende por trabalho de uma oficina? O que faz uma oficina funcionar para alguns de seus participantes? 7) Como compatibilizar a especificidade da inscrição do louco no simbólico (ou seja, o fato de se inscrever na cultura sem partilhar de sua ordem formal, comungada pelos demais) com a demanda assistencial pela normatização de seu comportamento, muitas vezes desvio do uso da atividade? 8) Entre uma intencionalidade sociopolítica e outra clínica, onde situar as oficinas? A estrutura dessa relação, me parece, radica numa topologia marcada pela torção, menos que pela intersecção, exclusão ou incompatibilidade. Pois bem, nosso achado se resumiu em uma expressão, recolhida de uma oficineira: “aqui encontramos uma certa ‘densidade simbólica diferenciada’”. Do que ela estaria falando? Partamos da lógica que articula a presença da psicose em relação à linguagem. Mesmo inserido na cultura, na linguagem e no cotidiano, o psicótico não se encontra submetido às mesmas normas de funcionamento da linguagem que a maioria de nós, neuróticos, por conta de sua constituição. Ao contrário, caracteriza-se justamente por não se inscrever nessa norma simbólica, contando com aqueles recursos que a normatizam e 95
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que permitem a equivalência e a inscrição num registro sexual, estabelecendo um ponto comum para o circuito de trocas sociossimbólicas. O psicótico constrói uma via particular para lidar com a linguagem e a cultura, na qual a dialética simbólica é substituída pela literalidade das coisas (Freud, [1915] 1976; Lacan, [1957-1958] 1998), num trabalho incessante de tentar pôr ordem ao caos interno que nele se instala. O trabalho aí seria uma “maneira de operar conversões; maneira que civiliza o gozo fazendo-o ável” (Soler, 1990, p. 16). Estamos falando do excesso do próprio psicótico, que não cessa de produzir psiquicamente, na tentativa de fazer uma inscrição no Outro da cultura, extraindo dele o seu lugar no circuito simbólico, amparado pelo imaginário, face ao tratamento possível do real. As oficinas são construídas a partir do chamado à participação e à produção na cultura, abrindo para o portador de sofrimento mental a possibilidade de reinscrever-se nas relações pessoais, de circulação, de trocas, de trabalho, enfim, do cotidiano. Possuem um viés clínico, um viés sociabilizante e um viés político, ao mesmo tempo. Seu operador central seria uma certa densidade simbólica diferenciada, entendida enquanto densidade que particulariza e diferencia o uso da atividade nas oficinas das demais intervenções, coletivas ou não, dos serviços abertos, qual seja, há uma materialidade do produto ao final. Esse objeto-produto possui ao menos quatro características que o especificam simbolicamente: • 1. está referido ao objeto perdido que funda a humanidade do sujeito; • 2. possui uma materialidade concreta; • 3. é endereçado ao Outro social, sobre um fundo de linguagem; • 4. apresenta-se no circuito de trocas com valor social, econômico e simbólico, ao mesmo tempo. Sua ética, portanto, seria regida pela tensão entre clínica e política, entre objeto e produto. A face do objeto, desde sempre perdido, objeto a, no aparelho psíquico, seria o interior-exterior (ex-timo) em relação a sua outra face, concernente ao equivalente do produto buscado no circuito das trocas sociais. Assim, enquanto, ao falar, o neurótico produz mais de gozo ou objeto a, objeto-resto; ao criar coisas concretas, talvez o psicótico estivesse extraindo do ventre do Outro objetos reais, que, permitindo-lhe produzir um resto nessa operação – um objeto inédito – talvez lhe conferisse uma densidade simbólica sobre sua corporalidade real, fixando-o numa imagem. Com essa operação, desloca ou separa o psicótico da posição de objeto do gozo do Outro, ao criar um objeto exnihilo, endereçado ao social, via oficineiro ou qualquer outra pessoa ou instituição. Em outras palavras, ao extrair da própria realidade um produto concreto inédito, o psicótico, de um lado produziria um esvaziamento 96 96
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no Outro absoluto que o aterroriza, e, de outro, poderia deixar o lugar de objeto de seu gozo para ocupar o lugar de autor, produtor de um objeto com consistência simbólica e, ao mesmo tempo, com materialidade social e econômica. Para mostrar essa função, trazemos Victor e nossa rotina de trabalho com seus imes sempre aparentemente insuperáveis, ou seja, excertos de uma experiência de oficina em saúde mental. Victor, hoje, está com 54 anos. Vivia, em sua juventude, em relação de radical exterioridade com a linguagem. Aos 26 anos, quando sua psicose se desencadeia, fala que: “A voz simplesmente não saía [...] perdi a voz [...]delirava com as palavras, eu não sabia escolher o que eu ia falar”. Filho de um pai cigano, que se mudava constantemente com a família, tentava recolher dele insígnias para se inscrever no campo do Outro, por exemplo, recolhendo palavras dos jornais em que o pai trazia compras embrulhadas. Ele demonstra uma relação muito própria com a palavra desde criança. Antes mesmo de saber ler e escrever, já era encantado pelas letras e as copiava de forma a desenhá-las no papel, mesmo sem saber seu significado. Ele via as propagandas afixadas nas ruas e queria saber o que elas diziam. A primeira palavra que aprende a escrever sozinho aos 4 anos de idade: “casa”, ele a escreve na parede onde morava e é obrigado a apagá-la pela avó brava. Veremos que suas tentativas de tratamento para as rupturas com a realidade foram muitas, sendo sempre permeadas pela escrita. Escreve as palavras ou frases que se fixam em sua mente e também os conteúdos das vozes que ouve. Ora rasga, ora conserva grande parte da escrita que vem dessa exterioridade que lhe é, a princípio, totalmente estrangeira, pois não sabe se ela está certa, bem como se as pessoas poderão entender o sentido dela. Foge várias vezes de casa, vive na rua, na errância, e entra no mundo das drogas quando se afasta do pai. Mas sempre retorna à família. Do pai cigano ao movimento de fincar raízes, vemos seu movimento na tentativa de se alojar na linguagem, de localizar-se simbolicamente no campo do Outro, de tratar, enfim, sua desinserção. Em torno dos 40 anos comete um homicídio contra o ex-cunhado, juntamente com a namorada. É internado em hospital psiquiátrico e cumpre três anos de medida de segurança. Ao sair, morando na capital mineira há nove anos, insere-se na rede de serviços substitutivos ao manicômio. É quando começa a participar de uma oficina, escrevendo para o jornal do CAPS, onde faz tratamento desde 2006. Ele ganhou o codinome Voa-Voa4 com o qual assina seus escritos, que são endereçados a três seções do jornal: Loucomotivo, Informeação e Atualidades. Podemos dizer que, para Victor, uma das funções do CAPS é ser um lugar no qual pode publicar seus escritos, podendo ende97
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reçá-los aos outros, tal como ao dar os jornais para a irmã que os coleciona. Além disso, destaca-se, nessa nomeação Voa-Voa, um elemento de apaziguamento do gozo, um tratamento do real, que o avassala, pelo simbólico do nome. Voa-Voa condensa, aos moldes de uma metáfora, um nome próprio, cuja deixa sua marca de autoria no Outro. Ao mesmo tempo, nomeia sua ausência de “raízes”, fazendo as vezes de uma vetorialização de sua posição subjetiva. Além disso, tornar-se aquele que escreve para o jornal do CAPS o aloca a um semblante, a um lugar social, cuja imagem costura, com seu codinome, um espaço no campo público. Como se vê, temos aqui a tal densidade simbólica diferenciada, cuja especificidade situa-se exatamente no fato de não vir sozinha, mas antes incluir os outros dois registros da realidade: o real e o imaginário. A diferença dessa densidade simbólica, a nosso ver, reside no fato de permitir uma costura entre o simbólico do codinome, o semblante do escritor e o endereçamento do produto-objeto escrito no campo do Outro. Trata-se de elementos fundamentais para o apaziguamento e para a fixação desse sujeito em um ponto do Outro, tratando o real indomesticado de Victor. 5. Concluindo A inscrição cultural dos psicóticos sempre foi negativa. Essa prática possibilita desfazer politicamente, culturalmente, esse lugar do louco como elemento desqualificado. Trata-se de uma clínica positiva. O louco, dentro dessa formulação, é um batalhador, é um sujeito que trabalha para lidar com a dispersão do gozo, com as dificuldades pulsionais. Com a atividade de produção nas oficinas, atividades de circunscrição de gozo, o psicótico pode produzir sentidos históricos a sua produção, a partir de fragmentos de coisas e imagens, inscrevendo-se na linguagem ou inventando uma possibilidade de circunscrição de gozo. As oficinas, então, configuram-se enquanto formas de cifrar o gozo ou “significantizar” o real, permitindo a construção de uma outra superfície para localização desse gozo. É uma separação para que o sujeito possa se inscrever no laço social e, no entanto, um laço para que ele não seja deixado cair. Retomando, finalmente, o ponto mínimo ou projeto comum, que nos
VOA-VOA: refere-se às iniciais do nome de Victor de Oliveira Alves (pseudônimo adotado no texto para evitar sua identificação), sendo tal codinome sugerido pelo coordenador da oficina de Jornal do CAPS. 4
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articula a todos, causados e aprendizes da clínica com as psicoses, poderíamos assim resumi-lo: O minimal entre nós seria o pacto em torno de uma política dos corpos, dos objetos e das palavras, orientada por uma ética que a o mal-estar de todos, a desinserção ou falta de cabimento de cada um e, sobretudo, a falta central na estrutura do saber na práxis que essa ética política engendra e sustenta. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. FREUD, S. O inconsciente [1915]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 3.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976. V. XIV, p. 191-252. FREUD, S. O mal-estar na civilização ([1930]1929). In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.3. ed. Rio deJaneiro: Imago, 1976. V. XXI, p.75-171. GARCIA, Célio. Estamira, novas formas de existência: por uma clínica da carência. Belo Horizonte: Ophicina de Arte e Prosa, 2011. GUERRA, Andréa; GENEROSO, Cláudia. Desinserção social e habitação: a psicanálise na reforma psiquiátrica brasileira. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. V. 15, n.. 3, set. 2012. LACAN, Jacques. A ciência e a verdade [1965]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 869-892. ______. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose [1957-1958]. In: ______. Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p. 537-590. ______. Seminário A identificação [1961-1962]. s/d. ______. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne [19711972]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011. ______. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1982. _____. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. LAURENT, Éric. Principes directeurs de l’acte psychanalytique. Paris: École de la Cause Freudienne, 2006. Consultado em 08 de Janeiro de 2010 em
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SOLER, Colete. Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires: Manantial, 1990. Recebido em: 20/07/2012 Aceito em: 30/08/2012 Revisado por: Otávio Augusto Winck Nunes
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 101-110, jul. 2011/jun. 2012
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Tguwoq< O artigo discute o estatuto do objeto produzido no âmbito das oficinas terapêuticas. Seu objetivo é destacar a dimensão da perda como guia a orientar a produção das materialidades elaboradas no seio desses dispositivos terapêuticos. A produção da perda se situa como condição da inscrição de um entre. Entre que funciona como preposição e marca a distância de dois pontos. Entre que funciona como verbo e permite o convite ao outro para aproximar-se, sem que essa aproximação carregue uma ameaça incontornável. Rcncxtcu/ejcxg< psicose, oficinas terapêuticas, objeto , políticas públicas. DGVYGGP Cduvtcev< The article discuss the statute of object made at the scope of the therapeutic workshops . It’s goal is to detach the dimension of lost as guide to orient the production of the materiality elaborated at the breast of these therapeutic devices. The production of lost find itself as condition of the enrollment of a between. Between that works as preposition and that’s stands the distance of to spots. Between that works as a verb and allows the invitation to another to get closer, without meaning that this approximation carries an unavoidable threat. Mg{yqtfu< psychosis, therapeutic workshops, object, public policies.
1 Esse artigo foi inicialmente publicado em: Leite, Nina Virgínia de Araújo, Milán-Ramos, Guillermo J. EntreAto – o poético e o analítico. São Paulo: Mercado das Letras, 2011. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Instituto APPOA; Professora do Pós-Graduação em educação e em Psicologia Social e Institucional/ UFRGS;Pesquisadora do CNPq.E-mail:
[email protected]
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omer e Langley Collyer eram dois irmãos que viveram em Nova Iorque no início do século ado. Moravam no Harlem, quando este ainda era um bairro elegante que abrigava enormes casarões onde residiam famílias ricas e promissoras. Eles eram filhos de um médico ginecologista e de uma cantora de ópera. Ambos, quando moços, ingressaram na Universidade Colúmbia, sendo que Homer se formou em direito e Langley em engenharia. Sabe-se que Homer chegou a ter dois empregos fixos: trabalhou primeiro em um escritório em Wall Street e depois em uma companhia de seguros na Broadway. Langley, por sua vez, não chegou a trabalhar. A história de suas vidas rendeu a produção de um curta-metragem, dirigido por Alfeu França, intitulado: Irmãos Collyer – uma fábula do acúmulo (2006).3 Por algum tempo os irmãos nova-iorquinos moraram no casarão de doze cômodos do Harlem, acompanhados por toda sua família. Quando da morte dos pais, foram paulatinamente se retirando da cena pública, recolhendo-se em sua casa, até não mais saírem às ruas, com exceção de furtivas incursões noturnas. À noite, Langley ganhava a rua para buscar alimentos e em suas andanças trazia consigo tudo que pudesse encontrar pelo caminho: restos de objetos e entulhos com os quais cruzava em suas caminhadas e que eram sistematicamente recolhidos a sua casa. Homer, por sua vez, viveu no corpo a reclusão psíquica que os irmãos se impunham: em 1937 ficou cego e, em seguida, por conta de um reumatismo grave, ficou preso a uma cama. Langley, que contava com a biblioteca de seu pai, médico, acreditava poder curar o irmão com uma dieta de mais de cem laranjas por dia. Por conta de sua aposta, de que Homer pudesse voltar a ver, e também em função da impossibilidade que compartilhava com o irmão de jogar qualquer coisa fora, Langley guardava os jornais velhos que trazia em suas andanças para que o irmão pudesse lê-los logo que recuperasse a visão. A reclusão de Homer à cama lembra a imobilidade de um famoso personagem literário que ganhou vida na pena de Jorge Luis Borges: Funes, o memorioso (1999). Irineu Funes sofrera um acidente que havia lhe imposto o completo enclausuramento ao catre. Sua imobilidade física, porém, se fez acompanhar de uma terrível capacidade: era-lhe possível experimentar cada acontecimento como se fosse único e registrá-lo em sua memória de forma
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Fui apresentada a este documentário por minha orientanda Simone Lerner.
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que nada lhe ava despercebido. A letra de Borges nos catapulta para o drama de Funes: Nós, de uma olhadela, percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os rebentos e cachos e frutos que compreende uma parreira. Sabia as formas das nuvens autrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas das espumas que um remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às sensações musculares, térmicas, etc. [...] Disse-me: ‘Minha memória, senhor, é como um despejadouro de lixos.’ Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, entretanto que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, é abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos” (1999, p.543 e 545; grifo nosso). Retenhamos esse contraste entre uma memória que se infinitiza como um “despejadouro de lixos” e a capacidade de pensar que implica esquecer – por que não dizer, perder, deixar cair – as diferenças. Voltemos ao casarão do Harlem. Sozinhos, reclusos, sem sair nem ao menos para pagar suas contas, os irmãos Collyer viram o telefone do casarão cortado em 1917 – o que não devem ter nem ao menos notado!!! – e o fornecimento da eletricidade e do gás interrompidos em 1928. Sabe-se que Langley, como engenheiro, construiu uma forma de gerar um mínimo de energia através do reaproveitamento de um velho motor. Em março de 1947, o comissário de polícia da cidade recebeu a denúncia de que um forte cheiro exalava do número 1228 da 5ª Avenida. Essa denúncia deu início a uma busca por entre toneladas e toneladas de entulhos. Os policiais foram abrindo caminho em meio a papéis, latas, pedaços de móveis, restos de armamentos, peças de instrumentos musicais... até encontrarem Homer, deitado, morto em sua cama. Como não encontraram Langley, aram a suspeitar de que, tendo visto o irmão morto, ele tivesse saído de casa sem rumo. Após dezesseis dias de um trabalho contínuo de remoção de entulhos, os policiais encontraram o corpo de Langley a apenas três metros da cama do irmão e, com isso, reconstituíram a tragédia: Langley tinha sido vítima de uma de suas armadilhas para ladrões. Na pressa de acudir o irmão, teria ado por um túnel e ativado uma arapuca que fazia desabar, sobre o desavisado, toneladas de entulho. Como refere o narrador do curta-metragem: “os irmãos encontraram seu destino em uma avalanche de acúmulo. Objetos, o que significam para nós? Por que precisamos deles?” (França, 2006). 103
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A história dos irmãos Collyer ganha versões mais brandas em uma série de encontros que podemos ter com sujeitos que recorrem à rede de assistência à saúde por conta do que situamos como sendo da ordem da loucura. Muito são os relatos de colegas, que ouvimos em supervisão, impactados com o que presenciam em visitas domiciliares: o acúmulo, por vezes sem bordas ou critérios – pelo menos aparente –, de objetos cuja utilidade não responde ao pragmatismo da vida cotidiana. A experiência com essa história e com essas imagens nos leva a revisitar um trabalho que vimos acompanhando desde 2004 junto a grupos de diferentes instituições: o trabalho com as chamadas oficinas terapêuticas no âmbito da saúde coletiva. A história dos irmãos Collyer nos permite tomar o acompa-nhamento deste trabalho para levantar alguns pontos de reflexão que a ele se referem e outros que dele transcendem. Em primeiro lugar, nos faz pensar sobre aquilo que se produz no âmbito do fazer em oficina, e seu lugar para aqueles que o constroem. Independentemente do artefato cultural que reúna os participantes de uma oficina, está em jogo, nesse encontro, como um horizonte a alcançar, a produção de uma materialidade, seja ela um texto, uma pintura, uma escultura, um boneco de pano, um filme... Tanto é assim que frequentemente as oficinas recebem a alcunha do artefato ao qual se dedicam: de escrita, de expressão plástica, de fotografia, de produção de imagem... Esse modo de trabalhar tem alargado sua presença como um dos dispositivos acionados, especialmente no trabalho dos Caps, após a Reforma Psiquiátrica; de sua condução têmse ocupado trabalhadores com as mais variadas formações, dentre os quais psicanalistas que atuam na rede pública. A reunião de sujeitos em torno da produção de uma materialidade que tenha sentido e lugar na circulação simbólica, convoca-nos a pensar sobre o estatuto que o objeto ali produzido assume para os sujeitos que encontram nessa forma de trabalho uma possibilidade de encaminhar os imes que lhes são próprios. Que objetos são esses? Que lugar eles ocupam? O que a impactante história dos irmãos Collyer pode nos dizer sobre eles? Ao acompanharmos o trabalho nas oficinas terapêuticas, nos vemos interpelados sobre o lugar que a produção de uma materialidade pode ter; lugar que talvez possa tensionar o trabalho do acúmulo a que se veem impulsionados alguns sujeitos. Parece-nos que produzir uma materialidade que seja capaz, mesmo que momentaneamente, de representar um objeto que se destaca do corpo para ganhar lugar no exterior, coloca-se na contramão da relação à produção de uma continuidade sem fissuras, implementada pelo trabalho do acúmulo dos irmãos. 104 104
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Freud, no texto A negativa ([1925] 1974), nos diz que podemos situar a origem mítica do sujeito no momento em que algo se destaca de uma continuidade, ando a constituir uma alteridade em relação à qual o sujeito ganhará existência. O sujeito emerge quando ,algo se destaca do continum sem bordas em que se situa o Outro, em seu primórdios. É como efeito dessa operação que o vemos surgir enquanto imparidade instransponível. Isso que se destaca do campo do Outro, que é expulso, cuspido diria Freud, estabelece as condições para diferenciar uma experiência eminentemente interior de uma experiência exterior. Mas sigamos os os de Freud. Freud, nesse artigo, vai reconstruir uma história que, de forma alguma pretende ser a metáfora de um desenvolvimento, mas, sim, uma referência a um momento inicial, mítico, em que, para o sujeito, por um lado, tudo que lhe confere prazer, que é por ele sentido como bom, equivaleria àquilo que se encontra dentro dele e, por outro, tudo o que é da ordem do desconforto, do mau, seria sentido como da ordem do exterior. Trata-se de um momento primordial no qual vemos atuar o eu-prazer a incorporar o que lhe dá prazer e a expulsar o que lhe confere desprazer. Hyppolite ([1954] 1998) se refere desse modo ao trabalho de Freud: Há, no começo, parece dizer Freud – mas ‘no começo’ não quer dizer outra coisa, no mito, senão ‘era uma vez’... Nessa história, era uma vez um eu (entenda-se, aqui, um sujeito) para quem ainda não havia nada de estranho. A distinção entre o estranho e ele mesmo é uma operação de expulsão (p. 898).
Se é possível ao sujeito referir-se a um fora como distinto dele próprio é porque houve, em algum momento, uma primeira operação de expulsão, capaz de produzir essas duas instâncias numa certa tensão – dentro-fora; eu-não-eu, sujeito-objeto. As origens desse mecanismo que Freud chamou de juízo de atribuição, ou seja, a capacidade de o sujeito decidir sobre as características de algo, inscreve-se a partir de uma expulsão que funda duas instâncias em tensão, em um momento segundo, em relação ao que seria o da pura unidade, momento mítico em que ainda não se verificaria a existência de um eu e de um não-eu. Na sequência de sua descrição da gênese do juízo de atribuição, Freud vai se dedicar a desdobrar a origem do que ele chamou de juízo de existência: a capacidade do sujeito de se assegurar da existência ou não de uma representação na realidade. Segundo ele, tratar-se-á “mais uma vez de uma questão de interno e externo” ([1925] 1974, p.298). Se no começo temos, como vimos, uma unidade mítica, a questão acerca da existência ou não de uma
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representação na realidade não se coloca, nesse momento, para o sujeito – se é que podemos conferir-lhe essa denominação –, pelo simples fato de não haver algo como uma realidade interior em distinção a uma realidade exterior. Temos um contínuo mítico, sem rupturas. É no desdobramento do eu-prazer, fruto de uma primeira expulsão, que permitiu criar um interior em tensão a um exterior, que veremos se inscrever a condição, para o sujeito, de discriminar aquilo que tem existência em suas fantasias ou devaneios e aquilo que, tendo, por isso, existência interna, pode também ser encontrado no exterior com uma existência independente do sujeito. É nesse ponto que Freud situa a origem mítica da disjunção entre o que é subjetivo e, portanto, existe no interior do sujeito, mas não pode ser reencontrado em seu exterior, e o que é objetivo e tem realidade assegurada em ambos os lugares. Freud situa numa perda originária a condição de uma cissão Eu-Outro e, por que não dizer, da constituição do objeto como exterior ao sujeito – ainda que o exterior aqui referido obedeça à estranha topologia inconsciente: exterior como aquilo que está excluído no interior. Vale referir uma longa citação de Freud ([1925] 1974): A antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início. Surge apenas do fato de que o pensar tem a capacidade de trazer diante da mente, mais uma vez, algo outrora percebido, reproduzindo-o como representação sem que o objeto externo ainda tenha que estar lá. Portanto [...] é evidente que uma precondição para que o estabelecimento do teste da realidade consiste em que os objetos, que outrora trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos (p.299).
Há algo de uma perda necessária à constituição do objeto como representação, objeto que, esculpido pela argamassa simbólica que lhe confere consistência e valor numa condição separada, externa ao sujeito, tem como atributo fazer retornar sobre o sujeito a consistência que lhe é própria. Como vimos, a divisão primordial que institui uma tensão eu-não-eu se inscreve a partir de uma expulsão, de uma perda que constitui o objeto, que a agora a habitar uma exterioridade em referência à qual o sujeito pode emergir. Quando nos situamos diante das imagens produzidas na Nova Iorque dos anos 50 assistimos à constituição de um espaço sem vazios, sem ocos. Para não dizer que se tratava de um espaço completado pelos entulhos acumulados, precisamos levar em conta que havia neles somente alguns túneis por onde era possível circular pela casa, por onde era possível alguém ar. Túneis que davam lugar ao sujeito, espaços vazios que permitiam circular, 106 106
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movimentar-se em direção ao outro. Pequenos entres que possibilitavam agens e, talvez, alguma condição de encontro, de estar na companhia do outro, mesmo que saibamos que a relação é impossível. Se supomos que, para os irmãos Collyer, a condição de experienciar o vazio, o oco, se punha em questão no trabalho incessante de recuperar os objetos de sua perda, articulando com os restos o preenchimento aterrador do espaço em que viviam; podemos também supor que a produção dos objetos como elementos destacados do corpo, como elementos que compõem uma exterioridade que sustenta a operação de inscrição do sujeito na malha simbólica, constituía-se para eles em um relevante ime. Temos pensado que parte do que articula o trabalho nas chamadas oficinas terapêuticas implica a tentativa de constituir alguma exteriorização capaz de configurar uma perda no campo do Outro, mesmo que essa perda se apresente de forma evanescente e que, por isso, precise ser, a cada encontro, reconstituída. Nessa direção, acompanhamos o trabalho de Andréa Guerra (2004), que nos diz: Ao criar coisas concretas, talvez o psicótico estivesse extraindo do ventre do Outro objetos reais que lhe permitindo produzir um resto nessa operação – um objeto inédito – talvez lhe conferisse uma densidade simbólica sobre sua corporalidade real. O psicótico seria deslocado ou separado dessa posição de objeto de gozo do Outro ao criar um objeto externo, endereçado ao social, via oficineiro ou qualquer outra pessoa ou instituição (p. 51).
A produção das diferentes materialidades em oficina parece-nos ter como horizonte a construção de um objeto-resto, que não caiu quando da inscrição do sujeito na linguagem, um objeto-resto sobre o qual não operou a castração que permite a inscrição nas malhas simbólicas e que, metaforicamente, se inscreve sobre os elementos circulantes no mundo sob a forma de sua transitoriedade. Vale a pena pensar, contudo, sobre a perspectiva presente, de forma ordinária neste trabalho de oficina, quanto ao que se refere ao endereçamento da produção ao social. Assistimos, com frequência, um empuxo dos condutores desse trabalho no sentido da publicização do que naquele espaço se produz. Merece reflexão esse impulso a inscrever na cultura as materialidades produzidas – algumas talvez, sim, fazendo suplência da função de objeto. Se é a queda do objeto, sua expulsão, que cava no seio do Outro o vazio que faz surgir do mesmo golpe sujeito e objeto, eu e Outro, numa cissão intrans107
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ponível mediada pela Lei que tece as malhas do simbólico, se é justo nesse ponto que encontramos o sujeito trabalhando para transpor seu ime; um endereçamento, para a circulação social, daquilo que é produzido na oficina, não poderia representar um convite, por que não dizer uma interpelação, a que o sujeito recolha e e os efeitos de uma circulação fálica – justo o que para ele está em questão? Não seria mais oportuno pensar o trabalho de produção dessas materialidades que carregam uma densidade simbólica diferenciada como um trabalho a ser realizado, para esses que compõem o fazer na oficina, em um espaço protegido aonde a interpelação fálica chegue minimizada da intensidade com que ela se faz presente no espaço público? É claro que alguns participantes demandam a inscrição de suas elaborações no social. Mas a questão talvez seja justamente de que lugar vem a demanda por essa transposição do espaço protegido da oficina ao espaço aberto do social. Acompanhar os sujeitos que se veem concernidos por realizar essa travessia é tarefa importante do oficineiro. Mas impor a realização dessa agem nos parece, antes de tudo, uma forçagem. De braços dados com esse movimento que situamos como uma forçagem, vemos, com frequência, surgir uma outra antecipação nesse trabalho. Para chegar a ela, iniciemos retomando uma citação de Quinet (2009): O processo delirante é a tentativa do sujeito de fazer a separação desse objeto tentando localizar o gozo num objeto separado do corpo. Esse processo abre a questão da constituição das obras de arte na psicose, como uma tentativa, além do delírio, de constituir algo que possa vir a representar esse objeto, para que o sujeito dele se separe (p.64).
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O fazer em oficina tem como horizonte, através da produção de materialidades diversas, a externalização de um objeto em uma operação que tem como efeito estabelecer de forma singular as bordas de um buraco no Outro e, ao fazê-lo, representar o lugar do sujeito nas malhas do simbólico, mesmo que de forma precária. De algum modo, também é disso que se trata na arte – externalizar um objeto capaz de inscrever novas possibilidades de o sujeito se representar no campo do Outro. Porém, estabelecer o deslocamento direto da produção em oficina para a produção em arte parece-nos uma precipitação que pode dizer de uma certa idealização da loucura e recair com um peso inável sobre o sujeito, chamado a sustentar no campo da circulação fálica os efeitos de sua produção, precocemente denominada de artística. Talvez, no que diga respeito à circulação das produções fora da oficina ou ao estatuto das materialidades ali produzidas – objetos artísticos ou ordinários –,
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vale muito a pena manter certa cautela, se dar o tempo de um silêncio, sem responder de pronto sobre uma ou outra dessas questões. Pensamos que o acento deste trabalho pode se colocar em outro lugar, qual seja, na construção de um entre, tomado tanto em sua condição de preposição – aquilo que marca um intervalo, um ponto de descolamento e de junção ao mesmo tempo – quanto em sua condição de verbo, aquilo que marca o gesto de um acolhimento, a condição de dar abrigo a algo que se apresenta como externo. É a produção de um entre, de um espaço intervalar que permite diferenciar dois territórios. Esse entre é tributário de um corte num continum originário que se opera por conta de uma expulsão, de uma exteriorização primeira. Como fruto dessa exteriorização, vemos surgirem sujeito e objeto separados e enlaçados por um entre. Esse vazio cavado no campo do Outro talvez permita uma relação com os objetos que transcenda o acúmulo e possa operar em outros registros, mas, mais do que qualquer coisa, permita, também, uma acolhida ao outro num laço que não se traduz numa relação, mas que possibilita o estabelecimento de uma fratria que pode nos sustentar no atravessamento dos imes da vida. Lembro aqui de uma fala de Contardo Calligaris em recente encontro na APPOA: “o psicótico padece do fato de não ter amigos” (sic). A mesma operação que funda o intervalo permite a acolhida ao outro: desdobramentos de um entre. Há uma agem muito bonita no texto Agressividade em psicanálise ([1948] 1998) que vale a pena ser retomada. Nesse texto, Lacan vai percorrer os meandros da estruturação psíquica. Partindo do estádio do espelho e da constituição do eu ideal como formação primeira a defender o sujeito do iminente despedaçamento corporal, ele conduz o leitor rumo ao Édipo, estrutura capaz de produzir uma fenda nessa imagem totalizada que, quando ameaçada, encontra, por parte do sujeito, uma resposta sempre agressiva. A constituição de um ideal do eu, fruto da agem edípica, alerta-nos Lacan nesse texto, tem uma função apaziguadora... [...] A identificação edipiana é aquela através da qual o sujeito transcende a agressividade constitutiva da primeira individuação subjetiva. Insistimos em outra ocasião no o que ela constitui na instauração dessa distância pela qual, com sentimentos da ordem do respeito, realiza-se toda uma assunção afetiva do próximo (p.119-120).
A assunção afetiva do próximo depende em alguma medida da inscrição de uma distância. Só mediado por um entre é possível dizer ao outro: entre!,
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sem se ver excessivamente ameaçado em sua integridade. A perspectiva de um laço ao outro-semelhante implica a inscrição de uma fenda impossível de cerzir, implica a produção de um buraco no Outro. Nessa medida, o trabalho em oficina pode contribuir para algo que, no campo das políticas públicas de atendimento à loucura, aparece como vontade de socialização. Se nesse trabalho é possível produzir uma materialidade que funcione para o sujeito como constituição de um objeto que descompleta o Outro, que, por sua produção mesma, introduz um entre, talvez por conta disso possamos assistir à ampliação para o sujeito de suas possibilidades de, como diz Lacan ([1949] 1998, p.120), “com sentimentos da ordem do respeito, realizar a assunção afetiva do próximo”. E isso sem que as materialidades produzidas necessariamente tenham que ganhar a rua, ou que, então, tenham que ter o estatuto de objetos que pudessem receber a adjetivação de artísticos. REFERÊNCIAS BORGES, Jorge Luis. Funes, o memorioso. In: ______. Obras completas. São Paulo: Globo, 1999. v. 1. COSTA, C. M. Oficinas terapêuticas em saúde mental – sujeito, produção cidadania. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004. FRANÇA, ALFEU. Irmãos Collyer – uma fábula do acúmulo. Brasil, 22 min., 2006. FREUD, S. [1925]. A negativa. In: ______. Edição standad das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p.295-308. GUERRA, A. M. Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de uma prática. In: FIGUEIREDO, A. C.; HYPPOLITE J. [1954] Comentário falado sobre a “Verneinung” de Freud. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. LACAN, Jacques. A agressividade em psicanálise [1948]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. Recebido em 09/11/2012 Aceito em 09/12/2012 Revisado por Maria Ângela Bulhões
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 111-117, jul. 2011/jun. 2012
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Uł0"Uł Woc"gzrgtkgpekc"fg"kpuetkèçq." fg"uwuvgpvcèçq"fg"wo"fgxkt." pq"cvq"fg"vtknjct"eqtfc"pwoc" ojç"pc"Ecuc"fqu"Ecvc/Xgpvqu Renata Maria Conte de Almeida1
Tguwoq< Este artigo apresenta o trabalho da Casa dos Cata-Ventos, projeto de extensão e intervenção social do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Instituto APPOA, em Porto Alegre, através do recorte de uma brincadeira de pular corda e seus efeitos de intervenção com uma menina de oito anos. Rcncxtcu/ejcxg< psicanálise, intervenção social, infância. Uł0"Uł0 "gzrgtkgpeg"qh"kpuetkrvkqp."uwrrqtv"hqt"c"dgeqokpi." kp"vjg"cev"qh"lwor"tqrg"kp"c"Ecuc"fqu"Ecvc/Xgpvqu"oqtpkpi0" Cduvtcev< This article presents the work done in Casa dos Cata-Ventos, a project of extension and social intervention carried by the Psychology Institute at Rio Grande do Sul Federal University in association with APPOA Institute, at Porto Alegre.The author presents this work through a shortcut of a jump rope play and its intervention effects in an eight years girl. Mg{yqtfu< psychoanalysis, social intervention, childhood.
Psicanalista; Médica Homeopata; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e Membro do Instituto APPOA; Membro da equipe da Casa dos Cata-Ventos. E-mail: renata.
[email protected]
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Casa dos Cata-Ventos é um espaço de brincadeiras e conversas com crianças em situação de vulnerabilidade social. Ela está situada numa vila, favela, de Porto Alegre e é um projeto que nasceu inspirado na Maison Verte e na Casa da Árvore; a primeira estruturada pela psicanalista sa Françoise Dolto, e a segunda, também inspirada em Dolto e situada no estado do Rio de Janeiro. Trata-se de projeto de psicanalistas que acreditam que a escuta analítica pode estar onde o sujeito pulsa, onde a criança, em sua construção subjetiva, mais necessita. Ali, no seu território2, devastado pela violência, pelo abandono social, onde os códigos da pólis em que vivemos não têm força de significante. Há muito sabemos que a brincadeira é o palco privilegiado para que o inconsciente infantil construa um devir, elabore os traumas, para que trance as cordas do simbólico, real e imaginário, dando corpo e vida ao fantasma que o habita. A Casa dos Cata-Ventos oferece às crianças um espaço para suas brincadeiras, para que suas questões sobre os acontecimentos e violências, presenciados e sofridos, possam ali ser, de alguma forma, elaborados. Este se diferencia do entorno, pois ali o sujeito em desenvolvimento pode ser escutado. Pode ter, por um breve momento, a experiência e o brincar sustentados num outro lugar, lugar de sujeito, no simbólico do adulto presente. Simbólico que se diferencia pela riqueza dos códigos estrangeiros à vila de uma cidade que as crianças desconhecem, pela exclusão a que estão submetidas. Vivência de brincadeiras em que a palavra tem peso maior que a agressão, forma comum de resolução dos problemas entre elas. A palavra será sustentada nesse lugar privilegiado de possibilidade de novos deslizamentos para aquilo que se repete como pura descarga pulsional. Quando falamos em crianças em situação de vulnerabilidade social, devemos ter em conta crianças que não têm o aos direitos básicos do cidadão. Algumas das que recebemos na Casa nunca frequentaram escola. Nunca, aqui, não é força de expressão e, sim, força da exclusão social. Alguns pais vivem de forma itinerante, muitas vezes fugitivos de situações de violência com tráfico, em outras vilas da cidade, ou por ou-
O conceito de território compreende a história vivida por uma comunidade e as impressões que ela faz no espaço configuram a sua própria identidade, sendo que cada indivíduo que ali vive, se reconhece como parte dela. “É nesse espaço que se constituem as redes de relações, a construção de regras, conceitos e normas a partir do imaginário social e as relações de poder entre os recursos naturais, as relações de produção ou as ligações afetivas e de identidades entre um grupo social e seu espaço” (Souza e Pedon, 2009, apud Ferreto, 2009. p.1).
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tras dificuldades, como fim de relações e busca de emprego. Não dispõem de o ao sistema básico de saúde porque não têm moradia certa. Sem endereço certo, não conseguem vagas em escolas, nem atendimento em postos de saúde sem a intervenção da assistência social. Vivem temporariamente com pais, ou avós, ou parentes. Itinerantes na vida. Outras estão com suas famílias, porém expostas à miséria, à violência familiar e do tráfico, a um ambiente sem as mínimas condições de higiene. As ruas da vila são repletas de fezes de cachorro, cavalo e dejetos humanos. Pequenos cujo corpo pode ser habitado por piolhos, fome e detritos de fezes e urina. Essas crianças são cuidadas em muitos momentos por seus irmãos mais velhos, crianças também, ou já perambulam livremente pela vila, apesar da tenra idade. Nesse cenário de devastação, há um cuidado com as crianças dentro da vila, marcado pela presença de uma pequena creche comunitária, um SASE (Serviço de Apoio Socioeducativo) e a presença de pais e avós imbuídos de sua função. A vila onde trabalhamos parece ser um ponto cego da cidade, apesar de ter vizinhança com duas grandes universidades, um shopping, a Associação Médica do Rio Grande do Sul e o maior hospital psiquiátrico do Estado. Ela parece não estar lá. Está escondida atrás de casas que dão para uma avenida importante de Porto Alegre, situando-se entre elas e os muros do referido hospital. Suas entradas são becos controlados pelo tráfico. As mulheres dificilmente levantam os olhos para conversar com pessoas estranhas quando estão fora de lá. Mas, assim como suas crianças, a vila está ali, escondida e pulsante, território pleno de vida e morte, dor e alegria, apesar dessa invisibilidade social. Vou relatar um pouco da história de uma criança que nunca foi à escola, apesar ter idade para tal. Ela nos acompanha desde o início das nossas atividades na vila. Essa menina, apesar de ausências regulares, devido às mudanças da família, retornava, dando continuidade ao laço. Laço que com outras crianças foi desfeito pelas mudanças de casa que fizemos ou, ainda, por estarmos cada vez mais embrenhados no território violento. São relatos de brincadeiras de uma menina de oito anos em extrema vulnerabilidade social, com muitos dos direitos básicos das crianças ausentes na sua trajetória. Vou chamá-la de Elena. Elena vem aos plantões3 da casa sempre acompanhada de sua irmã
Plantões são turnos de 3 horas, quando as crianças são recebidas na Casa dos Cata-Ventos para brincar, ou turnos de 1 hora e meia para contação de histórias. Sempre terão a presença de três ou mais adultos a testemunhar suas brincadeiras, intervindo sempre, se possível, na lógica do sujeito em constituição, buscando dar à palavra seu estatuto de plena, na medida em que possa realizar a verdade do sujeito.
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menor, que tem seis anos de idade. Algumas vezes, sua mãe as acompanha com a irmã caçula, de cinco meses. As crianças dessa família não frequentam escola, nem nunca o fizeram. A mãe tem uma pobreza simbólica gritante. Não fala muito e, ao ser demandada pelas filhas, não consegue responder rapidamente. O bebê é hipotônico, tem dificuldades de sustentar a cabeça e o olhar. Sua irmã de seis anos é uma menina que não cabe dentro do seu pequeno corpo, tudo é movimento sem contornos de brincadeiras ou jogos, tudo parece ser pura descarga. Elena é uma criança iva, com dificuldades de brincar em grupo, não reconhece cores, formas figurativas, tem dificuldade de brincadeiras quando o corpo é solicitado, como pular corda, pular amarelinha. Busca pelo olhar materno insistentemente, apelo muitas vezes sem resposta pela dificuldade materna. Essas pequenas crianças, quando descobriram o espaço da Casa dos Cata-Ventos, fizeram dele uma janela no mundo. aram a vir em todos os plantões e a “comer” com voracidade tudo que lhes era apresentado. Uso o termo “comer” porque a fome é a melhor expressão possível da pulsão ali presente. Esta comparecia com a voracidade de quem esteve excluído por muito tempo da dança necessária aos registros simbólico, real e imaginário poderem fazer o seu trabalho: trançar e novamente trançar, abrindo a constituição subjetiva para um devir. Por um bom tempo, nos plantões, a brincadeira preferida do grupo era pular corda; corda grande, que precisava ser trilhada pelos adultos ou duas crianças maiores. Elena não conseguia pular como as meninas da sua idade ou mesmo menores. Fazíamos a “cobrinha”, corda balançada rente ao chão, para que ela fosse lentamente entrando na brincadeira. No brincar, Elena foi construindo possibilidades desconhecidas para o seu corpo inibido, gordinho e lento. Muitos foram os momentos de júbilo com o salto certeiro, sem ter a “cobrinha” enroscada em seus pés. Sempre havia o convite de um dos adultos para pular corda, com toda a volta e dificuldade característica. Ora ela desistia sem tentar, ora a frustração pelo não saber. Mas no jogo, na brincadeira, na presença dos erros alheios, apesar dos grandes puladores de corda presentes, Elena foi engendrando corpo e desejo. Pensar sobre uma simples brincadeira de pular corda com crianças se faz necessário quando presenciamos algo que inaugura, para uma criança, um novo tempo, tempo de enodamento do significante ao real do corpo. Volto ao relato da brincadeira com Elena. Um dia ela pede para não pular “cobrinha”, quer pular corda e o faz com extremo prazer, dela e da plantonista que trilhava a corda, devo apontar. Todos 114 114
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os pulos foram sustentados no olhar. Cada salto referenciado sem pestanejar, no olhar satisfeito de quem pulava e de quem trilhava a corda para ela. Apelo de reconhecimento e aposta mantidos no fio da vida, na alegria da brincadeira, sustentada no olhar desejante, no desejo da psicanalista ali presente; desejo que, numa análise de crianças, tem a função de fazer surgir o sujeito naquele que ainda se constrói; desejo do analista a sustentar a saída de um lugar de objeto e aceder a esse lugar de sujeito. Momento de vivência de uma potência antes desconhecida, o corpo inibido se joga no salto proposto e descobre algo novo. Elena transita, a partir de então, de forma diferente no grupo, algo da exclusão pode ter fim. Ela é, enfim, uma menina que também sabe pular corda. Esse dia marca para ela uma modificação tênue, porém ela retorna a cada novo plantão menos inibida, mais confiante. Diana Corso, colega psicanalista, em uma palestra-supervisão, no curso de extensão da UFRGS, Brincar e Contar Histórias na Casa dos Cata-Ventos, associa esse momento de Elena com aquele em que as mães soltam os seus bebês para caminhar, quando eles ficam “só-só”; corpo sustentado no espaço, sujeito sustentado no olhar que o imaginariza capaz de algo que ainda é apenas projeto, mas, por ser antecipado, sustenta-se por um breve momento, inaugurando outro tempo deste sujeito. Segundo Jerusalinsky: [...] o toque corporal impregnado de significações reordena um movimento, ali onde uma dispraxia o parasitava. Vemos nisto que o real não engendra esquema por si mesmo. É no recorte da borda que o significante se impõe ao corpo que se faz o esquema, efeito do significante na imagem. E é por isto que o esquema corporal não está na esfera do real, mas sim na dimensão imaginária, nessa posição singular que resulta do rebatimento do olhar do sujeito sobre a borda do impossível. Diferentemente da imagem corporal, que é resultante do rebatimento do olhar do sujeito no olhar do Outro, ou seja, no corte simbólico da imagem especular (Jerusalinsky, 1999, p.68-69).
Na infância, a força de repetição das brincadeiras encontra-se nesse enlaçamento dos três registros, real, simbólico e imaginário. Trança que lembra uma dança, um movimento constante que está sempre a serviço da constituição subjetiva. Ainda segundo o autor: É no ponto de intersecção entre o eixo do imaginário (a-moi) e do simbólico (A-S) que se constitui a imagem especular do corpo (i[a]) como objeto para o desejo do Outro (A). É evidente que se, do lado do
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real o olho se vê obrigado a esquematizar um resto, do lado simbólico, após sofrer o impacto com que a palavra lhe marca a escolha de seu ponto de perspectiva, o olho pode apontar a sua mira na direção mais arbitrária e fazer do corpo o espetáculo mais mirabolante. As zonas erógenas, de cuja situação corporal cada sujeito humano tem seu próprio mapa, constituem um bom exemplo disto (Jerusalinsky, 1999, p.68-69).
Dessa forma, brincando, mapeia-se o corpo por força do olhar, do toque e da palavra do Outro, dos cortes simbólicos que operarão no real do corpo, criando bordas e litorais. Ainda, segundo Jerusalinsky (1999), “sabem bem disto os psicomotricistas que trabalham no hiato entre o inconsciente e o corpo... fazendo pé no esquema, abre as vias para que o sujeito possa esquecer seu corpo, mantendoo nas asas de sua imaginação”. O trabalho de trilhar cordas, acompanhar brincadeiras, contemporizar disputas são tarefas que cabem, na Casa dos Cata-Ventos, aos psicanalistas, adultos de plantão. Boa expressão: adultos de plantão, ou seja, adultos atentos ao que se a; atenção voltada à infância dessas crianças, tempo da subjetivação psíquica, tempo em que a brincadeira é um dos palcos privilegiados para o inconsciente; trabalho de encarnar o Outro, de colocar em andamento processos constitutivos que, pela pobreza simbólica de pais e cuidadores, ou pela extrema pobreza e violência do território, estavam inibidos ou mesmo ausentes. A infância é marcada por sucessivas aquisições, todas elas tramando uma rede na qual o sujeito se sustentará ao longo da vida. Quando uma criança, em vulnerabilidade social, encontra um espaço onde pode, lentamente, dentro do seu próprio ritmo, armar seu esquema e sua imagem corporais, dar asas à fantasia, enfim, ter a sua infância preservada dentro desse território inóspito a ela, acreditamos que sua constituição psíquica ganha novas cores e horizontes. Se o território é o somatório das relações de poder, afeto e identificações de uma determinada comunidade, num determinado espaço, trabalhar com crianças em vulnerabilidade social, dentro do seu território, ofertando um espaço de brincadeiras e conversas que permite um hiato na violência e na invisibilidade social a que estão diuturnamente constrangidas, pode vir a ser transformador dessa realidade, desse território. Apostamos que seja transformador da vida dessas crianças; como talvez tenha sido para a pequena Elena descobrir sua capacidade de confiar e se jogar no olhar do Outro e conseguir, 116 116
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enfim, pular corda e, no jogo da vida, trançar alguns novos registros e se posicionar de outra forma no mundo. O olhar transado pela psicanálise poderá então relançar o laço social de forma menos perversa? Poderá inscrever registros diferentes da violência e da negligência a que essas crianças e famílias estão submetidas? Fica a aposta de que esta seja uma intervenção possível e potente. REFERÊNCIAS FERRETO, Letícia. Trabalhando o conceito de território no ensino fundamental. Disponível em < http://www.agb.org.br/XENPEG/artigos/Poster/P%20(39).pdf >. o em: 09 dez. 2012. JERUSALINSKY, Alfredo et al. Psicanálise e desenvolvimento infantil. 2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999. Recebido em 18/10/2012 Aceito em 22/11/2012 Revisado por Bianca Kreisner e Deborah Nagel Pinho
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 118-127, jul. 2011/jun. 2012
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EQPUVTWÑ÷GU"FC" EN¯PKEC"GO"WO"ECRU3 Ester Luiza Trevisan2
Tguwoq< A autora explora as transformações do trabalho em saúde mental, tomando, para isso, as figuras de Artaud e Irene. Explora aspectos de um trabalho clínico-institucional orientado pela psicanálise, realizado com Irene, que ou por longo período de tratamento no Caps Cais Mental Centro (Porto Alegre). Aborda questões e imes de uma clínica do sujeito no campo da saúde mental. Rcncxtcu/ejcxg< Caps, saúde mental, clínica psicanalítica, clínica institucional. ENKPKECN"EQPUVTWEVKQPU"KP"C"ECRU Cduvtcev< The author explores the transformations of the work in Mental health by taking the figures of Artaud and Irene. Explores aspects of a clinical-institutional work oriented by psychoanalysis, performed with Irene, who went through a long period of treatment in Caps Cais Mental Centre (Porto Alegre). Addresses issues and dilemmas of a clinic of the subject in the field of mental health. Mg{yqtfu< Caps; mental health; psychoanalytic clinic; institutional clinic. Comment pas d’être et un corps?3
Caps: Centro de Atenção Psicossocial. Os Caps constituem-se como dispositivos de atendimento em saúde mental, surgidos a partir da reforma psiquiátrica no Brasil. Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e intervenções sociais, em setembro de 2011, Porto Alegre. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e Membro do Instituto APPOA; Membro fundador da equipe do Caps Cais Mental Centro – SMS Porto Alegre; DEA Psicopatologia e Psicanálise Universidade de Paris Xlll. E-mail:
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esde que pensei em trazer algumas questões suscitadas a partir do trabalho no Caps, acompanha-me a figura de Antonin Artaud (1896-1948), artista francês cuja obra se situa no entrecruzamento da literatura, do desenho, do teatro, do cinema e do rádio. Há alguns anos, tive a oportunidade de ver, em Paris, uma bela exposição sobre ele, na Biblioteca Nacional. A meu ver, os organizadores foram muito felizes no modo como construíram a exposição, contemplando diferentes faces de Artaud: como ator de teatro, de cinema, escritor, desenhista, roteirista, figurinista, projetista de cenários, crítico, poeta – além de recortes biográficos, suas viagens, depoimentos de amigos, registros de agens pelos asilos psiquiátricos. Na apresentação estética do espaço da exposição, havia escritos pelas paredes e pelo chão, evocando o modo como ele registrava em seus cadernos. Muitos desses cadernos estavam expostos. Ele deixou um legado de 406 cadernos escritos nos últimos três anos de sua vida, num movimento que podemos pensar como de reconstrução de si. Se nos informarmos um pouco sobre sua biografia, veremos que é um sobrevivente. Desde a sua infância, Artaud foi levado a fazer tratamentos psiquiátricos, que hoje sabemos serem atrozes e sem qualquer utilidade, como, por exemplo, o fato de ser submetido à máquina eletrostática, aos 5 anos de idade, por ser uma criança nervosa; foi também tratado por mais de 20 anos com injeções extremamente dolorosas e ineficazes de uma mistura de arsênio, bismuto e mercúrio para uma suposta sífilis hereditária, sífilis essa que não se confirmou, além de ter sido um dos “pioneiros” a ser submetido ao eletrochoque, técnica que era executada, então, sem o mínimo de cuidado e em condições extremamente precárias. Como homem das artes, Artaud mantinha uma produção efervescente; porém, o seu estado se deteriorou a partir de uma longa internação de 9 anos em manicômios, em uma época em que os doentes mentais estavam sendo dizimados ou deixados para morrer de fome nos asilos, pelos nazistas. Foi através da insistência de sua mãe e de um grupo de amigos que se conseguiu transferi-lo para o asilo de Rodez, onde permaneceu até 1945. A saída do manicômio para a clínica de Ivry, próxima a Paris, foi orquestrada por amigos, ligados às artes, mas principalmente por uma jovem psiquiatra, Paule Thévenin, que abandona a psiquiatria e se torna sua secretária e grande amiga, e
Como não existir e um corpo? (trad. livre do autor). In ARTAUD, A. Le corps humain. Oeuvres complètes. Paris: ed. Gallimard, 2004. p. 1547.
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que vai ser aquela a quem ele vai delegar seus manuscritos e a publicação de sua obra. Thévenin (Texier, 2007) conta que, nas últimas semanas de sua vida, Artaud repetia com frequência que não tinha mais nada a dizer, e narra uma cena que considero muito comovente : Um dia, ao chegarem em casa, ele lançou a seguinte frase : “Anuncio que não escreverei nunca mais, já escrevi tudo. Veja, além disso, não tenho mais nem caderno!” Enquanto falava, mostrava o bolso no interior de seu casaco, vazio do habitual caderno. Porém, logo a seguir, escutou-o, em um tom de voz de uma educação incomparável, pedir à sua filha: “Minha querida Domine, você poderia fazer a gentileza de ir comprar para mim um caderno?” Ela diz que não pôde deixar de provocá-lo um pouco, lembrando-o que acabara de dizer que não escreveria nunca mais, ao que ele respondeu: “– É verdade, mas é para fazer bastões4 [traços]! Minha mão não consegue não escrever.” “Logo que obteve o caderno, ele de fato começou a fazer bastões, conscienciosamente, duas páginas de bastões que, pouco a pouco, tornaramse letras.” Artaud, nesta cena, produz quase uma mímese da gênese da escrita, tal como os sumérios, que marcavam as plaquetas de barro com a escrita cuneiforme. Ele nos evoca a escrita como estilo, estilete, aquilo que faz traço, marca, revelando através desse gesto o valor de construção que ela adquire para ele. Em um trabalho conjunto de pesquisa com Simone Moschen e Cristina Poli, escrevemos sobre a questão do traço do caso,5 tomando o traço “[...] como o e mínimo do sujeito que permanece indelével na elaboração de uma experiência clínica”. É um traço que conserva algo do sujeito, mas não o representa, senão pelos seus rastros e seu apagamento. Artaud ilustra algo da psicose, que é uma tentativa sempre incessante de escrever aquilo que, no início, nos primórdios da vida do sujeito, não se inscreveu e que Lacan nomeia como o Nome do Pai.
Baton, no original. Referência ao trabalho Le trait du cas dans la clinique des psychoses, apresentado em Paris, no Colloque International Psychanalyse et écriture, realizado entre 26 e 27 de novembro de 2010 na Maison du Brésil.
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O gesto de Artaud é quase uma tradução do que ocorre em certas psicoses, em que é preciso forjar a separação do Outro, que aparece para o sujeito sob um modo absoluto, totalizante, e que é preciso furar, perfurar, cortar, para fazer-se um lugar, literalmente. Artaud dava às letras atributos: o H para ele era a “letra da geração”, feita de bastões, onde via a figura de um homem com o pênis ereto, de frente para a mulher. Ele dizia que era preciso “devolver às letras o seu odor, o seu sexo”. Artaud é para mim emblemático do que ocorre com muitos dos pacientes com os quais nos vemos confrontados: ele sofria imensamente com sua psicose e era, ao mesmo tempo, extremamente revoltado, inquieto, nunca parou de delirar e de gritar sua revolta. Ele dizia que sofria “de não existir”, como podemos ler neste fragmento: “Eu não lembro de ter nascido eu lembro de jamais ter nascido.” (Artaud, 2004, p. 135)6. Ele coloca o leitor – aquele que consegue lê-lo – como testemunha do que acontecia consigo, de sua angústia, como podemos ver neste outro fragmento: “Eu senti minha vida se abrir em dois... e tive a impressão que meu corpo e minha alma.... não se colariam jamais...” (Artaud, p. 148)7 Se trago essas lembranças, à guisa de introdução, é porque os bastões de Artaud me remetem a uma zona de articulação: de um lado, a dificuldade de operar um recorte e tornar transmissível a experiência do trabalho clínico de mais de 15 anos em um Caps, o Caps Cais Mental Centro e, de outro, esse trabalho de fazer, de forjar a separação do grande Outro, como o próprio Artaud. Um Caps, no contexto da reforma psiquiátrica, é um lugar de recepção, acolhimento, acompanhamento de pacientes e usuários de saúde mental, ou seja, um lugar onde nos deparamos com a clínica dos chamados “transtornos mentais graves”, onde vamos receber pacientes em função de sintomas alucinatórios, persecutórios, paranoides, alguns em estados de desorganização psíquica importante. Há uma grande incidência de pessoas com depressão grave, que vêm por tentativa de suicídio, numa condição de desamparo, efeito de uma constituição psíquica extremamente frágil. Destes, um número significativo são miseráveis, errantes, loucos de rua, que vêm através de parcerias
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Trad. livre do autor. Trad. livre do autor.
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construídas com abrigos, albergues, instituições religiosas, ongs, e do trabalho de membros da equipe que desenvolvem o atendimento na rua. Assim, nossa tarefa será de operar a fim de que o Caps possa se constituir como um lugar de encontros possíveis para os que ali aportam, dando consistência à possibilidade de construção-reconstrução do laço social. No caso deste Caps, essa é uma das razões pelas quais o nomeamos “Cais mental”: lugar de arrimo, de ancoragem, onde a nau de quem a por momentos de crise, ou de quem vive em condições de isolamento extremo, possa aportar. Que possa aportar, mas nem sempre é assim que se a; por isso, às vezes, o trabalho se dá na rua. Gostaria de evocar brevemente, a título de ilustração, a situação de um acompanhamento feito a um homem que se mantinha há longo tempo na rua e com quem a equipe que realiza as abordagens na rua vinha fazendo algumas tentativas de aproximação. Ele se encontrava em um estado de pauperização extrema, mantinha-se muito sujo, evacuado, urinado, comia se lhe dessem comida, alternando períodos de mutismo e gritos, quase sem permitir aproximação. No contexto da supervisão clínico-institucional8, conseguimos pensar, naquele momento, que o Outro, o grande Outro, para aquele homem, se constituíra sob o modo da violência; ele estaria como resto para esse Outro, que se configurava para ele violento, ameaçador. Confundido com a expulsão – com as fezes, a urina, os gritos, ele não está no controle, no prazer. E certamente precisaríamos de um longo tempo de aproximação para que pudesse talvez, entrar no prazer, romper com a violência. Não há padrão que encerre a complexidade da abordagem de um caso assim. Um dos desafios que enfrentamos, quando trabalhamos nas instituições públicas, especialmente da área social e de saúde mental, é o risco sempre presente de sermos engolidos por uma demanda de atender e de assistir ao maior número possível de pacientes e usuários, sem que se leve em consideração a exigência de um trabalho caso-a-caso. Nesse sentido, este texto assume um caráter de resistência, um tempo para pensarmos, recolhermos e compartilharmos elementos de nossa clínica. Elementos que, numa tentativa de transmissão, criam movimentos de agem, de busca de elaborações e saídas para os imes que surgem nesse contexto. Caráter também de reafirmar a inscrição do discurso psicanalítico dentro das políticas públicas: como sustentar o singular da escuta do sujeito e
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Supervisão com a psicanalista Ana Costa, através de edital do Ministério da Saúde para os Caps.
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as construções com cada um dentro de um contexto que seria “para todos”? De que modo a fazer incidir a ética psicanalítica, sem que o psicanalista venha a se tornar um produto a mais a ser ofertado pelos serviços, pelas instituições? Trazer à tona a clínica pode se constituir como polêmica, na medida em que percebemos certo apagamento das questões subjetivas no campo da saúde pública. Ainda causa surpresa quando dizemos que é necessário orientarmos nossas ações, nossos atos, por uma atenta escuta clínica, e que se leve em consideração o sujeito do inconsciente. Surgem vários argumentos: que o tratamento seria muito demorado; que, no contexto público, não há tempo para os efeitos de construção de que se trata na clínica psicanalítica, que a saúde mental é um campo mais “adequado” às terapias focais, breves, etc. Ou, ainda, fala-se de “inaplicabilidade” para determinados casos ou às situações de crise; enfim, poderíamos continuar a enumerar muitas críticas. Não pensamos a psicanálise como mais um objeto de oferta, trata-se de retomarmos a interrogação que insiste para alguns de nós, que operamos no seio das instituições públicas de saúde mental: de que modo vamos inscrever na prática institucional as questões que o sujeito coloca à psicanálise? A clínica no Caps opera através dos entrelaçamentos e produções em torno de cada caso que a equipe acolhe, num trabalho de tessitura entre vários. Algo de artesanal e de experimental, que leva em conta e que inclui as produções singulares de cada sujeito. Podemos pensar, assim, que este é um modo de enlace que aponta para a direção “do usuário ao sujeito”, como forma de sustentar uma interrogação acerca da subjetividade no laço social. Tomo essa referência do usuário ao sujeito de Ângela Jesuíno9,, que chama a atenção para o fato de que o trabalho a ser feito pelas equipes, com casos tão complexos, é o de “alta-costura”. É impossível operarmos neste campo com a lógica do “prêt-à-porter”, quando tomamos cada caso em sua singularidade. Em um Caps, vamos responder a uma demanda que se apresenta inicialmente como psiquiátrica, mas não só. Não por acaso os Caps estão colocados num intervalo que é o do psicossocial, pois lidar com as questões que surgem nessa clínica exige que nossa prática se dê no diálogo e enlace com outros campos. Quando fazemos parte de uma equipe que tem por função acompanhar pessoas que vêm em um estado muitas vezes de limite de vida,
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Ângela Jesuino, De l’usager au sujet, texto lido em conferência na Appoa, em setembro de 2004.
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colocamos constantemente à prova o nosso desejo, e nosso limite também. Ana Cristina Figueiredo (2011), na primeira Jornada do Instituto Appoa, apontou a questão do quanto, neste trabalho em instituições públicas, precisamos ar uma série de golpes narcísicos e o esforço necessário para não ficarmos engessados dentro da lógica da impotência. Na sua origem, a palavra clínica, em medicina, está ligada ao olhar. O clínico, do grego kliné, é aquele que se debruça sobre o leito do doente para observá-lo. Foucault, em O nascimento da clínica (2004), mostra que o método clínico que a medicina inaugurou permitiu-lhe agrupar em quadros os tipos clínicos, instituindo um discurso sobre a doença e sobre o doente de modo a produzir, como fato médico, elementos que, sem a constituição desse discurso, permaneceriam como contingentes e desarticulados. Mas, ao longo do tempo, com as novas tecnologias e o surgimento de novas disciplinas de outros campos de saber, que não o estritamente médico em torno dos doentes, a acepção de clínica vem se modificando. No campo da saúde mental e a partir da experiência psicanalítica, temos trabalhado com o conceito operatório de construção do caso clínico em saúde mental, que nos permite pensar a clínica a partir de elementos e interrogações que emanam de outras disciplinas, como, por exemplo, no encontro com terapeutas ocupacionais, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, assistentes sociais, artistas, entre outros. Na construção do caso clínico em saúde mental, a psicanálise introduz sua contribuição, que é de levar em consideração aquilo que o paciente tem a dizer sobre o que acontece com ele, entendendo que o sintoma não é mais sinal da doença, mas sinal da presença do sujeito. É a partir do que se apresenta como enigmático na clínica que a equipe vai se reunir e construir algo em torno desse enigma, o que exige implicação e compromisso de quem participa dessas tentativas de resolução que o sujeito nos apresenta. Dessa forma, torna-se importante pensar o trabalho nesse enlace transferencial que se tece a partir das questões que o sujeito coloca para aqueles que o recebem. Se o sujeito que chega até nós não provoca um mínimo de questões, se vamos simplesmente enquadrá-lo em um protocolo ou em prescrições normativas, não há lugar para singularidade, funcionamos no sentido do apagamento do sujeito do inconsciente. Em lugar de operar com um saber prévio a ser aplicado ao paciente do lugar de mestria, a psicanálise dá voz a um saber antes ignorado, desqualificado, alienado. Um saber que, por se apresentar de forma insuficientemente elaborada, deve ser construído com o sujeito, preservando-se uma ética que marca o tempo e o como da construção da narrativa, em transferência. A clínica psicanalítica é uma clínica em transferência. 124
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Quando veio para o acolhimento, Irene ainda estava em uma internação que durava já três meses, e portava o diagnóstico de esquizofrenia. Permaneceu conosco de outubro de 2004 até janeiro de 2011. De início, encontrava-se na posição de total dependência da filha, que havia retornado para casa para se ocupar dela. Falava muito pouco, somente quando solicitada; mesmo assim, respondia de modo quase monossilábico, com capacidade associativa muito reduzida, levando-me a pensar nos bastões de Artaud. Ela dizia “não lembrar”. Chorava muito, um choro gutural, que evocava o choro de um bebê. Tinha o olhar assustado, às vezes falava no “vulto de um homem” e de “um gato imaginário” que a acompanhava. Também se queixava de anestesia corporal: dizia que “não sentia nada do pescoço para baixo” e que “não sentia o gosto das coisas”. Começou a ser vista por uma colega psiquiatra, que ou a interrogar o diagnóstico de esquizofrenia. Logo no primeiro atendimento Irene lhe pergunta: “Tu vai me curar, né?” Nesse período, a filha falava como se fossem indiferenciadas: “a gente tem problemas de defecar nas calças”, dizia, referindo-se ao fato de a mãe precisar ser orientada a ir ao banheiro. Assim como também desabafava: “a mãe é uma bactéria que está me matando”. Em uma primeira intervenção, propôs-se que a paciente fosse acompanhada por terapeuta ocupacional, e a colega iniciou um trabalho de reconstrução, através de fotos, fazendo com ela um “diário de lembranças”. Seis meses depois de sua chegada, em equipe, decidimos levá-la para apresentação de pacientes com Alfredo Jerusalinsky. A partir da discussão que se deu em torno do caso, ei a receber a filha em acompanhamento, durante alguns meses, tempo suficiente para que ela conseguisse ar se separar da mãe. Ela, então, retomou a faculdade que havia abandonado para se ocupar exclusivamente da mãe. Aos poucos ou a permitir que Irene, que começava a sustentar uma posição de maior autonomia, viesse sozinha ao seu tratamento. Foi importante, no decorrer do trabalho com essa paciente, a sua participação na Oficina de expressão corporal. Encontrei o seguinte relato de sua primeira participação nessa Oficina: “Irene, num primeiro momento, não conseguia olhar-se no espelho e fazer os movimentos propostos, mas logo que a terapeuta fez o movimento em espelho com ela, ou a desempenhar os gestos sem o menor problema e, a partir daí, de modo espontâneo”. Nos encontros que seguem a a ser propositiva, mostrando, por exemplo, que sabia dançar tango. Logo que a filha voltou a residir com o seu companheiro, Irene ou a ter novamente crises de ansiedade e fez uma importante crise de angústia que culminou em um episódio narrado de modo quase alucinatório: “eu queria me
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vestir para sair, mas eu olhava para minhas roupas, em meus braços, e elas tinham o tamanho das roupas de um bebê”. Seguiu-se uma crise de angústia intensa, com sintomas persecutórios, o que fez com que a filha a trouxesse para o Caps. Ela foi recebida, ou a frequentar o Centro de atenção diária e foi a partir desse momento que ela iniciou o acompanhamento comigo. Gostaria de destacar três tempos do trabalho com ela: Num primeiro momento ela vem com a recomendação que lhe deixara Alfredo na entrevista: “se lembrar, vai sentir”. Escuto-a na produção de suas lembranças. Chora muito, não quer lembrar. Aparece nesse período um sintoma corporal psicossomático importante de otites de repetição que chegam a supurar. Podemos considerar esse um tempo em que ainda está entregue ao olhar do outro, um corpo sem voz, que convoca que o outro fale dela. Sua busca por médicos fica justificada e a medicina se presta bastante bem a isso, já que detém o saber sobre o corpo no discurso social. O sintoma desapareceu quando falar não se constituiu mais em uma ameaça para ela. Em um segundo tempo consegue trazer questões de modo mais implicado: fala da maternidade, da relação à filha, da relação ao ex-companheiro, retornam questões edípicas, associa. Há muita angústia, principalmente na complicada relação com a filha, mas “sente” e consegue se emocionar com suas lembranças. Tempo da produção de uma narrativa de sua história, mas também de construção de saídas, de retomada de laços sociais, de mudança de posição na relação ao outro. Usa de sua voz, movimenta-se. Já num terceiro tempo, não se prende mais tanto à sua “desgraça pessoal”. Parece ter entendido sua angústia como constitutiva. Faz e refaz trajetórias narrativas, problematiza o seu lugar. A sombra de seu momento de quase completa deserção de si não aparece mais com tanta consistência. Acompanhei Irene no Caps ao longo de cinco anos. Do período de adoecimento, ela concluiu que ficou “no ar, fora da casa, que o que houve foi um mau contato”. Ao longo do tratamento, retomou muitas questões, voltou a morar sozinha, a viajar, mudou de casa, fez amigos. Ao final, dizia que tinha encontrado um bom remédio para a sua angústia, que era o de “se ligar nas pessoas, fazer bons contatos.” Apresento este caso porque me parece emblemático para pensarmos o trabalho possível a partir de um Caps. A construção do caso é singular em cada Caps, e se molda diferente em cada caso. Foi preciso um longo período de escuta de sua narrativa, respeitar o tempo da transferência e as construções que alguém como Irene precisava fazer, buscando outras saídas para si, que não a de sair de si. E foi em transferência que pudemos repensar, então, o diagnóstico inicial de esquizofrenia. Irene construiu para si possibilidades de 126
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separação sem aniquilamento, colocando nomes, objetos e lugares entre ela e o outro. Em um tempo que lhe foi necessário para ar sair da posição objetalizada em que se encontrava, puro corpo de gozo que, por tanto tempo, a mantinha, a ela e a sua filha, encapsuladas. Irene realizou uma grande travessia até conseguir cunhar para si outras possibilidades de encontros. Podemos dizer que existem muitas Irenes que já aportaram e que partiram do Cais. São também numerosos os que permanecem ancorados, que tentamos abordar. Há um imenso trabalho em sustentar, no âmbito de uma instituição de saúde pública, uma clínica do sujeito. Nessa trajetória, faço-me acompanhar por alguns poetas. Gostaria de encerrar, então, com a citação deste outro poeta, que também é fio na tessitura de minhas indagações clínicas: trata-se de Manoel de Barros que, diferente de Artaud – que por vezes me angustia – provoca em mim apaziguamento, escansão, contemplação, silêncios, tão importantes em meio ao burburinho da instituição: [...] que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. Manoel de Barros.
REFERÊNCIAS ARTAUD, A. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 2004. FIGUEIREDO, A. C. Psicanálise e atenção psicossocial: clínica e intervenção no cotidiano. Psicanálise e intervenções sociais. Porto Alegre. APPOA. 2011. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2. ed. 1980. TEXIER, D. Artaud, le logicien de l’écriture. Disponível em WWW.freud-lacan.com/ champs_specialises/litterature_inconscient/Artaud_le_logicien_de_l_ecriture. o em 27/01/2013. Recebido em 05/12/2012 Aceito em 10/01/2013 Revisado por Renata Almeida
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 128-138, jul. 2011/jun. 2012
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C"JKUVGTK\CÑ’Q"FQ"FKUEWTUQ" PC"GPHGTOCTKC"RUKSWKıVTKEC Luciane Loss Jardim1
Tguwoq< Este artigo aborda a emergência do discurso do analista, que faz circular os quatro discursos, em um dispositivo institucional de tratamento de transtornos mentais. Consiste no recorte do caso clínico de um paciente com diagnóstico de esquizofrenia paranoide internado na enfermaria psiquiátrica do Hospital de Clínicas da Unicamp. Dessa forma, o presente texto relata uma prática que possibilitou um giro no discurso do sujeito da ciência, incluindo o sujeito do inconsciente, seu desejo e gozo no processo de sofrimento psíquico. São tecidas, também, algumas considerações sobre o discurso do analista nas instituições. Rcncxtcu/ejcxg< psicanálise, psiquiatria, discursos, esquizofrenia, instituições. VJG"J[UVGTK\CVKQP"QH"VJG"URGCEJ"CV"VJG"RU[EJKCVTKE"PWTUGT[ Cduvtcev< This article discusses the emergence of discourse analyst, which circulates the four discourses in an institutional device for treatment of mental disorders. It consists in cutting a clinical case of a patient diagnosed with paranoid schizophrenia itted to the psychiatric ward of the Clinical Hospital of Unicamp. Thus, this paper reports a practice that allowed a turn in the discourse of the subject of science, including the subject of the unconscious, desire and enjoyment in the process of psychological distress. Articulates also some considerations on the discourse analyst in institutions. Mg{yqtfu< psychoanalysis, psychiatry, discourses, schizophrenia, institutions.
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Instituto APPOA; Pós-Doutorado no Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da UNICAMP; Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP. E-mail:
[email protected]
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A histerização do discurso...
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s práticas clínicas em saúde mental, sejam elas realizadas nos ambulatórios, enfermarias psiquiátricas dos hospitais gerais ou mesmo nos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), estão inseridas em um discurso. A formação discursiva, segundo Focault (1995), compreende regras de funcionamento dos objetos, das formas enunciativas dos indivíduos, dos conceitos, temas e teorias. Uma prática discursiva se define por um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiriam, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa (Foucault, 1995, p. 48).
Portanto, podemos pensar que qualquer prática profissional, por mais técnico que possa ser seu exercício, está incluída no campo do simbólico. O simbólico é uma função complexa que envolve toda a atividade humana e que faz do homem um animal fundamentalmente regido pela linguagem. O campo simbólico foi chamado por Lacan ([1969-1970] 1992) de campo do grande Outro, e é o ponto de partida no qual o autor elabora a teoria dos quatro discursos, articulada no seminário O avesso da psicanálise. Essa teoria versa sobre a organização da linguagem específica das relações do sujeito com o significante e com o objeto que determina e regula as formas do laço social. Os discursos – a saber, discurso do mestre, discurso universitário, discurso da histérica e discurso do analista – organizam-se a partir da posição dos elementos S1, significante mestre; S2, o conjunto de significantes, designado como saber; $, sujeito do inconsciente; e o objeto “a”, objeto causa de desejo do lado do analista, e do lado do sintoma é designado como mais-gozar. Esses elementos ocupam determinados lugares, de acordo com a circulação dos discursos, a saber: agente verdade
outro produção
Os quatro discursos se diferenciam a partir da posição que os elementos ocupam nos quatro lugares marcados, cada um deles é um lugar de apreensão dos efeitos do significante. O lugar do agente é aquele que opera o discurso, que o coloca em movimento; o outro é o lugar ao qual esse discurso se dirige; o lugar da verdade é aquilo que move o agente a operar o discurso; e a produção é o lugar do resultado do que se opera no discurso. 129
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Lacan ([1969-1970]1992) apresenta a elaboração desses discursos por meio de um algoritmo. Inicia propondo a formalização do discurso do mestre: S1 $
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S2 a
Nessa disposição, o S1 designa um significante que representa o sujeito junto ao conjunto dos significantes, representado por S2. O S barrado indica que o sujeito não é autônomo, mas atravessado pelo significante. Este, por sua vez, determina o sujeito que não tem relação direta com o objeto “a”, pois não existe o direto do sujeito ao objeto do seu desejo. O fato de o significante mestre estar sobre a barra, sobre o sujeito barrado, demonstra o assujeita-mento do sujeito ao enunciado de um mandamento, seu apego à palavra de ordem. O discurso da ciência tem a estrutura do discurso do mestre, o sujeito fica excluído, é um corpo que sofre e que deve ser diagnosticado e tratado. Segundo Clauvrel (1983), isso não significa que a subjetividade não esteja presente, mas não tem nenhuma importância, pelo fato de que o discurso do mestre se sustenta independentemente da subjetividade daquele que o enuncia. “A retirada da subjetividade no discurso do mestre se escreve colocando o $ sob a barra, para mostrar que o sujeito não está no discurso manifesto” (Clauvrel, 1983, p.170). O sujeito barrado no discurso do mestre fica recalcado; quem sofre, porque sofre, não é contemplado. Ou melhor, o objeto de estudo e a investigação do discurso médico não levam em conta o sujeito desejante, implicado no seu adoecer. A objetalização do indivíduo no ato médico circunscreve o próprio campo de ação da medicina, método necessário para o médico poder operar, ou seja, exercer sua prática. O discurso do mestre é equivalente ao do sujeito cartesiano, o qual mantém o sujeito e o objeto a sob a barra, para mostrar que o sujeito do inconsciente não está no discurso manifesto. Na proposição cartesiana “penso, logo existo”, a existência do sujeito está assentada no pensamento, em um pensamento claro, com ideias bem categorizadas, independentes das paixões, sensações, dores, inclinações, satisfações e insatisfações. O pensamento filosófico cartesiano tem como princípios desfazer-se de todas as opiniões, crenças e impressões que não são capazes de fundamentar conhecimentos satisfatoriamente exatos. Portanto, o discurso define e circunscreve como o sujeito será interpelado. No discurso do mestre, o sujeito está excluído pela estrutura mesma desse discurso. É uma questão epistemológica, trata-se da metodologia médica;
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portanto, nada mais condizente que esse discurso possa se ocupar do órgão e não do sujeito; em outras palavras, a função médica será exercida na dimensão da demanda. Diferentemente do trabalho do analista, que se ocupará da questão do desejo, e é a emergência do discurso do analista que fará circular os quatro discursos, a partir do qual é possível ar de um discurso ao outro. No contexto do ambulatório e enfermaria de psiquiatria do Hospital de Clínicas da UNICAMP, o discurso predominante é o discurso do mestre, e o meu ingresso ocorreu através de uma pesquisa de pós-doutoramento, que tinha como objetivo oferecer escuta psicanalítica a pacientes com diagnóstico de esquizofrenia. Dessa forma, houve uma aposta na possibilidade de circulação dos discursos sustentada por mim a partir do discurso do analista. No transcurso de minha inserção nessa instituição, os pacientes foram sendo encaminhados pelos residentes e professores preceptores da psiquiatria. A partir da oferta, criei uma demanda de escuta e, assim, foi se estabelecendo um trabalho junto aos pacientes, médicos residentes da psiquiatria, enfermeiros e outros profissionais da enfermaria e ambulatório de psiquiatria do Hospital de Clínicas. A enfermaria é a unidade de internação psiquiátrica e é um serviço especializado no hospital geral da Unicamp. Trata-se de um dos serviços substitutos do modelo manicomial, implementado após a reforma psiquiátrica. A internação na enfermaria psiquiátrica do hospital é recomendada, geralmente, para pacientes graves, casos de depressões graves, pacientes esquizofrênicos paranoicos em surto, pacientes com transtornos bipolares em suas fases maníacas, pacientes com riscos de suicídio, e também para aquelas situações clínicas em que são necessários cuidados médico-hospitalares. São situações clínicas graves, muitas vezes extremas, e exigem que o paciente seja hospitalizado para que se possa realizar a terapêutica. A hospitalização, geralmente, é indicada quando nenhuma alternativa menos restritiva está disponível, levando em consideração a gravidade do caso. O discurso dominante sobre a clínica com esses pacientes é o psiquiátrico, que trata de prescrever as medicações e ajustar as doses. A clínica psiquiátrica é sustentada a partir do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-IV-R), que estabelece um discurso com uma estrutura científica sobre o sofrimento psíquico. A classificação dos transtornos mentais está baseada em metodologia puramente descritiva e ateórica dos sintomas e comportamentos (American Psychiatric Association, 2002.). Nessa perspectiva, o tratamento psiquiátrico prescrito pode ser compreendido como discurso universitário; uma vez que se trata do prolon-gamento do discurso do mestre. Formalizado no algoritmo: 131
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Nessa formalização do discurso, o saber é considerado enquanto tal, e não como relativo aos significantes que o constituem. É dessa forma que o discurso universitário prescreve o tratamento, para extrair o mal desse corpo, prescrição que o sujeito deve seguir à risca, se quiser se curar. Esse enfoque privilegia um sistema que tem a pretensão de ser neutro no que concerne às teorias etiológicas, entretanto, se configura como um sistema pragmático e naturalista da doença (Banzato, 2009). Nessa perspectiva, configura-se com uma posição cuja concepção subjacente entende que a doença é alheia ao sujeito e que, portanto, a cura também é algo externo ao doente. O sujeito é colocado no lugar de corpoobjeto-depósito do transtorno mental e de que nada sabe sobre seu mal-estar. Dessa forma, o sujeito é mantido alheio ao que lhe a e também apartado de uma possível solução. A classificação nosográfica do DSMIV-T-R sustenta a possibilidade de que a medicina continue avançando no que concerne às pesquisas das bases biológicas do comportamento. Nesse sentido, o cérebro dos indivíduos é estudado e se vêm descobrindo alterações neuroanatômicas e químicas relacionadas aos transtornos mentais. Esses progressos deixam de lado o sujeito; o recalque da subjetividade é constitutivo do discurso científico. Lacan ([1966] 1985) sublinhou que a psicanálise se constituiu ocupando-se do sujeito que a ciência deixa de lado, ideia que se vinculou à ação do analista que está atento àquilo que o médico não escuta. Esse limite da ciência é epistemológico, não é uma questão de ausência de conhecimento da medicina, por exemplo, não se ocupar da subjetividade, trata-se de posições distintas no que concerne ao sofrimento psíquico. Todavia, enquanto os avanços neurocientíficos e seus produtos, ideais da ciência moderna, são concebidos como o tratamento quimérico para o sofrimento mental dos sujeitos, existe uma realidade clínica de difícil tratamento. Nessa perspectiva, quais são as contribuições que o discurso psicanalítico pode aportar para o sujeito da ciência? Como incluir o sujeito do inconsciente, seu desejo e seu gozo no processo de padecimento psíquico? Lacan assinala que “Freud [...] inventou o que deveria responder a subversão da posição do médico pelo avanço da ciência: a saber, a psicanálise como prática” (Lacan, ([1966] 1985), p. 94). E o que é uma práxis? Perguntou-se Lacan ([1964] 1988), respondendo que “é o termo mais amplo para designar a ação realizada pelo homem, qualquer que ela seja que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico” (p.14).
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Nessa perspectiva, apresento algumas ações que trataram o real pelo simbólico, uma práxis realizada junto a um paciente internado na enfermaria psiquiátrica do Hospital de Clínicas da Unicamp. Rogério era um rapaz de 35 anos e tinha sido internado na enfermaria psiquiátrica, encaminhado do Caps, para a introdução de clozapina, uma das drogas antipsicóticas mais potentes atualmente, uma vez que as outras drogas antipsicóticas não estavam esbatendo seus sintomas. Rogério estava em franco surto psicótico quando ingressou no serviço. O diagnóstico de Rogério era de esquizofrenia paranoide e ele estava fazendo uso de 400 mg diárias de clozapina. Rogério reivindicava insistentemente e com veemência sobre a necessidade de fazer um check-up médico, justificando: “minha doença é física e não mental”. Queria consultar alguns médicos especialistas, como urologista, dermatologista, neurologista e um gastroenterologista. Rogério dizia que estava com uma doença venérea já há sete anos e que possuía manchas brancas em seu pênis que não eram íveis de serem vistas a olho nu. Falava, também, sobre seu testículo inchado e sua falta de ejaculação, sobre seus ossos tortos, da sensação de ter “110 kg sem estar gordo”, sobre seu pulmão que estava travado, os gases que soltava e das dores de cabeça, pois estava “grampeado”. Essa deterioração corporal era acompanhada de alucinações auditivas de caráter paranoico e de inúmeras frases interrompidas. Portanto, ao ser hospitalizado, Rogério apresentava um delírio hipocondríaco sistematizado, sustentado pelas alucinações, o pensamento desagregado e distúrbios de linguagem, fazendo uso de neologismos, como, por exemplo, “grampeado”. Rogério tinha a certeza delirante de que sua doença era física e não mental. As queixas sobre suas afecções corporais eram recorrentes em sua fala. Sentiase doente, sendo seu corpo invadido por uma série de moléstias sem fim. Era atormentado constantemente pela profusão de estímulos que o afligiam, dos quais ele não tinha nenhum controle. Dizia, de forma delirante e paranoica, que “os lotes de medicação vêm marcados” e que eles estavam adoecendo seu corpo. Rogério dizia que através da medicação o estavam envenenando. O delírio persecutório remontava às inúmeras internações que Rogério já havia sofrido. Alguns Flechsigs2 da vida o perseguiam, envenenando-o para poder roubar suas posses. A esquizofrenia é uma entidade clínica que, segundo Freud ([1911] 1969), se distingue dentro do grupo das psicoses por uma localização da fiA autora aqui se refere a Flechsig, primeiro médico de Schreber (caso/livro analisado por Freud).
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xação predisponente a uma fase muito precoce do desenvolvimento da libido, o autoe-rotismo, e por um mecanismo particular de formação dos sintomas: o sobre-investimento das representações de palavra (distúrbios da linguagem) em relação às representações objetais (alucinações). Freud ([1911] 1969), na análise de Schreber, formula a hipótese de que há uma regressão narcisista, chegando até o abandono completo do amor objetal e a retomada de uma satisfação autoerótica. Aponta que os delírios de grandeza, por exemplo, são consequência do desinvestimento do mundo externo e manifestação do retorno da libido sobre o eu, ameaçado por um grande afluxo de energia. Nesse estádio, já houve uma escolha objetal, porém o objeto confunde-se com o eu próprio do indivíduo. O delírio, para Freud, é uma tentativa de cura, uma reconstrução do mundo exterior pela restituição da libido ao objeto. Já nas alucinações encontramos a libido retirada dos objetos, refugiada no próprio eu do indivíduo. Portanto, na esquizofrenia, a tentativa de cura não ocorre por um reinvestimento aos objetos; trata-se de “uma primitiva condição de narcisismo de ausência de objeto” (Freud, [1915] 1974, p. 225). No seu artigo dedicado ao inconsciente, em 1915, Freud compara a alucinação ao mecanismo posto em jogo na histeria, na formação dos sintomas. Considera que na esquizofrenia os investimentos (Besetzungen) libidinais são retidos na apresentação da palavra, existe uma predominância da relação de palavra sobre a relação da coisa. Isso corresponde, clinicamente, aos distúrbios de linguagem, o caráter rebuscado e afetado da expressão verbal, os neologismos e as extravagâncias encontrados nesse quadro psicopatológico. Nesse sentido, Freud relata um exemplo clínico, colocado por Tausk à sua disposição, no qual uma paciente, após desentendimento com seu amado, queixa-se: “Os olhos dele não estão certos, eles estão alterados, distorcidos, tortos” Freud ([1915] 2006, p.46), acrescentando que “não consegue entendê-lo, cada vez ele tem uma aparência diferente, ele é um hipócrita, um distorcedor de olhos, ele torceu e virou os olhos dela, agora é ela quem tem os olhos revirados, distorcidos, não são mais dela aqueles olhos, ela agora vê o mundo com outros olhos” ([1915] 2006, p. 46). Nessa perspectiva, Freud conclui sobre a predominância da relação da palavra sobre a relação da coisa na estranha formação substitutiva e sintomática na esquizofrenia. Argumenta que é a equivalência da expressão linguística e não a semelhança entre objetos que determina esse tipo de substituição; portanto, é nos aspectos em que palavra e coisa (Ding) não se equivalem que a formação substitutiva na esquizofrênica se diferencia das neuroses. Com efeito, o sintoma referente ao corpo próprio está invariavelmente presente em pacientes esquizofrênicos, como nos atesta o exemplo clínico de Tausk trazido por Freud. Para o esquizofrênico, a percepção do corpo próprio
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é sentida como se fosse outro que o habita, pois percebe sensações de um corpo que lhe são alheias, como se fossem de outro corpo. Com efeito, a fenomenologia psicótica precisa ser compreendida, já apontava Freud ([1911] 1969), como alguma coisa que foi rejeitada no interior e que reaparece no exterior. Lacan ([1958] 1998) articula essa questão dizendo que essa alguma coisa primordial ao ser, no sujeito, não entra na simbolização, ou seja, não é recalcada, é rejeitada. É uma Verwerfung primitiva, ou seja, alguma coisa que não é simbolizada e que vai se manifestar no real. A significação que concerne ao sujeito é rejeitada e isso determinará a invasão psicótica. A partir do ensino de Lacan ([1957-1958] 1999) e de sua compreensão do fenômeno psicótico: criando o conceito de foraclusão (Verwerfung), a escuta do discurso do paciente, além da tradicional observação de seus sintomas, ganha relevância para o diagnóstico de psicose. É através da escuta do discurso do sujeito que vamos encontrar os efeitos dessa suposta não inscrição do Nome-do-Pai. Pois, diferentemente do neurótico, encontramos aquilo que não está inscrito, a ausência da metáfora paterna aparece através do delírio, no qual o sujeito está tentando articular uma rede de significação que foi foracluída. Dessa forma, a formação delirante é uma tentativa de cura do paciente. A valorização da tentativa de cura não significa, porém, que o paciente, através da sua construção delirante, poderia sair da estrutura psicótica. O que se quer dizer é que ele poderá sair da crise e viver como um psicótico fora de crise. Lacan ([1955-1956] 1992) nos ensina como identificar esses pontos de ruptura da cadeia significante através da fala, uma fala que desnuda a estrutura da linguagem no inconsciente. A exigência peremptória da ordem simbólica que não foi integrada pelo sujeito acarreta uma desagregação em cadeia, a trama da tapeçaria é desfeita, e o delírio surge no lugar dessa subtração feita na tapeçaria, para dar conta desse corpo espedaçado que se revela na psicose. Esse dilaceramento corporal era denunciado por Rogério com sua paranoia e reivindicações constantes, que já estavam sendo muito mal toleradas na enfermaria psiquiátrica. Ninguém aguentava ouvi-lo, pois a demanda era maciça e as queixas delirantes constantes. Dispus-me a escutá-lo, em um primeiro momento ingressei na mesma via imaginária que os demais profissionais da enfermaria, ou seja, persecutória. Sabendo da impossibilidade de qualquer intervenção analítica desde uma relação dual, tratei de situar-me em outra posição. À medida que ei a me interessar por suas estórias delirantes sem contradizê-lo ou apontar o absurdo das suas ideias a partir de minha lógica, Rogério ou a considerarme. Pode tolerar minha presença e compartilhar sem maiores desconfianças
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sua realidade psíquica delirante. Em determinado momento, Rogério achou que essa doutora “era esperta”, uma vez que falava sua língua. É preciso acolher o psicótico na fala de sua língua estrangeira, como propunha Lacan ([1955-1956] 1985). Ingressar nesse mundo fechado e encerrado da psicose, abrir uma porta e entrar, compartilhar com o psicótico de seu delírio é essencial para poder fazer da psicose uma experiência da psicanálise. Essa entrada no discurso psicótico é possível quando conseguimos levar o sujeito a aplicar a regra analítica, a saber, a associação livre. Desse modo conseguimos fazer girar o discurso em um quarto de volta e fazer surgir o discurso da histérica, que se caracteriza por ser essencialmente cindido. Nessa escuta da fala delirante do psicótico acompanhamos sua lógica de discurso totalitário, e tentamos introduzir uma vacilação calculada. Um equívoco, essencialmente verbal que faz um corte na linha dura do discurso psicótico. No caso de Rogério, fiz uma equivocação quanto ao seu discurso paranoico. Rogério era perseguido por um médico particular da família, interessado em usurpar todo o seu dinheiro através do seu tratamento. Acreditava que os remédios que estavam sendo istrados na enfermaria psiquiátrica estavam marcados e envenenados. Disse-lhe, alguma coisa, no sentido de que os remédios receitados naquele hospital para os pacientes eram comprados com verba pública. Era a primeira, vez que Rogério, rapaz psicótico de família de grandes posses, tinha sido internado em um hospital pelo SUS. Isso produziu um efeito de corte, de sideração da lógica persecutória à qual Rogério estava submetido. A crença de que o outro queria sempre lhe ar a perna, a fim de roubar seu dinheiro, monitorar seus pensamentos e trancafiá-lo para sempre em um manicômio cedeu. Portanto, a partir do método proposto por Freud, a talking cure, ou seja, a cura pela fala, houve a possibilidade de o paciente expressar suas alucinações pela fala; à medida que isso foi ocorrendo, o paciente foi se tranquilizando e o quadro clínico geral apresentou significativa melhora. Houve diminuição acentuada de seu delírio, ele voltou a comportar-se adequadamente, ou a interagir melhor com os outros e consequentemente estabelecer laços mais efetivos. O ato psicanalítico é uma práxis, um savoir-faire sobre o qual podemos falar no a posteriori da experiência. A formação psicanalítica, naquilo em que ela se sustenta, a saber, a análise pessoal, o estudo da teoria psicanalítica e a supervisão dessa prática é aquilo que possibilita ao analista sustentar seu fazer. O discurso psicanalítico é o único, entre os quatro discursos propostos por Lacan, no seminário O avesso da psicanálise ([1969-1970] 1992), que se dirige ao outro como sujeito. 136
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Dessa forma, trata-se de estabelecermos um laço social que convoque o sujeito do inconsciente. Nessa direção, com um quarto de volta ascendente, produzimos artificialmente a histerização do discurso, que por sua estrutura se opõe a todo o saber preestabelecido. O sujeito barrado no lugar do agente produz um desejo de saber no lugar do outro, convocando o sujeito na produção dos significantes que o constituem. Conduzi minha prática na enfermaria psiquiátrica do hospital dessa forma, a partir do discurso do analista, não como um saber a mais entre tantos outros, que toma o outro como objeto do conhecimento. Ingressar como “mais um” na equipe, exercer uma função de alteridade é como penso que seja possível trabalhar em uma clínica feita com muitos profissionais. Penso que é a partir desse discurso que podemos trabalhar nas instituições, pois ele é o único laço social que trata o outro como sujeito. Nessa direção caminha o trabalho em uma equipe interdisciplinar, pois na psicanálise trata-se de um saber que não se sabe, e isso deve valer também para o analista ou, como propôs Lacan ([1955] 1998) ao se referir à posição do analista, que é de ignorância douta. Dessa forma, o trabalho do analista em uma instituição se dá pela possibilidade que ele tem de sustentar o discurso analítico, também fora do setting analítico, sem tentar instituir a psicanálise como outro saber, ou um saber a mais ou um saber sobre os demais. Pois quem institui um saber e ou uma forma de poder é o discurso do mestre. O discurso do mestre é o discurso da instituição, e seu avesso é o discurso do analista; sua emergência não institui nem comanda um trabalho institucional, entretanto, causa transferência.
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 139-152, jul. 2011/jun. 2012
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EQO"C"RCNCXTC. QU"CNKUVCU<" c"rukeânkug"pqu"ECRU3 Volnei Antonio Dassoler2
Tguwoq< A produção recente da literatura psicanalítica demarca os avanços e os imes que cercam a expansão da clínica nos contextos públicos de saúde. Nessa perspectiva, o presente estudo tem por objetivo investigar a experiência clínica conduzida por analistas nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), levando em consideração a diversidade de configurações que envolve a situação analítica nesse espaço institucional. Para tanto, entrevistas semiestruturadas foram conduzidas e posteriormente analisadas a partir do estabelecimento de alguns indicadores que permitiram abordar a articulação teórica e clínica que fundamenta essa prática. Rcncxtcu/ejcxg< clínica psicanalítica, sintoma, ética, centro de atenção psicossocial (CAPS).
PQY"YKVJ"VJG"URGGEJ."VJG"CN[UVU<" ru{ejqcn{uku"kp"ECRU Cduvtcev< The recent production regarding psychoanalytic literature points out advances and imes about the expansion of the clinic in public health care contexts. Thus, the following study has as its aim to investigate the clinical experience carried out by analysts in Psychosocial Care Centers (CAPS), taking into consideration the diversity of configurations involved on the analytic situation in such institution. Semi-structured interviews were carried out and analyzed considering the establishment of some markers, that allowed approaching the theoretical and clinical articulation that substantiates such practice. Mg{yqtfu<" psychoanalytic clinic, symptom, ethics and psychosocial care centers (CAPS). 1 Este artigo é inspirado na dissertação de mestrado de minha autoria, As in(ter)venções do analista frente às demandas institucionais dos CAPS (PPGP. UFSM-2010). Os CAPS constituem a principal estratégia institucional do redirecionamento da atenção em saúde mental e são destinados a acolher os pacientes com transtornos mentais graves. Dentro de suas pretensões, destaca-se o desenvolvimento de ações interdisciplinares e intersetoriais que visam integrar os usuários a um ambiente social e cultural concreto, designado como território e onde se desenvolve a vida quotidiana. Por outro lado, esses serviços assumem um papel estratégico na composição de uma rede de cuidados descentralizada, aberta e agenciadora de cidadania. Os CAPS são definidos a partir do tamanho de sua estrutura física, profissional, e da especificidade da demanda. Os diferentes tipos de CAPS são: CAPS I e II para atendimento a adultos com transtornos psíquicos graves; CAPSi para a infância e adolescência e CAPSad para usuários de álcool e outras drogas, além do CAPS III para atendimento 24h durante toda a semana. Fonte: Saúde Mental no SUS: Os CAPS, Ministério da Saúde. 2004. 2 Psicanalista; Mestre em Psicologia (UFSM); Membro da APPOA; Integrante da equipe do CAPSad Caminhos do Sol, Santa Maria. RS. E-mail:
[email protected]
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O
surgimento do campo psicossocial, como elaboração política e clínica para o tratamento de usuários com transtornos psíquicos graves em substituição ao modelo biológico hegemônico, surge com algum traço de familiaridade à psicanálise pela participação historicamente ativa de alguns analistas nesse processo. Por essa razão, o aspecto central do debate não deve ser a inter-rogação sobre a pertinência ou não da psicanálise, mas, sim, como o analista deve se situar diante de um tipo de sintoma (na psicose, por exemplo) que não responde à estrutura freudiana da neurose e como incluir a práxis analítica nesse universo. A despeito de algumas críticas e, inevitavelmente, de algumas pedras no caminho, o novo aparato clínico institucional tem se consolidado como referência aos usuários do sistema público de saúde mental, caracterizandose por uma concepção de complexidade na relação entre o sujeito e o seu sofrimento. Essa nova montagem vai demandar intervenções inspiradas em projetos terapêuticos de caráter singular, que se efetivam pelo trabalho interdisciplinar e pela responsabilidade compartilhada em formatos que preservam a heterogeneidade, avessos a qualquer forma de rigidez protocolar e discursiva. Nesse sentido, a psicanálise tem o compromisso ético de apresentar-se como colaboradora do projeto psicossocial em oposição às formas totalizantes, excludentes e massificadoras de outras terapêuticas, justamente por afirmar que a subjetivação não se faz alheia ao laço social, mas na interface com a alteridade. Portanto, não há incompatibilidade em considerar a presença do analista como partícipe dos tratamentos para as variações sintomáticas encontradas no campo psicossocial e que a experiência do sujeito demonstra. Para a realização da pesquisa, optou-se por uma investigação que ressaltasse o vivo da experiência dos analistas, fazendo-os dialogar com a teoria através das suas narrativas. Foram entrevistados nove analistas participantes de equipes de CAPS no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, interrogandoos sobre o modo como articulam os princípios da psicanálise criada por Freud e estendida por seus contemporâneos, com os diferentes protagonistas e com as variadas demandas institucionais que especificam a clínica proposta pelos CAPS. Nesse sentido, a pesquisa teve o propósito de conhecer e problematizar as diferentes modalidades de intervenção e refletir sobre as consequências dessa prática para a psicanálise, destacando limites e possibilidades. Tgcnkfcfg"uwdlgvkxc"g"tgcnkfcfg"fkuewtukxc Uma proposta possível que sustente a entrada da clínica psicanalítica na saúde mental deve reconhecer como pertinentes os princípios orientadores
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que fundam esse universo como forma de tornar fecundo o diálogo entre as respectivas instâncias. Com efeito, consideramos que o pressuposto fundamental que as reúne, diz respeito ao reconhecimento de que a loucura é habitável, de que há nesta ou em qualquer forma de estruturação psíquica, a manifestação de um sujeito que não pode ser concebido nem definido alheio àquilo que lhe surge como sofrimento. Esse entendimento ratifica o fundamento analítico de que o sintoma é o resultado dos efeitos da desnaturalização do corpo com a entrada do sujeito na linguagem e situa o laço social como o âmbito das trocas, estabelecido nas relações que o sujeito comunga. A experiência analítica reatualiza o advento subjetivo como intermediado pelo corte simbólico processado a partir da entrada do ser ao campo do Outro pela incidência da falta. A linguagem, exercida como lei, introduz o sujeito na estrutura dos discursos, abrindo, com isso, as possibilidades para que o exercício pulsional encontre meios que promovam ligação entre corpo e linguagem como forma de satisfação e que será, nos diz Freud, sempre em caráter parcial. Assim, o sujeito entra na ordem simbólica e, nessa entrada, o sintoma se produz inexoravelmente pela vigência de um corpo pulsional. Embora estejamos habituados com a afirmação de que o analista faz uso da linguagem como forma de o ao sujeito, é preciso lembrar de que a psicanálise trata dos efeitos da linguagem enquanto a mesma incide como traumática para o advento do sujeito, numa operação que descompleta o gozo e institui, simultaneamente, a realidade psíquica, como uma outra realidade distinta daquela regida pela consciência. Essa referência é atualizada por Maron (2000), quando nos sugere que: “presumirmos que a realidade subjetiva é discursiva e supor que o sujeito é feito de linguagem, serve de ponto de partida para nossas ações” (p. 53). Assim, posicionar o dispositivo clínico da fala no centro da sua práxis, através da oferta da escuta e tomando a transferência como seu operador clínico, permite ao analista expandir sua prática para além do modelo de atendimento individual. Isso se faz, pois o componente simbólico, princípio mínimo necessário para a ação de um analista, encontra-se presente inclusive naqueles sujeitos com quadros psicopatológicos graves. Mesmo nesses casos, é possível apostar na instauração da demanda de reconhecimento pelo endereçamento ao Outro, através do analista. O texto conhecido como Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise ([1953] 1988) pode ser considerado um dos marcos históricos do direcionamento que Lacan pretende dar para sua obra a partir de 1950, ancorando o inconsciente do lado da linguagem. Com efeito, a palavra é situada no eixo simbólico, indicando que o sintoma neurótico, da mesma maneira que 141
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o sonho, coloca em funcionamento a estrutura da linguagem e mais, precisamente, a relação do homem com a linguagem, enquanto recurso à subjetivação: Quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente. A evidência desse fato não justifica que se o negligencie. Ora, toda fala pede uma resposta. Mostraremos que não há fala sem resposta, mesmo que depare apenas com o silencio, desde que ela tenha um ouvinte, e que esse é o cerne de sua função em análise (Lacan, [1953] 1988, p. 248).
Entretanto, para que essa proposta seja viável, é preciso estar munido da particularidade que o conceito de sujeito adquire no campo psicanalítico. De acordo com Figueiredo (2005), “o sujeito não é todo; ele é, antes de tudo, um efeito. Um efeito da intervenção do Outro” que se produz a partir de uma convocação feita a ele e que aparece sob determinadas condições: Podemos dizer que o sujeito porta o Outro na sua própria constituição, nele se aliena e dele se separa pontualmente, parcialmente, e nunca se faz um com o outro. O sujeito não faz Um, nem com o outro, nem com seu objeto. Nada o complementa. Pelo contrário, se às vezes temos a impressão de estar diante de um sujeito completo, a quem não parece faltar nada porque nada demanda, este deve estar suspenso em seu próprio isolamento, seu autismo particular, sua recusa ao Outro como ápice de sua patologia. Cabe a nós provocá-lo para sair disso. O sujeito é uma abertura, é sobredeterminado, como nos ensinou Freud, em sua abertura ao Outro (Figueiredo, 2005, p. 49).
Essa posição é decisiva para podermos começar a pensar nas particularidades que vão se produzir como potencialidade naquilo que se formula como uma clínica a sujeitos não situados na neurose e que têm no contexto institucional um aspecto fundamental do seu tratamento. Nesse sentido, é pertinente a colaboração de Elia (2011), quando nos diz que:
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O sujeito é, por tessitura, efeito de um laço social, de uma estrutura que inclui o Outro, que é transindividual, por excelência. Isso nos permite aproximar o sujeito da noção de coletividade, desde que a distingamos de um agrupamento social considerado em sua consistência interpessoal. Coletividade é uma categoria interessante e conveniente para a Psicanálise e pode ser articulada com a categoria de inconsciente (Elia, 2011, p.33).
Com a palavra, os analistas...
Na mesma direção, Goldenberg (2006) afirma que o sujeito do inconsciente só se apreende nos efeitos da fala, não havendo um texto anterior, escrito ou oral que nos localize o inconsciente oculto. Assim, em um tratamento, só há acontecimentos discursivos, aos quais se imputa um agente que deverá, como efeito de um tempo posterior, situar um lugar ao sujeito. Com isso, não será pela via da dedução do inconsciente, feita pelo conhecimento prévio da genealogia de alguém, que uma interpretação vai se guiar. Esta se faz quando fornece um sujeito ao inconsciente e isso vale, segundo o autor, para qualquer estrutura de subjetivação. Lacan, na sua obra, recorda que o analista, desde Freud, ocupa o lugar de endereçamento do sintoma, daquilo que rompe com o ideal, sugerindo que o real comparece determinado pela presentificação do simbólico que recorta seus limites. Com isso, Lacan formaliza que a verdade do sintoma não deve mais ser buscada na decifração de um significado oculto, visto que, pelo seu caráter de estrutura, nunca se consegue dizer toda a verdade. Portanto, a verdade que o sintoma revela não é relativa à aquisição de um sentido que desvela o enigma, mas, justamente, ela é verdade ao surpreender o sujeito naquilo que ele localiza como impossível, como furo, medida que provoca a suspensão de saber e restitui ao sintoma seu caráter de enigma. Dessa forma, o que o sintoma recobre é a verdade da impossibilidade do reencontro ao objeto, causa de desejo. Assim, define Lacan: O sintoma, aqui, é o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito. Símbolo escrito na areia da carne e no véu de Maia, ele participa da linguagem pela ambiguidade semântica, que já sublinhamos em nossa constituição. Mas é uma fala em plena atividade, pois inclui o segredo do outro no seu código (Lacan, [1953] 1988, p. 282).
Diante disso, o analista, desde seu lugar clínico, legitima a falta como possibilidade de haver o exercício do desejo, postura que se contrapõe à demanda de completude e cura que pode advir dos pacientes, familiares e técnicos dos CAPS. No seminário sobre a ética, Lacan ([1959] 1991) diz: “o que nos demandam, é preciso chamá-lo por uma palavra simples, é a felicidade” (p. 350). O que faz, então, um analista em resposta a esse pedido? Retomando o tema pela releitura de Freud, Lacan ([1959] 1991) argumenta que, se não há felicidade a ser alcançada, nem objeto a ser reencontrado, não pode haver, por parte do analista, nenhuma conduta afirmativa sobre o o à felicidade. Justamente por saber disso, o analista tem o cuidado de não propor, nos trata143
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mentos que conduz, nenhum bem a ser alcançado, tampouco dá as garantias de êxito do seu empreendimento. Recolocando a questão de outra forma, Lacan menciona que não há possibilidade de responder à demanda de felicidade, pela razão óbvia de que propor-se a isso equivaleria pressupor a existência de um bem supremo que concederia esse estado de plenitude. Precavendo-se dessa armadilha, Lacan aponta a inibilidade a esse objeto, não somente porque “ele (o analista) não o tem, como sabe que não existe” (p. 359). Caberia, portanto, ofertar um bem dizer ao sujeito à medida que lhe possibilita alguma satisfação e circulação no laço social, circunstância que só pode ser considerada a partir do singular. Levando em consideração essa perspectiva, podemos afirmar que, para a psicanálise, a ética diz respeito a uma interrogação que vincula uma relação entre a ação e o desejo que a sustenta, articulação conceitual que fundamentaria a operação clínica. Como seria possível pensar a existência de um pedido de felicidade no âmbito psicossocial, visto que, nesse cenário, o mais provável é encontrarmos uma precariedade que alcança os níveis mais fundamentais da existência material e psíquica? Um olhar mais atento nos possibilita assinalar que as expectativas vinculadas ao tratamento estão associadas à aquisição ou ao reestabelecimento de determinado padrão de conduta social, ou seja, não há, explicitamente, um pedido de felicidade ou de plenitude endereçado aos CAPS ou aos analistas. Precisamente ou simplesmente, o pedido almeja o retorno a uma condição de normalidade que corresponderia a um estado de controle psíquico, representado pelo manejo efetivo sobre aquilo que é visto como desregramento nas condutas dos alcoolistas, toxicômanos, autistas e nas incontáveis formas de viver da psicose. Quer dizer, a demanda de felicidade percebida na clínica neurótica encontraria correspondência com as expectativas de cura e adaptação no contexto psicossocial. Parece-nos que, mesmo que o ideal esteja situado numa outra ordem de carência, a solicitação não muda estruturalmente, ou seja, aquilo que se pede ao analista continua sendo o impossível. Só que, nesses casos, o impossível é vertido na garantia da abstinência do uso de substâncias psicoativas, na aquisição de uma racionalidade neurótica para os psicóticos e numa infância sem transtornos no seu desenvolvimento, pedidos que se afastam da ética psicanalítica ao se colocarem do lado da moral tradicional, na qual há um saber a priori que define o bem. É pertinente recordar que o procedimento diagnóstico da clínica lacaniana é pautado pela presença do significante Nome-do-pai, tomado como critério indicativo da qualidade estrutural do funcionamento psíquico. Dentro desse ponto de vista, o sintoma é abordado pela sua resposta à cadeia significante
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organizada em torno do significante nome-do-pai. De acordo com Lacan, só somos capazes de operar sobre o sintoma porque esse é o efeito do simbólico no real, ou seja, o sintoma se torna manejável, na medida em que não é puro real, pela incidência do simbólico. Apesar de constatar a irredutibilidade da representação da pulsão de morte e, portanto, da interpretação significante, o analista conserva o campo simbólico como sendo aquele de onde opera. Entretanto, a partir de agora inclui uma nova abordagem do sintoma pela perspectiva do real, ou seja, reconhecendo a presença de uma exclusão radical no processo de subjetivação que, mesmo sem ser ível-representável, permanece assediando o sujeito. A verdade não reside mais no sentido, devendo ser localizada, por escansão, no encontro com o indizível, característica que designa uma das nuances do real lacaniano e que aparece formulada em Televisão ([1973] 1993), quando afirma que não se pode dizer toda a verdade, na medida em que faltam palavras para dizê-la toda, sendo, justamente, por essa impossibilidade material que a verdade toca o real. Diante dessa nova perspectiva, Viganó (2006) afirma que os últimos ensinamentos de Lacan trazem uma potencialidade clínica para aqueles sintomas que, na origem da psicanálise, estariam excluídos do beneficio do trabalho de um analista. Para o autor, Lacan “deixa lugar a uma concessão mais contínua do sintoma como resposta subjetiva à impossibilidade lógica da relação sexual” (p. 29). Assim, a clínica que se preconiza só pode ser feita pela estrutura particular do sujeito, o que faz com que sua política não vise ao consenso majoritário ao seu discurso, na medida em que “oferece uma representação social para o lugar da exceção, e age caso a caso (portanto, não é nem ao menos uma questão de minoria” (p. 30). Segundo Viganó (2006), diante de novos sintomas, a clínica não pode se limitar ao binário neurose-psicose, o que representaria a reintrodução de um critério fenomenológico, a presença ou ausência da estrutura clássica do sintoma analítico. Para o autor, a clínica “deve reencontrar o critério estrutural em nível de toda resposta subjetiva, religando-se ao último Freud, que reavaliava a defesa na base do sintoma” (p. 29). Pensar o tratamento dessa forma tem como consequência que o diagnóstico se garante unicamente pela estrutura particular do sujeito, que remete ao universal do desejo, mas também ao gozo enquanto categoria singular. Essa posição é viável por entendermos que se todo e qualquer sujeito apresenta algo de forcluído na sua constituição, também é verdade que sempre há algo do sujeito que se inscreve no campo simbólico, tornando-o falante a partir do conjunto de representações com as quais dirige sua existência e com 145
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as quais tenta lidar com a falta e com o gozo da pulsão. Como consequência disso, o analista auxilia o sujeito a reconhecer o furo do sentido, como marca da própria divisão, de maneira que o gozo possa circular visando adquirir algum valor de inscrição simbólica e menos de exclusão do laço social, particularidades fortemente presentes na população assistida nos CAPS e que autorizam a clínica psicanalítica a não precisar reservar-se à neurose. Swfq"qu"cnkuvcu"hcnco000000
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Estudioso da clínica na instituição, Lebrun (2004) declara que o psicanalista poderia postular-se como o “profissional da enunciação” (p. 199), qualificação que, segundo ele, evidenciaria a especificidade do seu ofício, que, pelo caráter particular da sua presença, promoveria um lugar para a palavra onde o sujeito tenderia ao silenciamento mortífero. Para o autor, esse cenário seria decorrente das circunstâncias que proliferam nos espaços institucionais dominados pela dinâmica imaginária que se impõe ao desejo, aos corpos e entre os semelhantes. Segundo Lebrun, a psicanálise tem o compromisso de tomar para si o encargo de reintroduzir a dimensão do sujeito dividido, aquele que não se confunde com o sujeito unificado da fala e que se mostra dividido entre seu dizer e seu dito, entre saber e verdade, entre enunciado e enunciação. Com efeito, para fazer frente ao discurso da ciência, nova fronteira do mal-estar, que visa ao apagamento do singular e da enunciação, o analista seria aquele que faz retornar, com potencialidade de vida, aquilo que do sujeito emerge como resto desqualificado e que, a priori, mostra-se como obstáculo ao bom andamento do ideal. Diante disso, de acordo com o autor, o analista operaria como o agente que faz furo na instituição, tendo o cuidado de não dar ao seu discurso o caráter de histericização, risco possível para aqueles que se mantêm fascinados pela denúncia da insuficiência dos demais discursos que participam da dinâmica coletiva. Por participar de um projeto institucional, alguns procedimentos da rotina dos CAPS não remetem à prática convencional de um analista, por estarem associados ao caráter psicossocial do serviço. Entretanto, um analista pode contribuir com sua participação em ações desenvolvidas no CAPS, sabedor dos lugares distintos que ocupa diante das demandas institucionais. Essa diversidade de lugares foi percebida nas falas dos analistas entrevistados, que destacam a relevância em demarcar a sua especificidade para atribuir ao seu ato as condições de independência que o mesmo requer sem, com isso, almejar concessão de uma posição privilegiada ou hierarquizada dentro da equipe de trabalho.
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Assegurada a potencialidade transferencial que qualifica e institui as condições para seu ato, o analista nos CAPS pode, doravante, ocupar-se da agem do “consultório” para o espaço coletivo como um cenário a mais para suas intervenções. Esse novo status pareceu familiar aos analistas entrevistados, que atuam tanto em atividades de formato coletivo ou no próprio ambiente de convivência, intervindo em situações de urgência, nos processos de acolhimento e de cuidado aos familiares e por intermédio de outras estratégias que comparecem de forma expressiva nos projetos terapêuticos. A modalidade de atendimento individual continua sendo um dispositivo de trabalho viável e frequente ao analista que atua nesses locais; porém, a prioridade dos mesmos em detrimento de outras formas de tratamento não foi observada por nenhum dos entrevistados. É oportuno registrar que os atendimentos nos moldes semelhantes à clínica privada são mais constantes com os pacientes dos CAPSad e menos frequentes com aqueles dos CAPSi e CAPS II. Essa situação pode ser explicada, parcialmente, pelo CAPSad receber muitos usuários que, para além da problemática envolvendo o uso de álcool ou outras drogas, estão referidos à estrutura neurótica. Por outro lado, as experiências de trabalho com grupos é um dos pontos mais nevrálgicos da prática do analista no circuito institucional, por colocar de saída a problematização da noção de eu na psicanálise em sua dimensão de sujeito dividido, interrogando, pelo viés da identificação, os processos de grupo. Sobre isso, citamos o comentário de uma das analistas entrevistadas, que atua em CAPS para crianças: Hoje em dia, eu penso que o grupo, ele faz objeção à psicanálise... porque o que acontece? O grupo, ele faz a identificação, é a própria análise que o Freud, mostrando que o grupo, ao invés de propiciar, diminuir o eu, que racionaliza, que tenta barrar o inconsciente, ele faz crescer o eu, ele é um espaço propício pras identificações egoicas, a tudo que faz barreira, assim, pra abertura do inconsciente. Então, a nossa proposta desde o início foi assim, receber um coletivo de crianças e jovens, mas não ter nada que investisse em grupo. Apesar disso, consideramos que o dispositivo de grupo somente se mostra avesso à ética psicanalítica se a sua dinâmica ignorar a singularidade que se estabelece na relação do sujeito com o laço social e atuar em favor da subor-dinação do eu ao ideal do grupo, o que não parece ser a realidade das atividades conduzidas pelos demais analistas entrevistados. Os mesmos consideram o trabalho em grupo como um dispositivo de tratamento possível a partir da perspectiva psicanalítica, fato que se sustenta através do estabelecimento de uma rede que privilegie a dimensão significante do sujeito operando como instrumento de o a linguagem na construção de laço social. 147
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Tradicionalmente, os tratamentos previstos para os quadros graves apresentam, em sua composição, a oferta de oficinas como uma modalidade terapêutica privilegiada. De acordo com os entrevistados, as oficinas são intervenções que permitem forjar um novo arranjo sintomático que, favorecido pela intermediação do recurso material das mesmas, adquire a capacidade de atrelar a pulsão à cadeia significante. Dessa forma, haveria a construção de alguma borda que se apresenta ao sujeito como um significante que o situa no laço social, ao servir de expediente na modulação do gozo, possibilitando que algo do sujeito se perceba destacado do Outro. Com tal fundamentação, essa prática torna-se comum entre os analistas, na forma de oficinas de escrita, de cinema, de poesia, de música, de dança, de artesanato, etc. De acordo com os analistas entrevistados, as oficinas parecem estar mais afinadas ao modus operandi analítico, pela suposição de que as mesmas se projetam como instrumentos para a elaboração de escoras simbólicas que favorecem a construção de um lugar no laço social. Isso significa que o eixo central, que opera nessa proposta, localiza o sujeito como um efeito da linguagem, assim como destaca ao sujeito a potencialidade desse ato e transforma as oficinas em lugares de clínica. Esse parece o entendimento de uma analista entrevistada para quem a participação dos sujeitos obedece à lógica de um coletivo que não se faz todo: “É possível, desde que você tenha uma escuta caso a caso, acho que o psicanalista vai produzindo espaços para ir colhendo isso, pra que não se perca, tomando isso da crise que acontece, na briga por exemplo, que isso possa ser escutado desde um outro lugar..... de fazer uma intervenção que possa fazer com que isso possa ser escutado enquanto possibilitador e não enquanto problemático”. Na citação anterior, o possibilitador é a forma particular de a entrevistada dizer sobre o caráter de subversão e criação que respaldaria a direção analítica do seu trabalho. Corroborando com o postulado acima, destacamos a posição de Torossian (2011): As oficinas são dispositivos coletivos, espaços intermediários, transicionais, entre sujeitos e subjetividades, que podem produzir desvios em relação a sentidos cristalizados. O coletivo emerge, então, do espaçamento moebiano, é uma superfície entre a produção social e a sua singularização, entre a psicanálise em extensão e a psicanálise em intensão, entre o sujeito do inconsciente e a discursi-vidade política (p. 181).
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Portanto, para formalizar as ações do analista no CAPS, é preciso que as mesmas estejam referidas a uma concepção de sintoma que leve em consideração o trabalho pela via do significante, como recurso de mediação ao
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inconsciente e no tratamento ao real. Essa configuração não tem a estrutura verificável pelo inconsciente freudiano e requer intervenções que dificilmente podem ser concebidas antecipadamente por parte do analista, comportando, assim, um grau de invenção e flexibilidade no seu manejo. Enfim, no dizer de um entrevistado: não se é analista a priori, verifica-se, posteriormente, se foi. Tal depoimento sugere que a presença do analista está atrelada a uma posição de disponibilidade, conforme o depoimento de outro entrevistado: “A gente está ali numa disponibilidade, não que vai ter a ânsia que aconteça algo, mas se algo acontece, estamos ali no lugar de testemunho, de intervenção...”. Com efeito, fica evidenciado que o lugar do analista nos CAPS é concebido como sendo paradoxalmente ativo, estando, ao mesmo tempo, numa posição de disponibilidade, o que deixa em suspenso os ideais de cura e de adaptação, muito frequentes nos serviços psicossociais. Com tal perspectiva, o sintoma não é mais interpretável como desviante da normalidade, mas tomado como forma particular de gozo. Tal reconhecimento nos serve para indicarmos que o analista que atua nesse cenário deve levar em conta que os dispositivos clínicos ofertados precisam, obrigatoriamente, considerar o tipo de estrutura psíquica dos usuários na proposição de seu trabalho, conforme esclarece um dos analistas participantes da pesquisa: “porque a gente acha que o dispositivo, tem que ter afinidade com a estrutura psíquica”. Tal recomendação é válida, visto que o contexto psicossocial acolhe uma diversidade de pessoas que recolhem e compartilham suas histórias do ponto de vista estritamente singular, não sendo necessariamente numa sala ou através do recurso à associação livre que o processo vai ser desencadeado. Como forma de sustentar essa direção, recorremos a Quinet (2009), que nos lembra de que o particular da psicanálise não está no formalismo prático, mas, sim, no rigor de uma ética que é particular ao oficio do analista. Tal posição ética busca destacar o sujeito do emaranhado indistinto que, muitas vezes, acompanha as ações nos CAPS, a despeito da pretensão de singularização que rege sua clínica. Assim, contrariamente à disposição de universalização e burocratização dos dispositivos, os analistas acompanham o percurso do sujeito em tratamento, resguardando as condições que lhes possibilitem uma intervenção guiada pela direção que o próprio sujeito apresenta, sabedor de que essa não pode ser antecipada. Dessa forma, a disponibilidade do analista não é pensada como uma espera iva, mas vista como uma atitude instigadora e provocadora de efeitos no sujeito, conforme as declarações colhidas dos entrevistados. Tendo em consideração que o sintoma é uma resposta singular e que cabe ao analista intervir dentro dessa lógica, vislumbram-se, no contexto institucional, 149
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dispositivos marcadamente determinados por um caráter de invenção. Eqpenwkpfq."qw00000ckpfc."pçq0 A particularidade do sujeito em tratamento nos CAPS demonstra o enredamento do sintoma sobre o seu modo de vida, naquilo que envolve o contexto familiar, as relações com o trabalho, os ideais sociais, o âmbito afetivo e as condições relativas à saúde física. Tal descrição se veicula nas narrativas dos entrevistados, sugerindo que essa apresentação se encena no cotidiano dos CAPS. Nesse sentido, reafirmamos o caráter essencial da relação do sujeito com o sintoma como participante da direção de tratamento, conforme ressalta Laurent (2007), para quem “o sintoma é nossa dimensão de ex-sistência no mundo”: Nós ex-sistimos ao sintoma, pois há uma tensão no sintoma. De um lado ele é um envelope formal: de outro, pedaço de nós mesmos, acontecimento de nosso corpo. Por intermédio desse pedaço de corpo que posso reconhecer como meu, tenho o ao signi-ficante do Outro em mim, a essa mensagem vindo de alhures. Quando estou em face do Outro, este não é exterior a mim, está em mim. Eu sou o Outro que está lá (p.174).
Dessa forma, o sintoma alcança o estatuto de solução psíquica, de recurso estabilizador da existência, privilegiando uma abordagem às patologias psíquicas graves, em que o analista, do seu lugar, visa promover algum tipo de aproximação do sujeito com o Outro, via sintoma, relação cavada pela introdução de es simbólicos, que possam engajá-lo no laço social. Com efeito, o tratamento dos analistas nos CAPS pela via do sintoma se faz guiado pela dimensão simbólica, intermediando na relação problemática do sujeito com seu corpo e com a alteridade em decorrência da particular presença do Outro nesses casos. Tais fatos são explicitados pela frágil inserção no laço social, conforme as vinhetas registradas pelos analistas ao descreverem situações nas quais entra em cena a relação com os contornos e limites do corpo através da agem ao ato ou do acting-out. Portanto, a constatação da presença de uma parcela de gozo, do real, inapreensível e irrepresentável no simbólico, não exclui o compromisso de possibilitar brechas para que um quantum dessa energia se vincule, num outro gozo, no gozo fálico, inscrito e reconhecido. A pulsão não é eliminável, mas fazê-la ar pela linguagem permite incluir a dimensão do inconsciente, 150 150
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do Outro e, deste ângulo, o que faz um analista no contexto institucional diz respeito a fazer com que algo desse gozo e pela referência ao Outro, promovendo algum esvaziamento dessa condição pela introdução de alguma referência à falta. É o gozo absoluto do entorpecimento da droga, que prescinde de qualquer intermediação, ou o gozo na psicose, que se processa pela invasão avassaladora do Outro sem mediação. Assim, a posição ética do analista visa criar condições para que o sujeito possa emergir como efeito de um significante que module a experiência sem sujeito do sintoma, a partir de um traço que se inscreva, progressivamente, no simbólico, como tentativa do real sair do corpo e habitar a linguagem.
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______. A palavra na instituição. Revista Mental, Barbacena, ano IV-n.6, p.27-32, jun-2006. Recebido em 11/11/2012 Aceito em 20/12/2012 Revisado por Renata Almeida
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 153-163, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
SWFQ"C"GUEWVC" UG"HC\"OQTCFC3 Lívia Zanchet2
Tguwoq< O trabalho no campo da assistência social tem absorvido cada vez mais profissionais da área psi, que se veem desafiados a reinventar suas práticas para atuar nas políticas públicas. A psicanálise em muito contribuiu para a construção da concepção de um sujeito de direitos, mas faz-se necessária ainda para que as pessoas não em a ocupar o lugar de meros objetos das políticas públicas. Um recorte de caso traz à cena a discussão sobre a ética do desejo, defendendo a escuta psicanalítica e a redução de danos como elementos fundamentais no trabalho intersetorial, com enfoque no Sistema Único de Assistência Social. Rcncxtcu/ejcxg< assistência social, escuta psicanalítica, intersetorialidade. YJGP"NKUVGPKPI"DGEQOGU"CFTGUU Cduvtcev< The work on the Social Assistance field has increasingly absorbed professionals of the psychology area. These professionals are finding themselves challenged to reinvent their practices to work in public policies. The psychoanalisis has made many contributions to the construction of a subject of rights conception, but is still necessary so that people do not take the place of mere objects of these public policies. A piece of a clinical case is presented to make a discussion about the ethics of desire, where the psychoanalytic listening and harm reduction are considered fundamental elements of intersectorial actions, focusing on the Single System of Social Assistance (SUAS – Sistema Único de Assistência Social). Mg{yqtfu< social assistance, psychoanalytical listening, intersetoriality. “Tudo o que não invento é falso” Manoel de Barros, Memórias Inventadas Texto apresentado na Jornada do Percurso de Escola X da Appoa, em abril de 2012. Psicóloga no Grupo Hospitalar Conceição; Especialista em Saúde Mental Coletiva pela ESP/ RS; Mestranda no PPG de Psicologia Social e Institucional da UFRGS. E-mail: liviazanchet@ yahoo.com.br
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o Brasil da atualidade, falar sobre direitos do cidadão tornou-se fato corrente. O tema da cidadania e dos direitos humanos está nas escolas, nos jornais, na televisão, nas redes sociais e, em especial, no campo das políticas públicas. Como psicóloga que atua3 no Sistema Único de Assistência Social – SUAS – em um município da região metropolitana, minha intenção é discorrer sobre a psicanálise na sua perspectiva ética – ligada ao desejo, e sua inserção no campo da política nacional de assistência social, considerando seu objetivo de garantir direitos ao cidadão. A assistência social como política pública é recente na história de nosso país. Ainda que suas referências já estivessem presentes na Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), é de 1993 a publicação da Lei Orgânica da Assistência Social (Brasil, 1993); lei essa que estabeleceu os objetivos, princípios e diretrizes das ações. Sua última modificação ocorreu em julho de 2011 (Brasil, 2011), quando ficou regulamentado o Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Em sua nova redação, encontramos que “A assistência social tem por objetivos: a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos”. E também, o princípio de universalização dos direitos sociais e o respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária. No decorrer de seu desenvolvimento, a política tem absorvido, de forma crescente, profissionais da área psi, chegando ao panorama atual: um grande número de psicólogos e psicanalistas, adentrando tais portas e sendo desafiados a compor suas práticas em equipes multiprofissionais, reescrevendo formas para tal. A psicanálise em muito contribuiu para a consolidação dessa concepção de “um cidadão de direitos”, à medida que proporcionou o direcionamento do olhar social para o sujeito naquilo que lhe é singular. No entanto, sua presença enquanto ética do desejo permanece necessária, no intuito de impedir que os usuários do SUAS não em a ocupar o lugar de meros objetos de direitos ditados pelas políticas públicas, tornando-se reféns das leis e da técnica. O desejo, em psicanálise, define-se como a “falta inscrita na palavra e efeito da marca do significante sobre o ser falante” (Chemama, 1997, p.42). É, portanto, aquilo que move o sujeito, que o propulsiona à vida. À medida que algo falta ao sujeito, ele pode ir em busca; sem, no entanto, conhecer
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Esta experiência de trabalho encerrou-se em abril de 2012.
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conscientemente aquilo que busca. A falta inscrita na palavra é sempre da ordem do inconsciente. O que se observa no campo da assistência social é, muitas vezes, invasão de privacidade e vidas tuteladas, sustentadas pelo argumento de adequação a determinado padrão de comportamento ou a valores morais que tomam proporções exorbitantes e se sobrepõem a escolhas individuais e legítimas. O risco é cotidiano e iminente de que, na busca pela garantia de direitos, o Estado e os profissionais que executam a política, transformem-se em meros reprodutores da lógica de controle já apontada por Foucault em inúmeros de seus escritos. Ao fundar o conceito de biopoder (Foucault, [1988] 2009), o autor situa o principal dispositivo de controle da contemporaneidade, que não se encontra fora dos sujeitos, mas intrínseco a suas relações: trata-se de um discurso em defesa da vida e da população, um investimento sobre o corpo vivo – para que esteja saudável, com capacidade de produzir – mas absolutamente voltado aos interesses do sistema capitalista e a sua manutenção. As práticas cotidianas no campo da assistência social, direcionadas à garantia de direitos, à proteção de vulnerabilidades e à prevenção de riscos, se bem observadas, carregam em si traços dessa vigilância e disciplinarização dos sujeitos. Os profissionais, no intuito de seguir o que preconiza a política, podem colocar em ação técnicas diversas, que produzirão apenas corpos dóceis e bem adaptados ao sistema. Com a psicanálise, pode-se pensar no exercício de um lugar ético e não meramente técnico, uma vez que as práticas serão endereçadas aos sujeitos, os “usuários”, como são chamados os cidadãos que fazem uso da política. A psicanálise não se propõe à reprodução, mas faz frente exatamente ali onde ela pode advir; opera com a ruptura na repetição, trazendo à tona a singularidade dos sujeitos. Wo"ecuq."woc"ecuc Um recorte de caso pode aqui fazer cena para algumas análises e proposições. Inicia-se uma história quando apresentam-me duas crianças, Julia e Ana, por meio da seguinte afirmação: “Elas, há uns seis meses quando chegaram aqui, eram bichinhos! Não sabiam usar o banheiro e cuspiam no chão!” E eu, ao olhá-las, enxergava apenas duas crianças sorridentes; que, a partir daquele momento, vinham dar-me um beijo de bom dia todas as manhãs, ao chegarem no Centro de Referência de Assistência Social – CRAS. Dias depois, conheci a mãe das meninas, dona Juliana. Ao primeiro contato, senti certo medo de seu olhar penetrante e de sua fala rápida, em tom agressivo. Imagino que, da mesma forma, ela também tenha sentido certo medo ao ter de ficar respon-
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dendo a perguntas de uma desconhecida que fazia questionamentos sobre sua vida e a de suas filhas... Ecoava em mim a pergunta: Afinal, quem tem medo de quem? “Nós”, profissionais que atuamos no campo das políticas públicas e buscamos garantir direitos para a população; ou “eles”, usuários dessas políticas e sujeitos inúmeras vezes invadidos em sua privacidade por aqueles que “sabem” o que lhes é melhor para seguir a vida? Freud, em 1918, apontava alertas relacionados a essa questão, ao pensar a condução do tratamento analítico. Dizia ele: Recusamo-nos, da maneira mais enfática, a transformar um paciente que se coloca em nossas mãos em busca de auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe os nossos próprios ideais, e, com o orgulho de um Criador, a formá-lo à nossa própria imagem e verificar que isso é bom (Freud, [1918] 1996, p. 178).
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Aos poucos, aproximei-me de Juliana e de suas filhas, pois frequentavam o CRAS diariamente: as meninas vinham ar a manhã conosco, no projeto de contra-turno, e Juliana vinha para buscá-las ao final das atividades. Gradualmente, pude perceber que ali havia uma mãe buscando exercer sua função. Ela, mesmo que envolta no terreno da psicose, sem estar referenciada a um serviço de saúde mental do município, encontrava no CRAS algumas ancoragens para seguir trilhando seu caminho. Relatos de outros profissionais do SUAS evidenciavam diferenças no cuidado de Juliana com as meninas. Há alguns anos atrás, mãe e filhas recebiam verba através do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, porque Juliana levava consigo as meninas para auxiliá-la na “catação” de materiais para reciclagem. Atualmente, contudo, não mais recebem qualquer benefício do governo; pois, ao “felizmente” terem saído da situação de trabalho infantil, o grupo familiar foi retirado do sistema para recebimento desse auxílio, estando automaticamente na condição para recebimento de outro benefício, o Bolsa-Família. Contraditoramente, porém, ingressaram no final da fila, atrás de mais de mil pessoas que aguardam avaliação do Governo Federal para o ree dos valores. Neste ponto, deparamo-nos com uma das várias pequenas armadilhas que retiram as pessoas da condição de sujeitos de direitos para a condição de objetos de direitos. A burocratização da istração pública promove situações como esta: uma família que, por meio de recursos socioassistencias consegue sair de uma condição aviltante, mas que, paradoxalmente, fica impossibilitada de seguir adiante. Uma vez fora da condição de trabalho infantil, a a ocupar uma posição que a deixa à beira de retroceder à situação ante-
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rior, pois o benefício recebido faz ainda diferença importante na sobrevivência econômica do grupo. São imes burocráticos como esse que permeiam o cotidiano do fazer nas políticas públicas e que nos distanciam de efetivar, com o sujeito, atos oriundos da instância desejante. O trabalho psíquico a a ocupar segundo plano, tornando-se irrelevante o investimento já realizado pelos profissionais e pelos próprios usuários nesses percursos de reescritura de vida. Ainda no tema da burocratização, há um segundo apontamento a ser feito na sequência do relato. Juliana e suas filhas viviam em condições precárias e insalubres: um casebre, onde a chuva ava sem qualquer barreira; a comida, sempre em falta; cachorros, ratos e baratas dividindo o espaço com os demais moradores, sem luz elétrica e numa estrada onde o destino único era o depósito de lixo da cidade. Uma região não urbanizada; apenas a estrada, os casebres e, ao fundo, o lixão. Juliana aguardava ser chamada para receber uma nova casa, através do programa “Minha Casa, Minha Vida”. Sempre que conversávamos, surgia o tema da casa e ela afirmava esperar ansiosamente que ficasse pronta. Certo dia, fui a um aniversário com colegas de trabalho e, inevitavelmente, os temas de nosso cotidiano fizeram-se presentes. Conversei com a assistente social responsável pela entrega das casas, referi Juliana. Escutei o seguinte: “Com essa daí eu nem sei mais o que fazer, a casa dela já tá pronta há três meses e ela não quer saber de se mudar. O funcionário já foi lá e ela se negou a os papeis!” Naquele momento, veio-me à mente a imagem de Juliana, com seu jeito bravo, sendo chamada à porta de casa por um desconhecido para um papel. Lembrei-me de sua condição de analfabeta e do tempo que precisei para me vincular a ela e ter sua confiança... Pareceu-me oportuno ela ter-se negado. Mesmo assim, coloquei-me em dúvida: estaríamos falando da mesma pessoa? Para mim, há semanas Juliana falava reiteradamente na vontade de se mudar e, de repente, escuto da profissional responsável que essa mesma Juliana é um “dos entraves” para a ocupação das casas... Combinei então com a colega de trabalho que diria a Juliana no dia seguinte que sua casa estava pronta e, após, faria novo contato com os responsáveis. Assim o fiz. Juliana afirmou-me desconhecer essa informação. O período que seguiu funcionou como uma “luta de convencimento”: precisava convencer a colega Assistente Social que Juliana tinha, sim, vontade de se mudar; precisava convencer Juliana que a Assistente Social tinha, sim, vontade de lhe entregar a casa; precisava convencer-me de que tudo aquilo não era um delírio próprio, de que ambas falavam de suas verdades, mesmo que tão destoantes. E deu-se a mudança. Na perspectiva psicanalítica, estamos falando em transferência, fenômeno fundamental e mola propulsora da experiência de análise, definida no
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dicionário de Chemama (1997) como “vínculo afetivo intenso, que se instaura de forma automática e atual entre o paciente e o analista, comprovando que a organização subjetiva do paciente é comandada por um objeto, que J. Lacan denominou de objeto a” (p. 217). No recorte apresentado, é possível afirmar a transferência como ferramenta potente, que permite a quem escuta, limpar as interferências do registro imaginário e permitir a emergência do simbólico, conferindo lugar ao desejo e suas derivações. Ao saber que Juliana e suas filhas estavam na nova habitação, fui visitálas (na linguagem técnica da assistência social, fiz uma “visita domiciliar”). Para minha surpresa, foi a primeira vez que Juliana recebeu-me com um sorriso estampado no rosto. Encontrei-a na casa de uma de suas novas vizinhas. Ao ver-me descer do carro, dirigiu-se ao meu encontro, abraçou-me e disse: “Vou ali pegar a chave e te levo na minha casa”. Ali falava um sujeito. Um sujeito empoderado e desejante, um caso que agora tinha casa, uma situação em que a escuta se fez morada. No campo das políticas públicas, a psicanálise sai do setting clássico dos consultórios privados, sua ética adentra o território vivo e temos aquilo que vem sendo chamado de clínica ampliada (Cunha, 2005; Betts, 2007). É a possibilidade de que os efeitos da escuta clínica possam se fazer presentes em diferentes contextos, subvertendo lógicas instituídas e produzindo vida ali onde antes havia anestesia. Corroborando Betts, uma prática clínica, qualquer que seja, é atravessada pela ética psicanalítica sempre que leva em consideração a singularidade de cada pessoa em sua dupla dimensão de indivíduo-cidadão e de sujeito desejante (Betts, 2007, p. 11).
Ao adentrar sua nova casa, surpreendi-me novamente. Entramos pela porta da frente, da sala. Havia ao centro, um fogão a lenha desativado e, ao seu lado, no chão, um colchão de casal que, segundo Juliana, era onde dormiam ela e as meninas. Para mim, a casa era composta de cinco cômodos: um banheiro, dois quartos, uma sala e uma cozinha. Para mim, como já disse. Pois para Juliana, o que lhe importava estava ali na “sala”: o fogão e a cama. Significantes remetidos comumente a necessidades básicas: comer e dormir. Vidas que, até aquele momento, ocupavam-se dessas necessidades. Não havia como ir além do básico. O banheiro estava ainda sem chuveiro, e os quartos, lotados com os pertences da família – roupas, bolsas, sapatos, as.... Enfim, muita coisa. E nesse olhar para um território habitado num formato por mim inesperado, outra pergunta ocorreu-me: Basta que haja uma casa para que esta se torne uma morada? 158 158
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Nesse dia, percebi que muito trabalho haveria pela frente. Um trabalho sensível e delicado, que não poderia forçar construções psíquicas fragilmente sedimentadas e ao mesmo tempo tão valiosas. Ouvi de Juliana, enquanto apontava o dedo para a casa ao lado, mostrando um fogão a lenha a funcionar sem a saída de fumaça instalada: “Não vou deixar acontecer aqui que nem o louco do vizinho! Aquele ali não bate bem das ideias! Olha o meu teto: bem branquinho; e ele lá, preteando tudo!” E nessas frases escutei que ali havia, sim, uma morada, havia um espaço habitado e afetivo, havia apropriação e desejo. Ali falava um sujeito. A redução de danos e a escuta – diretrizes e amarragens no trabalho intersetorial E como dar sequência ao acompanhamento desse grupo familiar? Há que se considerar os riscos em sua situação de vulnerabilidade e entender que em alguns momentos é, sim, necessária a tomada de atitudes mais ativas e, à primeira vista intervenientes. Freud novamente pode auxiliar-nos a partir do que escreve em 1918 (Freud, [1918] 1996): Não podemos evitar de aceitar para tratamento determinados pacientes que são tão desamparados e incapazes de uma vida comum, que, para eles, há que se combinar a influência analítica com a educativa; e mesmo no caso da maioria, vez por outra surgem ocasiões nas quais o médico é obrigado a assumir a posição de mestre e mentor. Mas isso deve ser feito com muito cuidado, e o paciente deve ser levado para liberar e satisfazer a sua própria natureza, e não para assemelhar-se conosco (p.178b).
Em O mal-estar na civilização (Freud, [1930] 1996), outra contribuição de Freud para essas indagações refere-se à condição de total desamparo em que se encontra um bebê ao nascer, e da proteção do pai que se lhe faz necessária. Em relação à mãe, trata-se da necessidade de que o outro lhe ceda algo seu, empreste-lhe o seu desejo para que, dessa forma, ele consiga ir em busca de algo. No texto sobre o estádio do espelho, Lacan ([1949] 1998) afirma que tal estádio [...] é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim assumida de
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uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental (p.100).
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Essa ideia se aplica ao trabalho com a clínica das psicoses, mas entendo que pode também servir a uma aproximação com o campo da política de assistência social, pois acabamos por emprestar nosso desejo aos usuários, não de maneira a se sobrepor ao que já tenham construído, mas para compor com suas construções frágeis. É nosso desafio encontrar a delicadeza num terreno em que há muito de brutalidade. Histórias de vidas violentas e violentadas, vidas abandonadas, vidas desesperadas e desesperançadas. Ali onde está o buraco, há que se colocar uma suplência, ainda que temporária, mas profundamente necessária. Soares, Susin e Warpechowski (2009), nesta mesma direção, propõem a clínica da assistência social promovendo um lugar de investimento libidinal, ao dizer que, muitas vezes, a iniciativa se coloca primeiramente do lado do psicólogo até que o sujeito possa, ele próprio, demandar, sustentar e exigir atendimento. E nesse olhar atento ao perigo da sobreposição anteriormente referida, pensar a prática a partir da redução de danos pode ser alternativa. O conceito de redução de danos ampliada vem sendo utilizado para referir-se à sua aplicação como estratégia para além do trabalho com usuários de drogas e portadores de HIV, mas inserida no campo das políticas públicas, visando prevenir quaisquer danos à vida antes que eles aconteçam. Ela constitui-se como uma diretriz de trabalho, pressupondo a flexibilidade no contrato com o usuário e o estabeleci-mento de vínculo, facilitando assim o o às informações e orientações e estimulando sua ida aos serviços, por meio de propostas diversificadas e construídas singularmente. Segundo Rose Mayer (Conte et al., 2004), a redução de danos é um paradigma a partir do qual se parte do real existente, para uma situação melhor e possível. Ela relacionase com a interdisciplinaridade, pois o “real” e o “possível” podem ser vistos a partir de vários olhares; além de pressupor autoria e protagonismo, pois é o sujeito que vai poder avaliar o “real” e o “melhor”. É um processo educativo, de construção de escolhas que pode, portanto, ser transposto para o campo da assistência social. Alcançar transformações consistentes em situações complexas como as que são atendidas diariamente pelo campo da política de assistência social requer, inúmeras vezes, o envolvimento intersetorial dos diferentes atores que compõem a rede de atendimento – saúde, educação, habitação, cultura. São raros os casos em que um usuário do SUAS não faça uso também do Sistema Único de Saúde (SUS) e da rede de ensino de sua cidade. A construção da intersetorialidade já está colocada no discurso social, mas é com resistên-
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cias que se torna ação. E um dos grandes riscos da prática intersetorial é a fragmentação do sujeito. Ao trabalhar na rede, testemunham-se situações assim com certa frequência e, paradoxalmente, aquilo que deveria fortalecer o sujeito e potencializar o trabalho – essa rede composta por vários recursos assistenciais – acaba responsável por seu despedaçamento e fragmentações. Os diversos olhares sobre os casos podem produzir movimentos não sintonizados, com diferentes direções. Em situações como essas, a escuta psicanalítica pode funcionar como o fio condutor e de amarragem entre os diferentes setores. O cuidado sustentado na escuta clínica pode testemunhar a vida e fazer permanecer aquilo que há de singular no sujeito, ao serem encadeadas as intervenções da rede. Com a ética psicanalítica garante-se um norte, o norte do desejo. Trabalhar no campo das políticas públicas – sejam elas de educação, saúde, habitação ou assistência social – exige dos profissionais conhecimentos acerca do fazer público, dos princípios e diretrizes que o regem, da Constituição Federal e das leis específicas que dizem respeito a cada uma dessas políticas. Porém, esses conhecimentos não são por si só suficientes para garantir aos sujeitos atendidos seu lugar de cidadãos de direitos e deveres. Às vezes, é exatamente nessa busca que as políticas públicas acabam acarretando custos altos aos sujeitos, se desconsideram o valor da singularidade e das escolhas de cada um. Universalizar e garantir direitos, sim. Desde que não ao preço do apagamento da diferença, do sujeito, do desejo. Para encerrar este ensaio, a escrita de Manoel de Barros (2010) Sobre importâncias, um motor na abertura de sentidos e no exercício desejante de cada leitor: Um fotógrafo-artista me disse outra vez: veja que pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. Assim um arinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. Que um osso é mais importante para o cachorro do que uma pedra de diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais importante para os arqueólogos do que a Torre Eiffel. Que uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que o Empire State Building. Que o cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma Usina Nuclear. Sem precisar medir o ânus da formiga. Que o canto
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das águas e das rãs nas pedras é mais importante para os músicos do que os ruídos dos motores de Fórmula 1. Há um desagero em mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizerem algum exame mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar que eu gosto mais de conversar sobre restos de comida com as moscas do que com homens doutos.
REFERÊNCIAS BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaoA7ao.htm. o em 27.03.2012 ______. Presidência da República. Lei Orgânica da Assistência Social, n. 8.742, de 7 de setembro de 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8742. htm. o em 27.03.2012 ______. Presidência da República. Lei n. 12.435, de 6 de julho de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12435.htm. o em 27.03.2012 BETTS, Jaime. A clínica ampliada na psicanálise. Correio da APPOA. Porto Alegre, n. 156, abril 2007. CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. CONTE, Marta & al. Redução de danos e saúde mental na perspectiva da atenção básica. Boletim da Saúde. Núm. 18. Vol. 1. Porto Alegre: jan./jun. 2004. CUNHA, Gustavo Tenório. A construção da clínica ampliada na atenção básica. São Paulo: Hucitec, 2005. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – a vontade de saber. Vol. 1. São Paulo: Edições Graal, 2009. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização [1930]. In: ______. Edição standard das obras psicológicas completas. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ______. Linhas de progresso na terapia psicanalítica [1918]. In: ______. Edição standard das obras psicológicas completas. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu [1949]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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SOARES, Janete.; SUSIN, Luciane; WARPECHOWSKI, Marisa Batista. A clínica ampliada na Assistência Social. In: CRUZ, Lilian; GUARESCHI, Neuza (orgs.). Políticas públicas de assistência social – diálogos com as práticas psicológicas. Petrópolis: Vozes, 2009. Recebido em: 10/08/2012 Aceito em 10/09/2012 Revisado por Sandra D. Torossian
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 164-172, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
KPVGTXGPÑ÷GU"EN¯PKECU" GO"EQPVGZVQU"FG"GZENWU’Q< tgcuugpvcogpvq." wo"nwict"c"eqpuvtwkt3 Janete Nunes Soares2 Luciane Susin3 Marisa Batista Warpechowski4
Tguwoq< O trabalho trata da intervenção clínica desenvolvida numa comunidade de Porto Alegre que sofreu processo de reassentamento. Esta prática orientada pela psicanálise buscou articular os direitos sociais e a dimensão subjetiva. A intervenção ocorreu pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), através da criação de espaços de escuta individuais e coletivos em que a vivência do reassentamento pudesse encontrar reconhecimento e testemunho. O desafio neste trabalho é intervir, entrelaçando a dimensão clínica, política e social, possibilitando ao sujeito se reinventar, criando laço social de inclusão. Rcncxtcu/ejcxg< clínica, exclusão social, reassentamento urbano, assistência social, políticas públicas. IPVGTXGPVKQPU"KP"ENKPKECN"EQPVGZVU"GZENWUKQP< tgugvvngogpv<"c"rnceg"vq"dwknf Cduvtcev< The paper analyzes the effects of a clinic intervention developed with a group of residents of a community in Porto Alegre. They had suffered a process of resettlement. A clinical practice oriented by psychoanalysis in the context of social exclusion and violence, seeking to articulate social rights and subjective dimension. The intervention occurred from the Center for Specialized Social Assistance Reference (CSSAR), through a listening space in which the experience of relocation and its effects could be recognized and testimony. The challenge is to intervene interlacing clinical, political and social, allowing the subject to reinvent itself, creating social ties of inclusiveness. Mg{yqtfu< clinic, social exclusion, urban resettlement, social assistance, public politic.
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e intervenções sociais, em setembro de 2011, Porto Alegre. 2 Psicóloga; Psicanalista; Supervisora da Rede de Alta Complexidade da Fundação de Assistência Social e Cidadania da Prefeitura Municipal de Porto Alegre; Coordenadora do Grupo de Trabalho Saúde Mental na Assistência Social. E-mail:
[email protected] 3 Psicóloga; Psicanalista; Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Compõe a equipe do Centro de Referência Especializado em Assistência Social da Fundação de Assistência Social e Cidadania da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. E-mail:
[email protected] 4 Psicóloga; Psicanalista; Especialista em transtornos do desenvolvimento na infância e adolescência. Compõe a equipe do Centro de Referência Especializado de Assistência Social da Fundação de Assistência Social e Cidadania, Prefeitura Municipal de Porto Alegre. E-mail:
[email protected] 1
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ste trabalho trata de uma prática clínica orientada pela psicanálise num contexto de exclusão social e violência, a partir do acompanhamento de uma experiência de migração urbana ocorrida em uma comunidade na região centro de Porto Alegre, que se produziu através de ação de remoção e reassentamento. Desenvolvemos este trabalho com um grupo de famílias da Vila Chocolatão, durante o processo de reassentamento dessa comunidade para outra região da cidade, tendo em vista a reapropriação pela União do terreno onde a Vila se situava. Nossa intervenção é legitimada pelo trabalho que desenvolvemos junto à Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, através dos serviços socioassistenciais que compõem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), conjugada à ética psicanalítica. O trabalho ocorreu a partir do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) Centro, e buscou articular a dimensão dos direitos sociais com a criação de um espaço de escuta e acompanhamento em que a vivência do reassentamento e os seus efeitos subjetivos pudessem encontrar reconhecimento e testemunho. Realizamos intervenções individuais e coletivas junto ao grupo de moradores, disponibilizando espaços de escuta. Participamos de uma rede de discussão com as demais secretarias municipais envolvidas no processo, órgãos públicos federais do entorno e moradores da Vila. Durante todo o processo, acompanhou-se a relação com as demais políticas públicas na perspectiva do o aos serviços e da garantia dos direitos sociais. Compôs-se uma rede, em que algumas ações das secretarias municipais foram tendo lugar e visibilidade na comunidade. Xknc"Ejqeqncvçq<"fq"vgttkvôtkq"cq"nwict “Toda representação contém seu traço de saudade e seu resto de silêncio – de algo que já não está, de algo que nunca se entregou inteiro à simbolização” (Kehl, 2000, p. 140). A Vila Chocolatão ou a ser ocupada há mais de 20 anos por famílias que estavam vivendo em situação de rua e que habitavam nas proximidades, embaixo de pontes, marquises e acampamentos na margem do rio Guaíba. Aos poucos, as famílias foram recolhendo das ruas restos de madeiras e compensados até erguerem seus pequenos barracos. A Vila localizava-se no centro da cidade, posição que a diferenciava das demais comunidades periféricas tão comuns nas grandes cidades. Situava-se entre prédios públicos e pontos turísticos (Tribunal Regional Federal, Instituto 165
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Brasileiro de Geografia e Estatística, Câmara de Vereadores, Galpão Crioulo, Parque Harmonia Gasômetro) e também ao lado do prédio da Receita Federal. Este prédio, de arquitetura moderna, é todo em vidro marrom, e o seu formato e cor fazem lembrar uma imensa barra de Chocolate, ficando conhecido pelo nome de Chocolatão. Como esse prédio constituía um marco de referência, a Vila que foi se formando ao lado também adotou esse nome, ficando conhecida por Vila Chocolatão. Nessa comunidade, os moradores vivem em condições extremamente precárias, em que nada está assegurado – nem mesmo o alimento do dia. As casas situam-se em zona irregular e de risco; o trabalho é precário, sem nenhum direito; em geral, trabalham com aquilo que os demais descartam, recolhendo o lixo que a sociedade produz. O trabalho com a reciclagem é a atividade preponderante entre os moradores, sendo que alguns trabalham em cooperativas de serviços gerais, em que os direitos trabalhistas não lhe são assegurados. O tráfico de drogas e a violência encontram lugar como em tantas outras comunidades pauperizadas nas fronteiras porosas entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, o lícito e o ilícito. Conforme Telles e Hirata (2007, p. 173), “um cenário urbano no qual se expande uma ampla zona cinzenta que torna incertas e indeterminadas as diferenças entre o trabalho precário, o emprego temporário, expedientes de sobrevivência e as atividades ilegais, clandestinas ou delituosas”. A vida na Vila é marcada pelas condições de exclusão, pois não há água encanada, nem luz com ligação regular (as ligações elétricas são clandestinas, os chamados “gatos”), o que já foi responsável por inúmeros incêndios nessa comunidade, inclusive com morte de adultos e crianças; não há saneamento básico, ficando o esgoto a céu aberto. Quando chove, tudo fica tomado pela água e pelo lodo, restringindo a circulação e o deslocamento dos moradores. As casas são pequenas, reduzindo-se a uma peça na maioria delas, onde tudo é compartilhado – o lugar de estar, comer, dormir, trabalhar. O lixo invade as casas, pois, nas mesmas, os moradores guardam e separam o material coletado nas ruas. O contexto de aridez da Vila Chocolatão contrasta com o doce a que alude seu nome. A possibilidade de ter o a uma casa legalizada, em melhores condições, em terreno urbanizado – ando a existir no mapa oficial da cidade – representava um sonho para muitos. Por outro lado, esses moradores sabem que, além da casa, necessitam viver num território onde também possam ter o aos demais bens e serviços que tornam a vida digna. Estavam inseridos nos serviços da região, como escola, creche, posto de saúde e centros de assistência social. O centro da
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cidade é uma região muito rica na produção de resíduos, garantindo o trabalho de coleta. Construíram uma rede de apoio informal, composta por moradores do entorno, igrejas, restaurantes que auxiliavam com alimentos, roupas, móveis. Assim, diziam: “O centro é muito rico e aqui ninguém a fome”. Ao dar lugar às falas carregadas de angústia frente à mudança e ao enfrentamento com o novo, também se apresentava o desejo de permanecer no lugar onde estavam. Os moradores se perguntavam se, nesse novo território, teriam o ao que já haviam conquistado, referindo-se aos serviços que usufruíam. As falas apontavam para certa forma de exílio, na medida em que faziam referência a uma distância, a um lugar muito longe: “As casinhas são muito longe, lá no fim do mundo”. A ruptura com o território que conferia identidade a esse coletivo afetaria a rede de relações que haviam construído. Sabemos que justamente nesses grupos que vivem em situação de exclusão e alijamento, essas relações cumprem papel fundamental na configuração de sua inscrição social. Conforme Haesbaert (2004, p. 4): “[...] muitas vezes, [...] é entre aqueles que estão mais destituídos de seus recursos materiais que aparecem formas as mais radicais de apego às identidades territoriais”. Como outras migrações brasileiras, a remoção da Vila Chocolatão — vista pelo ângulo da sua causa — caracteriza-se como migração forçada, em razão de não representar inicialmente o desejo da comunidade. Essa migração atende ao jogo do mercado, no qual os direitos dos cidadãos, por muitas vezes, encontram-se suprimidos (Santos, [1987] 2007). Para Haesbaert (2004), o território funcional é aquele de onde se retiram os recursos e as matérias-primas, possibilitando a produção e agregando a função de proteção e abrigo. O território simbólico é onde se produzem significados, trocas afetivas, formas de viver, enfim um lugar de pertencimento: “[...] todo o território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes combinações, funcional e simbólico, pois exercemos o domínio sobre o espaço tanto para realizar suas ‘funções’ quanto para produzir ‘significados’” (Haesbaert, 2004, p. 3). Na medida em que se produz o reassentamento, é necessário também a apropriação do novo território, e nossa aposta é de que, pela palavra, os moradores possam construir simbolicamente o novo lugar e, assim, fazer resistência à violência que um processo como esse pode produzir. A colocação em palavras permite deslocamentos e rearranjos de sentidos, possibilitando narrativas que reorganizam a experiência ada, modificando seus efeitos no presente. 167
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Como nos lembra Milton Santos ([1987] 2007, p. 81): “Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é sede de uma vigorosa alienação”. Cultura e territorialidade, na concepção do autor, são como sinônimos, pois, em ambos, está contida a herança e também o resultado obtido por intermédio do próprio processo de viver. Bem como refere que “as migrações agridem o indivíduo, roubando-lhe parte do ser” (Santos, [1987] 2007, p. 81), obrigando-o a nova e dura adaptação ao novo lugar. O trabalho de escuta foi muitas vezes o de possibilitar que os moradores tomassem a palavra, transformando a vivência dolorosa silenciada em uma experiência compartilhada. Pcttcvkxc"g"Vguvgowpjq O reassentamento atingiu a todos, e o nosso trabalho foi propiciar uma narrativa que oferecesse lugar à implicação singular de cada morador. Narrativas que pudessem testemunhar as histórias dos moradores – e da comunidade – e construir uma memória que trouxesse tanto as marcas da exclusão, como o potencial de inscrição que possibilitou a cada um viver na Vila Chocolatão. A Vila representou um lugar de acolhimento, reconhecimento, inscrição, perdas e dores. Foi também lugar de agem, trânsito e nascimento. Nos espaços coletivos, através de rodas de conversas, buscamos a recuperação da memória, da historicidade, do testemunho dos primeiros moradores da Vila, que foram seus fundadores, e de como as histórias puderam ser compartilhadas. Nesses espaços, recortamos os significantes que possibilitassem o reposicionamento subjetivo. Para Lacan ([1953] 1998, p. 263): [...] o que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é a sua história – ou seja, nós o ajudamos a perfazer a historicização dos fatos que já determinaram na sua existência certo número de “reviravoltas” históricas. Mas se eles tiveram esse papel, já foi como fatos históricos, isto é, como reconhecidos num certo sentido ou censurados numa certa ordem.
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Assim, constituímos alguns dispositivos clínicos; entre eles, a construção de uma linha do tempo em que cada um situou sua chegada à Vila, descrevendo como chegou ao lugar e as transformações que produziu. Dona Iara fala com emoção que foi no Chocolatão que teve sua primeira casa, que saiu da rua, de baixo do viaduto, e que ali estava conseguindo criar três dos seus
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oito filhos. Luiza nos conta que sempre viveu na Vila, pois foi ali que nasceu e também que teve sua filha. Nesse dispositivo, surgiram memórias das vivências traumáticas da violência, morte e destruição da Vila pela ocorrência de 13 incêndios, ao longo dos últimos anos. Os incêndios representaram marcos de temporalidade, e os moradores falavam do horror de viver sob o perigo de destruição e a possibilidade de novas perdas. Destacamos o movimento de destruição e reconstrução do espaço da Vila, que reconfigurava os traçados da vida a cada incêndio, constituindo marcos de referência histórica. A partir do significante “incêndio”, outros foram sendo encadeados, como “Vila incendiária”, “Vila assassina” e “Vila do horror”, sentidos atribuídos socialmente, que não deixavam espaço para expressão da vivência traumática. Como nos trazia Carla: “Perdemos com os incêndios, perdemos muito, nossos documentos, nossas coisas, nossas vidas, tememos pelos nossos filhos”. Trabalharam-se as relações de vizinhança e as redes afetivas, na tentativa de construir distâncias que pudessem preservar algo de intimidade, num espaço em que a proximidade excessiva das casas fragiliza a separação entre o público e o privado. Procuramos trabalhar esses elementos através da criação de uma colcha de retalhos, onde o desenho da casa desejada representava uma posição no coletivo e teve como efeito a escolha do local da casa no novo endereço. Cada um pode dizer com quem gostaria de “vizinhar”, assim como daqueles que gostariam de preservar distância. Circulamos por lugares considerados significativos, construindo um mapeamento afetivo com os moradores, na perspectiva de articular a memória dos moradores a um lugar – a vila, a cidade. Os encontros eram realizados na comunidade, no parque, na associação de moradores, na praça, na sombra das árvores. Ao percorrer esse trajeto, percebemos o efeito de uma expansão do território e reconfiguração de limites que puderam ser compartilhados. Esses lugares foram fotografados, constituindo-se, posteriormente, em uma mostra fotográfica. Adriana fez questão de fotografar o interior de sua casa, pois se sentia bem nela, sendo que ali conseguiu ter uma casa, suas coisas, e cada objeto da casa representava muito para ela. Manuela gostaria de fotografar uma árvore da entrada da Vila, local onde sua filha nasceu. Nesse trânsito, seguíamos fotografando, conversando, ouvindo as histórias e formulando questões sobre o novo local de moradia. No novo local, visitamos a obra, conhecemos as casas, percebemos as diferenças entre elas, falamos das preferências de cada um em relação a 169
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morar num sobrado ou casa térrea, circulamos pelo território, visitando alguns serviços e conhecendo algumas equipes. Ao final de 14 meses, é chegado o momento de transferência das famílias para a nova moradia, nomeada pelos moradores de Residencial Nova Chocolatão. Destacamos que a escolha do nome, decidida em assembleia de moradores, preservou traços identificatórios, de forma a servir-se do ado para inventar o novo. A possibilidade do novo convivia com a insistência da destruição, pois, durante o processo de remoção das famílias, que transcorreu durante alguns dias, o que se presenciou foi muita destruição, em que a desfiguração do espaço foi determinante na angústia dos moradores. As casas vizinhas, as ruelas, a associação de moradores, as entradas da Vila, os bares da comunidade, os becos, não existiam mais, a não ser na memória, ainda recente e frágil para o momento do acontecimento. Estavam ali a Polícia Federal, a Brigada Militar, os guardas municipais, técnicos de várias secretarias, retroescavadeiras e muitos escombros. Parecia cenário de guerra. Um morador refere: “Aqui parece o Japão”. Estava certo. Falava de uma catástrofe, de algo com o poder de arruinar, de não deixar nada. Com os pertences encaixotados para a mudança, outra moradora diz: “Nos deixaram aqui, pior que animais”. Também contundente em sua fala, pois essa remoção, considerando a acepção de Milton Santos ([1987] 2007), guarda pouco do que podemos considerar humano. Numa postura de resistência frente à destruição que imperava, Julio inicia, ele mesmo, a desmanchar sua casa, tornando-se protagonista, ao transformar o que poderia ser perda em ganho, uma vez que sua intenção era a de vender as madeiras da casa: “Não vou deixar destruir, isto aqui é madeira boa, já vendi”. Para Endo (2005, p. 71): A abertura de espaço mediante a destruição de lugares tem êxito assim que os moradores desconhecem o seu lugar, ao percebê-lo completamente desfigurado e destruído, instante que a presença ali perde o sentido, e o morador que resistia percebe-se atemorizado e em grande perigo. O espaço já invadiu os lugares e sua presença física torna-se então, repentinamente, descontextualizada e indesejável. A circulação do cidadão, própria e singular, que só pode ser exercida pelo corpo contextualizado, inscrito em um determinado lugar, é bruscamente impedida e inviabilizada.
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Recuperar a potência da palavra em contextos tão áridos está em consonância com o princípio ético da psicanálise e se apresenta como uma especificidade do trabalho. Pois, para que a lembrança dolorosa encontre significações e possibilite aberturas discursivas é necessária uma agem do vivido ao narrado, sendo que, ao narrar, amos perder o que ficou para trás. Para Lacan ([1953] 1998, p. 258), “é justamente a assunção de sua história pelo sujeito, no que ela é constituída pela fala endereçada ao outro, que serve de fundamento ao método na psicanálise”. Assim, procuramos recuperar e preservar a memória da comunidade e também inscrever uma partida, fazer uma despedida, um luto. Construir uma aposta de futuro e abertura para apropriação do novo território. Resguardar os sujeitos da dimensão dolorosa e violenta, que está, muitas vezes, envolvida nesses processos. A intervenção clínica no campo da assistência social comporta a construção de uma trama de saber no lugar do que aparece como traumático. Esse é o trabalho simbólico que pode resguardar o sujeito do real. Nessa direção, o testemunho a a ter função essencial: falar sobre pequenos fragmentos de memória que não foram assimilados, algo que se excedeu em relação aos referenciais do sujeito. Dessa forma, o testemunho conjuga a narrativa da experiência vivida em que algo da verdade escapa e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de ar essa tarefa a outrem sem perder sua função essencial. Como apontam Rosa et al. (2010, p. 19): “A presença do psicanalista testemunha o desenrolar de um processo, como oferta de um campo que o sujeito possa associar a laços já estabelecidos e desencadear movimentos associativos”. Nesse sentido, ocorre o testemunho da narrativa dos sujeitos em relação à sua história, compartilhada com os pares, e o testemunho do analista que sustenta a escuta dos sujeitos. E nesse aspecto, em conformidade com Gagnebin (2006, p. 57): “Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração inável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento a história do outro”. Assim, o trabalho clínico nas políticas públicas exige a criação de dispositivos que possam fazer circular a palavra, de forma a restituir o pertencimento à cultura, dando lugar às diferenças e permitindo o questionamento de determinantes sociopolíticos. Nesse campo, em que predomina a realização de atos e urgências pautadas em “fazer o bem”, torna-se um desafio abrir espaços para a construção de narrativas. 171
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Nesse contexto de exclusão, violência e alienação, o desafio é intervir de modo a entrelaçar as dimensões clínica, política e social, restituindo a dignidade ética à palavra, possibilitando ao sujeito se reinventar e criando um laço social de inclusão. REFERÊNCIAS ENDO, Paulo. C. A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico sobre as violências na cidade de São Paulo. São Paulo: Escuta: FAPESP, 2005. GAGNEBIN, Jeanne Marie. M. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. HAESBAERT, Rogério. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. Porto Alegre: [s.n.], 2004. LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem [1953]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. KEHL, Maria Rita. O sexo, a morte, a mãe e o mal. In: ______. NESTROWSKI, Arthur; ROSA, Miriam Debieux et al. A elaboração coletiva do trauma: a clínica do traumático. In: ______. Escrita e psicanálise. Curitiba: CRV, 2010. v. 2. SANTOS, Milton. O espaço do cidadão [1987]. São Paulo: Nobel, 2007. SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.) Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000. TELLES, Vera; HIRATA, Daniel. Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, set./dez. 2007. Recebido em 26/04/2012 Aceito em 30/06/2012 Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 173-182, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
Q"SWG"TGVQTPC"PC"EN¯PKEC"FC" CVGPÑ’Q"RTKOıTKC" ‘"UCðFGA3 Eliana Mello2
Tguwoq< O texto explora a produção subjetiva no interstício entre a história individual e a história da cultura, e propõe o trabalho clínico de saúde mental realizado na atenção primária à saúde, no campo da saúde pública, como terreno fértil para acolher suas manifestações. O artigo visa destacar a importância da psicanálise na compreensão desse campo e o quanto ele pode ampliar a leitura da psicanálise. Rcncxtcu/ejcxgu<"história individual, história da cultura, produção subjetiva, atenção primária à saúde, trabalho clínico, psicanálise. YJCV"TGVWTPU"KP"ENKPKE"QH"RTKOCT["JGCNVJ"ECTGA Cduvtcev< The paper explores the production of subjectivity in the interstitial between individual history and the history of culture and suggests the clinical work of mental health conducted in Primary Health Care, in the field of Public Health, as fertile ground to host their events. It aims to highlight the importance of psychoanalysis in understanding this field and how this field can enlarge the reading of psychoanalysis Mg{yqtfu<" individual history, history of culture, subjective production, primary health care, clinical work, psychoanalysis.
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais, realizada em Porto Alegre, setembro de 2011, e decorrente da tese de doutorado em Educação, intitulada Trauma e sintoma social: resistências do sujeito entre história individual e história da cultura (Mello, 2010) 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Psicóloga do Grupo Hospitalar Conceição (GHC); Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS); Doutora em Educação (UFRGS). E-mail:
[email protected] 1
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escrita que se segue consistiu na construção de pontos de ancoragem e enlace para algumas intuições e múltiplos interrogantes, despertados por minha inserção profissional, enquanto psicóloga psicanalista, no território de abrangência de uma das doze Unidades de Saúde de Atenção Primária do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), situada na periferia de um bairro da zona leste da cidade de Porto Alegre. Como costuma se evidenciar na realidade das periferias urbanas, esse território se depara com o confronto desigual entre minoritárias (mas não inexistentes) forças de Eros – pulsões de vida – frente a uma hegemônica presença de Thanatos – pulsão de morte3. Desde minha chegada ao local, impressionou-me a enorme demanda por atendimento psicológico de crianças, por problemas referidos a “agitação”, “agressividade” ou “dificuldades escolares”, assim como a constatação do grande contingente de jovens envolvidos na delinquência ou na criminalidade, esta vinculada principalmente a assaltos e ao tráfico de drogas. O que se constitui em assunto recorrente nos consultórios e, consequentemente, entre os profissionais das equipes multidisciplinares, que se veem, dessa forma, convocados a um saber interdisciplinar, em que pesem os entraves que lhes fazem obstáculo. A intensa agressividade entre os pares é o elemento que se destaca em comum nesses fenômenos. No caso das crianças, ela se manifesta no endereçamento ao colega, o seu próximo, expressando-se em circunstâncias que envolvem acirradas disputas, e resultando, frequentemente, em luta corporal. Tais disputas reais – por um ideal imaginário – são deflagradas sobretudo por situações relacionadas à palavra: manifestam-se nos apelidos que apontam para algum detalhe na imagem corporal, ou em xingamentos, principalmente os que trazem a mãe da criança para a cena. A brincadeira ou luta, por eles, chamada “arreganho”, que é gozar com irritar o outro, e que envolve todas as faixas etárias, parece demarcar uma zona de fronteira, na qual o brincar e o brigar coabitam em um exercício periclitante, que a, facilmente, à contenda corporal. Entre as crianças, o elemento lúdico e o elemento agressivo estão também entrelaçados em curiosos jogos de linguagem, que indicam certo comparecimento do simbólico, da cultura, em algum trabalho de mediação. É o caso da brincadeira, compartilhada por um grupo substantivo de crianças, conforme nossa observação, que consistia em,
O dualismo freudiano, pulsão de vida e pulsão de morte, é aqui entendido como a contraposição de forças de ligação, que tendem a constituir e manter unidades de convivência cada vez maiores entre os humanos, às forças de destruição, que tendem à dissolução dos laços sociais.
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a cada dia, ser escolhida uma palavra aleatória, como “número”, por exemplo, que, naquele dia, as crianças não podiam falar em hipótese alguma. Isso tornava uma aula de matemática, no caso de nosso exemplo, uma arriscada empreitada... Aos infratores estavam previstas penas variadas, pequenas ou grandes “humilhações”, pequenas ou grandes investidas corporais. Essa zona limítrofe, entre a intensa agressividade e o apelo ao simbólico, também pode ser observada em outra versão na adolescência. Assim, a paixão pelo grafismo e a disposição para a criação grupal estão presentes, de forma fundamental, na formação atual dos “bondes”, os quais emergiram, conforme relatos locais, pelo desejo dos jovens de andarem em grupo, se atribuindo um “nome”, e de picharem a marca desse nome pela cidade. É verdade que a apropriação dos bondes, por grupos que “querem só a violência” (como o que escutamos), acaba desconstituindo essa formação grupal enquanto alternativa de e para o trabalho de inscrição subjetiva. No que diz respeito à prática de delinquência e criminalidade juvenil, as disputas entre gangues rivais são constantes e apresentam um expressivo saldo de mortes contabilizado pelos grupos envolvidos, configurando uma situação que é denotada pelos moradores da periferia como “guerra”. Que os filhos entrem na “guerra” é talvez o temor mais recorrente das mães, nesse lugar. Esses assassinatos são sustentados sobretudo por uma cultura calcada na vendeta4, que determina quem está jurado para ser o próximo a morrer. A relação entre os fenômenos descritos é para mim sugestiva da organização de algo como uma “linha de montagem”, que jamais deixou de suscitar interrogações sobre seus fundamentos e força de manutenção. Essa zona de “delinquência” e de “criminalidade” tem uma espantosa visibilidade no imaginário da cidade, aliás, típica do meio urbano brasileiro – desde que a consideremos como uma cidade “outra”, dissociada da sociabilidade ordenada que se pense produzir na cidade de “verdade”. É certo que se torna cada vez mais difícil sustentar essa dicotomia, o que demanda mais esforço de segregação. A “outra” cidade insiste em se apresentar no temor ao assalto, no confronto direto com a violência. Violência deles, do “outro”, evidentemente. Então, o “problema” a a ser enfrentado com o aparato das instituições em atribuição de “consertar” o inaceitável. Em parte pela adesão a esse ideal irrealizável, em parte porque os recursos financeiros que o problema demanda se inscrevem na lógica da distribuição dos bens, que os despencam
4 Palavra italiana que designa o espírito de vingança, entre famílias, provocado por um assassinato ou uma ofensa, e que é mantido ao longo do tempo por atos de vingança recíprocos.
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na ordem das prioridades, esse “conserto” se revela impossível, e o clamor por presídios e pela repressão total aumenta. Contudo, para além da intenção “normatizante”, que domina o discurso institucional, o registro da insistência de certas manifestações sintomáticas alerta para a extensão que tal desarranjo tem assumido no tecido social em questão. Evidencia-se, na escuta clínica de um número expressivo de casos, a pouca coesão de um “mito das origens”, a precária apropriação de uma história familiar, uma rasura que lança o sujeito na condição de desamparo simbólico. A fragilidade na inscrição de um “originário”, enquanto estrutura mítica capaz de amarrar corpo e linguagem e dar amparo ao sujeito, e o recurso à violência, como saída frente à angústia gerada pelo confronto sem anteparo com o estranho, comparecem à nossa vista como relacionados, já que a falta de referências simbólicas leva o sujeito a ter que inventar – em outro referencial – as suas próprias soluções. A questão sobre a construção de um “mito das origens” apresentou-se, então, por dupla via: uma voltada à ficção na história, ou seja, sobre as condições da experiência para reformulação ou consolidação de mitos sociais, familiares e individuais; e outra, desde a suspensão ou cristalização dessa construção, que a perspectiva de um portador de estigma social coloca. Nesse caso, uma versão das “origens”, frequentemente, revela-se apenas de forma fragmentada, fazendo obstáculo à estruturação subjetiva capaz de sustentar um Eu em possibilidade enunciativa, já que todo sujeito determina-se por seu pertencimento a uma ordem simbólica. Aqui é importante lembrar, com Sandra Pesavento (1993, p. 388, grifos meus), que “a autenticidade de um mito não se mede pela sua adequação ou não à realidade objetiva, mas, sim, pelo poder de evocação e mobilização dos discursos e imagens”. Poder de evocação este, que, para a psicanálise, se relaciona à fundação de uma memória, que diz respeito aos efeitos de inscrição de um significante paterno, ou seja, de um significante que e o registro da lei cultural e situe o sujeito na referência a uma filiação. Como lidar, então, com um traço identificatório que se marca pela sua ausência, por aquilo que se subtrai às possibilidades de demarcação afirmativa de um território para a subjetividade5? Assim, essa clínica da exclusão desafia o nosso preparo para enfrentá-la nas instituições e encaminha perguntas pelas condições estruturais e históricas, das quais adveio a captura dos corpos pela estigmatização. A herança de mais de três séculos sob a vigência de um
Essa questão foi construída pela leitura do artigo Experiência e linguagem como estratégias de resistência, de Miriam Debieux Rosa e Maria Cristina Poli (2009).
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sistema escravista, dentro de um processo de colonização, continua a cobrar reflexão, em nosso país, sobre os efeitos de violência decorrentes desse ado – que sabemos ter confiscado nomeações fundadoras –, amalgamados a condicionantes próprios do presente. Por outro lado, a convivência com pessoas de “discretas dignidades”, no mesmo território, em quem é perceptível uma indubitável consistência subjetiva – marcada por uma palavra singular, que evidencia potência de transmissão simbólica –, tornava a configuração do problema de pesquisa ainda mais complexo, mas indicava também um novo caminho. Pois o que havia viabilizado a diferença de um protagonismo? Quais as condições de possibilidade para que alguns conseguissem construir uma versão das origens que legitimasse o nome sob o qual se distinguem? Assim, esses pontos de interrogação buscaram encontrar suas respostas no desenvolvimento de uma tese. O primeiro apoio consistiu no encontro com uma discussão que se costurava no trabalho de três autores de nossa bibliografia: Melman (2000a; 2000b), Calligaris (2000) e Jerusalinsky (1999; 2005). Qual a herança do processo de colonização e do correlato sistema escravista para a subjetividade do brasileiro é a questão que dela emergia. Nessa discussão busquei espaço para eleger um fio condutor, e este diz respeito à possibilidade de virmos a reconhecer um agenciamento discursivo, ainda que fragmentário, próprio à posição do escravo, construído nas zonas de sombras do olhar senhorial. Para trabalhar nessa direção, objetivei, como principais metas de pesquisa, a contextualização histórica da formação social escravista, e suas zonas de tensões, e também o rastreio das condições para o agenciamento discursivo da experiência da escravidão. Como questão orientadora, a pergunta se, na violência do confronto de seres humanos com um Outro que escraviza, devemos supor a morte da ordem significante e a impossibilidade absoluta para o advento de um agente de enunciação. Não estaríamos presumindo assim o sistema colonial e escravista como monolítico e dispensando as zonas de fronteiras que podemos inferir como necessárias para delimitá-lo? Não configurariam, elas, sulcos, rachas, que puderam acolher traços inéditos, os quais teriam permitido – tais como os “restos diurnos” para a formação dos sonhos – a elaboração de novos textos narrativos, articulados à reserva de um remanescente saber inconsciente, referido às culturas de origem? No vacilo dos senhores e nas estratégias de resistência dos cativos à dominação, não seria factível supor que o empenho em escavar o absoluto se traduzisse em um camuflado deslocamento de uma posição iva a uma posição ativa no discurso, exercitada apenas em condições propícias? Dessas estratégias, entendo a apropriação do “rito de compadrio”, oferecido pela igreja católica brasileira, em sua incauta intenção de “salvar as almas” dos infiéis, como o que possibilitou a formação de fato
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de uma noção de “comunidade escrava”, pelo estabelecimento de redes de solidariedade que multiplicaram os laços de parentescos espirituais, dentro e fora do cativeiro, e ajudaram a preservar heranças culturais, para além das fronteiras dos plantéis (Paula, 2010). Podemos supor que os que soçobraram foram justamente aqueles que não conseguiram se inserir ou tecer relações suficientemente fortes, para assegurar sua pertença a uma construção narrativa a se retecer. Trata-se, aqui, como o entendo, de recordações e novos traços, criados no tempo de reconstituição do sujeito, pois o sujeito, como efeito de linguagem, não pode senão se reconstituir, enquanto re-petição do traço, sempre que as possibilidades de algum exercício pulsional inscrito em uma ordem simbólica se apresentem. Em termos de constituição subjetiva, pelo estudo de autores do campo da psicanálise, de Freud e de Lacan, podemos compreender as operações de fronteira entre os diferentes tempos que compõem distintas “versões de realidade”, às quais um sujeito é instado a construir, em seu processo cronológico de vida, como implicando sempre uma topologia “transicional”, em que as coordenadas interior-exterior, sujeito-objeto, eu-outro, e, ainda, o exercício de uma função nomeante, estão a se refazer. Desse precipitado de histórias, decantam-se as marcas que, sempre singularizadas pela história individual, têm escrito o texto psíquico no inconsciente dos corpos que a têm habitado no tempo. Dele, restam hoje fragmentos, os quais o trabalho clínico é potente ferramenta para acolher e quiçá permitir evidenciar os nexos que articulam no inconsciente, o individual e o coletivo, e o presente ao ado. Fragmentos que se articulam à contemporânea lógica neoliberal capitalista, cujo discurso ordena a sociedade de classes no mundo ocidental contemporâneo, e que prescreve o tecnicismo e o consumo sem fim de objetos para obturar o ponto de falta, justo esse que nos garante a condição de sujeitos. Afinal, é do presente ao ado que se produzem a história e a clínica. É de se esclarecerem aqui as peculiaridades que especificam um trabalho clínico que se situa no campo da atenção primária à saúde (APS). O que caracteriza a APS é o fato de ela estar na pressuposição de quatro atributos: porta de entrada, integralidade, longitudinalidade e coordenação do caso. Isso quer dizer, em síntese, que uma Unidade de Saúde de Atenção Primária tem a responsabilidade por seu paciente, e mesmo nas situações em que o referencie para outros serviços de outra complexidade, a coordenação do caso, entendido em sua abrangência, continua sendo prerrogativa dos profissionais dessa Unidade. A característica de longitudinalidade – que implica que uma pessoa será acompanhada em seu transcorrer de vida, enquanto moradora do território de abrangência – traz, consequentemente, uma nova inflexão no
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ritmo e no enquadre em que se processa um trabalho clínico. Se, além disso, levarmos em conta as migrações e as especificidades culturais, que orientam os sentidos atribuídos a um trabalho que demanda frequência e extensão temporal, como é o caso da psicanálise, podemos deduzir que todas essas peculiaridades podem engendrar novas formas de considerar e dispor do fator tempo. O fato de a temporalidade do inconsciente também não estar determinada por uma lógica linear tem nos levado a conceber o tempo, no que diz respeito aos tratamentos, como submetido a uma lógica própria, que também pode se mostrar operativa. Por exemplo, se um paciente “some” por um período, sabemos que ele pode retornar em outro momento (o que é bastante corriqueiro nesta clínica), e se ele puder se implicar em seu pedido de retorno, aquele momento anterior pode vir a ser significado por ele de alguma forma, configurando mesmo uma clínica do retorno. Uma clínica que atualiza a singularidade com que, no tempo presente, os seres humanos, um a um, damos conta da história individual e coletiva que nos constitui. Dessa clínica, trago aqui um caso, o qual desdobrou muitas questões para a tese. Vou chamar de Alisson o menino de oito anos, repetindo a 1ª série no ano de 2009, que chegou até mim em outubro desse mesmo ano, por um encaminhamento da escola, descrevendo-o como: “desmotivado, não retira a mochila voluntariamente, não leva o material escolar, apenas reconhece o alfabeto, brinca durante a aula, envolve-se em brigas, desrespeita a professora, faz gestos obscenos”. Quem vem na primeira consulta, depois de várias remarcações, é a avó, que também havia trazido o encaminhamento. Ela era bastante conhecida na Unidade de Saúde, por ter sido considerada a figura que “segurava a barra” de uma família bem envolvida com a criminalidade. Dos quatro filhos homens que teve, um foi morto durante a execução de um assalto; outro estava, à época, numa cadeira de rodas, pela mesma razão; o pai do menino estava preso por tentativa de assalto; e o último “trabalhava”, juntamente com o irmão, no métier que deve ser pronunciado com cautela. D. Rosa chega queixando-se, na entrevista, de que a mãe da criança deixa o cuidado dos filhos sempre com ela. Mas diz estar preocupada com Alisson, porque ele está muito gago, e que as crianças riem dele, que então briga ou se isola. Refere que o menino sofre com o fato de o pai viver preso, e conta que, no ano ado, seu filho estava em liberdade provisória, e Alisson, tendo escutado uma conversa deste com comparsas, pediu para o pai não fazer o assalto que planejavam, porque “sabia” que ele iria ser preso de novo – e isso foi justo o que aconteceu. Conta ainda que ultimamente o menino tem um índio como amigo imaginário, e, interagindo com este, entretém-se por horas a brincar com tampinhas e pauzinhos. Embora ela, a avó, seja negra, sua avó 179
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paterna era índia. D. Rosa queixava-se de cansaço, pois tomava conta dos outros netos também. Os filhos não a escutam, e “tanto que ela pedia para eles largarem esta vida de bandido, que só traz desgraças”. Achava que era por “essa angústia no peito” que teve que fazer a cirurgia cardíaca há dois anos ados, e que acabou parando seu coração pouco depois da época deste relato. O atendimento de Alisson foi muito irregular, tendo ele faltado muitas vezes, já que nenhum adulto se lembrava do compromisso, mesmo que levassem o dia e o horário anotados e o menino manifestasse claro interesse em vir. Por isso, insisti na manutenção do espaço, mandando, por várias vezes, hora marcada por uma agente de saúde e, mesmo assim, consegui vê-lo apenas seis vezes. Minhas anotações dos encontros com aquele menino franzino registraram o seguinte: Primeiro encontro- brinca com índios e arma cena de guerra, enuncia várias vezes que aqueles que são “sem cuidado” vão para o “comitê da morte”, buscando minha confirmação, a cada vez, por um “né?” e pelo olhar que me dirigia. Segundo encontro- chega chateado e, quando eu insisto, conta-me que gozaram dele na escola, por causa da gagueira. Brinca de “bem” contra o “mal”. Terceiro encontro- brinca que os “ancestrais” voltam do ado e aterrorizam as pessoas. Quarto encontro- sucedem-se no brincar cenas de graves massacres, acertos de contas entre bandidos, alguns amigos fazem “salvamentos”, uma enorme “boca mastigadora” ameaça a todos. No final, todos morrem. Quinto encontro- brinca de revolta dos “índios” contra os “portugueses”. Chamou-me atenção o fato de ele não ter gaguejado nesta sessão. Sexto encontro- no brincar de hoje, o “herói” é o “pobre” que reparte seus ganhos com os amigos e fica cada vez mais “rico”, derrotando os “homens ricos” na corrida de carrinhos, que sempre envolve um acerto de contas por dívidas não saldadas. Este é um caso que me parece muito rico na composição dos elementos que revela, e aqui apenas poderei explorar alguns. A primeira pergunta formulada, a partir dele foi: quem é o sujeito que fala aqui? Impressionou-me sobremaneira que uma criança que só conhecia as letras do alfabeto, conforme a professora, falasse em “ancestrais” e em “revolta dos índios contra portugueses”. O que possibilitava esse saber? Ele me fala vagamente que viu imagens em uns livros da escola. Eis que a criança “desinteressada” da professora revelava-se assim particularmente atenta ao que podia atribuir sentido para sua existência. A transmissão que se efetua pela avó, de sua herança negra e índia, parece ser mesmo a fonte que alimenta a tentativa de construir um mito
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organizador de uma “versão da realidade”, que o sustente subjetivamente. Sabemos que a imagem de uma mortífera “boca mastigadora” pode ser associada à fantasia terrorífica de ser devorado pelo Outro não barrado. Aqui se nos assoma que o Outro, em questão, é sobretudo a realidade de violência em que o menino está imerso. Como lidar com esse Outro absoluto? Ele bem que tenta se defender bravamente – cavou até um amigo imaginário na sua genealogia! O fato de ele não ter gaguejado, quando brincava de “revolta dos índios” – em que assume uma posição ativa no discurso (a produção de um ato de revolta) –, e o percurso que desenvolveu, em suas seis sessões de trabalho, evidenciam um movimento que vai construindo o lugar do eu e do outro, que lhe permite que vá se deslocando, da paralisia de um instante de ver, ver os “sem-cuidado” indo para o “comitê da morte”, a brincar de derrotar “os homens ricos”, e ser o “herói” entre os companheiros. Há, como se constata, movimento subjetivo em jogo, mas a luta é feroz e o desequilíbrio de forças é de fato obsceno. Alisson está situado no olho do furacão de uma engrenagem mortífera, engendrada por uma montagem perversa – construída no ritmo dos os das inter-relações das forças sociais na história –, que mastiga e tritura vidas, como uma imensa “boca mastigadora”. E, nesse sentido, a gagueira, ou seja, o vacilo de sua fala, pode bem ser pensado como a posição da própria linguagem nela. Em Alisson, a gagueira parece situar os imes de sua condição de alienação- separação ao Outro: seu isolamento, seu “mundo próprio”, seu “desinteresse” na aprendizagem podem ser aqui entendidos como tentativas de separação de uma alienação ao mortífero saber em comando, no qual os indivíduos são reduzidos a meros instrumentos de uma engrenagem, na qual a morte reina em antecipação. Afinal, Alisson “sabia” que o pai poderia ser preso, e “morrer” mais ainda para ele, se particie do assalto. A afirmação psicanalítica do inconsciente como o lugar do Outro adquire, aqui, pela perspectiva do caso, como o entendo, seu pleno estatuto. Uma topologia que dá a ver elementos de tempos remotos em encontro com o presente, criando uma figura inédita – singular e coletiva, ao mesmo tempo, pelo encontro da história de vida de um indivíduo com a história da sua coletividade, engendrando um sujeito que se situa em um ponto entre ambas. A clínica de saúde mental da APS, pelas peculiaridades acima apontadas, vem a ser um território fértil para acolher suas manifestações, pois ali o sujeito tem a possibilidade de retornar e tecer uma narrativa a várias voltas.
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 183-193, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
C"XKQNÙPEKC"PQUUC"FG"ECFC" FKC<"q"tcekuoq"ä"dtcukngktc3 Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi2
Tguwoq< Este texto aborda o racismo contra o negro no Brasil como um sintoma social. Partindo da concepção freudiana de que a cultura é fundada no assassinato do pai da horda e de que o sujeito psíquico é constituído no laço social, podemos pensar na crueldade como elemento constitutivo das formações sociais, e que cada sociedade engendra suas próprias figurações de violência. Rcncxtcu"ejcxg< racismo, sintoma social, violência, narcisismo. QWT"FCKN["XKQNGPEG<"tcekuo"kp"c"dtc|knnk"yc{ Cduvtcev< This text addresses the racism against black people in Brazil as a social symptom. From the Freudian conception that culture is founded on the murder of the father of the horde and the psychic subject constituted in the social bond, cruelty can be considered a constituent element of the social formations, and each society engenders its own figurations of violence. Mg{yqtfu< racism, social symptom, violence, narcissism.
Este texto é baseado em trabalho apresentado em 22 de junho de 2012 na 3ª fase do ciclo O racismo contra o negro no Brasil: questões para a Psicanálise, realizado pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. 2 Psicanalista; Membro de Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; Professora do curso de Psicanálise do mesmo Departamento e Coordenadora do núcleo de atendimento de famílias de Projetos Terapêuticos. E-mail:
[email protected] 1
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ste trabalho pretende pensar o racismo contra o negro como um sintoma coletivo, herança da escravatura das origens do Brasil e, como tal, atualização da violência constitutiva da sociabilidade brasileira. Partirei da leitura de dois dos chamados textos sociais de Freud e de alguns desdobramentos de seus argumentos para, em seguida, levantar ideias sobre a configuração que a violência racista ganha em nosso país. Em Totem e tabu, Freud nos apresentou um verdadeiro mito das origens, “o assassinato, ato único e singular, ao qual deu o estatuto de realidade como o marco zero da agem da natureza para a cultura” (Koltai, 2012, p. 88). Se antes teria havido a horda primitiva, com um chefe animal que tinha todo o gozo, com poder de vida e morte sobre os viventes, esse ato fundador gerou o contrato social. A premissa contida nessa narrativa é que o advento da cultura constitui fruto de uma conspiração, que o primeiro projeto comum, que instaura o que chamamos de humanidade, foi uma rebelião articulada através do ódio compartilhado. Quando Freud propôs que da morte do tirano teria surgido a lei que regula os laços entre os irmãos instaurou a figura do pai, ou de Deus, como elemento central da constituição simbólica. Daí que o laço social seria fruto da submissão à lei, que baliza as trocas libidinais e agressivas entre os semelhantes. Portanto a com-paixão, propriedade tão frequentemente ressaltada para falar da relação entre irmãos, guardaria toda a dimensão de ambivalência do laço com o outro: paixão compartilhada na cumplicidade amorosa, mas também no ódio. Ainda segundo essa perspectiva, as diversas formas de sociedade buscariam dirigir e limitar o exercício das trocas sexuais e agressivas entre os humanos, mas, no limite, isso é ingovernável. Diante da impossibilidade de suprimir a agressividade, cada cultura criaria suas vias de descarga e o caminho mais frequente tem sido direcioná-la para fora da comunidade. A imagem do “estrangeiro” como o inimigo seria um artifício, modo de defesa das coletividades, criado para reforçar a reunião entre os pares. Esse mecanismo de defesa dos grupos, Freud denominou como “narcisismo das pequenas diferenças”. A civilização adota, assim, uma dupla estratégia: impedir a agressividade de se exprimir entre os membros do grupo, reforçando, ao contrário, o vínculo libidinal e as identificações mútuas; e favorecer a manifestação da agressividade contra os outros grupos que, de adversários respeitáveis, tornam-se inimigos inferiores e causa de todos os males sofridos pelo grupo (Enriquez, 1990, p. 109).
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Jurandir Freire Costa, em seu ensaio sobre a concepção da teoria psicanalítica envolvendo o fenômeno da violência, ressalta a importância de diferenciá-lo dos conceitos de agressividade e de excesso pulsional. O fenômeno da violência não estaria à manifestação da agressividade, mas consistiria numa formação que envolve o enlaçamento da disposição agressiva com as exigências narcísicas de eliminar o outro. Diz o autor: não poderíamos falar de violência “sem o desejo de destruição, comandando a ação agressiva” (Costa, 2003, p. 43). Apoiados no argumento de Freud em Por que a guerra? podemos afirmar que violência não só não é um dado natural, mas é uma construção a serviço das necessidades de autoconservação dos indivíduos e dos grupos. As diversas sociedades têm sua escala de valores, com sua definição do que é ser bom ou ser mau, gerando suas com-paixões amorosas e odiosas, ou seja, criam vias para a expressão de amor, mas também da agressividade, a fim de fortalecerem os seus laços internos. Como argumenta Freud no texto acima citado, mesmo a instituição do Direito, que teria a função de regular os excessos e assegurar a igualdade, não alcança a inclusão de todos. Em primeiro lugar, porque a interdição à satisfação dos impulsos destrutivos nunca chega a eliminar sua pressão. Reprimidos, retornam. Em segundo lugar, quem faz as leis são os homens, e aqueles que têm maior reconhecimento e força dentro de uma comunidade são os que legislam e executam as normas que protegem seus interesses. Portanto, a lei deixa sempre como resíduo a marca do exercício de dominação. O uso da força persiste como elemento irredutível nas relações humanas. Sempre uns têm mais proteção e pertença, em detrimento de outros, e isso gera como consequência a designação daqueles que valem e os que não têm valor para o grupo, tornando estes últimos seus “bodes expiatórios”. É contra estes que é permitida a descarga de agressividade, pois os “sem visibilidade” são também “os sem direitos”, ando a ser desprezados e rejeitados. O que podemos depreender disso é que cada formação coletiva engendra seu alvo de violência, faz as suas vítimas. Não seria possível pensar uma proposta de organização social que pudesse erradicar o desprezo e a brutalidade entre os homens, mas isso não significa que não se possa intervir sobre os processos que levam a determinados modos e figurações que a violência toma, nos diversos sistemas e formações sociais. Essa concepção ética não naturaliza, não toma como imutáveis, as produções humanas, levando a pensar em sua dimensão política. Voltemos agora nossa atenção para a questão do racismo, como uma 185
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figura da violência. O psicanalista J. B. Pontalis, pensando sobre a persistência das ideias e das práticas racistas no mundo de hoje, em que a noção de raça biológica está superada, radicalizou o argumento freudiano, articulando-o com os fenômenos do estranhamento. Sua contribuição é chamar atenção para o elemento ional desse fato social e, como tal, absolutamente refratário aos apelos da argumentação. O ponto de origem dessa paixão estaria nos fenômenos primitivos de estranhamento e angústia intrínsecos às formações de identidade. Quando é que intervém a angústia diante do estranho? Quando o outro é simultaneamente parecido e diferente. Por isso é que considero falsa, ou pelo menos incompleta, a ideia aceita de que o racismo seria testemunho de uma rejeição radical do outro, de uma intolerância essencial às diferenças, etc. Ao contrário do que se acredita, a imagem do semelhante, do duplo, é infinitamente mais perturbadora do que a do outro (Pontalis, 1988, p. 36)
A angústia adviria do encontro com os traços excedentes ao eu, do outro lado do espelho, que são tidos como incompatíveis com o “si mesmo”, e o racismo seria uma forma de manifestação da angústia. Seria o efeito da transformação da angústia em ódio e sua projeção em um traço de diferença em um semelhante. Não odiamos os animais, mesmo que eles nos produzam medo. Odiamos o mórbido, o feio, o sujo, o malvado, refletido no igualmente humano. O racismo se alimenta do que aparece reproduzido, mas radicalmente recusado na inscrição da própria identidade. Se a relação com o outro-semelhante é problemática para todos nós humanos, o racismo faz da cisão do caráter paradoxal, sempre presente entre a mesmidade e a alteridade, seu ponto de partida. Apresenta uma saída, na direção de desprezar, de expelir para fora de si aquilo que causaria dor e retornaria como sinistro. Projetar o estranho é uma solução da economia psíquica, e o mecanismo do ódio racista tem na estrutura da paranoia o seu modelo. A rejeição a uma “cara que não agrada”3, na qual não me reconheço, é
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Título do capítulo acima citado de J.B. Pontalis.
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uma estratégia de autopreservação, ou do narcisismo, através do deslocamento na cena social daquilo que não é elaborado entre o “si” e o “si mesmo”. Trata-se de um fenômeno de massa, em termos freudianos ou, em outros termos, de uma formação ional. A história é farta de situações que nos apresentam o poder de mortificação de ódio compartilhado. Segundo Renato Janine Ribeiro, em A dor e a injustiça, a formação do Brasil baseou-se em dois traumas coletivos: o primeiro estaria ligado à violência da exploração colonial e o segundo se refere à crueldade inerente à escravidão, que sustentou o processo de formação do Estado nacional, no período imperial. O fato de o Brasil, como nação, ter nascido dividido entre “homens superiores e livres” e “seres inferiores cativos” inscreveu uma marca. O outro, diferente pelos seus traços, pela cor, pelos cabelos, por sua origem geográfica, carrega um estigma instalado no lugar do estrangeiro e escravizado pelos “brasileiros” descendentes dos europeus. Recorro às palavras do antropólogo: Com o descobrimento da América e da África, os povos autóctones recém descobertos receberam as identidades coletivas de “índios” e “negros”. A questão colocada tanto pelos teólogos ocidentais dos séculos XVI e XVII, quanto pelos filósofos iluministas do século XVIII, era saber se esses índios e negros eram bestas ou seres humanos como os europeus. Questão cuja resposta desembocou numa classificação absurda da diversidade humana em raças superiores e inferiores. Daí a origem do racismo científico ou racialismo, que interfere até hoje nas relações entre seres e sociedades humanos (Munanga, 2003, p. 5)
No regime político, social e jurídico da escravatura, a violência contra o negro não só era permitida, mas recomendada. Tínhamos, então, uma configuração social em que havia homens livres e cativos, e “a lei” regulava os direitos de quem, inclusive, podia dispor integralmente dos corpos e das vidas dos cativos. A escravidão do negro no Brasil foi oficial até 1888, e o processo de escravização se dava como uma política de desenraizamento, de dessocialização que visava despersonar (Arantes, 2012, p. 2) os escravizados. Segue um trecho de O trato dos viventes, de Alencastro (2000, p. 148), no qual aparecem dois testemunhos do modo pelo qual os africanos eram recebidos em sua chegada: 187
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...desembarcado nos postos da América portuguesa, mais uma vez submetido à venda, o africano costumava ser surrado ao chegar à fazenda. “A primeira hospedagem que [os senhores] lhes fazem [aos escravos], logo que comprados aparecem na sua presença, é mandálos açoitar rigorosamente, sem mais causa que a vontade própria de o fazer assim, e disso mesmo se jactam [...] como inculcando-lhes, que só eles [os senhores] nasceram para competentemente dominar escravos, e serem eles temidos e respeitados”. Tal é o testemunho do padre e jurista Ribeiro Rocha [1758], morador da Bahia, no seu tratado sobre a escravatura no Brasil, publicado em meados do século XVIII. Cem anos mais tarde, o viajante francês Adolphe d’Assier (1864) confirmava a prática de espancar os escravos logo de entrada, para ressocializá-los no contexto da opressão nas fazendas e engenhos do Império. Método de terror luso-brasílico, e mais tarde autenticamente nacional, brasileiro, o choque do bárbaro arbítrio do senhor – visando demonstrar ao recém-chegado seu novo estatuto subumano.
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Nossa formação nacional, ou nossa representação de nação, foi marcada por uma sociabilidade e uma economia sustentadas na violência racista, como está descrito acima. Os escravizados eram sequestrados, vendidos nos portos e tratados como mercadoria e força de trabalho barata. Para isso, foram instituídos procedimentos de brutalidade que se constituíam em uma política de desumanização sistemática. ados mais de 100 anos do final da escravidão, a ordem jurídica não mais sustenta a desumanização dos brasileiros negros, mas algo do estranho permanece projetado neles. A abolição da escravidão trouxe um grande contingente de “novos brasileiros”, ou seja, os ex-escravos foram incorporados à condição de brasileiros. Porém, isso se deu através de uma política de miscigenação que se constituiu como poderoso instrumento de hierarquização e estratificação social. A política do “embranquecimento” ou “branqueamento” da população, conduzida ativamente pelo Estado brasileiro, estabeleceu uma nova modalidade de racismo à brasileira. No processo de transformação de sociedade rural em sociedade industrial, na República, tivemos o início de um processo irreversível, até hoje, que permitiria a ascensão social desses “novos brasileiros”, desde que assimilassem as condutas e atitudes da população branca, não só do ponto de vista estético, como também cultural. Tendo como ado a longa e humilhante trajetória escravista, a assimilação dos comportamentos e estéticas do branco era vista pelos próprios negros como uma saída da condição de escravo e como oportunidade de
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mobilidade social, engendrando o desprezo a sua origem africana. Ou seja, ao assimilarem os valores sociais e morais da ideologia de branqueamento, alguns negros avaliavam-se pelas representações negativas construídas pelos brancos. A mistura racial, com vistas ao branqueamento, até hoje, produz seus efeitos e ratifica a hierarquização e valorização negativa da identidade negra. Vejamos, mais uma vez, o que nos diz o antropólogo Kabengele Munanga: A história da emigração africana é uma história totalmente diferente da história dos emigrados europeus, árabes, judeus e orientais que saíram de seus respectivos países, de acordo com a conjuntura econômica e histórica interna e internacional que influenciaram suas decisões para emigrar. Evidentemente, eles também sofreram rupturas que teriam provocado traumas, o que explicaria os processos de construção das identidades particulares como a “italianidade brasileira”, a identidade gaúcha, etcetera. Mas, em nenhum momento, a cor de sua pele clara foi objeto de representações negativas e de construção de uma identidade negativa que, embora inicialmente atribuída, acabou sendo introjetada, interiorizada e naturalizada pelas próprias vítimas da discriminação racial (2003, p.1-2).
Ainda segundo o antropólogo (1999), o racismo à brasileira é hoje um crime perfeito. As crenças da democracia racial e da mestiçagem encobrem, mascaram a brutalidade do cotidiano. As representações negativas estão enraizadas no imaginário social e os golpes sofridos no dia a dia por negros e não brancos frequentemente caem na condição de “não existência”, pelo seu desmentido no discurso coletivo. Além de tudo, a falta de nome e de issão do racismo no Brasil confisca a condição de pensamento e mesmo de defesa contra as palavras e os gestos violentos. Resta em seus corpos a marca dolorosa e enclausurada da brutalidade. Marcas que reavivam as marcas transmitidas pela memória de várias gerações de nosso ado escravocrata. Somos, todos nós brasileiros, afetados pelos crimes do ado e dos atuais, tanto brancos, como negros ou de qualquer outra coloração. Mas, como pensar os efeitos mortíferos do pensamento racista sobre a subjetividade dos negros? Jurandir Freire Costa, em seu prefácio ao trabalho de Neuza Santos, 189
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Tornar-se negro, localiza justamente no âmbito da constituição de identidade e do valor atribuído a si mesmo, os transtornos pelos quais am os negros numa sociedade que tem no branco o seu ideal. Num país constituído por maioria negra ou mestiça, a branquitude faz da brancura uma imagem fetiche. O ciclo de violência se realiza com a introjeção desse ideal, que leva o sujeito negro a desejar um futuro identificatório antagônico em relação à realidade de seu corpo! Sendo o “eu” antes de tudo uma representação corporal, como se constitui o projeto pessoal, o vir-a-ser de um sujeito que tem na realidade e na aparência do corpo os traços que visa apagar? Diante do ideal branco, o corpo negro pode ser vivido como uma ferida aberta ou mesmo um objeto perseguidor. O crime perfeito se consuma justamente quando o negro busca se branquear, o que, no limite, é a negação de si mesmo. Um desejo que deságua no desejo da própria extinção. A dor em carne viva desses traumas silencia, grita e chora. A estratégia de sobrevivência psíquica, muitas vezes, captura o pensamento no trabalho psíquico de afastar o sofrimento. Por outro lado, a denegação do racismo no discurso corrente também imputa a dúvida quanto à realidade da violência de gestos e falas cotidianas que reafirmam a estratificação social. O desmentido, mas atuado nas ruas, nas portarias dos prédios, nos lugares s aos brancos, pela exclusão social, pode levar ao limite da experiência de desrealização. Falar disso e dar voz àquilo que está emudecido é movimentar a esfera das representações, de construção e desconstrução das imagens, testemunhar e tratar desse pesadelo social. A violência nossa de cada dia, do “racismo cordial” típico da brasilidade, nega a negritude e mantém o negro na condição de vítima da violência. As políticas dos movimentos negros afirmam a negritude e apresentam outras linhas de força para além da dor, pela adoção de um projeto de identificação e reconhecimento social através da valorização de seus traços. Essa resposta, embora necessária, ainda permanece no âmbito das identidades, e a afirmação de identidade, segundo nossa argumentação, tem como contraponto a violência, pela necessidade da marcação das diferenças na função de fronteira. Essa política é uma política importante, por seu caráter de dar visibilidade e reconhecimento do lugar social do negro, mas não resolve a questão do racismo. Fica um desafio, que é um desafio contemporâneo colocado para toda a ação política de todos os cantos do mundo: pensar o contrato social para além da regulação de um conjunto de indivíduos articulados em torno da identidade e contemplar uma proposta de laço social e de direitos universais para além das defesas de categorias identitárias, seja de sexo, de raça, da cultura, ou
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de classe social. Termino na aposta do uso da palavra que fala, testemunha, ultraa a dor, gera movimentos significantes, resgatando a língua em sua função de ferramenta cultural, com sua qualidade de desenhar outros destinos. Seguem as palavras de Cuti (2007, p.53-54), um poeta. QUEBRANTO às vezes sou o policial que me suspeito me peço documentos e mesmo de posse deles me prendo e me dou porrada às vezes sou o zelador não me deixando entrar em mim mesmo a não ser pela porta de serviço às vezes sou o meu próprio delito o corpo de jurados a punição que vem com o veredito às vezes sou o amor que me viro o rosto o quebranto o encosto a solidão primitiva que me envolvo com o vazio às vezes as migalhas do que sonhei e não comi outras o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristezas um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto depois um imperador deposto a república de conchavos no coração e em seguida uma constituição que me promulgo a cada instante
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também a violência dum impulso que me ponho do avesso com os de cal e gesso chego a ser às vezes faço questão de não me ver e entupido com a visão deles me sinto a miséria concebida como um eterno começo fecho-me o cerco sendo o gesto que me nego a pinga que me bebo e me embebedo o dedo que me aponto e denuncio o ponto em que me entrego. às vezes!...
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 194-202, jul. 2011/jun. 2012
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RQFGT"G"XKQNÙPEKC"PQ" FKUEWTUQ"ECRKVCNKUVC3 Rosana de Souza Coelho2
Tguwoq< o artigo toma como pano de fundo as relações de trabalho contemporâneas, para pensar a incidência do discurso capitalista nessas relações. Expõe brevemente as mudanças socioeconômicas alavancadas pelo capitalismo pósmoderno, destacando a hegemonia do discurso gerencialista. Por fim, analisa as formas pelas quais o poder e a violência são exercidos nesse discurso, assim como os modos de regulação do gozo, à luz da categoria de discurso em Lacan, utilizando, para isso, o discurso do mestre e o discurso do capitalista. Rcncxtcu/ejcxg< poder, violência, gozo, discurso, capitalismo. RQYGT"F"XKQNGPEG"KP"VJG"ECRKVCNKUV"FKUEQWTUG" Cduvtcev< The article takes as its background the contemporary labor relations to consider the incidence of the capitalist discourse in these relationships. Briefly presents the socio-economic changes leveraged by postmodern capitalism, emphasizing the dominance of the management discourse. Finally, it analyzes the exercises of power and violence present in this discourse, as well as the way to regulate the enjoyment through the category of speech in Lacan, using, for this, the Master’s Discourse and the Discourse of the Capitalist. Mg{yqtfu< power, violence, enjoyment, discourse, capitalism.
O presente artigo é uma versão do trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais, em: Porto Alegre, setembro de 2011. 2 Psicanalista; Mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Membro do Instituto APPOA; Professora no CESUCA/Faculdade INEDI. E-mail:
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Poder e violência no discurso capitalista
[...] Eu não espero pelo dia / Em que todos / Os homens concordem/ Apenas sei de diversas / Harmonias bonitas / Possíveis sem juízo final/ Alguma coisa / Está fora da ordem / Fora da nova ordem / Mundial [Fora da ordem, Caetano Veloso].
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urante o encontro de um grupo de estudos3, uma participante fala da situação na empresa onde ela trabalha, uma empresa pública de serviços. Conta-nos que uma colega a procurou e, aflita, queria ajuda para “escapar” de um convite feito pelo chefe, para que fosse a uma festa em comemoração a metas atingidas por sua equipe e na qual ela e seus colegas de setor receberiam um prêmio. Prêmio que essa pessoa não identifica como resultado de seu trabalho, mas como uma forma de a empresa promover e manter a adesão às suas metas. A moça resiste, diz que não vai, ao que o chefe insiste e, por fim, lhe diz: “Se tu não fores, vai se arrepender...porque a festa será muito boa”. Ela continua argumentando que não quer, que não pode ir. O chefe pega o telefone e, na sua frente, diz a quem está do outro lado da linha para reservar três convites, o da moça e de suas duas filhas. O que até então era um convite configura-se claramente em uma ordem. “Por que tanta questão de que a moça vá a esta festa?”, indaga outro participante do grupo. “Porque nada pode estar fora da ordem!”, lembramos todos do refrão da música de Caetano Veloso. Proponho pensar que a palavra ordem adquire, neste contexto, um duplo sentido: não só uma ordem que o chefe dá à moça, a qual ela parece se ver obrigada a cumprir, mas também uma ordem que penetra no tecido social e encharca suas fibras, impondo suas cores às relações de trabalho pós-modernas. Refiro-me à ordem capitalista. De fato, a pós-modernidade testemunha a hegemonia do capitalismo. Hegemonia sempre reinventada num esforço canino para não abrir mão de sua lógica utilitarista. Harvey (1992) já mostrara seu caráter processual e o quanto a sua lógica expansionista e imperialista abarca todas as áreas da vida cultural. Como diz Harvey, o capital é um processo, e não uma coisa. Um processo que mascara e fetichiza, alcança crescimento mediante a destruição criativa, cria novos desejos e necessidades, explora a capacidade do trabalho e do desejo humanos. A voracidade com que ocupa espaços e a surdez com que nega seus limites e seus efeitos encobrem os paradoxos nocivos que ele produz,
Trata-se do grupo de estudos que coordeno na Associação Psicanalítica de Porto Alegre e cuja temática é liderança e poder nas relações de trabalho.
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Rosana de Souza Coelho
cujos reflexos mais visíveis encontramos na relação entre capital e trabalho. Sua marcha, sempre adiante, vem fazendo com que as fronteiras entre a esfera pública e a esfera privada fiquem cada vez mais indiferenciadas. O declínio da industrialização alarga o setor de serviços, e o acelerado desenvolvimento tecnológico vai configurando formas de trabalhar que privilegiam um tipo de trabalho dito imaterial (Lazzarato; Negri, 2001). O valor recai então no conhecimento, na informação, na comunicação e nas relações intersubjetivas. A prescrição inerente à organização científica do trabalho a a ter como foco de organização e comando não mais as tarefas, mas a subjetividade do trabalhador, aquilo que ele pode produzir ao “se dar” à sua tarefa (Gorz, 2005). Contudo, à medida que a lógica capitalista se expande, suas contradições se tornam mais aparentes, fazendo com que ela precise ser interiorizada, de tal forma que se acredite nela como condição de reprodução e perpetuação dos efeitos que lhe são favoráveis, como a única ordem possível ou mesmo desejável. Para isso, poder e saber intensificam sua intimidade e exibem um vestuário discursivo up-to-date no qual o poder é mais sedutor, mais difuso, mais sutil, tanto mais eficaz quanto mais interiorizado. Se a ética e o saber da religião protestante foram o ancoradouro seguro para o engajamento e a motivação necessários à acumulação capitalista, a queda de Deus e o reinado da ciência, que fundaram a modernidade e ainda perduram na pós-modernidade, têm na gestão uma “figura do poder” (Enriquez, 2007) em que a repressão é mais sutil, mais apoiada em discursos e em injunções paradoxais4. Gaulejac (2007) aponta que o gerencialismo se revela em um modelo cujo caráter é quantofrênico5, o qual não está a serviço de medir para melhor compreender, mas de compreender apenas aquilo que pode ser medido. A fascinação pelo pragmatismo leva ao “culto” da eficácia da ação, desprezando qualquer proposta que tenha como parâmetro a reflexão. Seu universo é eminentemente experimental, numa perspectiva funcionalista, normativa e totalizante. Veiculado pela literatura empresarial destinada a executivos, o discurso gerencialista não se limita ao saber puramente técnico. É antes uma
Para a apreciação mais detalhada sobre o discurso e o poder gerencialista, permito-me remeter o leitor a minha dissertação de mestrado. COELHO, Rosana. Raciocina... mas obedece!: poder e desejo nas relações de trabalho. Porto Alegre: UFRGS, 2011. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional), Faculdade de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 5 A expressão é utilizada por Gaulejac para se referir a um modelo que prima pela quantificação e pelo pragmatismo. Ver Gaulejac (2009) Op. cit. 4
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literatura normativa que diz como deve ser, e não como é (Gaulejac, 2007). Faz-se a gestão das competências do trabalhador tendo como parâmetro a “qualidade total”. É imprescindível ter iniciativa, ser participativo e dinâmico, comprometido com metas estabelecidas por outros e realizá-las com “erro zero”! No mundo do trabalho construído por esses discursos, as ações são norteadas por preceitos que enfatizam a importância de um sentido compartilhado, mas desde que esse seja único, uníssono. Ao primado dos objetivos financeiros, soma-se a produção da adesão e a mobilização psíquica dos sujeitos. Assim, a gestão mobiliza e solicita, principalmente, desejos. Mas o horizonte prescritivo e totalizante que tais formações discursivas comportam nos deixa ver um imaginário que insufla a representação de um mundo idealizado, onde o conflito e a falha devem ser para sempre banidos. Nesse exercício de poder-saber vemos a fantasia de um desejo que deve ser satisfeito, em que saber e verdade coincidem. A psicanálise, com Lacan, não fez ouvidos moucos aos efeitos do capitalismo. Em sua conhecida conferência de 1972, em Milão, ele apontou o caráter autofágico do capitalismo com uma de suas criativas frases: “Isso se consome, se consome tão rápido que se consuma”6. É nessa conferência que ele propõe o discurso do capitalista
com o qual, penso, ele quis reescrever o discurso do mestre
para apontar os efeitos do capitalismo avançado no laço social. No Seminário XVII, O avesso da psicanálise ([1969-1970] 1992), onde formula os quatro discursos (discurso do mestre, discurso da histérica, discurso da universidade e discurso do analista), Lacan não faz referências diretas a um quinto discurso. Entende-se que ele veio elaborando um quinto discurso – denominado discurso do capitalista – nos anos seguintes, vindo a formalizá-lo em 1972, em uma conferência em Milão. Ver “Milan, 12 de maio de 1972”. Em Lacan em Italia. Milano: La Salamandra, 1972.
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Ao grafar o discurso do capitalista, Lacan o faz reescrevendo os lugares que S1 e o sujeito barrado ocupavam no discurso do mestre. Agora é o S barrado que se encontra no lugar de agente, mas, ao invés das barras que marcavam a disjunção entre o sujeito e o objeto a, Lacan escreve uma seta que parte do objeto para o sujeito. Ou seja, o objeto a continua no lugar da produção, e a seta o remete ao S barrado, nos permitindo pensar que é o objeto que “produz” o sujeito. No discurso do capitalismo contemporâneo, a verdade do sujeito e de seu objeto de gozo é marcada pelo atravessamento da lei do mercado na lei do desejo. Na pós-modernidade é o mestre-capitalista quem governa, imprimindo uma política que revela um apelo ao gozo, o que não é sem efeitos para a subjetividade. É do fascínio que o sujeito encontra nessa miragem de completude e totalidade que o capitalismo vem angariando forças para alçar o discurso gerencialista a saber hegemônico. A gestão mais insidiosa da subjetividade parece favorecer o que Calligaris (1986) identifica como a inserção do sujeito em uma montagem perversa na tentativa de uma “saída” que lhe permita certa tranquilidade, o alívio de ar-se em um “saber sabido” e compartilhado. Zizek (1991) já nos lembrou que é próprio da lógica totalizante aproximar lei e gozo às custas do permanente recalque das relações de dominação e submissão que persistem nas relações intersubjetivas. “É como a propaganda do Mastercard: não tem preço”: enunciação que escutei de mais de um dos sujeitos de pesquisa, ao se referirem à satisfação pelos resultados de sua gestão7. No capitalismo contemporâneo, o objeto de consumo e o objeto do desejo se fundem para que o sujeito nada queira saber do preço a pagar pela opção de implicar-se em seu desejo. O discurso neoliberal autoriza a gestão do mal-estar através da livre escolha e disposição de fetiches para tentar “dar cabo” da angústia. Não é difícil perceber que, principalmente no mundo do trabalho, o “bastão de comando” pode muito bem ser um dos representantes mais eficazes, permitindo que se justifique e se banalize certa “confusão” entre o apetite de gozo pessoal e o simbólico da
Aqui refiro-me ao sujeito como o concebe a psicanálise, sujeito do inconsciente. A “fala” que trago é recolhida da escuta no trabalho de campo que fundamentou minha pesquisa de mestrado, a qual sustentou-se no método e na ética da psicanálise. Conforme dissertação citada, na nota 4, mais especificamente o capítulo 2. Utilizo enunciação acompanhando a distinção entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação feita por Joel Dor em Introdução à leitura de Lacan: estrutura do sujeito. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. v.2. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. Lacan aborda essa distinção em uma agem da lição de 22/04/1964 do seminário XI e relaciona a enunciação à emergência do desejo: “Tudo que anima, o de que fala toda enunciação, é desejo” (Lacan, [1964] 1990, p. 134).
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investidura. Diante da autorização sedutora do superego pós-moderno, que ordena “Goza!”, reconhecemos o desafio do exercício de um poder que aceite um quantum de subtração de gozo, face Outra do desejo, sempre ávido pelo excessivo. Quanto a isso, lembremos, com Soueix (1997), que a categoria de discurso em Lacan pretende indicar a maneira como o sujeito se situa em relação ao seu ser. É, portanto, uma forma de regular o gozo. Apontei acima que, diferentemente do discurso do mestre, a barra que separa sujeito e objeto está ausente no discurso do capitalista e, em seu lugar, Lacan faz uma seta que parte do objeto em direção ao sujeito barrado. Chemama (1997) destaca esse aspecto, entendendo que Lacan pretendeu assinalar que, em tal discurso, toda separação entre sujeito e objeto é evitada. Propõe então lermos a→S, como “o sujeito diretamente comandado pelo objeto que, no entanto, ele produz” (Chemama, 1997, p. 33). Lacan, no seminário O avesso da psicanálise ([1969-1970] 1992) – portanto, pouco antes da Conferência de Milão –, parece antecipar essa leitura, destacando a incidência do consumo e do saber (assimilado à verdade) como mercadoria enquanto ícones do capitalismo. O senhor, no capitalismo contemporâneo, é o próprio capital em sua represen-tação mais sublime: a do “divino mercado” (Dufour, 2009). Quanto a isso, ouçamos o próprio Lacan: [...] o que se opera entre o discurso do senhor antigo e o do senhor moderno, que se chama capitalista, é uma modificação no lugar do saber. [...] Não se percebe que o que lhe é restituído não é, forçosamente, a sua parte? Seu saber, a exploração capitalista efetivamente o frustra, tornando-o inútil. Mas o que lhe é devolvido, em uma espécie de subversão, é outra coisa – um saber de senhor. E é por isto que ele não fez mais do que trocar de senhor. [...] O sinal da verdade está agora em outro lugar. Ele deve ser produzido pelo antigo escravo, isto é, pelos que são eles próprios produtos, como se diz, consumíveis tanto quanto os outros. Sociedade de consumo, dizem por aí. Material humano, como se enunciou um tempo – sob os aplausos de alguns que ali viram ternura (Lacan, [1969-1970] 1992, p. 32-33, grifado no original).
Ora, se na época fordista o “produto material” sobressaía, a ênfase em aptidões relacionais e comunicacionais traduzida pela hegemonia do trabalho imaterial faz da subjetividade um “produto imaterial” de destaque, mas, para que o sujeito se torne uma “peça” importante, indispensável. Penso que, ancorandose na racionalidade capitalista pós-moderna, o discurso gerencialista incide 199
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diretamente na subjetividade com a intenção de instrumentalizá-la. E dizendo isso pretendo tocar no segundo ponto contemplado no título deste artigo: a violência no discurso capitalista. Para tal, inicialmente, faço uma breve visita a um ensaio de Hannah Arendt (1994) em que ela discorre sobre a violência, para ali recolher duas pontuações que permitem um diálogo afinado com a psicanálise. A primeira decorre de precisas críticas que ela tece justamente às teses científicas que pretendem advogar a favor da concepção de violência como ato irracional e, para isso, utilizam-se do grosseiro argumento de que o ser humano compartilha propriedades com algumas espécies do reino animal. A estas, ela responde de forma peremptória que “é exatamente o dom adicional da razão que torna o homem uma fera mais perigosa” (Arendt, 1994, p. 47). Resposta que podemos reler, à luz do que nos ensina a psicanálise, e dizer que o argumento de que o ser humano é um ser racional só se sustenta às custas de denegar que é justamente o uso da razão que pode nos tornar perigosamente irracionais. A outra pontuação, que também julgo valiosa para o tema do qual me ocupo, diz respeito ao que Arendt sublinha como sendo o caráter instrumental da violência. Sobre isso, ela diz que, como todos meios, a violência sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja. O ato violento sempre precisa de implementos, tais como a tecnologia e a fabricação de instrumentos, meios pelos quais a violência pode se afirmar. Precisa de discursos, reitero, para acompanhar Arendt. Costa (1986) também visita Arendt, para pensar a violência desde a visada psicanalítica, e ilumina outro ângulo da querela que pretende assimilar violência e irracionalidade. A esse respeito, conclui que “a aparente irracionalidade do comportamento violento deve-se ao fato de que a razão desconhece os móveis verdadeiros de suas intenções e finalidades” (Costa, 1986, p. 29, grifo meu). Para Costa, a violência é irracional quando e porque se dirige a objetos substitutivos. Ele afirma que a aparente irracionalidade de um ato violento não desfaz, por si só, o “mal-entendido” que pretende justificar a violência como algo da ordem do instinto e, portanto, natural e inevitável, propondo pensarmos a violência como o emprego desejado da agressividade (Costa, 1986, p. 30, grifo meu). Com o autor, penso que os objetos, motivos e finalidades de um ato violento podem ser “racionalizados”, isto é, imputados a pessoas, coisas ou fenômenos substitutivos. Contudo, isso não atesta a origem irracional da violência humana, antes, mostra que ela porta a marca de um desejo (Costa, 1986, p. 30, grifo meu). Desejo que funda o sujeito cujo efeito não é outro senão aquele que emerge de um laço discursivo (Lacan, [1975-1976] 2007). Discurso que, no capitalismo pós-moderno, ao circunscrever seu domínio de sociabilidade, lucra
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com a opção de substituir a coerção explícita por regulação mais insidiosa da subjetividade, obtida pela via do domínio instrumental (Peixoto Junior, 2003). Exercício de poder tanto mais eficaz quanto mais invisível, violência que se instrumentaliza numa mescla de desejo e gozo. Para concluir, lembro que Freud, corajosamente, apontou nosso desamparo diante do mundo que nos cerca, do nosso corpo que fenece e do outro que “arranha” nosso narcisismo (Freud, [1930] 1976). Em seu ensino, Lacan assinalou que a entrada na linguagem não é sem consequências, nos mostrando que o real pode ensejar a violência na forma de uma possível resposta do sujeito em determinado laço social, notadamente quando falta o reconhecimento da palavra. Apontamentos que utilizo para “ler” os efeitos do discurso capitalista na contemporaneidade, mas também para considerar que, não obstante o triunfo da técnica, esse algo que resta e insiste na relação entre os homens é justamente o que pode nos convocar a ressituar o sujeito e o desejo como elementos indissociáveis a uma ética e uma política que resistam à instrumentalização social do gozo. É por essa via que a psicanálise pode contribuir para uma gestão do mal-estar (Birman, 2006) que não se recuse a pôr em jogo a heterogeneidade entre vida coletiva e desejos singulares, mas utilize essa heterogeneidade como reinvenção de novas formas de trabalhar, amar e viver. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. BIRMAN, Joel. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. CALLIGARIS, Contardo. Perversão 6 um laço social? Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan, 1986. CHEMAMA, Roland. Um sujeito para o objeto. In: GOLDENBERG, Ricardo. Goza! capitalismo globalização psicanálise. Bahia: Ágalma. 1997. COELHO, Rosana. Raciocina... mas obedece!: poder e desejo nas relações de trabalho. Porto Alegre: UFRGS, 2011. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional), Faculdade de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. COSTA, Jurandir Freire. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2. ed., 1986. DOR, Joel. Introdução à leitura de Lacan: estrutura do sujeito. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. v.2. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. DUFOUR, Dany-Robert. O divino mercado. Conferência. In: http://www.rj.com.br/imagenscadernos/caderno23_pdf/09-O%20DIVINO%20MERCADO_DANY-ROBERT%20
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 203-209, jul. 2011/jun. 2012
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RQN¯VKECU"TGRCTCVłTKCU"G" TGEQPEGKVWCÑ’Q"FQ"FQ"GO" FGNKVQU"FG"NGUC/JWOKFCFG<" ânkug"fg"wo"ecuq Fabiana Rousseaux1
Tguwoq<"A partir do trabalho realizado no Centro de Assistência a Vítimas de Violações de Direitos Humanos “Dr. Fernando Ulloa”, da Secretaria de Direitos Humanos, enfrentamos a necessidade de uma reconceituação da ideia de dano, em delitos de lesa-humanidade, a partir de uma experiência de trabalho que demonstra a impossibilidade de utilizar categorias clínicas, derivadas dos manuais de psiquiatria imperantes na época, para avaliar os danos que se depreendem desses particulares delitos. Para dar conta disso, trarei o recorte das coordenadas históricas de um caso que demonstra como as políticas de reparação promovidas ou canceladas pelos Estados incidem sobre a construção de um discurso ético-científico. Rcncxtcu/ejcxg<"reparação, dano, lesa-humanidade. TGRCKTKPI"RQNKVKEU"F"TG/EQPEGRVWCNK\CVKQP"QH"FCOCIGU"KP" ETKOGU"CICKPUV"JWOKV[<"cn{uku"qh"c"ecug Cduvtcev< From the work done at the assistance to the victims of the human rights Center “Dr. Fernando Ulloa”,of the human rights secretariat, we faced the need of a re-conceptualization of the idea of damage in crimes against humanity, from a work experience that shows the impossibility of using clinic categories, derived from psychiatric manuals, prevalent at the time, to evaluate the damages that were inferred from this particular crimes.To solve this,I will bring the snippet of the historical coordenades of a case that shows how the reparation policies promoted or canceled by the state affect the construction of an ethic-scientific speech. Mg{yqtfu< reparation, damage, against humanity.
1 Psicóloga, graduada na Universidade de Buenos Aires; Diretora do Centro de Assistência a Vítimas de Violações de Direitos Humanos Dr. Fernando Ulloa, da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério de Justiça e Direitos Humanos, Argentina. E-mail:
[email protected]
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partir do trabalho realizado no contexto do Centro de Assistência a Vítimas de Violações de Direitos Humanos “Dr. Fernando Ulloa”, da Secretaria de Direitos Humanos/Buenos Aires/Argentina, enfrentamos a necessidade de uma reconceituação da ideia de dano, em delitos de lesa-humanidade, a partir de uma experiência de trabalho que nos devolve, repetidas vezes, a impossibilidade de utilizar categorias clínicas, derivadas dos manuais de psiquiatria imperantes na época, para avaliar os danos que se depreendem desses particulares delitos. Para dar conta disso, trarei o recorte das coordenadas históricas de um caso que foi paradigmático durante a década de 90, na Argentina, e que demonstra como as políticas de reparação promovidas ou canceladas pelos Estados incidem sobre a construção de um discurso ético-científico, já que os processos clínicos podem – através de suas leituras e construções narrativas – anular os processos históricos, com sua consequência direta sobre os sujeitos: anular também o processo de reparação do que foi danificado. O tratamento institucional que às vezes recai sobre esses temas pode provocar a forclusão de um fato central, que é a responsabilidade enquanto representação de uma função pública, a qual cada profissional encarna no momento de emitir parecer técnico sobre o dano ou sobre o estado de saúde mental do sujeito cuja vida foi arrasada pela violação sistemática de direitos humanos. Apesar de ter recebido a autorização dos afetados para publicar seu caso, não vou dar a conhecer nem a identidade deles, nem a das instituições que intervieram. Interessa-me antes analisar as “coagulações” institucionais que derivam de práticas repetitivas ligadas a certas significações da “saúde mental”. Muitos de vocês recordarão a história que teve importância midiática, em épocas em que os horrores cometidos pelo terrorismo de Estado saltavam à luz na Argentina, inscrevendo o que depois ou a ser chamado “show do horror”, pelo tratamento obsceno e sem véu que a exumação da memória do ocorrido teve por parte dos meios de comunicação. Em meio a essa lógica, sustentada e aprofundada anos mais tarde, a partir do próprio Estado, na infausta década de 90, duas crianças, gêmeas, que haviam sido apropriadas por um ex-subcomissário e sua esposa, apareciam por todos os canais de televisão, dizendo que “queriam continuar ao lado de seus apropriadores”. O debate televisivo deu lugar a tudo. E com isso me refiro a essa dimensão do “tudo”, em que a impudicícia não faz fronteira, onde não cabe a função de privação, dado que ali ninguém se privou de dizer nem de mostrar nada, nem os meios nem a opinião pública, situando as crianças como prova do “pior”. 204 204
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As crianças haviam nascido em cativeiro durante o ano 1977, e ambos os pais ainda hoje permanecem “desaparecidos”. No momento do sequestro, a mãe das crianças estava grávida de seis meses. Ela e seu marido foram vistos no CCD2 La Cacha, um dos 500 centros clandestinos que funcionaram na Argentina. Imediatamente depois da separação violenta e forçada de sua mãe, no momento do parto em uma prisão clandestina, e dada a prematuridade dos bebês, ambos foram postos em uma incubadora, já que no hospital para onde haviam sido transladados não havia duas incubadoras, apenas uma. Poderia ar-nos desapercebido esse dado, uma vez que o contexto quase o naturaliza. Contudo, nos parece que a partir do momento do sequestro, cada fato, cada ato, cada violação deve ter o “estatuto de marca”. Ou por acaso essa imagem não é a representação da objetalização extrema de uma criança que acaba de nascer? Cabe assinalar que no delito de apropriação se produzem vários delitos simultâneos: sequestro clandestino, tortura, assassinato, roubo, desaparição, entre outros. Ao tratar-se do sequestro de uma mulher em estado de gravidez, com objetivo de apropriar-se de seus filhos, esses delitos atrozes recaem sobre o corpo e a constituição subjetiva das crianças em gestação, tal como refere o informe técnico apresentado ante a causa Nº. 10326 – Franco Rubén Nicolaides e Carlos Suárez Mason, sobre subtração de menores, iniciada em dezembro de 19963 – o que já define as crianças como sobreviventes da tortura praticada contra o corpo de sua mãe e deles mesmos. A afecção que esse delito constitui é de tal grau, que deve ser considerada entre as mais graves formas de vulnerabilização da integridade, não somente psíquica, mas também física, já que foi posta em risco a própria vida dos recém-nascidos. Tal como consta no mencionado ditame: “a natureza, gravidade e persistência dos danos psíquicos que uma criança recém-nascida sofre são de diversas ordens” (Argentina, 1996, p. 5). No dia 24 de fevereiro de 2011, a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, vinculada ao caso Gelman vs. Uruguai, expressa no ponto 118 que o fato de
Sigla de Centro Clandestino de Detención, instalações secretas do governo onde eram alojados, torturados e executados opositores do regime militar que ocupou o poder na Argentina entre 1976 e 1983. (N. T.) 3 Esse Informe pericial foi realizado em Buenos Aires e apresentado em 18 de setembro por Eva Giberti e os Drs. Maria Isabel Punta de Rodulfo, Ricardo Rodulfo e Fernando Ulloa, perante o juiz Federal Dr. Adolfo Luis Bagnasco em referência à causa supracitada. 2
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[…] ter-se inteirado das circunstâncias da morte de seu pai biológico, como da violação de seu direito a conhecer a verdade sobre sua própria identidade, da falta de investigações efetivas para o esclarecimento dos fatos e do paradeiro de María Claudia García (sua mãe) e, em geral, da impunidade na qual o caso permanece, o que lhe gerou sentimentos de frustração, impotência e angústia (Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2011, p.125).
Deste modo, entendemos imediatamente que esses episódios constituem danos indimensionáveis, os quais nenhum profissional pode reduzir a mera tabulação psiquiátrica. Nos casos de apropriação de crianças, com todos os agravantes que essas apropriações tiveram, mesmo quando o vínculo de filiação foi restituído pelo acionar da justiça, devemos saber que tais vínculos nunca serão restituídos em sua totalidade, já que o impacto extremamente traumático que os atravessa torna impossível que as coisas retornem ao estado anterior ao “arrancamento” materno em momentos determinantes para a vida de qualquer sujeito. Voltando ao informe da causa Nicolaides e Suarez Mason, […] as provas oferecidas por todos os âmbitos científicos pertinentes são absolutamente concludentes quanto a que o dano psíquico e os traumatismos psíquicos e físicos dos mais diversos tipos sofridos pela mãe são trasladados, tanto ao feto quanto ao recém-nascido, e repercutem diretamente sobre ele e devêm prejuízos ou agentes patogênicos (Argentina, 1996, p. 5).
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Por outro lado, um dos signos mais notórios que costumam emergir na casuística clínica de tais casos é precisamente um “transcorrer como se nada tivesse acontecido”, durante determinado tempo, até que esse horror se imponha na vida dessas pessoas, e apareçam ali sintomas muito diversos ligados aos episódios de extrema crueldade a que foram submetidas quando se achavam na máxima indefensabilidade, já que “…a falta de provisão de ternura e outros afetos concomitantes não é uma mera insuficiência ou déficit, mas opera, entretanto, como um grave agente desestruturante e gerador de patologia tanto física quanto psíquica” (Argentina, 1996, p.6). Nesse sentido, o discurso que enquadra as leituras a respeito dos sintomas que escutamos nos obriga a pôr em contexto o que emerge da verdade enunciada pelo sujeito que fala, já que eludir o significado dessas verdades subjetivas no texto social em que se inscrevem pode desorientar-nos e virar nosso olhar para uma espécie de sustentação do pior, da calamidade, à qual,
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como sociedade, já deveríamos ter deixado de nos acostumar. Atravessa-nos, nessa função, uma responsabilidade que se curva à do segredo profissional e é a responsabilidade ética de não anular, como analisador clínico, os crimes cometidos pelo próprio Estado em épocas de terror generalizado, diminuindo o valor que assumem tais crimes na produção de marcas subjetivas. Podemos seriamente supor que depois do que foi relatado não há dano? Pois alguns profissionais sustentam que sim. Continuando com o caso, cabe esclarecer que a série delitiva continuou. Em 1984, os apropriadores fogem para o Paraguai com as crianças, frente à intervenção da justiça. Em 1987, é decretada prisão preventiva, a fim de obter sua extradição. Em 1989, as crianças regressam ao país. Em 1990 se dá a extradição dos imputados. Aqui nos detemos: em 1991, a juíza interveniente no caso solicita a um hospital público um informe para determinar o estado de saúde psíquica das crianças para, desse modo, decidir o que convinha fazer com a vinculação familiar em relação aos apropriadores e à “família de origem”, tal como veio a chamar-se, a partir do discurso jurídico-social, cada um dos universos postos em jogo nessas histórias que, de tão trágicas, às vezes soam inverossímeis. Nesse ano, o apropriador encontrava-se com prisão preventiva. No mencionado hospital, recomenda-se manter a ligação afetiva das crianças com os apropriadores, para o bem das crianças, tendo em conta que elas haviam expressado o desejo de continuar ao lado de seus apropriadores, a quem, inevitavelmente como crianças, deviam considerar seus pais. Esse suposto bem das crianças, que alguns profissionais confundem com uma escolha do indecidível, é uma armadilha descarnada, já que não se trata de que a vítima do delito escolha o que na verdade a justiça deve dirimir nesses casos de violações de direitos humanos. Dilema ético que supõe a possibilidade de deixar de fora o delito sobre o qual se baseia essa ligação afetiva, ou, no melhor dos casos, um esvaziamento da dimensão de delito, reduzindo-o ao campo de delito comum. No entanto, trata-se – e aqui radica a centralidade da análise – de delitos de lesa-humanidade, ou seja, que não apenas lesionam as vítimas diretas, mas a humanidade em seu conjunto. Em 1993, um juiz ordena a restituição das crianças a sua família biológica e, mais adiante, elas são entregues a uma terceira família até alcançarem a maioridade, dado o conflito familiar que havia se desencadeado a partir da revinculação com a família de origem. Isso se produz, não obstante em 1994 fosse editada a sentença, tendo o apropriador sido condenado a 12 anos de prisão por delitos de retenção e ocultação de menores de dez anos, enquanto a apropriadora haja sido condenada a três anos, pelos mesmos delitos.
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Uma das crianças padeceu, durante os primeiros anos de vida, de hemorragias no nariz e, em sua história clínica, consta o quadro de epistaxe. O nome epístaxis tem sua origem no grego e significa fluir gota a gota, ao modo de uma perfeita metáfora do sintomático calado em um corpo infantil que desconhece o mais íntimo de sua linhagem histórico-sanguínea. Não é minha intenção fazer aqui uma interpretação fora de qualquer enquadramento transferencial, nem forçar nexos causais que se tornam tão necessários na hora de apoiar-nos em um discurso quantificável e medicável ao extremo, para dar conta da incomensurável dor psíquica. Sabemos que o diagnóstico ou a avaliação frente a uma situação de tamanha envergadura não podem ser lidos a partir de um mero enumerador com significados e estipulações categoriais. O ideal objetivo que o juiz nos aponta, e no qual a lógica positivista nos submerge, não nos permite escutar o discurso do qual fala o sujeito apropriado, nesse caso, ou torturado em outros ou, ainda, enlutando a desaparição eterna em outros. Qual verdade buscam os profissionais da saúde mental? Em que verdade teórica devemos situar-nos? A histórica? A subjetiva? Que legalidade nos atravessa nesses casos? Os modos de construção da narrativa subjetiva frente ao horror não podem deixar de nos interpelar. O que buscamos ali, nessa fronteira do discurso, na trincheira semântica da dor? Se nosso recurso teórico se apoia em um suposto bem do sujeito, pode tornar-se paradoxalmente consequente com a sustentação do sofrimento, ante a irrupção violenta da história mais trágica. Uma nova virada em suas vidas faz com que, no ano 2005, os irmãos solicitem indenização por dano, nos marcos da lei de reparação que o Estado tem a obrigação de dar àqueles que, sendo menores de idade, foram privados de sua liberdade com relação à detenção de seus pais ou sofreram substituição de identidade. De seu expediente se depreende que essa solicitação é enquadrada por um dos beneficiários do seguinte modo: “dano psicológico por supressão de identidade de que fui vítima depois de meu nascimento em cativeiro, após o desaparecimento forçado de meus pais”4. Em dezembro desse ano, um serviço de estresse pós-traumático de um hospital público realiza a avaliação solicitada pela mencionada lei reparatória. Ali se dá o parecer de que: “não foi encontrada patologia psiquiátrica nem sig-
Expediente por tramitação de lesões apresentado perante a Secretaria de Direitos humanos da Nação. Os expedientes das leis de reparação econômica não são de uso público, mas pertencem à esfera privada do beneficiário, motivo pelo qual não é possível oferecer mais informação a esse respeito.
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Políticas reparatórias e reconceituação...
nos de sintomatologia compatível com transtorno por estresse pós-traumático”, portanto são negados o dano e a reparação do mesmo. Em meados de 2011, os irmãos tornam a pedir o desarquivamento do expediente, para reavaliação do caso, sustentando uma pergunta que nos devolve a interrogação ética: que dano tenho de demonstrar para que o Estado reconheça o que o próprio Estado fez com minha vida? A lei diz que isso deve ser definido por profissionais de hospitais públicos que decidam se esses acontecimentos provocaram ou não dano nesses sujeitos; decisão que nos interroga como comunidade científica, mas sobretudo como funcionários públicos deste país, que não pode deixar suas marcas de lado para pensar as categorias clínicas que melhor se ajustem às tabulações clínicas. Na edição de 1976 de “Se isto é um homem”, foi acrescentado ao livro um apêndice que inclui respostas de Primo Levi às frequentes perguntas que seus leitores lhe faziam. Por isso, meditar sobre o que aconteceu é dever de todos. Todos devem saber, ou recordar… Os monstros existem, mas são demasiado poucos para ser realmente perigosos; mais perigosos são os homens comuns, os funcionários prontos para crer e obedecer sem discutir (Levy, [1958-1976] 2002).
REFERÊNCIAS ARGENTINA. Informe técnico pericial ante la Causa nº 10326 – Nicolaides, Cristino; Franco, Rubén; Suárez Mason, Carlos, sobre sustracción de menores. Buenos Aires, 1996. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS . Caso Gelman vs Uruguayfondo y reparaciones, sentencia del 24 de febrero del 2011. Disponível em: http://www. corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_221_esp1.pdf. [o em 18 de dezembro de 2012]. LEVY, Primo. Apendice [1976]. In: ______. Si esto es un hombre [1958] Barcelona, Muchnik Editores, 2002. Recebido em 30/08/2012 Aceito em 22/12/2012 Revisado por Sandra D. Torossian
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ENTREVISTA
RUKEıNKUG"G"UGWU"NKVQTCKU Maria Cristina Kupfer
Se Freud duvidava de que a psicanálise pudesse ser transmitida dentro das universidades, ao longo do tempo constatamos que a dúvida dele não se transformou em certeza. Há muitos anos, são muitos os psicanalistas que constroem novas fronteiras para que a psicanálise esteja dentro da academia, com isso avançando em diversos pontos importantes da psicanálise e não se furtando a se posicionar, quando preciso, ao dialogar com outros campos de saber. Neste número, propomos uma série de questões, que versam sobre a construção dessas fronteiras, para a psicanalista Maria Cristina Machado Kupfer, a qual, com uma trajetória muito singular, conseguiu levar adiante o desafio de colocar a psicanálise em diversos campos. Ela é professora titular do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USP, editora da revista Estilos da Clínica, do mesmo instituto, editada conjuntamente com o LEPSI (Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância) e em colaboração com a Associação Lugar de Vida, da qual é diretora e uma de suas fundadoras. Em 1990, participa da fundação do Lugar de Vida, um serviço do Departamento de Psicologia da USP voltado ao tratamento e acompanhamento escolar de crianças e adolescentes com problemas psíquicos. O tratamento é realizado por meio de atendimento psicanalítico individual e em grupo, em ateliês de escrita, música, contação de histórias, culinária, jogos e brincadeiras. Para além dos tratamentos, é um centro de referência e formação de profissionais, pesquisadores e estudantes da
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área de saúde mental e educação, funcionando, atualmente, como uma associação. Em 1998, Maria Cristina, em parceria com o psicanalista e professor da Faculdade de Educação da USP Leandro Lajonquière, funda o LEPSI, um laboratório interunidades que, ao ter a psicanálise como eixo, promove e desenvolve iniciativas de ensino, de investigação e de extensão, em torno dos temas de educação familiar e escolar, assim como da educação terapêutica na infância. O LEPSI, em seu VII Colóquio Internacional, lança, em 2008, com associados ses, a convocatória para a construção da Rede Internacional Universitária em Educação e Psicanálise – RUEPSY. É ainda cocoordenadora do Grupo de Trabalho Psicanálise, Infância e Educação da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia). Voltada às crianças com transtornos globais do desenvolvimento, foi uma das coordenadoras da pesquisa multicêntrica, vinculada ao Ministério da Saúde, que apontou os Indicadores Clínicos de Risco Psíquico para o Desenvolvimento Infantil. Aproveitando a riqueza de suas experiências no litoral entre psicanálise, educação, universidade e clínica, propusemos à nossa entrevistada questões que atravessam todos os psicanalistas que trabalham na borda do que Lacan nomeou psicanálise em extensão. Desejamos a todos uma boa leitura!
REVISTA: Neste número da Revista da APPOA, estamos privilegiando o debate da psicanálise com outros campos de saber. A indicação de Lacan sobre a distinção entre a psicanálise em intensão e a psicanálise em extensão sustenta que esse debate é necessário e produtivo a todos. O diálogo entre essas duas práticas nem sempre é feito sem provocar muita resistência, o que não é necessariamente ruim, mas que pode dificultar o reconhecimento das contribuições que a psicanálise – através da hipótese do inconsciente – pode produzir. Como você vê essa questão e qual o trabalho necessário para que o diálogo se efetive ainda mais? Como considera que o psicanalista pode propor intervenções no campo social, mantendo a especificidade de sua práxis? MARIA CRISTINA KUPFER: Em meu percurso, tenho privilegiado o debate, mas também o diálogo com um campo de saber em especial, o campo da educação. Vocês falam em resistência a esse trabalho. Tenho enfrentado justamente muita resistência, mas posso dizer que a principal resistência não é a dos psicanalistas que recusam o que poderia aí haver de psicanálise em 211
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extensão; ela vem sobretudo dos próprios educadores. Ao solicitarem que a psicanálise venha em seu auxílio a partir do acionamento do discurso do universitário – ou seja, solicitam um saber que os objetaliza – só posso entender o movimento desses educadores como resistência. A transferência imaginária com que os educadores brindam os psicanalistas não os põe a trabalhar, mas os fixa em uma posição que não os leva a nada, mas os mantêm aí. O trabalho da psicanálise no campo educativo pode então ser localizado como aquele que leva à produção de giros discursivos e opera alterações na posições que os educadores ocupam em relação ao seu saber e ao seu desejo. Será que podemos dizer que esse trabalho é legitimamente psicanalítico? Acredito que sim, porque opera com a transferência e com a interpretação (não a clássica, naturalmente) que faz giro. Pode ser feito em grupos de professores, por exemplo. Pode ser feito com professores em creches, como tenho feito ultimamente. Há um mundo enorme de possibilidades de trabalho que prossegue sendo psicanálise ainda que não seja o tratamento-padrão. REVISTA: Como você considera que o conceito de transferência, conceito fundamental da psicanálise, pode ser articulado nas práticas institucionais, em que o psicanalista participa de uma equipe? Qual a sua experiência em relação à presença dos analistas em equipes de saúde mental, ou mesmo na educação? MARIA CRISTINA KUPFER: A noção de transferência sofreu várias torções e releituras desde que Freud a inventou no caso Dora. Vou propor mais uma: Claude Boukobza (1997) dizia que em uma equipe de profissionais ouvidos por um psicanalista, o trabalho consiste em fazer um holding do holding. Ela está com isso apontando que se deve realizar um e para aquele profissional (seja ele de saúde mental ou de educação) que, por sua vez, também deverá realizar um e a seu cliente ou aluno. Boukobza está partindo de uma perspectiva winnicottiana, mas penso que poderíamos talvez aproximar essa noção daquela de transferência imaginária. Em uma análise, ela é necessária mas não é suficiente; em uma equipe de saúde mental, ela é suficiente para a produção, em alguns momentos, dos giros a que me referi na pergunta anterior. São giros que não levam um profissional a usufruir dos efeitos do tratamento-padrão, mas o levam a mudanças de posição que o levarão a escutar de outro modo a pessoa que ele for escutar ou tratar em sua instituição de trabalho. De todo modo, vale lembrar: “Desde que haja uma pergunta, desde que haja discurso endereçado, [...] isso faz um quadro transferencial, mesmo que se limite à transferência imaginária” (Vorcaro, 2008, p. 162). 212 212 212
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REVISTA: A ênfase na produção de pesquisa psicanalítica e a sua divulgação podem servir de instrumento que subsidie intervenções clinicopolíticas? Você acha que essa já é uma realidade nos serviços de saúde do Brasil? MARIA CRISTINA KUPFER: A pesquisa psicanalítica não é apenas uma estratégia científica para a psicanálise; é também uma estratégia política. A pesquisa nos insere no mundo da produção de conhecimento contemporânea e, seja ela ou não dominada por interesses ideológicos, ainda assim é a vitrine que temos em nosso mundo. Quando a pesquisa é apresentada em revistas de impacto, isso significa que ela vai ser lida por um chinês na China. E por isso é também um instrumento político; dar visibilidade à psicanálise é garantir sua disseminação e portanto manter preservado (e ampliar) o espaço conquistado no mundo contemporâneo. Mas a pesquisa psicanalítica está longe dos serviços de saúde pública do Brasil. Estamos trabalhando para aumentar sua penetração nesse âmbito! REVISTA: No seu texto Psicanálise em instituições, publicado no Correio da APPOA, nº 83, em 2000, você apontava as dificuldades em considerar as práticas que têm uma direção inversa à do tratamento padrão e que vão do real em direção ao simbólico como uma ampliação legítima do campo freudiano. A aposta no conceito de clínica ampliada foi muito grande. Hoje se fala também no conceito de clínica implicada. Para você, podemos pensar que esses conceitos são operadores nos campos da psicanálise e da saúde mental? MARIA CRISTINA KUPFER:Ampliação e implicação. Sem dúvida, são operadores no campo da psicanálise, da saúde mental... e da educação! É bem interessante olhar para os movimentos teóricos que buscam alargar as fronteiras do território da psicanálise. Ganhar terrenos ao mar! A implicação tem servido de referência para Voltolini (2002), para quem Freud não explica, mas Freud implica. A ideia da implicação serve à psicanálise em extensão porque nela se trata de que o sujeito se reconheça implicado em sua queixa. Essa implicação não o leva a uma análise, mas a uma mudança de posição em relação a ela. REVISTA: Você entende ser a universidade um lugar privilegiado para a transmissão da pesquisa psicanalítica? As dificuldades encontradas para a pesquisa psicanalítica no campo acadêmico são mais de cunho político ou científico? MARIA CRISTINA KUPFER: O campo acadêmico é o lugar em que menos tenho encontrado dificuldades para desenvolver pesquisa psicanalítica. Se o pesquisador reconhecer que há uma discursividade própria da universidade – e aqui não me refiro ao discurso do universitário – ou seja, se há uma
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legalidade própria daquela instituição, um cerimonial, um conjunto de regras de trabalho, e se ele as aceitar, não terá problemas em fazer pesquisa acadêmica. Antigamente, o psicanalista forçava a aceitação, pela universidade, de um discurso típico das instituições psicanalíticas, de um texto hermético que nada tinha a ver com pesquisa. Não havia pesquisa, mas apenas um conjunto de afirmações que não estavam sujeitas ao debate. Eram apenas a transmissão da pura verdade. Resultado: os órgãos de apoio à pesquisa recusavam financiamento para suas pesquisas. Hoje esse cenário mudou, e muitos psicanalistas, trabalhando inteiramente dentro da metodologia psicanalítica, recebem financiamento, seus orientandos recebem bolsas e publicam em revistas científicas de psicanálise com impacto, ou seja, são lidos por um número significativo de pesquisadores em outras partes do mundo. O que não quer dizer que a discursividade acadêmica seja maravilhosa. Ela está naturalmente carregada dos moldes americanos dos papers, das exigências descabidas da CAPES relativas à publicação de artigos em revistas científicas, etc. Isso tudo nós conhecemos, tem caráter político e devemos combater. Mas eu diria que a universidade recebe bem a pesquisa em psicanálise contanto que ela aceite a “castração”, contanto que aceite ser avaliada por pares. Sei que há quem não concorde com isso, uma vez que a psicanálise veio ao mundo para subverter e não para submeter-se. Veio para “fazer furo” no campo social. Mas suspeito que, se o psicanalista pesquisador não topar a avaliação universitária, seu barco é que será furado e afundado... REVISTA: Mudando a perspectiva desta entrevista, você considera pertinente falarmos de prevenção na infância, se o próprio conceito de prevenção é, ainda, questionável na própria psicanálise? Suas experiências nesse campo legitimam a ideia de prevenção? MARIA CRISTINA KUPFER: Quando falamos de prevenção – e eu continuo falando de prevenção – não estamos nos referindo a algo como evitar os destinos e vicissitudes pelas quais poderá ar uma criança no decorrer de sua constituição subjetiva. Mas precisamos “garantir” que uma constituição se efetue – qualquer que seja a sua direção – ou seja, precisamos acompanhar o surgimento de um sujeito no campo da palavra e da linguagem. Se encontramos, muito cedo, sinais de risco de que o sujeito não venha a se constituir ou, melhor dizendo, riscos de que não se constituam as referências mínimas para que um sujeito venha a poder dizer-se, então vamos intervir para restabelecer essas condições. Não é isso uma prevenção, em sentido amplo? REVISTA: Estamos testemunhando, atualmente, uma forte resistência 214 214 214
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à prática da psicanálise, em especial nos atendimentos às crianças autistas. Como nós, psicanalistas, podemos fazer frente a isso? MARIA CRISTINA KUPFER: Fazendo frente. Ou seja, criando frentes de trabalho. Organizando grupos que irão cuidar das múltiplas frentes de combate a essa desqualificação. E quais são essas frentes? Um grupo “de olhos bem abertos” em frente aos gabinetes de políticos, para impedir que nos em “rasteiras”, como a que sofremos quando a psicanálise, antes presente, foi retirada de um documento de diretrizes para o atendimento do autismo preparado pelo Ministério da Saúde (coisa que também ocorreu de modo semelhante na França); um grupo que cuide da mídia; um grupo que cuide da conversa com a universidade. Um grupo que se encarregue de dar visibilidade à produção psicanalítica nos melhores moldes acadêmicos. E sobretudo, acima de tudo, todos cuidando de suas próprias práticas – mais do que da prática dos outros – para produzir resultados cada dia mais eficazes no tratamento do autismo. Ah! E não se esquecendo de prosseguir produzindo a respeito da psicose infantil, da qual acabamos por nos esquecer frente à enorme pressão de tudo ser transformado em autismo.
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RECORDAR REPETIR ELABORAR
RUKEıNKUG"G"KFGQNQIKC Abrão Slavutzky Ernildo Stein Helio Pellegrino
Era início dos anos 80 no Brasil. Éramos seis estudantes de psicologia: Ademar Becker, Analice Palombini, Dóris Blessmann, Edson Sousa, Kátia Frizzo, Paulo Slomp. Celular, internet, computador não tinham dado as caras ainda. Escrevíamos em máquinas datilográficas e ligávamos de telefones públicos para convidar os palestrantes do simpósio que organizaríamos em outubro de 1981 e que nomeamos como I Simpósio Alternativas no Espaço Psi. Unia-nos a vontade de discutir os temas a que éramos confrontados em nossa graduação de psicologia, e a necessidade de engajamento na vida política em nosso país. Eram tempos, ainda, de luta contra a ditadura. Com efeito, um dos pontos altos desse evento foi a mesa-redonda intitulada Psicanálise e Ideologia, da qual participaram Abrão Slavutzky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino. Os três palestrantes procuraram mostrar o quanto a prática psicanalítica não pode dar as costas ao seu tempo, sob pena de perder o essencial dos princípios que animam sua ética. Essa mesa-redonda talvez tenha sido a primeira manifestação de Hélio Pellegrino, em Porto Alegre, depois de sua expulsão da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ) em 1980, junto com Eduardo Mascarenhas. Foram expulsos por denunciarem as posições políticas de conivência da SPRJ com a ditadura no Brasil. No momento em que revisitamos nossa história, sobretudo com o importante trabalho da Comissão Nacional da Verdade, é comovente acompanhar o relato de Pellegrino sobre sua prisão pela ditadura e as denúncias contra Amilcar Lobo, médico aceito como candidato na SPRJ, mesmo com provas evidentes de que
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tomara parte em atos de tortura no DOI-CODI do Rio de Janeiro. Lobo tinha como analista-didata Leão Cabernite, na época, presidente da SPRJ.
Este texto foi publicado naquele momento, em forma de livro, numa edição quase “caseira”, mas que foi, sem dúvida, uma fonte importante nos debates que se seguiram desde então. Disponibilizá-lo novamente, neste número da Revista da APPOA, é uma forma de recolocar em cena esse debate histórico, evidenciando o compromisso político da psicanálise com seu tempo. Analice Palombini Edson Sousa
Eqqtfgpcfqt"fc"Oguc Para participar da mesa Psicanálise e Ideologia, temos aqui a presença de Abrão Slavutzky, psicanalista com formação na Argentina; de Ernildo Stein, filósofo e professor de Graduação e Pós-Graduação na UFRGS, com período de estudo na Alemanha, dedicando-se intensamente à questão da ideologia; e a presença de Hélio Pellegrino, psicanalista recentemente envolvido no episódio referente à Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, sobre o qual todos devem estar a par. Serão dados vinte minutos para cada um dos palestrantes expor o seu ponto de vista e em seguida será aberto o debate. Cdtçq"Uncxwv|m{ A abertura do tema psicanálise e ideologia é algo difícil, porque as questões envolvidas são muito amplas. A psicanálise é complexa, toda uma questão importante; a ideologia, por outro lado, com seus vários conceitos, é outro problema. Imaginem então esses dois conceitos, psicanálise e ideologia, unidos. Poderíamos, por exemplo, pensar toda a questão da influência ideológica na obra freudiana, ou a das relações entre ciência e ideologia, a questão da concepção de mundo, enfim, seriam muitos os aspectos que poderiam ser analisados sobre psicanálise e ideologia. Gostaria de apresentar a introdução a um trabalho que fiz e que resumese no seguinte: de posse de todas as revistas da Associação Brasileira de Psicanálise, desde o primeiro número até fins de 1980 (são mais ou menos cinquenta números), investiguei nessas revistas quais eram os efeitos ideológicos na produção teórica e na produção científica dos psicanalistas brasileiros. 217
Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino
Para mim, esse foi um trabalho importante porque, como ei muito tempo fora do país, ele me ajudou muito no sentido de entrar em contato com os pensamentos, e as reflexões psicanalíticas aqui no Brasil. Os artigos que selecionei são os relacionados justamente com o problema da guerra, conflitos de gerações, a responsabilidade social do psicanalista, psicanálise e sociedade, enfim, toda uma série de temas nos quais se veem, nítida e concretamente, os efeitos ideológicos sobre o pensamento psicanalítico. A Revista Brasileira de Psicanálise teve seu primeiro número em 1928, quando ainda não estava constituída a Associação Brasileira de Psicanálise. A título de curiosidade: esse número foi enviado a Sigmund Freud, que respondeu em uma carta dizendo que ficava muito contente de receber a revista e que ia comprar um dicionário Português-Alemão para lê-la. Depois de 1928, am quarenta anos sem ser editada uma revista da Brasileira de Psicanálise. Em 1967, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo começa a editar uma Revista Psicanalítica, que depois é incorporada e oficializada como a Revista Brasileira de Psicanálise, da Associação Brasileira de Psicanálise. Um dos temas que esteve muito em voga há alguns anos atrás – 68, 69 – foi o problema da guerra e da violência. Então leio o pensamento de um artigo, a mensagem de Roda-Viva da Dr.ª Virgínia Bicudo, publicado em 1968 sobre a guerra e a violência: “A habilidade desenvolvida para a produção de armamento bélico, expressão do instinto de morte, suficientemente poderoso para ameaçar a sobrevivência de toda a humanidade, é fator para desenvolver um estado universal e contínuo de angústia e insegurança”. Vamos então refletir: a guerra, naquele momento, a grande guerra de 68, vocês recordam ou pelo menos os de mais idade recordam – os mais novos talvez não lembrem os detalhes do jornal – a grande guerra daquele momento, manchete nos jornais, era a guerra do Vietnã. Essa guerra é a expressão do instinto de morte do ser humano? Aqui se coloca, primeiro, uma questão complexa do instinto de morte, de thánatos; existem psicanalistas que questionam esse conceito, até que ponto ele é válido. Eu o aceito. Acho que é um conceito que realmente tem o seu valor científico, mas não vamos entrar na discussão teórica intrínseca da pulsão de morte versus pulsão de vida, que Freud, em Mais além do princípio do prazer, aprofunda e analisa, esse confronto pulsional. O problema é usar esse conceito para explicar o problema da guerra, o que, se levado ao absurdo, poderia ser pensado assim: “naquela época os americanos e os vietnamitas, devido a uma pulsão de morte incrementada, devido a um alto grau de destrutividade, estavam matando-se uns aos outros”. Quando, na verdade, o que acontecia, sem entrar em profundas análises, era uma invasão imperialista no Vietnã, com 500 mil soldados 218 218 218
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destruindo, matando, arrasando o povo vietnamita que, falando numa forma clássica, por um espírito de sobrevivência, de luta pela sua pátria, pelo seu solo, que estava sendo invadido, defendia-se de forma tão ardorosa a ponto de conseguir derrotar os invasores. Essa é uma questão concreta, sobre como pensar o problema da guerra e da violência. A psicanálise, quando explica, como nesse caso, a guerra e a violência – e esse artigo que cito não é exclusivo da autora, todos os pensamentos que tenho aqui sobre guerra e violência fazem esse tipo de análise – por um lado, assume um aspecto fascinante, em que mostra o homem com seus aspectos destrutivos, mas, por outro lado, ela se insere perfeitamente dentro de uma ideologia, quando busca explicar os fenômenos sociais, econômicos e políticos exclusivamente desde o ponto de vista intrapsíquico, não levando em conta a estrutura socioeconômica na qual estão inseridos os seres humanos. Um outro problema, continuando nessa linha de raciocínio, é o conflito de gerações. Naquela época, 69/70, estava no auge toda a luta do movimento estudantil. A famosa eata dos 100 mil, no Rio de Janeiro – o Dr. Hélio Pellegrino inclusive foi um dos participantes – foi uma eata organizada e que contou com ampla participação dos intelectuais progressistas e de amplas camadas da população. Surge então o problema “conflito de gerações”: o problema estudantil, na França, no Brasil, nos Estados Unidos, não ava de complexo de Édipo mal-resolvido, em que os filhos se rebelavam contra os pais. Vejam, essa é uma questão perigosíssima, pois toma um conceito muito forte, um conceito científico da mais alta importância como o complexo de Édipo, – o conflito normal e lógico em termos da triangularidade edípica, em termos dessa dimensão tensional que se desenvolve, e que, evidentemente, todos sabemos que existe – para explicar e justificar uma submissão, uma adaptação, em que não devemos questionar em absoluto os valores sociais, os valores políticos dominantes. Diz o Dr. Darci Uchoa, em “conflito de gerações”: “O desajustamento social surge como uma extensão do desajustamento pessoal, intrafamiliar e intrapsíquico, em que situações conflitivas nas relações pais-filhos/ filhos-pais não são suficientemente resolvidos”. Dessa forma, quando vamos buscar explicar o desajustamento social pela problemática das relações pais/ filhos, devemos pensar que os milhões e milhões de marginais desta pobre sociedade brasileira estão marginalizados, não pelo capitalismo selvagem no qual se vive, mas porque são desajustados socialmente, o que é uma extensão do seu desajustamento pessoal, intrafamiliar e intrapsíquico. Esse é um efeito concreto da ideologia dominante sobre a psicanálise, e um exemplo concreto de como a psicanálise, do ponto de vista teórico, pode, dependendo de quem a usa e dela abusa, servir aos interessados da classe dominante. Haveria uma série de outras citações sobre conflito de gerações, todas
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Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino
exatamente na mesma linha. Por exemplo: “...aqui poderíamos ousar uma afirmação: completam-se e integram-se a neurose individual, a familiar e a social, havendo a indicação de todas elas serem compreendidas e tratadas para que possa a civilização contemporânea emergir do estado de inconsistência e caos em que se encontra”. Vejam, “neurose individual, familiar e social” – isto é um erro do ponto de vista científico. A neurose só pode ser definida, e ela o é desde Freud e pelos grandes autores da psicanálise, como uma estrutura psicopatológica individual. Não se aceita sequer a extensão dessa definição de neurose para a família. Por mais que se use a expressão “família neurótica”, a neurose é uma estrutura psicopatológica, intrapsíquica, assim como a psicose, assim como a perversão. Aí já se coloca um erro científico, mas esse erro vai mais além, porque busca falar de uma neurose social. Se desse margem a imaginação e fantasia, poderia pensar o que seria “tratar” a neurose social, os psicanalistas tendo um papel importante nesse tratamento... É uma forma nítida de não considerar a estrutura classista da sociedade, os processos estruturais da sociedade, a própria história humana. Revendo as revistas pensava: mas tudo que é trabalho nessa linha, em plenos anos das mobilizações estudantis e logo após a profunda e terrível repressão sofrida no Brasil durante os anos de 70 a 73, os anos negros, como se diz hoje, da tortura, da morte, do sequestro, sobre tudo isso não há absolutamente nada, nem uma referência indireta? Vejamos outra questão específica, por exemplo, o dinheiro, importante na psicanálise. Em geral os psicanalistas – me incluo nisso, evidentemente – escrevemos pouco sobre o dinheiro, do ponto de vista técnico, ou seja, a questão do setting analítico, onde se analisa uma série de aspectos do enquadre, o problema específico de como é que interfere o dinheiro na relação analistapaciente. Bem, um dos trabalhos “Psicanálise e Economia Política” – um título forte –, do Dr. Vitor Manuel de Andrade, escrito em 72, diz o seguinte: “Freud foi o primeiro a relacionar o interesse pelo dinheiro e pelo ouro com analidade, inferindo que simbolizavam as fezes”. Isso é uma coisa já conhecida universalmente, a relação dinheiro-fezes. No entanto, numa leitura mais apurada de um trabalho importantíssimo na obra freudiana, sobre as transmutações das pulsões, especialmente do erotismo anal, trabalho escrito em 1917, encontrase uma coisa muito óbvia, que Freud escreve, numa frase, sem chegar a desenvolver: “a criança, nos seus dois, três anos, não tem noção do que é o dinheiro; esta noção lhe é introduzida pelos adultos, pelo seu pai, pela sua mãe, pelos tios, e, a partir daí, a relação da noção de dinheiro com as fezes a a ser intrapsíquica”. É importante destacar, então que o significado do dinheiro, o conhecimento do seu valor é algo introduzido desde fora, na criança 220 220 220
Psicanálise e ideologia
de dois, três anos. Freud tem uma agem em que fala dessa questão, dois adultos dando dinheiro como presente e as fezes como o primeiro presente que a criança dá, porque o presentear é valorizado pelos adultos. Daí, então, a questão do presente relacionado com as fezes, por um lado, e com o dinheiro, por outro. Portanto, ar a explicar toda a problemática do dinheiro com base na analidade é um brutal reducionismo, que incorre em dois erros: primeiro, num erro científico dentro da teoria psicanalítica, ao não levar em consideração que o dinheiro é um valor introduzido desde o meio externo ao aparelho psíquico da criança; segundo, o de não saber quais são os significados do dinheiro do ponto de vista econômico numa sociedade capitalista e de como se produziu o dinheiro, como ele circula, a história, et cétera. “A humanidade está, em termos econômicos, fixada em uma etapa de identificação entre as etapas oral e anal que corresponde a uma fase de transição entre as posições esquizoparanóide e depressiva. Cito como fato sintomático da não-integração econômica a divisão da humanidade em dois campos de forças antagônicos, capitalismo e socialismo, indicativos de núcleos esquizoparanóides econômicos sociais”. Essa citação é do Dr. Vitor Manuel de Andrade, “Psicanálise e Economia Política”, p. 341, vol. VI, nº 53 e 4, publicado em 1972. Os risos de vocês dispensam comentários. Fico pensando: como que então o capitalismo e o socialismo para se entender devem-se deprimir e chegar a uma outra fase... Há outro ponto que considero importante e que foi tema do debate promovido pelo Coojornal, na Assembleia Legislativa, referente à realidade social e à psicanálise. A doutora Virgínia Bicudo, em seu trabalho “A incidência da realidade social no trabalho analítico”, faz uma afirmação absolutamente correta: “A realidade social constitui parte integrante da personalidade”. Segue depois, dizendo que “a ideologia total é um dado que permeia toda a realidade social e, portanto, indissociável, da qual o cientista não pode subtrair-se, mas da qual se protege, utilizando-se do método científico, e assim diminuindo a área de influência da ideologia”. Cita Mannheim, afirmando que “a ideologia está presente sempre”, mas imediatamente um spliting que o possibilite separar-se de sua realidade social, da qual depois, no mesmo trabalho, faz a seguinte colocação: “o analista deve utilizar-se de compartilhar em outros papéis que não o de psicanálise, e que inclua seus preconceitos, suas idiossincrasias e preferências, suas ideologias religiosas, raciais, políticas e pseudocientíficas”. Refletindo sobre essa questão, é certo que, no trabalho analítico, é indispensável que o analista não doutrine, ou convença, ou se envolva emocionalmente com os seus pacientes, deixando de lado a regra fundamental para o analista, que é a atenção flutuante. O problema é que todo o analista, todos nós que estamos aqui, todas as pessoas têm uma ideologia. A ideologia não é algo de
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que se possa dizer “eu não tenho”, a ideologia faz parte dos nossos costumes, dos nossos hábitos, das nossas reflexões, da nossa inserção social. Desde pequenos, desde a própria formação da estrutura de nossa personalidade, fomos adquirindo uma série de aspectos ideológicos, transmitidos por nossos pais dentro de todo um contexto social. O Dr. Horsteins escreve no livro Teoria das ideologias e psicanálise o seguinte: “Continuamente apelamos a um código que é a interiorização inconsciente da ideologia de uma sociedade, de uma classe”. O analista tem, portanto, uma representação do mundo que acompanha todas as suas atitudes e governa suas condutas; lida, então, através e pela ideologia. O ideólogo não pode ser definido de forma negativa como obstáculo constante. A neutralidade valorativa espontânea, que tenta eliminar o ideológico, está viciada por ter uma concepção pré-teórica das condições em que se desenvolve a prática psicanalítica. A neutralidade é parcialmente possível, na medida em que o analista conheça ao máximo a estrutura ideológica que o sujeita, determina e aprisiona. O que quero dizer com isso é que o analista que afirma “eu não tenho ideologia” comete um erro. Erro porque não tem consciência, não tem insight suficiente, não tem conhecimento suficiente de que tem uma ideologia, e dizer “eu não tenho” é uma manifestação típica da existência de ideologia no analista. Isso é perigoso, porque então pode ar através das interpretações e do trabalho clínico a um trabalho educativo, a um trabalho de reeducação que seria a antipsicanálise. Por exemplo, analisar e interpretar as atividades políticas exclusivamente como problemas neuróticos é partir do ponto de vista de que a sociedade, assim como está, está bem. Não deve ser questionada, não deve ser modificada. Isso não quer dizer que na atividade política não exista o problema neurótico – todos nós sabemos que existe –, mas daí a tomar essa atividade questionadora dos valores sociais vigentes apenas pelo seu aspecto neurótico é cair num reducionismo, é também partir do pressuposto de que a sociedade nunca muda e vai ficar sempre igual. Assim, quem a questiona está se rebelando exclusivamente por um problema conflitivo e neurótico. Essa é uma manifestação típica da ideologia dominante para manter o status quo. Poderíamos expor mais algumas coisas a esse respeito, mas acredito que foi visto até aqui o suficiente para dar uma pequena idéia da produção científica publicada na Revista Brasileira de Psicanálise, que não deve ser confundida com a psicanálise brasileira na sua totalidade nem com a totalidade dos psicanalistas brasileiros.
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Gtpknfq"Uvgkp O que vou dizer aqui vocês podem deduzir que nasceu de um diuturno trabalho sobre questões antes de tudo epistemológicas. Em primeiro lugar, o que me motivou fundalmente a discutir a questão da psicanálise e ideologia nasce de três tendências básicas que eu gostaria que se tornassem aqui coletivas e conscientes. Vivemos numa época marcada por aqueles que a olham criticamente, por aqueles que tomam distância, por aqueles que se retiram, digamos, de um tipo de reflexão individualista, criticam a própria filosofia, como sendo uma espécie de ideologia da etnia branca, portanto, marcada por aqueles que, num mundo subdesenvolvido, percebem que não é mais possível simplesmente recebermos, sem crítica, instituições, quer sejam elas científicas, quer sejam elas terapêuticas. Os três elementos que nos levam a isso nestes dias de debate são: primeiro, a vontade de dissidência, vontade esta que se volta contra todo o institucionalizado, contra tudo aquilo que é ritualizado, inercial. A vontade de dissidência leva à dissidência da dissidência, à dissidência da dissidência da dissidência, conduzindo perigosamente a grupúsculos que, de uma postura crítica, am a uma hipercrítica e, num regresso ao infinito, multiplicam-se, castrando toda a produtividade. Segundo, além da vontade de dissidência, o elemento que se apresenta como comum à vontade de crítica é o que eu chamaria de ausência de mediações. Nós certamente estamos cansados de trambolhos postos no caminho da comunicação entre indivíduos e grupos. Essa ausência de mediações certamente é uma aspiração essencial, mas nós sabemos que, como seres humanos, a liquidação de todas as mediações nos reconverteria em selvagens. A conquista de mediações, de regras de civilidade, impede a produção de angústia quando dois seres aproximam-se. Assim, eles sabem, por exemplo, que há regras de jogo, que há formas de comportamento, que há signos que podem ser interpretados para percebermos a subjetividade daquele que de nós se aproxima. Portanto, essa aspiração a eliminar mediações entre nós, ainda que fundamentalmente positiva, pode também converter-se numa espécie de contiguidade acrítica; contiguidade que certamente representaria a possível destruição das subjetividades que entram em contato. O terceiro elemento, que também comanda o nosso comportamento crítico de busca de alternativa, manifestação de protesto, é a busca do que eu chamaria do simples. Queremos cada vez mais – talvez exatamente pela reunião em dissidências, pela eliminação das mediações – encontrar aquilo que é simples, aquilo que suprime todos os rituais da era tecnológica. Mas, essa 223
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simplicidade é extremamente complicada. Após as conquistas feitas através do trabalho da razão, através do trabalho científico, através de todo o trabalho das mediações conseguidas por processos cognitivos, nós não podemos mais aspirar a uma simplicidade descomplicada, isto é, a uma simplicidade que se daria a partir de órgãos que possivelmente nós teríamos, além da nossa razão. Estes nos permitiriam o o a uma vida feliz, a uma vida tranquila. Essa busca do simples é também novamente ambígua. Se, de um lado, é a busca de uma consciência crítica, de outro, ela revela também um enorme risco: pensarmos que a simplicidade, hoje em dia, pode ser encontrada sem as mediações da realidade, sem os caminhos e o trânsito, através de complexas relações humanas que foram sendo estabelecidas, através de conquistas de gerações, pelo trabalho e pela reflexão. Esses três elementos, portanto, estão antepostos a minha pequena observação sobre psicanálise e ideologia. Psicanálise e ideologia, dois termos que podem ser intercambiados em sua relação, produzindo dois efeitos inteiramente diferentes. Não vou me referir a nada daquilo assinalado pelo Abrão; acho que ele toca em questões fundamentais, porque coloca aquilo que, em nosso meio, muitas vezes condiciona a prática psicanalítica. Eu apenas queria apontar para o seguinte fato, sobretudo ao nível teórico: considero uma análise ideológica ou uma crítica ideológica da psicanálise relevante, na medida em que insere o estudo da psicanálise ou aqueles que se ocupam com a psicanálise, naquele mesmo ductus, naquela mesma direção fundamental que atualmente todo exercício de uma ciência exige. Não há ciência que seja desinteressada. Não há ciência que esteja desligada de processos ligados à práxis. Ora, se a psicanálise quisesse isolar-se numa instituição através da qual canalizaria os seus processos terapêuticos e até as suas reflexões teóricas, se ela quisesse, portanto, se autoisolar, estaria incidindo exatamente nisso que se diz hoje: que a ciência vem carregada de anteparos ideológicos na medida em que se articula através de determinados grupos para sobreviver. A ciência não funciona a-histórica, a-social, a-econômica, a-política ou a-eticamente. A ciência a necessariamente pelos processos coletivos. Na medida em que ela nega esses processos coletivos, e pensa que pode ser assumida através de um grupo determinado, ela converte-se num processo fundamentalmente ideológico em que a a ter que autojustificar-se, ainda que essa autojustificação seja feita através de um discurso não aparente, um discurso que se faz por pequenos silêncios ou um discurso em que se faz diretamente a articulação do poder. 224 224 224
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Então, penso eu, a crítica que em geral se faz à psicanálise insere-a no protesto daquelas ciências íveis de crítica, como aliás todas as ciências o são. Portanto, não se considere a psicanálise perseguida por se aplicar sobre ela um instrumento que foi muito produtivo em outros campos científi-cos. Existe evidentemente a possibilidade de virar a espada contra aquele que faz a crítica da psicanálise, a crítica ideológica da psicanálise. Não tenho, até hoje, conseguido impedir que se vire essa espada contra mim: a crítica ideológica à psicanálise é uma grande defesa, é uma grande atitude pela qual a massa ignorada, a massa não-iniciada no processo psicanalítico, com uma imensa inveja dos iniciados, faz a sua guerra, guerra inútil e de ignorância, contra a fortaleza da lucidez, contra a fortaleza daqueles que dominam, digamos assim, os canais de equilíbrio dos indivíduos. Esse virar a espada contra os críticos é, sem dúvida nenhuma, algo muito perigoso e que produz efeitos e silêncio importantes. Assim que deveríamos ver porque é possível à psicanálise voltar-se contra os críticos que a criticam sob o ponto de vista do enfoque ideológico e com ela obtêm resultados, isto é, cria silêncios naqueles que um dia esperam analisar-se e poder falar, e não querem, por isso, arriscar-se a agredir o único instrumento que os tiraria das trevas da ignorância ou das trevas dos conflitos afetivos. Essa retorção contra aqueles que criticam a psicanálise sob o ponto de vista ideológico representa realmente um risco de intimidação. Não vou explicitá-lo aqui porque o tempo não me permite, mas gostaria de apontar que a psicanálise tem uma certa razão naquilo que ela pratica. Realmente, o nível de reflexão e interpretação e o nível de sutileza e de força teórica com que se analisa criticamente a psicanálise, em termos da ideologia, é muitas vezes fraco, permitindo esta retorção do argumento contra os críticos. É preciso aprofundar muito as coisas e não apenas fazer simples piadas, aparentemente científicas, contra a psicanálise. Isso não é tão simples, porque a psicanálise, ou melhor, Freud, através da psicanálise, inventou um instrumento decisivo, que é a instância da autorreflexão. A psicanálise tem efetivamente, um instrumento importante para constantemente controlar-se no seu próprio funcionamento, e esse instrumento da autorreflexão, no exercício da própria ciência é uma descoberta da própria psicanálise. A filosofia pensava possuí-lo, mas certamente, a filosofia pensava tê-lo apenas ao nível da consciência, isto é, ao nível da hegemonia do diurno, da hegemonia daquilo que podemos chamar de manifesto. A filosofia não se dava conta do outro lado que a psicanálise descobriu. Assim, como a psicanálise tem esse instrumento de autorreflexão como um novo instrumento de crítica – que toda ciência deveria exercer sobre si –, ela tem também um instrumento forte contra os seus próprios críticos.
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Mas a psicanálise esquece-se de que faz interpretação excessiva e teoria de menos. A psicanálise tem preguiça de teoria e por isso faz interpretação demais. Subsume tudo num reducionismo psicanalítico, quando não tem teoria para subsumir tudo. Mas, muitas vezes, a psicanálise arroga-se a autoridade de interpretar tudo. Vocês devem dar-se conta do que vulgarmente se espalha, ou daquilo que se insinua através das catedrais psicanalíticas, e se propaga no meio da população afetivamente ainda não organizada pela psicanálise. Isso que se espalha por aí, de que deve-se interpretar tudo, é a arma imediata para poder prender o pensamento do outro, não naquilo que ele diz, mas naquilo que ele quis dizer. Esse processo todo, além de ser espantosamente neurótico, é um processo que substitui a falta de teoria. Toda interpretação é uma crítica, e, se quisermos criticar através da psicanálise, devemos ter massa teórica para tanto. Ora, nós não a temos. Apenas as conquistas que Lacan fez como epistemólogo da psicanálise talvez tenham incorporado relevante massa teórica, através de outras ciências – linguística, antropologia, etnografia, e da epistemologia. Com essa incorporação de novos elementos e mais teoria, as interpretações puderam ampliar-se com um mínimo de risco, a partir de um e epistemológico. É sob esse ponto de vista, então, que temos que responder à psicanálise quando eles viram-se contra nós, dizendo: “Vocês, pobres ignorantes, sois nossos críticos, mas no fundo estão com imensa inveja de ainda não terem reclinado-se sobre o divã!”. Problema, portanto, de pobreza de teoria contra riqueza e luxo de interpretação. Reduzamos as interpretações de nossa sociedade; reduzamos as interpretações que a psicanálise autorizaria a todos que lêem um livro de psicanálise a fazer ou que eles pretendem fazer de toda a sociedade. O que o Slavutzky denunciou aqui foi apenas isso: a pobreza espantosa, a nível teórico, daqueles que exercem a práxis terapêutica psicanalítica. Se eles tivessem um pouco de leitura e de marxismo ou de formação dos condicionamentos socioeconômicos de todos, não poderiam em nenhum artigo de revista, dizer o que o colega de mesa astutamente extraiu para desmascarar a prática ideológica da psicanálise. Em suma, devemos querer mais teoria e menos interpretação ou, ao menos, instrumentos de interpretação paralelos ao desenvolvimento do campo teórico. Bem, invertendo agora a relação ideologia-psicanálise, o elemento que se coloca na psicanálise é o papel que ela pode representar no desmascaramento das ideologias. Penso que já foram desenvolvidos muitos instrumentos para pensarmos numa espécie de relação madura que os homens estabeleçam entre si; numa espécie de relação simétrica que as pessoas possam estabelecer
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entre si como indivíduos e como grupos; mas não foi suficientemente pensado o quanto a crítica ideológica recebeu de auxílio dos insights psicanalíticos fundamentais. A psicanálise dá-nos aquele elemento fundamental, que é o de que nós não vivemos no pleno meio-dia da consciência, de que existem processos determinantes que não podemos elevar superficial e rapidamente ao nível de uma racionalidade. Isso a psicanálise nos ensinou, e isso deve funcionar como um instrumento de crítica das ideologias. Tem-se, portanto, não apenas a crítica da psicanálise, enquanto ela guarda dentro de si elementos ideológicos, mas a psicanálise é uma arma anti-ideológica, arma no processo de desmistificação. Sob esse ponto de vista, a ideia de autorreflexão que Freud desenvolveu, nas suas intuições primeiras, na psicanálise são essenciais. Mas o importante é que o processo ideológico não é um processo que acontece através da hegemonia da consciência. É um processo no qual entram, claramente a expressão, elementos latentes, elementos que não podemos discernir através de um simples esforço da nossa razão. Isso aponta, evidentemente, para um elemento mais geral e mais fundamental, com o qual eu finalizo esta exposição, que é o elemento da práxis. Pensávamos, no mundo ocidental, que a teoria resolvia tudo, que os processos de vida humana propriamente, os processos intersubjetivos, materiais, do encontro dos corpos, de toques, dos desejos, do uso de instrumentos, do exercício de trabalho, do trabalho vivo, tudo isso era uma questão de elucidação teórica para depois tudo funcionar. Na verdade, isso só vai se resolver através dos processos de práxis. Não podemos simplesmente pensar que iremos resolver essas questões que as ciências às vezes põem como resolvíveis ao nível puramente teórico. Elas se resolvem ao nível da práxis, em que o elemento inconsciente, o elemento não predicável diretamente, que condiciona por vezes todo o nosso discurso, é um elemento privilegiado e, muitas vezes, até hegemônico. Sem querer reduzir o problema da práxis a apenas isso, considero importante chamar atenção ao fato de que não é possível crer hoje em dia que a crítica da ideologia possa pensar a realidade puramente ao nível teórico, ao nível de uma espécie de solipsismo da razão. O processo de desideologização tem que funcionar ao nível da práxis, ao nível da totalidade humana em seu comportamento concreto. Sob esse ponto de vista, penso que a psicanálise pode dar uma contribuição muito importante.
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Jgnkq"Rgnngitkpq Nada como ser filósofo para ter essa clareza de pensamento, essa elegância na exposição e essa profundidade nas coisas que são ditas. De início quero pedir-lhes desculpas porque vou dizer algumas coisas que repetirei amanhã, e isso evidentemente é um pecado contra a originalidade. De qualquer forma, consolo-me com Napoleão Bonaparte, quando diz que “a repetição é a mais eficaz das armas de retórica”. Isto posto, vamos começar a pensar, tomando como modelo uma sociedade de classes, isto é, uma sociedade em que haja opressores e oprimidos, exploradores e explorados, privilegiados e despossuídos. Seria o caso, por exemplo, da atual sociedade brasileira. O que acontece, do ponto de vista da produção de ideologias, numa sociedade dessa ordem? Acontece o seguinte: as classes, nessa sociedade, produzem ideologias diferentes; elas criam, de si próprias, uma representação imaginária inconsciente, que tem de ser diferente segundo a produção ideológica parta da classe dominante, isto é, da burguesia, ou segundo a representação ideológica venha da classe dominada, no caso a classe trabalhadora, ou a classe dos despossuídos. Isso é muito fácil de compreender, pois numa sociedade de classes – suponhamos a sociedade brasileira em que há um desnível monstruoso entre a minoria privilegiada e o imenso mar do povo que não tem nada –, o fundamento infraestrutural é a injustiça, algo que, se fica claro e público, deixa mal e culpados os exploradores, perante os explorados, ou os despossuídos. Então, todo o esforço ideológico, a produção ideológica da classe dominante é no sentido de encobrir a injustiça infraestrutual da qual ela parte. Vamos tomar um exemplo também brasileiro, o anticomunismo. O anticomunismo irracional, paranoico, não crítico, é uma peça ideológica ainda muito importante no nosso quadro político. Ele é, inclusive, o centro da Doutrina de Segurança Nacional. O que acontece com o anticomunismo? Qual a sua função ideológica, e por que o anticomunismo, no Brasil, é uma ideologia? Porque a realidade brasileira implica, necessariamente, uma violência de classe muito grande. Para que se mantenha a situação social brasileira, para que os despossuídos sejam tão despossuídos e tão explorados quanto o são, é necessário uma violência de classe muito bruta. Essa violência de classe não se pode legitimar, com facilidade, isto é: ninguém pode cometer uma violência de classe como violência de classe; ninguém pode perpetrá-la em nome da exploração do homem pelo homem; ninguém pode dar vivas à mortalidade infantil; não há cinismo que consiga hastear, impunemente semelhante bandeira. Então, para que se busque justificar a exploração de classe, tal como ocorre no Brasil, é preciso 228 228 228
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encontrar um pretexto, ou um texto, e o anticomunismo serve justamente como texto – ou como pretexto – ideológico. Em nome do anticomunismo, já que o comunismo é o mal absoluto, vamos praticar o bem. E, sendo o comunismo o mal absoluto, tudo no seu combate é permitido. O recurso ideológico opera exatamente no sentido de uma justificação da violência de classe. A violência de classe será praticada em nome de nobres e belas maiúsculas. Ela será praticada, por exemplo, em nome de Deus, em nome da Pátria, em nome da Família, em nome do Cristo (pobre Cristo!), em nome do Ocidente e de outras coisas graves e gradas. Mas, no fundo, o objetivo é o de manter a sociedade iníqua na qual vivemos. Em relação à classe trabalhadora, a situação é outra, pois enquanto a classe dominante é pensionista da justiça, a classe trabalhadora é sua vítima. Assim, as produções ideológicas da classe trabalhadora são produções que não têm um compromisso visceral, fundamental, essencial com a injustiça. É claro que as classes trabalhadoras tendem a produzir os artefactos ideológicos da classe dominante, porque esta impõe, justamente com a dominação de classe, também a sua ideologia. Mas o compromisso que as classes trabalhadoras têm com a ideologia dominante é um compromisso acidental, por assim dizer. E é por isso que as classes trabalhadoras são muito mais porosas do que as classes dominantes às verdades descobertas pelo marxismo. Às verdades descobertas pelo marxismo – o que é a mais-valia, o que é a luta de classes enquanto o motor da história, o que é o trabalho social, o que é o capitalismo enquanto indébita de mais-valia –, isso a classe trabalhadora entende bem, ao contrário do que acontece com as classes dominantes. Com frequência, elas não entendem nada disso e, também com frequência, as classes dominantes usam a violência – quer dizer, o porrete – para aqueles recalcitrantes que teimam em pensar segundo tais conceitos. Aqui se coloca uma questão importante. Nós podemos dizer que a classe dominante, a classe burguesa, na sua produção de ideologia, visa a efeitos de encobrimento, a efeitos de desconhecimento. Ela tem que esconder algo, que é a injustiça infraestrutural que constitui seu fundamento. E, se a classe dominante tem que produzir necessariamente efeitos de encobrimentos e desconhecimento, o que vai ocorrer é que ela será contrária às revoluções científicas. Ela vai procurar “normalizar”, aparar as unhas, a barba e o bigode ao esforço científico, porque o esforço científico visa exatamente ao oposto do que visa a ideologia burguesa. Enquanto esta faz um esforço no sentido de encobrir e desconhecer, a ciência faz o esforço contrário de conhecer e descobrir. Há uma oposição às vezes muito dramática entre a ideologia burguesa e o progresso das ciências. No nosso tempo, isso pode ser muito notado nas 229
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relações entre a ideologia burguesa, a psicanálise e o marxismo. É do conhecimento de todos de que maneira a burguesia resistiu e ainda resiste a essas duas ciências, que representam um corte epistemológico radical, a marca específica da revolução científica de nosso tempo. A princípio, o que aconteceu? A psicanálise e o marxismo foram pela ciência oficial, pelo conhecimento oficial. A verdade, porém, é teimosa. A verdade é imbatível porque o homem, apesar de tudo, é imbativelmente racional. Apesar dos ataques feitos à psicanálise e ao marxismo, as verdades do marxismo e da psicanálise permaneceram. A burguesia, então, mudou de tática. Ela procurou exatamente recuperar, fazer a barba e o bigode de Freud e Marx. A burguesia buscou entrar na cidadela da psicanálise e do marxismo sob forma de proposições reformistas. Na medida em que a classe dominante não pode resistir ao ímpeto das transformações revolucionárias no conhecimento, ela vai até o campo das ciências novas e lá procura exatamente recuperar, compatibilizar, amenizar, apagar ou atenuar a mordência do pensamento revolucionário, no caso, das revoluções provocadas por Marx e por Freud. Há um outro ponto que me parece significativo. No seu esforço ideológico, a burguesia tenta se apresentar como representante do todo social e falar em nome de todos. Mas, para isso, precisa usar conceitos muito abstratos e esvaziados de prática e de sentido concreto, porque numa sociedade de classe o motor da vida social é mesmo a luta de classes. Se a burguesia quer falar em nome de todos, e em nome do todo, tem que expulsar a luta de classes do seu discurso ideológico: ela vai falar em termos globais. Por exemplo, a burguesia vai falar em nome da Liberdade, em nome da Igualdade, em nome da Fraternidade e em nome da Democracia. Essas palavras nos causam arrepios patrióticos. Elas são muito sérias, muito graves e, eventualmente, até nos dispomos por elas. Mas é preciso saber o que significa, por exemplo, para a burguesia, a Liberdade. A gente pode dizer: “Bom, um estudante e um operário podem tirar férias em Paris. Um estudante e um operário têm liberdade plena de tirar férias em Paris”. Acontece que um operário ou um estudante não têm renda para ir a Paris. Então, essa nobre e bela possibilidade é impossível para um operário e para um estudante. Ou, sejamos mais modestos em nosso argumento. Tomemos, por exemplo, o direito operário de comer carne todos os dias. Não sei se aqui, no Rio Grande do Sul, terra de nobres rebanhos, um operário come carne todos os dias. No Rio de Janeiro não come, não. Em Minas Gerais, minha terra natal, também não come. É claro que o operário tem todo o direito, toda a liberdade de comer carne todos os dias. Acontece, no entanto, que essa possibilidade, para o operário, é, nos dias de hoje, uma miragem proteínica, uma vez que ele não tem, definitivamente, dinheiro para isso. As coisas, portanto, são muito relativas. Nós falávamos a respeito da
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Liberdade. Com relação à Igualdade e Fraternidade, não é preciso nem fazer comentários. Mas, a propósito dessa necessidade unificadora da burguesia, de falar em nome de todos, e em nome do todo, eu queria citar aqui um trecho de um artigo de Althusser sobre Marx e Freud, escrito em dezembro de 1976. Diz o seguinte: “Essa ideologia do homem como sujeito, cuja unidade está assegurada ou coroada pela consciência, não é uma ideologia fragmentária qualquer; é simplesmente a forma filosófica da ideologia burguesa a qual dominou a história durante cinco séculos e que, embora hoje em dia não tenha a mesma força que antes, reina ainda em amplos setores da filosofia idealista e constitui a filosofia implícita da psicologia, da moral e inclusive da economia política”. Esse dado ideológico, no caso da psicanálise, tem uma importância grande pelo seguinte: o conceito do sujeito unificado pela consciência é o fundamento oculto do reformismo psicanalítico, é o fundamento oculto da escola americana de psicanálise, orientada no sentido de fazer da psicanálise uma psicologia do ego, e de fazer do inconsciente uma espécie de consciência enterrada, de consciência do porão. Aí fica negada toda a mordência da descoberta freudiana. Porque o que Freud descobriu de espantoso é que somos realmente cidadãos de dois mundos: o nosso psiquismo é composto de regiões heterogêneas e irredutíveis uma à outra. Nós podemos, pela interpretação, e com boa teoria, falar do desejo inconsciente em termos do processo secundário. Mas não podemos inscrever de maneira idêntica, um mesmo dado, no inconsciente e na consciência. Essa é a teoria da dupla inscrição de Freud, e foi tal descoberta que lhe permitiu dizer que a psicanálise promoveu uma revolução copernicana no conhecimento que o homem tem de si próprio. Até Freud, a consciência era o centro do sistema psíquico, era o centro do sistema solar. Depois de Freud, a consciência foi satelitizada, tornou-se lunar, e o centro do sistema ou a ser o desejo, a pulsão, o psiquismo inconsciente. E isso, diz Freud, foi uma ferida no narcisismo humano, porque nós, evidentemente, por motivos narcísicos, gostaríamos de ser as estátuas equestres de nós próprios. Assim, o ego estaria montado num cavalo de bronze, e nós seríamos todos heróis libertadores, o que é verdade. Toda a luta da psicanálise é no sentido de compatibilizar o montador com a montaria, de lançar um entendimento – sempre bastante tenso e bastante conflitivo – entre cavaleiro e cavalo. Mas, voltando ao conceito de Althusser: uma das formas pelas quais a burguesia tenta manter esse seu papel unificador reside na visão segundo a qual a atividade científica, o conhecimento científico são políticos. Porque, se a ciência for política, se o esforço do conhecimento se orientar no sentido de conhecer o tapete da pólis, a maneira pela qual a pólis se articula, então, o conhecimento vai inevitavelmente chegar até as contradições sociais e à luta
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de classes. E a burguesia tem horror da luta de classes, porque, na medida em que ela ite e aceita a luta de classes, ela tem que itir-se como perecível, finita, mortal. Na medida em que, para existir, a burguesia tem que criar a classe operária, ela cria exatamente a classe que a irá derrubar, historicamente. Por isso, a burguesia tem todo o interesse em ocultar do campo do conhecimento a luta de classes; ela precisa que o conhecimento científico seja apolítico. Dessa forma, o conhecimento político será compartimentalizado, apartamentado, setorializado, ultraespecializado, de maneira a que eu, falando dele, desconheça sua articulação com todo o resto. No campo da psicanálise, essa postura ideológica gera o soi-disant apoliticismo da ciência e da prática psicanalíticas. Tal dado é muito importante e encontradiço, nos níveis teóricos, institucional e prático. É, por exemplo, a posição da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, quando nos expulsou, a mim e ao Dr. Mascarenhas. Inclusive, a minha expulsão se deve justamente ao fato de ter eu levantado esse problema numa palestra em que sequer foi mencionado o nome da S.P.R.J. Foi numa mesa-redonda, muito menos simpática do que esta, mas de qualquer maneira bastante simpática. Lá eu disse: “O apoliticismo da psicanálise é um artefato ideológico de má fé, no sentido sartreano da palavra, pelo qual a instituição psicanalítica encobre a sua adesão radical ao status quo vigente”. Essa afirmativa foi dramaticamente ilustrada pela S.P.R.J.. A esse respeito, tenho a contar-lhes uma eloquente história. Em 1968, participei das grandes eatas de então, e fiz parte da Comissão dos Cem Mil, que foi, inclusive, convocada pelo presidente Costa e Silva (mas esta é uma outra história). Quando veio o AI-5, em dezembro de 68, tive que me esconder, pois era bastante visado. Depois de algum tempo, apresenteime, porque não havia nenhum motivo para eu me tornar clandestino. Depois de um mês e meio, dirigi-me ao Ministério de Exército, junto com meu velho amigo, já morto, Nélson Rodrigues, escritor irável e falso direitista, porque um escritor irável nunca é de direita. Fui preso e processado pela Lei de Segurança Nacional. Eu poderia ficar mais ou menos tempo preso, na medida que o processo ficasse pronto com maior ou menor rapidez. Solicitei, então, da S.P.R.J., uma carta dizendo apenas o seguinte: “Declaramos que a prisão do Dr. Hélio Pellegrino pode eventualmente provocar ansiedade nos seus pacientes”. O texto é de uma modéstia comovedora, e não há nada mais verdadeiro do que essa declaração. Entretanto, a Sociedade se negou e dá-la, em nome do apoliticismo. Nesse mesmo ano, 1969, foi aceito como candidato da S.P.R.J. um médico chamado Dr. Amílcar Lobo Moreira da Silva. Esse médico, nos anos de 1970 a 1973, fez parte, inequivocamente – e eu sei o que estou dizendo, e sei a gravidade da informação que dou a vocês – do DOI-CODI da PE, da Rua Barão de Mesquita, do Rio de Janeiro. Ele fez parte de uma equipe de
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torturadores políticos. Esse homem, nesse tempo, estava em análise com o Dr. Leão Cabernite, então presidente da S.P.R.J. Ele declarou pela imprensa que o seu analista didata sabia das suas atividades, como membro da equipe de tortura. E procurou se justificar, na imprensa, dizendo que cumpria ordens e que nunca havia, pessoalmente, torturado ninguém. Ora, ninguém o acusou de introduzir charutos acesos nos orifícios corporais dos presos políticos. Não é essa a atividade de um médico numa equipe de tortura. Ele existe exatamente para impedir que o torturado morra. A função do médico, na equipe de tortura, é preservar, perversamente, a vida do torturado, para que o torturador possa continuar a torturá-lo. Os defuntos têm um soberano desprezo pela tortura e por tudo o mais. Portanto, essa pseudodefesa do Dr. Amílcar Lobo Moreira da Silva é algo muito, muito frágil. Não defende nem justifica ninguém. Apesar disso, entretanto, esse médico não foi expulso da S.P.R.J. Nada lhe aconteceu. Em 1973, os argentinos, Marie Langer e Armando Bauleo, fizeram uma denúncia do Dr. Amílcar Lobo como torturador. Receberam do Brasil um jornal clandestino do Partido Comunista, Voz Operária, que tinha uma nota sobre o terrível problema e publicaram a denúncia no primeiro número de “Questionamos”. O analista didata do Dr. Amílcar, Dr. Leão Cabernite, negou, cometendo perjúrio, e declarou, sob fé, que isso não era verdade. O Dr. Amílcar Lobo continuou, como candidato da SPRJ, protegido e acoitado pela instituição, que nenhuma providência tomou para apurar as acusações gravíssimas. Eu pergunto o seguinte: que apoliticismo é esse, que não dá a mim aquele santo e modesto documento e que aceita e protege um médico que faz parte de uma equipe de tortura? Isso não é apoliticismo de maneira alguma. É uma posição política absolutamente radical. Por fim, quero declarar que o “apoliticismo” psicanalítico nem sempre adota uma forma tão rombuda, crassa e grossa quanto na S.P.R.J. O que lá ocorreu, felizmente, não é nada comum. Não conheço outra sociedade psicanalítica que tenha acobertado um membro da tortura. Mas há outra forma, muito mais sutil, de entrada do elemento político na nossa atividade prática diária. Aparentemente, o psicanalista, no consultório, faz tudo, menos política. Ou seja, no consultório psicanalítico, não posso doutrinar ninguém. Não posso dizer: “Sou do PT”. Falo isso aqui, mas dentro do consultório não sou do PT, sou um psicanalista, um auditor do desejo do inconsciente daquele que me procura. O esforço de desalienação, no consultório do psicanalista, é exatamente o esforço de escuta do desejo do paciente: é para isso que ele me procura. Se faço doutrinação, se oriento meu paciente, se faço qualquer coisa que não seja essa cuidadosa escuta, favoreço, não a libertação do meu paciente, mas, pelo contrário, a sua neurose e, portanto, o seu sistema de alienação. 233
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Mas, então, por onde entra a política? A política entra através do preço que cobro. Há uma unanimidade entre os psicanalistas, no sentido de que não pode haver análise sem pagamento. Ninguém entra no consultório de um psicanalista sem pagar. Acontece que o pagamento é uma determinação do mercado. Não sou eu que determino o que é que vou cobrar. Posso interferir escassa e limitadamente, mas é o mercado que impõe sua lei. Não posso cobrar de um paciente que vai no meu consultório trezentos mil cruzeiros por hora. Se o fizesse estaria insano, e o sujeito que resolvesse pagar essa quantia se-lo-ia duplamente. O paciente me paga o que o mercado me permite cobrar dele. O mercado, portanto, entra no meu consultório como um elemento constitutivo do meu chão de trabalho. Não posso negar isto. As leis do mercado não pertencem à nosologia psicanalítica; entretanto, teço o chão do meu trabalho levando-as em conta, e cobrando de acordo com o que elas estabelecem. Dessa forma, faço política, porque as leis do mercado são fundamentos da realidade política. O que ganho no meu consultório, por outro lado, vai definir meu perfil de classe. O que ganho no meu consultório vai definir minha relação com a distribuição de renda. Isso não é psicanálise: é política. Depois que o tratamento começa, tendo eu combinado suas condições – pagamento inclusive –, ocorre uma coisa curiosa. Uma vez iniciado o tratamento psicanalítico, tudo o que nele se a sofre uma transubstanciação alquímica: tudo, sem exceção, ará a ser significante das linhas de força do campo de desejo que ali se criou. O setting analítico é justamente um artifício pelo qual eu crio um campo desejante para o paciente. Tudo o que ele disser vai ser tomado por mim como significante das linhas de força desse campo desejante. Aí sim, se um paciente traz o tema do pagamento na análise, e se a análise transcorre e decorre, vou tentar interpretar esse tema de acordo com a única política que faço no consultório: a política do desejo do paciente. Eventualmente, o dinheiro pode significar fezes, e o tema pode apontar para as fantasias anais do paciente. O jogo, no consultório, é realmente muito estranho e frequentemente irritante, porque tudo o que acontece é sempre uma outra coisa. Na vida cotidiana, a gente faz força para não tomar gato por lebre: essa é uma regra fundamental. No consultório do analista, a regra é o oposto: a gente toma, sempre, gato por lebre. Se o paciente fala gato, pensa-se em lebre, e se o paciente fala em lebre, a gente pensa em girafa, e quando ele fala em girafa pensa-se em leão. E a gente vai, através desse deslizamento do significante, tentar saber qual é o desejo que está querendo manifestar-se. Mas é preciso ser muito cuidadoso e muito estrito. Não se pode generalizar esse modelo, da mesma forma que um ginecologista não pode generalizar o modelo ginecológico. Dentro do 234 234 234
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consultório, o ginecologista pode pedir, de direito e de fato, que as senhoras se dispam, para que as examine. Fora do consultório, uma tal conduta seria, no mínimo, extravagante. Da mesma forma, o psicanalista, fora do consultório, não pode usar o modelo clínico. Ele não pode promover essa époque fenomenológica, esse “pôr em parênteses” a realidade, esvaziando-a, para fazer pelo puro significante. Quando o analista, fora do consultório, interpreta a realidade como se o mundo estivesse em sessão analítica, na verdade ele faz um jogo degradante para a psicanálise. Dentro do meu consultório, posso lhes garantir, sou bastante severo e estrito. Fora dele, assumo as minhas posições políticas, digo o que quero e a que venho, falo da minha filiação partidária. Porque isso é uma obrigação minha como sócio da pólis, da cidade, do país, da nação brasileira. Muito obrigado.
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 236-248, jul. 2011/jun. 2012
VARIAÇÕES
UQDTG"Q"HC\GT"EN¯PKEQ"FK/ VG"FQU"FKUVðTDKQU" FG"NKPIWCIGO<"q"vgorq"g" cu"eqpfkèùgu"rctc"c"gpwpekcèçq3 Sonia Luzia Dalpiaz2
O
presente trabalho teve como fatores desencadeantes uma série de questionamentos que me desacomodam, instigam e me conduzem a reflexões sobre a prática clínica no campo da fonoaudiologia, mais especificamente na clínica dos distúrbios de linguagem3, prática desenvolvida a partir da inserção em espaços clínicos interdisciplinares, em que a interlocução com outras áreas de conhecimento (psicanálise, psicopedagogia, psiquiatria, fisioterapia) está sempre presente. Antes disso, já participava de outras práticas, também inserida em equipes de saúde, como acadêmica do Curso de Enfer-magem e profissional da área da educação física, o que colaborou para a formulação de questões e reflexões que, aqui e agora, se aprofundam. A pergunta fundamental e que, ao longo de mais de dez anos de experiência como fonoaudióloga, se desdobra em muitas outras, é sobre como se constrói o fazer clínico: que recursos, movimentos e operações podem auxi-
Texto elaborado a partir da dissertação de mestrado da autora: Dalpiaz, S.L. Sobre o “fazer clínico” diante dos distúrbios de linguagem: o tempo e as condições para a enunciação. Dissertação (Mestrado em Teorias do Texto e do Discurso). Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. 2 Fonoaudióloga; Mestre em Teorias do Texto e do Discurso pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Sócia-Fundadora e Fonoaudióloga da Clínica Palavra Viva. E-mail:
[email protected] 3 Essa expressão, utilizada ao longo deste trabalho, deve ser compreendida na mesma perspectiva presente em Cardoso (2011): trata-se da clínica que acredita na indissociabilidade entre a linguagem e o sujeito que a enuncia, e entende o distúrbio como manifestação singular de linguagem que escapa à regra. Falando, ou não, o sujeito se marca na linguagem. 1
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liar para que se constitua um espaço possível para o sujeito com distúrbios de linguagem enunciar? Que fatores estão aí implicados? O que conduz um processo terapêutico? Como se relacionam o terapeuta e seu paciente diante das dificuldades que o trazem para o atendimento? Como se constitui o espaço da terapia, quais os lugares ocupados por essa dupla na cena clínica4? Procuro, aqui, ancorar teoricamente minha reflexão para tentar responder a essas indagações. Busco, para isso, a inspiração no pensamento elaborado pelo linguista Émile Benveniste5 sobre o que implica o ato de enunciar6. Tenho como objetivo instituir uma reflexão sobre o fazer clínico diante dos distúrbios de linguagem no campo da fonoaudiologia, norteada pela preocupação em eleger quais seriam as condições para a enunciação e pela questão sobre como é construída a relação entre o terapeuta e seu paciente na clínica dos distúrbios de linguagem. Guiada por questões advindas de minha prática clínica, busco, em especial nos estudos enunciativos de Benveniste, as noções teóricas para refleti-las e, ao final dos devidos cruzamentos, esboçar uma concepção sobre como contemplar as condições para que a enunciação se faça presente e possível. Realizo, no presente texto, três movimentos: o primeiro deles tenta refletir sobre a pertinência da proposta aqui desenvolvida no campo da literatura fonoaudiológica. Embora de forma breve, visito textos que circulam entre estudantes e profissionais desse campo, para tentar identificar a presença dos questionamentos que me mobilizam. Em especial, tento ver como são pensados os lugares que ocupam, desde as concepções teóricas definidas, o terapeuta e o paciente na relação clínica, procedimento, esse, decorrente de minha certeza de que o clínico da linguagem, independente do escopo teórico de sua atuação, precisa situar a si e ao outro na cena clínica, para mim condição sine qua non da clínica no campo fonoaudiológico. Entendo, nesse processo,
Uso o termo ao longo deste trabalho para me referir ao espaço físico, diálogos e situações que ocorrem durante uma sessão de fonoaudiologia. 5 Linguista sírio, naturalizado francês. Émile Benveniste se situa entre o grupo de autores fundadores do campo da enunciação, junto com Charles Bally e Mickail Bakhtin. A característica que une esse grupo de pensadores se situa no fato de que todos refletiram sobre a enunciação, mesmo que não se tenham dedicado a construir um modelo de análise da linguagem. Suas construções e reflexões sobre o tema da subjetividade, intersubjetividade, referência, e outros, influenciaram definitivamente o cenário da linguística sa, assim como em outros campos, tais como a filosofia e a psicanálise (Flores, et.al., 2009) 6 Vale lembrar que o autor não se preocupou especificamente com a clínica dos distúrbios de linguagem; entretanto, posso constatar que leituras e releituras de suas formulações permitem deslocamentos de grande valor para pensarmos sobre essa temática. 4
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que não há lugar constituído para essa reflexão nos textos analisados, pelo menos na forma como me proponho a realizar. O segundo movimento busca a aproximação ao pensamento de Benveniste sobre o ato de enunciar. Embora tenha a consciência de que Benveniste não tenha se dedicado, em seus estudos, a pensar sobre os distúrbios de linguagem, compreendo que muitas das noções por ele desenvolvidas podem auxiliar na construção da concepção que aqui desenvolvo. Destaco, de parte de sua obra, temas como singularidade, (inter)subjetividade, espaço e, em especial, o tempo. Finalmente, como terceiro movimento nesse texto, desenvolvo o que pude compreender sobre quais seriam as condições para a construção de uma relação entre o fonoaudiólogo e seu paciente e para tornar o ato de enunciar possível. Não se trata de uma concepção conclusiva, terminada: falo, aqui, de movimento na direção de, ou seja, conserva o caráter de mudança, em constante construção, que me acompanha, desde sempre. Entre os aspectos que coloco em questão, estão o lugar que ocupa o terapeuta na relação (para mim um lugar constituído por atravessamentos); a constituição do espaço de escuta e suposição na direção do outro; a imprevisibilidade como constituinte da enunciação; o tempo do sujeito, único e singular. Q"rtkogktq"oqxkogpvq<"tghngzùgu"uqdtg"qu"curgevqu"eqpuvkvwkpvgu" fc"tgncèçq"vgtcrgwvc/rcekgpvg"*rtgugpèc"qw"cwugpekcA+ Inicialmente, busco, junto a alguns textos de referência do campo da fonoaudiologia,7 a existência (ou não) da preocupação dos autores sobre como se dá a construção da relação entre o terapeuta e o paciente na clínica dos distúrbios de linguagem. Com isso, procuro lançar um breve olhar em busca do sujeito no campo da fonoaudiologia8. A pergunta fundamental que me acompanha nessa busca é: há lugar constituído, nessa literatura, para a reflexão sobre as condições necessárias para que o paciente possa se fazer sujeito no processo terapêutico? Dela decorrem outras importantes questões que norteiam a reflexão que aqui desenvolvo, a saber: como é apresentada, nessa bibliografia, a relação terapeuta-paciente? A fonte dessa leitura são textos identificados por Cardoso (2002) como sendo aqueles de grande circulação no meio acadêmico, visitados por leitores que se encontram em formação. Deles, destaco: Mota (2001), Zorzi (1999), Jakubovicz e Meinberg (1992) e Yavas, Hernandorena e Lamprecht (1991). 8 Os pontos que destaco, da referida literatura, podem ser consultados na dissertação que originou o presente texto. 7
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Como é vista a constituição da cena terapêutica? Que papéis são reservados ao terapeuta e ao paciente na cena? Quais os tempos implicados nessa relação? Não se trata de julgar o certo e o errado, mas de obter dados sobre como o tema do fazer clínico, sob a ótica da relação terapeuta-paciente no campo da linguagem, na clínica dos distúrbios da linguagem, tem sido pensado na bibliografia de referência da área. Quero, com esse movimento, identificar em que medida as questões que me instigam vêm interessando a outros profissionais do campo. A busca que faço, dessa forma, não é exaustiva, o foco é apenas ilustrar o que se produz, em geral, nessa área. Embora possa surpreender, durante o percurso que realizo desde a referida bibliografia, uma preocupação com aspectos que considero de ordem subjetiva, a leitura dos textos selecionados (v. Nota 7) indica que as questões que aqui problematizo não têm relevância para os autores consultados. Consigo vislumbrar alguma presença de questões ligadas ao que estou chamando de singularidade, mas esse tema não figura entre os destaques desses autores. Percebo que os autores focam maior atenção em estratégias de identificação e abordagem junto aos erros ou falhas na produção dos pacientes, o que confere, aos textos visitados, um aspecto de “manual”. As leituras dos materiais circulantes no campo da fonoaudiologia (v. nota 7) indicam a pertinência de minha reflexão. Concluo que os aspectos que me convocam a pensar sobre o trabalho desde a clínica dos distúrbios de linguagem não estão suficientemente contemplados na literatura que, em geral, circula nesse campo. Em linhas gerais, posso afirmar que nada é dito sobre o fazer clínico diante dos distúrbios de linguagem, sobre a questão dos tempos implicados ou sobre o questionamento em relação às condições para que o sujeito se enuncie e possa se apropriar da língua. Embora saiba que, para além do corpus analisado, já existem materiais mais recentes que problematizam a questão do fazer clínico na área de linguagem no campo fonoaudiológico9, sua circulação ainda é restrita ao meio acadêmico em nível de pós-graduação. Não se configura, portanto, como literatura de grande circulação. A intenção, com este texto, é poder imprimir novas marcas que possam apoiar as abordagens no campo da fonoaudiologia, fazê-las circular nesse ou em campos afins e abrir espaço para que novos questionamentos sejam formulados.
9 Como destaque, refiro os trabalhos produzidos por fonoaudiólogos no campo da enunciação, em especial os desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa em Enunciação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenado pelo professor Valdir do Nascimento Flores, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Surreaux (2006), Cardoso (2011) e Oliveira (2011)
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Q"ugiwpfq"oqxkogpvq<" c"gpwpekcèçq"g"c"enîpkec"fqu"fkuvûtdkqu"fg"nkpiwcigo Para realizar o segundo movimento a que me proponho neste texto, a construção de uma concepção de relação entre o fonoaudiólogo e seu paciente na clínica dos distúrbios de linguagem, busco ancoragem teórica através de um percurso de leitura da teoria da enunciação do linguista Émile Benveniste. Procuro, a partir desse estudo, compreender quais são as condições para o evento da enunciação, para, na sequência, então, operar os deslizamentos necessários a essa construção. Assim, não pretendo esgotar a obra do autor, mas realizar uma interpretação de alguns de seus textos. Aqueles que possam sustentar a discussão do que aqui proponho, sobre a clínica dos distúrbios de linguagem, guardando minha singularidade como sujeito leitor. Como afirmam Flores e Teixeira (2005, p. 8), “a leitura é também fenômeno enunciativo”. O sentido, nos dizem os autores, “longe de ser imanente, se apresenta como o resultado de um processo de apropriação do texto pelo leitor, que imprime sua singularidade na experiência da leitura.” Neste estudo, me interessa desvendar os termos pelos quais se constitui um espaço possível de enunciação para o sujeito com distúrbios de linguagem. Trata-se, na verdade, de recolocar o processo terapêutico sob exame para, a partir disso, pensar sobre como a relação entre o terapeuta e seu paciente é fundamental para construir um espaço da terapia na qual os lugares ocupados pela dupla são constitutivos da cena clínica. Elenco, então, as noções de subjetividade, intersubjetividade, tempo e espaço, discutidas ao longo da obra de Benveniste e retomadas, posteriormente, por muitos de seus leitores. Através dessas noções, pretendo destacar algo da ordem da singularidade do sujeito, que, segundo penso, é um ponto – embora não exaustivamente tematizado por Benveniste – decorrente de sua reflexão sobre enunciação. Para Benveniste, o homem sempre sentiu o poder fundador da linguagem como instauradora de uma realidade imaginária, como animadora do que é inerte; ela faz ver o que ainda não existe e traz de volta o que já se foi. Sociedade e indivíduo só são possíveis pela língua. Na criança, segundo o autor, o despertar da consciência é coincidente com o aprender da linguagem; é esta que a introduz, aos poucos, como indivíduo na sociedade. Conclui dizendo que a fonte desse poder misterioso que reside na língua está na capacidade humana de simbolização, que deve ser entendida como “a faculdade de representar o real por um ‘signo’ e de compreender o ‘signo’ como representante 240 240 240
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do real, de estabelecer, pois, uma relação de “significação” entre algo e algo diferente” (2005, p. 27). A faculdade simbólica no homem, segundo o autor, se realiza na linguagem, sistema simbólico organizado em dois planos: fato físico, por utilizar como mediador o aparelho vocal para se produzir e o aparelho auditivo para ser percebida; por outro lado, “estrutura imaterial, comunicação de significados, substituindo os acontecimentos ou as experiências pela sua ‘evocação’” (op. cit., p. 30). Nesse sentido, define a linguagem como uma entidade de dupla face. Além disso, destaca sua propriedade de organizar o pensamento e tornar possível o o de um sujeito à experiência interior de outro. Dany-Robert Dufour, filósofo francês, reflete sobre os processos simbólicos a partir da leitura de Benveniste e diz que a simbolização, capacidade exclusiva-mente humana, é adquirida e transmitida pelo discurso, o qual leva, com ele, todo um universo imaginário (Dufour, 2005). Para o autor, é por intermédio das narrativas que se transmitem, de uma geração a outra, um dom de palavra: “transmitir uma narrativa é, com efeito, transmitir conteúdos, crenças, nomes próprios, genealogias, ritos, obrigações, saberes, relações sociais” (op. cit., p. 128). É quando o destinatário pode se identificar como ele mesmo e situar , ao seu redor, os outros. Situá-los antes e depois dele. Sem que seja instituído o sujeito falante, segundo Dufour, não é possível que a função simbólica se transmita. É pelo discurso oral frente a frente que se opera o o à simbo-lização. Aprendemos com Benveniste: “Não vemos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem” (2005, p. 128). A partir dessa afirmação, Flores (2005) conclui que não há oposição entre sujeito e linguagem: sujeito é linguagem e a intersubjetividade sua condição. Retomando Benveniste: “é o movimento do discurso, para não dizer a enunciação, que recria indefinidamente o sujeito” (2005, p. 4). Se um diz, este um se dirige a alguém: surge aqui a condição para que a pessoa se constitua: o diálogo. Não há quem empregue eu a não ser quando se dirige a um tu. Para Benveniste, o que possibilita a linguagem é o fato de que o locutor se remete a si mesmo como eu no seu discurso, apresentandose ao outro como sujeito; reciprocamente, o sujeito, que nessa alocução é tu, a a ser o eu em seu próprio discurso. Essa polaridade entre as pessoas é, para o autor, a condição fundamental da linguagem. Eu e tu se referem, diz ele, à “realidade de discurso”, onde eu é a “pessoa que enuncia a presente instância de discurso que contém eu” (op. cit., p. 241
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27) e tu o indivíduo interpelado na instância que contém o tu, ou seja, se definem a partir de sua posição na linguagem. Surge, aqui, a noção que ele desenvolve sobre a questão da referência10, presença constante e necessária à instância de discurso, que une eu/tu aos indicadores de tempo, lugar, objeto. Eu e tu só existem na medida em que são atualizados na instância de discurso, onde marcam para cada uma de suas próprias instâncias o processo de apropriação daquele que fala. Benveniste introduz a densa discussão sobre as noções pessoa-não pessoa para pensar o lugar de ele: “eu” e “tu” são sempre únicos em cada enunciação (“eu” enuncia dirigindo-se a “tu”); “ele”, por sua vez, “pode ser uma infinidade de sujeitos – ou nenhum” (op. cit., p. 253). No diálogo, “eu” e “tu” se invertem; issto não é possível com relação a ele, uma vez que “ele” não designa uma pessoa especificamente. “Ele” tem, assim, uma posição particular. Sobre isso, diz Dany Robert Dufour: “ele” é a ausência necessária para a existência do espaço dual da fala. Em suas palavras, “para ser um, é preciso ser dois, mas quando se é dois, de imediato se é três” (Dufour, 2000, p. 55). É a trindade natural da língua, segundo Dufour: sem ela, representante da “essência do laço social”, a relação de interlocução não seria possível e a cultura humana, por sua vez, inviável. Cabe, aqui, o destaque de parte de sua reflexão: ...quando um sujeito fala, ele diz “eu” a um “tu”, a propósito d’”ele”. Falem e porão em jogo esse sistema e, a partir de então, um fantástico ordenamento do discurso será instantaneamente efetuado [...] aquele a quem eu falo adotará espontaneamente este sistema, mesmo que não compreenda nada do que digo ou que discorde absolutamente de mim [...] o prisma formado pelo conjunto “eu”, “tu” e “ele” funciona, de certa maneira, como um dispositivo no interior da língua, que inscreve sempre em seus lugares os alocutários... (Dufour, 2000, p. 69).
Bem, para mim, a partir da reflexão sobre a prática clínica, torna-se fundamental incluir a discussão sobre a questão do tempo. E não pode ser de outra forma, pois, desde meu ponto de vista, ele comparece sempre e seus efeitos constantemente se fazem sentir na clínica dos distúrbios de linguagem. Esse foi um dos motivos que me aproximaram de Benveniste como
10 Referência, em Benveniste, é a “significação singular e irrepetível da língua cuja interpretação realiza-se a cada instância de discurso contendo um locutor” (Flores et. al., 2009, p. 197)
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escolha teórica. Ele afirma que o tempo é uma característica constitutiva da enunciação. Está lá, desde sempre. A temporalidade, em Benveniste, é produzida pela e na enunciação, é o tempo em que se fala que indica o tempo em que se está, e esse, acrescenta, é determinado a cada vez pelo locutor, a cada vez em que se instancia o discurso: é o momento eternamente presente. Com isso, conclui que a temporalidade humana revela a subjetividade própria do exercício da linguagem. É a partir dessa perspectiva que penso que se constrói o trabalho: para mim, esse entendimento de tempo circunscreve uma realidade ímpar na clínica: olhar, escutar e compreender de que tempo se fala nos “aquis-agoras” dos atos de enunciação é o que promove a conexão aos sujeitos com os quais trabalhamos nessa clínica. Q"vgtegktq"oqxkogpvq<"q"vgorq"g"cu"eqpfkèùgu"rctc"c"gpwpekcèçq0" Eqpuvtwkpfq"woc"eqpegrèçq"fg"tgncèçq"gpvtg"q"hqpqcwfkônqiq"g"ugw" rcekgpvg Chega o momento de operar os deslocamentos: hora de cruzar o que percebo na prática clínica com o que fui descobrindo, junto aos autores visitados, ou seja, os fundamentos que me aproximassem da compreensão sobre as condições para a enunciação11. A base de apoio para a construção da concepção sobre como se constitui a relação entre o fonoaudiólogo e seu paciente tem a forma de um tripé: inicialmente, repouso a atenção sobre como se constitui o lugar do fonoaudiólogo, o que o atravessa a partir dos campos do saber e da própria cena clínica. Como segundo apoio estão as condições para que o paciente construa sua enunciação. Por último, destaco a questão do tempo na clínica dos distúrbios de linguagem. A questão dos atravessamentos, que defendo como necessários ao fonoaudiólogo em sua prática clínica, foi trabalhada a partir de duas perspectivas complementares e que, no processo de construção de um lugar no que denomino o fazer clínico, se harmonizam: de um lado, trata-se do que considero a permeabilidade do profissional à própria cena vivida no aqui-agora junto a seu paciente; de outro, da permeabilidade do campo a outros saberes que circulam no social.
Na dissertação que deu origem a este texto, os referidos deslocamentos estão descritos no capítulo 3, onde elenco reflexões advindas da prática clínica, retomo recortes de cenas clínicas e fui me deixando interrogar. Em um movimento de ir e vir entre o que percebia nessa prática e entre leituras e releituras dos textos selecionados, fui construindo minha concepção.
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Com relação à cena em si, considero a imersão do fonoaudiólogo no diálogo que se estabelece a cada instante, quando a alternância entre os sujeitos na cena, o imprevisível, a surpresa, o dito, o silêncio se façam presentes. Eis, portanto, a primeira questão que me move: se observarmos com atenção, percebemos que, ao nos depararmos com um paciente, melhor dito, com cada paciente, uma nova relação, a cada encontro, se constrói. A cada encontro e, sobretudo, a cada momento. Entendo, assim, que a relação entre o terapeuta e seu paciente não está dada, mas está sempre em movimento, sendo eternamente construída por seus dois personagens, que se alternam e montam cada cena. Lembremos o que nos ensina Benveniste (2005), quando diz que a realidade é reproduzida ou “produzida novamente” pela linguagem: no discurso daquele que fala, diz ele, renascem o acontecimento e sua experiência; por sua vez, aquele que ouve, primeiramente apreende o discurso e, por ele, o acontecimento. Assim se estabelece a comunicação intersubjetiva. Em resumo, o primeiro atravessamento que destaco para a construção de um lugar do fonoaudiólogo na clínica dos distúrbios de linguagem é o atravessamento da própria cena da qual ele é parte. O fonoaudiólogo não pode ignorar o que na relação se redefine a cada momento, isto é, que seu lugar implica o outro e se redefine a partir dessa relação. Deixar-se atravessar pela cena clínica, para mim, é o que permite e, mais que isto, garante a alteridade. Se nossa atenção recair somente sobre a forma como fala nosso paciente, o trabalho será desenvolvido na perspectiva do “conserto”; escutar o que ele diz e buscar os sentidos possíveis nos aproxima do sujeito. Deixar-se atravessar pela fala do outro, assim, é oferecer-lhe um lugar para enunciar. De acordo com Benveniste, “a linguagem é, para o homem, um meio, na verdade, o único meio de atingir o outro homem, de lhe transmitir e de receber dele uma mensagem”. E completa: “a linguagem exige e pressupõe o outro” (Benveniste, 2006, p. 93). Para trabalharmos com linguagem, nesse sentido, essa suposição de que o outro existe é condição; e, assim sendo, o imprevisível está sempre presente. Eis o segundo atravessamento, avatar do primeiro: o fonoaudiólogo precisa estar atento ao imprevisível, pois ele é constitutivo da cena. Com relação ao campo, trabalho com a ideia da escuta de outras áreas de conhecimento como provocadora de efeitos na atuação do fonoaudiólogo. Para mim, o trabalho na clínica dos distúrbios de linguagem, quando centrado nos sujeitos e não simplesmente em sua falha, pressupõe uma complexidade de que uma área isolada não dá conta. Ultraar as fronteiras de outros campos, deixando-nos atravessar por outros saberes, sem, no entanto, abandonarmos o que nos torna únicos, parece-me ser uma saída interessante. Assim compreendo a interdisciplina. Nela vejo o terceiro atravessamento que 244 244 244
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pode permitir a construção de um lugar para o fonoaudiólogo na clínica dos distúrbios de linguagem. Trata-se de atravessamentos que, embora de naturezas distintas (alteridade e imprevisibilidade têm um estatuto intracênico, enquanto a interdisciplina diz respeito à formação do fonoaudiólogo), operam de forma conjunta na clínica, não há uma hierarquia entre eles. Em última análise, ambos se fazem presentes e necessários na construção da cena clínica. A partir da reflexão que realizo, uma noção me parece ser condição determinante dos processos terapêuticos que se estabelecem no trabalho junto à clínica dos distúrbios de linguagem: trata-se da possibilidade de escuta do fonoaudiólogo, ou seja, a capacidade de ultraar a instância do ouvir, no sentido de perceber os sons e a forma como fala seu paciente, para a de escutar esses sujeitos no aqui-agora da relação. Assumir essa posição sustenta e define, em minha concepção, a forma como o fonoaudiólogo atua. Forma que supõe maturidade e coragem, uma vez que, em certo sentido, se contrapõe às demandas sociais de que “consertemos o que não está bem” e mesmo da “busca de resultados no menor tempo possível”, que permeia, ainda, nossa formação acadêmica. Quando falo em maturidade, me refiro aos processos por que amos na construção de nossa prática clínica, aliás, em constante movimento, desde que nos deixemos interrogar por ela. Buscar um “modelo a seguir”, nessa proposta, não a de ilusão. Escutar, na concepção que aqui estou desenvolvendo, carrega as noções abordadas: singularidade, intersubjetividade, alteridade, atravessamento, movimento, deslocamento, sujeito. Trata-se de posicionamento frente àqueles que nos procuram, condição para que se constitua um espaço possível para que o paciente ocupe seu lugar como sujeito. Essa forma de conceber o que entendo, aqui, como escuta, decorre, ainda, da noção de sintoma de que me valho nessa discussão. Para Flores, quando se trata de “patologia” de linguagem, a relevância se encontra no processo de construção da enunciação pelo locutor, mais que no produto. Diz o autor: “o sintoma de linguagem não é separado daquele que enuncia” (2007, p. 112). Na mesma direção, encontro em Surreaux (2006) a proposta de se tomar o sintoma de linguagem como ato de criação, uma “combinação singular”, afastando-o do status de “erro” ou “falha”. Quanto aos lugares que cada sujeito ocupa nessa relação e as suposições que entre eles circulam, compreendo que para o paciente há, na direção do fonoaudiólogo, a suposição de que ali está alguém que pode aliviar seu sofrimento; para o fonoaudiólogo, em minha concepção, a suposição na direção de seu paciente é de que ali há um sujeito e, como tal, alguém capaz de se 245
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apropriar de seu dizer. Para mim, como dito ao longo de todo este trabalho, trata-se de uma construção em via de mão dupla, em que cada um, desde sua singularidade, enuncia e, enunciando, se faz sujeito na relação. Como terceiro apoio do tripé que sustenta minha concepção está a questão do tempo na clínica dos distúrbios de linguagem. Trata-se daquele tempo que não pode ser medido e quantificado. Trata-se dos tempos dos sujeitos implicados na clínica: únicos, singulares, que variam de sujeito para sujeito. Tão inscrito, marcado e marcante em cada instante da relação que ali se estabelece, que, para mim, tem o status de operador: operador do fazer clínico, pois faz funcionar a cena clínica, ele se atravessa, constitui e significa. Comparece em todas as instâncias com as quais lidamos durante os processos junto aos pacientes: tempo para que o paciente formule a demanda de tratamento, tempo de avaliação, tempo de tratamento, tempo de construção da relação, tempo de enunciar, tempo de despedida... Semelhante ao atravessamento que a questão do sujeito e sua singularidade, desde a psicanálise, vem produzindo efeitos em minha prática, é nesse campo que inicio um percurso para compreender a questão do tempo, que aqui se apresenta. Para a psicanalista Sylvie Le Poulichet, a pergunta sobre o que é o tempo gera, para seu campo, um não-saber fundamental; a resposta final é inapreensível, e o efeito disso é a singularidade de cada experiência analítica, ou seja, não há uma progressão linear dentro de um tempo lógico. No trabalho analítico, a autora distingue as dimensões entre o tempo instaurador e o tempo de duração. O tempo de duração (número de sessões, duração da análise) não garante por si só a existência de uma experiência analítica; é necessário que seja aberto, como refere a autora, um tempo instaurador de agens. Esse tempo não pode ser pensado em termos de duração, ele é, antes de tudo, “um ritmo que dá lugar a um conjunto de laços e agens” (1996, p. 8) Em minha perspectiva, o processo por que a cada paciente em terapia é singular e, na medida em que se desenvolve, essa construção a a fazer parte de sua história. Os resultados desse trabalho são, assim, “consequência”, fruto do trabalho de dois sujeitos, responsáveis tanto pelo resgate de suas histórias individuais, como por colocá-las como pano de fundo para a criação de uma continuidade, juntos, construindo um caminho em direção ao futuro. Cabe, aqui, percebermos que, no momento em que se ite um cruzamento de histórias, ambas se modificam: o que ali acontece marca para sempre a trajetória de cada um dos sujeitos implicados. Aqui e agora, desde o antes e para o depois. O tempo é constitutivo do sujeito. Singular, individual, está tão imbricado em tudo que se faz, que pode parecer banal falar sobre ele. A obviedade de sua presença afasta-o de nossa consciência, mas, paradoxalmente, está ali,
Sobre o fazer clínico...
correndo nos ponteiros, construindo a existência de cada sujeito. O curso do tempo pode ser tomado desde a angústia e a pressa características da atualidade, com todos os efeitos que podem causar no trabalho na clínica dos distúrbios de linguagem, ou desde a posição de que ele constrói processos, institui movimentos, possibilita mudanças e cria o novo. Minha opção é pela segunda perspectiva. REFERÊNCIAS BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 2005. ______ . Problemas de linguística geral II. 2. ed. Campinas: Pontes, 2006. CARDOSO, Jefferson Lopes. Dialogismo e fonoaudiologia: a intersubjetividade na clínica. Dissertação (Mestrado em Teorias do Texto e do Discurso) Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002. _______. Princípios de análise enunciativa na clínica dos distúrbios de linguagem. Tese (Doutorado em Teorias do Texto e do Discurso). Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. DALPIAZ, Sonia Luzia. Sobre o “fazer clínico” diante dos distúrbios de linguagem: o tempo e as condições para a enunciação. Dissertação (Mestrado em Teorias do Texto e do Discurso). Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. DUFOUR, Dany-Robert. Os mistérios da trindade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000. ______. A arte de reduzir cabeças. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005. FLORES, Valdir do Nascimento. O sintoma na linguagem: por que gosto de Benveniste? CASA: Cadernos de Semiótica Aplicada, Araraquara-SP, v. 3, n. 2, p. 1-11, 2005. ______. Benveniste e o sintoma de linguagem: a enunciação do homem na língua. Letras: revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM, Santa Maria (RS), n. 33, p. 99-118, 2007. FLORES, Valdir do Nascimento; TEIXEIRA, Marlene. Introdução à linguística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2005. FLORES, Valdir do Nascimento et al. (Org.). Dicionário de linguística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2009. JAKUBOVICZ, R.; MEINBERG, R. Introdução à afasia: elementos para diagnóstico e terapia. Rio de Janeiro: Revinter, 1992. LE POULICHET, Sylvie. O tempo na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. MOTA, Helena Bolli. Terapia fonoaudiológica para os desvios fonológicos. Rio de Janeiro: Revinter, 2001. OLIVEIRA, Fabiana de. Aspectos enunciativos da relação falante, linguagem e outro na gagueira. Tese (Doutorado em Teorias do Texto e do Discurso). Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. SURREAUX, Luiza. Linguagem, sintoma e clínica em clínica de linguagem. Tese (Doutorado em Teorias do Texto e do Discurso). Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.
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Sonia Luiza Dalpiaz
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 249-255, jul. 2011/jun. 2012
VARIAÇÕES
Q"UWRGTGIQ"FC"ETKÑC G"C"ETWGNFCFG"PC"GUEQNC3 Alba Flesler2
Ici se marque le tranchant du couteau entre la jouissance de Dieu et ce qui, dans cette tradition, se présentifie comme son désir… Il met tout au contraire en valeur la béance séparant le désir de la jouissance. Jacques Lacan
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ara Freud, as instâncias moralizantes contribuem para a cultura. Quando se atinge alguma vantagem de forma delinquente, o sentimento de culpa irrompe como castigo para o sujeito, pois os poderes da consciência moral freiam a satisfação de se obter a vantagem há tanto tempo esperada. De acordo com essa posição, afirma-se que: “Nas crianças podemos observar diretamente que ‘são más’ para provocar o castigo, e uma vez que este é obtido, mostram-se tranquilas e contentes” (Freud, [1916] 1985, p. 320). Costumamos prestar atenção a suas reflexões, sem nos negarmos a formular nossas perguntas: por acaso, quando machucam outra criança na escola, perseguem o encontro com um severo rigor que as coloque frente à responsa-bilidade de seus atos?
Texto publicado em Imago Agenda. Número: 161, julho, 2012. Letra Viva, Buenos Aires. Psicanalista; Membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires (Argentina); Supervisora da Àpres-coup Psychoanalitic Association of the New York (USA). É autora de El niño en análisis y las intervenciones del analista (Editorial Paidós, 2011); Coautora dos livros Los discursos y La cura e de poetas, niños y criminales: a propósito de Jean Genet. E-mail:
[email protected]
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Os fatos nem sempre indicam isso. Elas não se parecem ao “pálido delinquente” nietzschiano. São muito mais próximas à atitude do pequeno Sergei, conhecido como Homem dos Lobos, que quando era criança tinha como objeto de crueldade pequenos insetos, pegando moscas para arrancar-lhes as asas e pisoteando escaravelhos, quando realizava suas “atividades plenamente sádicas de signo positivo” enquanto fantasiava com “crianças como objeto de maus-tratos” (Freud, [1914] 1985). É verdade que fantasiar não é o mesmo que fazer, como dizia Hans, em outro dos casos clínicos freudianos, assim como também é verdade que sua tentação pulsional cedeu ao influxo posterior da severidade do superego. No entanto, é notável descobrir o sujeito mortificado entre a pressão dos gozos pulsionais e os mandatos de um superego sádico e cruel. Entre um e outro, Sergei se debatia, aprisionado sem saída, sem lei reguladora para orientar os gozos no caminho do seu desejo. Por que essa lógica se repete? Q"dwnn{kpi<"cniq"swg"pçq"vgo"pqog" Diz-se que não se entende, que a atitude parece não seguir padrões de comportamento nem revelar pautas fixas, e que é motor de situações que têm levado algumas crianças ao assassinato ou ao suicídio. As sombras da morte parecem sobrevoar ameaçantes sobre o âmbito escolar e espaços circundantes, com variações de agressão que oscilam entre amostras de indiferença abismal e provocações humilhantes, entre zombarias e insultos, entre o silêncio e as mensagens humilhantes, entre pancadas e empurrões. É mencionado, descritivamente, que a criança tomada por objeto desse assédio pode ser gorda ou magra, alta ou baixa, calada ou extrovertida, nova na aula ou veterana; seus atributos não são causa suficiente para compreender qual é o ensejo inicial que desencadeia a tragédia. O que se sabe é que as vias se fecham, que para as crianças é difícil contar o quanto sofrem, que na maioria das vezes se calam, que tentam deixar de ir à escola, que somente encontram saída em uma agem ao ato fatal. Parafraseando Ulloa (1995), a armadilha cumpre seu propósito, a cena deixa de ser cômica, a tensão dramática detém seu curso e a tragédia ganha o cenário escolar, com uma ferocidade que não tem nome. Rqt"swg"pc"gueqnc"g"rqt"swg"go"etkècu"fg"egtvc"kfcfgA
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As neuroses da infância são, em geral, como dizia Freud e como nós analistas constatamos, episódios regulares do desenvolvimento: “ainda que se dê escassa atenção” ([1926] 1985, p.139).
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Os sintomas de agressão de crianças contra outras são episódios comuns na infância, não é um novo mal destes nossos tempos. No entanto, os episódios em progressão, precisam elucidar suas razões. Por que estão aumentando, nos últimos tempos, essas cenas no espaço escolar? Ansiosa por encontrar um nome, esta época de inquietude e incertezas as chamou de bullying, importando do inglês um termo que alude a quem usa a força ou o poder para ferir ou amedrontar as outras pessoas. O agressor age, tal como faria um bull, um touro. Trata-se, então, de alguém que arremete de modo bestial. O fato de não ser exclusivo entre as crianças não impede de se questionar por que a sua prática se afiança e se estende nas escolas, e por que essencialmente repercute em crianças e adolescentes na faixa dos sete aos quatorze anos. Q"swg"qeqttg"pguug"vgorq"fq"uwlgkvqA Meu interesse por indagar a distinção entre a idade e os tempos na estrutura do sujeito, levou-me a delimitar os tempos do real, do imaginário e do simbólico na constituição da estrutura, e a considerar que somente com um bom enlace entre eles se recria o vazio conveniente para a progressão dos tempos do sujeito. Insisti em ressaltar que, muito embora seu enodamento gere uma borda em cada um dos registros para abrigar o objeto como causa de desejo, é preciso lembrar que, e vale ressaltá-lo neste momento, o objeto também pode funcionar como um plus de gozar, obstruindo qualquer progressão. Costumamos confirmar que não há progresso, e coincidimos com Lacan, e que o ser humano guarda na sua própria constituição um caroço indestrutível. No entanto, que não haja progresso não impede considerar que haja progressão, ainda que saibamos que ela é contingente. Em certas ocasiões, devido à falta da incompletude, cuja lógica se faz necessária, a progressão falha, e os gozos circulam entre demandas vampirizantes e os desdobramentos superegoicos, cruéis e terminantes. Ambos escravizam o sujeito, incapazes de relegar uma porção de gozo idêntico e pertinaz oferecido ao altar de Outro não barrado. Todos os fundamentalismos se nutrem desse fator ativo, demonstrando que a ordem simbólica nem sempre é pacificadora; muitas vezes torna-se fonte de mandatos e sintagmas coagulados, nutrindo também o gozo do superego. 251
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Q"uwrgtgiq"g"q"kfgcn"pqu"vgorqu"fq"uwlgkvq Quando a ordem simbólica abriga um furo, principal e primeiro para a estrutura do sujeito, suas engrenagens se movem em uma lógica que ite a castração e faz da incompletude a promotora dos tempos do sujeito. Quando acontece, a palavra torna-se um significante para outro significante, e seu acervo abre a brecha diferencial entre o Ideal e o superego. O simbólico do Outro real, que assim funciona, oferece opções para colocar no horizonte do sujeito o Ideal do eu. Por esse prisma, a perspectiva se abre para quem aceita renunciar à miragem prazerosa e arrebatadora do olhar unificante, à tentação das pulsões constantes e ao gozo dos mandatos sádicos do superego, dando lugar a uma falta ocasional para enxergar além do seu próprio umbigo. Somente alcançando vislumbrar ideais e projetando nessa direção o seu desejo, o sujeito pode-se liberar do atordoamento egoico, das sujeições superegoicas e da dependência pulsional. Os ideais, herdeiros de uma diferença itida entre o Ideal do eu e o eu ideal, poderão propiciar o avanço subjetivo. o a o, descobrindo a distância entre o Ideal e o objeto, abrirse-á para as crianças uma oportunidade de andar pelo caminho da exogamia. Todavia, ninguém avança sem luzes pelo caminho, e a diferença pode-se tornar inaceitável, o familiar estender-se ao social, levando à segregação do outro, à rejeição ou, expressamente, ao aniquilamento. Normalmente, está bem demonstrado pelas ditaduras de todas as épocas que os transbordamentos pulsionais se dão bem com os excessos do autoritarismo mais cruel. Quando a castração do Outro não funciona, o gozo governa como se fosse um cruel tirano. Destinos pulsionais e sintagmas superegoicos tiranizam o sujeito e parecem unir suas forças sem limite, quando não dispõem do efeito pacificador de uma lei que legisle e regule. Gpvtg"qu"ugvg"g"qu"swcvqt|g"qu Los hombres se parecen más a su tiempo que a sus padres. Max Weber
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Cada momento da vida, cada tempo do sujeito demanda uma redistribuição de gozos. Concluída a primeira infância, se inicia a latência, mas, longe de ficarem latentes, os gozos ficam pulsando. O contraponto entre saber e sexo apunhala apressadamente o tempo de compreender aquilo que a criança descobriu na primeira ocasião de seu despertar sexual. O real do gozo gera urgências que não sabem esperar. São necessárias coordenadas simbólicas, que deem marco e limite aos transbordamentos. Elas se produzem, a seu devido tempo, na infância e são dependentes dos emblemas familiares e do
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discurso da época. Cada tempo histórico vai entregando, ou não, os recursos necessários para alcançar os objetos prometidos a gozos futuros. A faixa dos sete aos quatorze anos é o intervalo entre um e outro despertar; um tempo no qual as crianças não sabem muito bem o que fazer da sua vida. As vicissitudes da sua travessia podem estar cheias de aborrecimento e tédio, quando a homeostase egoica se impõe ou, ainda pior, de tentações pulsionais plenas de enredos e jogos desatinados presos à desorientação, quando não de mandatos superegoicos. Prisioneira de uma atualidade que satura os espaços e procura com veemência seu preenchimento, a possibilidade de encontro com o vazio fica reduzida para a criança, nada lhe causa a falta de objeto e tudo colabora para desorientar o desejo. A época contribui, inquietando os corações com a desvalorização dos ideais de outrora e enfrentando as crianças com graves falências na autoridade dos pais, tantas vezes mais desorientados do que elas. Com esse panorama, recorrem àquelas velhas e conhecidas instâncias que sempre sabem como matar o tempo: as tentações pulsionais e os mandatos do superego. Elas nunca se alimentam de perguntas, sempre oferecem respostas e se propõem realizá-las com prontidão e crueldade, sem sutilezas nem concessões, à risca. A demanda pulsional e o severo superego estão repletos de saberes consabidos, coagulados na linguagem que ausenta a palavra. A pobreza simbólica sempre se coloca ao seu lado e se torna uma aliada. Q"swg"hc|gt"rctc"hcxqtgeg/nc."pc"pquuc"cvwcnkfcfgA" A agressão aos outros sempre existiu nas crianças dessa faixa etária, e a segregação está na base de todo agrupamento. Seus ecos sempre ressoaram em todas as crianças que começam a transitar nesse momento da vida, no qual os grupos de pertencimento são o resguardo para ir além da sua família. Por isso, encontrá-los é tão importante, e o sofrimento, imenso, quando se enfrenta a exclusão. Muitas crianças emudecem quando se acumulam os gozos, e o sujeito não encontra resposta. Faltam as palavras, frequentemente há Verbluffung, sideração, porque o destino desse momento da vida depende dos recursos simbólicos recebidos do Outro real para abrigar o diferente. A falha se evidencia tanto para a criança que agride quanto para a que é assediada. A primazia das pulsões e dos fundamentalismos superegoicos é o efeito da progressiva falha da operação nominante do pai e o concomitante desfalecimento de sua função de autoridade. Assistimos a uma versão do pai desautorizado. Ele não se autoriza e também não o faz o discurso social, ao confundir a lei com a censura, a autoridade com o autoritarismo, e toda repressão como improcedente restrição da liberdade do sujeito. Quando nada é
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proibido, tudo é obrigatório. A existência se arrisca à mercê do gozo, e a vida acaba sendo levada por um tobogã em direção à morte. Chamam o bullying de “a epidemia silenciosa”, talvez porque, apesar de suas apresentações variadas, conserva um elemento comum: a ausência da palavra. A percepção dolorosa de uma repetição faz da testemunha o observador indiferente da ação, um bystander como é chamado pelos anglosaxões. Os maus-tratos sistemáticos e continuados entre pares não parecem chamar a atenção. Sem a suspensão dos gozos parasitários, o laço social vai à falência. E não deve nos surpreender, pois, que aquilo que não foi ordenado na cena familiar se mostre fora dela. Faz tempo que a escola se transformou no “ringue” de uma cena que leva ao âmbito público aquilo que não consegue processar no âmbito privado. Da família à escola, o “acting” se faz “out”, quando não a agem ao ato. Procura-se que alguém responda aos gozos pulsionais que ancoram em um cais inexpugnável. Chamado o Outro, que demora em responder, que desconhece que a urgência pulsional, não ite espera sem limites, que a agem à puberdade reclama um agente ordenador do trânsito, que o desfalecimento da autoridade, e suas consequências sobre a desacreditada função nominante do pai, hoje dirige sua reclamação para outro âmbito, um obrigatório, aquele ao que pela lei social se deve concorrer. Cenário de transição entre a endogamia e a exogamia, a geografia da escolaridade enfrenta nestes dias a pergunta pela responsabilidade que diz respeito a nós, os adultos, diante do problema escolar. Considerá-lo como sintoma libera a palavra amordaçada e nos convida a falar e a decidir.
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 256-265, jul. 2011/jun. 2012
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RQN¯VKEC."EWNVWTC"G""""""""""" OGTECFQ"PWO"OWPFQ" UGO"XCNQTGU<"fkânqiqu" gpvtg"rukeânkug"g"guvgvkec3 Paulo Endo2
[...] a arte não é política antes de tudo pelas mensagens que ela transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais, os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou sexuais. Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de… Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas, mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão.
Este artigo foi originalmente publicado na revista on line Trivium, ano IV, edição I, no 1º. Semestre de 2012. 2 Psicanalista; Professor Doutor do Instituto de Psicologia da USP; Pós-Doutorado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP/CAPES); Coordena o Grupo Psicanálise, Teoria Política e Psicologia Institucional (Diversitas/USP). É pesquisador do Laboratório de Psicanálise, Arte e Política (LAPPAP) e do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (LEI-USP) e membro do GT da ANPPEP, Psicanálise, Política e Cultura. Expert junto ao Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e à Violência Institucional. E-mail:
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Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder ou uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de “ocupações comuns”; é o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou não delas, etc. Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e das incom-petências, que define uma comunidade política (Rancière, 2005, p. 2 ).
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, talvez, examinando, contemplando e sendo interpelados pela arte, pelo artista e sua obra, que alcançamos o sentido radical da política. As interrogações sobre a natureza do espaço e do tempo compartilhados, a partir da ação significativa nesse próprio tempo e espaço, que desfaz e refaz concepções conhecidas, determinadas e imperecíveis convocam a radicalidade possível da arte. É nesse território, onde se manejam tempo e espaço, que a arte revela-se como urgente e necessária e é provavelmente por isso que ela é igualmente atacada, capturada, combatida e esgotada em seu potencial ofensivo e em sua radicalidade política. Uma das capturas mais prosaicas a que o fazer artístico está sujeito ocorre no cerne daquilo que se denomina, muito apropriadamente, de produção cultural. A cultura e os produtos derivados do fazer artístico são, frequentemente, alvos a serem capturados por sua funcionalidade e inscrição no fluxo de capitais e, dessa forma, muitas vezes são reduzidos a mero apanágio pantomímico de grupos específicos, envolvendo artistas, curadores, intelectuais e empresários desinteressados de qualquer crítica ou debate político ou estético radical, muito embora, claro, eles não estejam tão desinteressados de exercer sua influência pessoal para figurar no campo da arte considerada “consagrada”, exposta nos lugares igualmente consagrados e hegemonicamente prestigiados. Não raro torna-se difícil distinguir uma performance, exposição ou obra da espetacularização que lhe é coeva e das condições prévias (patrocínios, financiamentos, relações pessoais com curadores, etc.) que lhe servem de e para que aquela obra exista. Teixeira Coelho, ex-diretor do museu de arte contemporânea e curador do Masp (Museu de Arte de São Paulo), num programa de debates televisivo, quando indagado sobre a definição de arte, respondeu um tanto ironicamente: “a arte é aquilo que está no museu”. Ou seja, se um papel higiênico é encontrado no meio da rua é dejeto, se é encontrado numa sala na Bienal de São Paulo é arte. Com esse exemplo deixava evidente o problema de que, ao fim e ao cabo, a definição sobre o que é a
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arte, ao menos da arte consagrada e prestigiada no mercado da arte, estava mesmo nas mãos dos curadores. Bourdieu (2007) demonstrou como essa construção é pertinaz, contínua e regular, como também sugeriu que as definições sobre o gosto, uma vez consolidadas, a partir de processos históricos longitudinais, não são nada simples de serem decifradas. Ou seja, o que possibilita o surgimento e apagamento de preferências adquire inscrição inconsciente que, por sua vez, é reproduzida nas instituições de transmissão, como a família e a escola, de forma contínua e eficaz. Basta observar o universo das escolas particulares no Brasil para reconhecer, em muitas delas, a apresentação de Miró, Picasso e Kandinski como conteúdos praticamente obrigatórios nas disciplinas de arte, tal como a adição, a multiplicação e a divisão em matemática. Certamente a transmissão do que é ética e esteticamente aceitável está quase toda a cargo das instituições familiares e escolares, mas não só delas. É preciso considerar a televisão. Longe dos debates sobre a estética, podemos observar hoje o parentesco que a publicidade almeja ter com a arte. Os publicitários definem-se, sem qualquer cerimônia, como artistas. Em toda agência há lá um setor ou uma diretoria de arte e no festival anual internacional de publicidade, que é realizado em Cannes, uma das categorias premiadas é a de direção de arte. Abro parênteses neste ponto para lembrar que escola, família e televisão, sobretudo, são definidores e sugestionadores de padrões de eficácia incontestável. Se, como faz Bourdieu (2007), reconhecermos, no processo de constituição social de uma obra de arte, que de modo algum estão apenas na mão do artista aquelas condições que a definem como arte, então, indubitavelmente, podemos percebê-las em estreita conexão com as práticas, valores e estilos burgueses. Esse estilo se destaca pela imposição das regras de compra e venda, regras de comercialização e ingresso no mercado das artes, muito difíceis de evitar e driblar. Tudo deve ter seu preço e esse preço deve ser capaz de sustentar o artífice, seu ofício e os que com ele podem obter lucro e rentabilidade. O paralelismo entre a arte e a publicidade, evidentemente, não pode e não deve ser buscado em seu parentesco estético, mas na proximidade ideológica que pode haver entre ambas, e na perfeita oposição em que podemos perceber que aquilo que enfraquece e pode destruir uma (a arte e o artista), fortalece e produz eficácia em outra (a publicidade e o publicitário). Por isso, creio que é possível reconhecer nessa proximidade estranha o paroxismo, por aproximação e similitude, de uma certa definição aproximativa da própria arte. 258
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Isto é, se uma boa parte do mundo da arte,o mundo dos artistas e de seus iradores, consumidores, patrocinadores e críticos se organiza em torno da experiência burguesa - o mercado da arte - é porque o estilo de vida burguês, antes, já impôs sua penetração na produção cultural da arte, exigindo condições mínimas para que uma determinada forma de viver e fazer a arte sobrevivam sob seus auspícios. Poderíamos sintetizar tais condições na seguinte caracterização da arte, conforme sugeriu Bourdieu (2007): “...a distância objetiva em relação à necessidade” (p. 56). Daí se poderia extrair o próprio sentido implícito de liberdade presente no mundo da arte: a liberdade relativa à necessidade objetiva. O que sugeriria que toda expressão de necessidade é uma espécie de aprisionamento, já que a própria necessidade estaria presente naquilo que se poderia julgar como vulgar, rasteiro e não sublime. Retomamos e encarecemos aqui tanto o exemplo de Teixeira Coelho, citado acima, quanto um outro que acrescentarei mais adiante. Desse ponto de vista, o papel higiênico na rua não seria mais do que a expressão flagrante de uma necessidade humana, num certo sentido então, nas antípodas do que seria a arte. Já um papel higiênico num museu seria, ao contrário, o exemplo do anti-necessário, um supérfluo absoluto no contexto do museu, dos artistas, do mercado cultural e das pessoas que visitam o museu em busca de obras de arte. A necessidade como polo opositor da liberdade pleiteada pela arte, ou melhor, por uma certa arte, permanece igualmente distante do mercado publicitário, que não é outra coisa senão a imposição da necessidade do supérfluo. Nesse sentido entendemos talvez, porque o publicitário quer se reconhecer como artista e reivindica também para si esse título, não só banalizando-o, mas praticamente destruindo-o antes de fazer uso dele. Justamente porque é ele o artesão do inútil, do fútil e é ele que se apresenta como a célula-mater da constituição da vida burguesa, fundada na oferta de produtos e na aquisição massiva desses mesmos produtos. Quem não pode conviver, adquirir, irar o fútil não pode ser um burguês, especialmente porque, supostamente, estaria atado ao mundo vulgar e tirânico das necessidades e vetado à experiência do sublime e do fútil. A aspiração do mundo publicitário em direção à arte então ganha densidade. Não estariam muitos “artistas” ingressando na seara daqueles que produzem o desnecessário e o habilitam para o consumo, no chamado mercado da arte, representado, sobretudo, pelas galerias de arte privadas? Não se tornara prática corriqueira a busca desenfreada dos decoradores de interiores por quadros – de preferência executados por artistas consagrados 259
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–, para combinar com o tom da cor das cortinas e das paredes dos castelos, mansões e coberturas? Essas considerações, bastante superficiais, sobre um determinado cenário onde o mercado da arte se move, revela pontos de tangência com a publicidade que qualquer observador e consumidor comum de arte pode verificar, embora seja mais invisível aos especialistas, estudiosos da arte e a muitos artistas que se mantêm nas antípodas de processos como esse. A observação de Teixeira Coelho sobre o fracasso da arte contemporânea e seus ideários, assumidos na década de 60, quando grupos de artistas defendiam o fim dos museus e do mercado da arte, é elucidativa. Cito Teixeira Coelho: O museu não foi derrotado. Nem o mercado de arte. Nem as instituições como um todo. Mesmo porque, ao final da década de 70, uma nova atitude diante das instituições despontava: não se tratava mais de contestá-las, destruí-las, tratava-se agora, um tanto cinicamente, de aproveitar os aspectos positivos que podiam oferecer a cada um individualmente. Mesmo a tão radical arte conceitual foi suficientemente contemporânea para entrar na nova onda: [...], os próprios artistas queriam (e querem) que o museu e o mercado, no modo da galeria ou da bienal, lhes deem e às suas obras, a devida e necessária certidão de existência artística. Os próprios artistas querem mais: que o museu conserve aquilo que alegadamente não foi feito para durar. Se as instituições são a modernidade e se 68 foi contra esse espírito moderno e portanto contra a instituição, de seu lado a pós-modernidade é o reconhe-cimento (implícito e às vezes expresso) da existência da instituição, com a qual se a a conviver pacificamente. Muito pacificamente (2000, p.200).
O problema certamente não se encerra nas instituições como lugares onde uma obra pode existir, mas na necessidade intrínseca que a arte a a ter de sua institucionalização. Isso é, a pergunta apropriada nesse caso seria: como pode a arte existir num horizonte em que seu próprio desaparecimento é condição de sua existência e de sua legitimação? Como diz Rancière a respeito de sua, muito própria, concepção de estética:
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A palavra estética, não remete a uma teoria da sensibilidade, do gosto ou do prazer dos amadores da arte. No regime estético das artes as coisas da arte são identificadas por pertencerem a um
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regime específico do sensível. Esse sensível, subtraído às suas conexões ordinárias, é habitado por uma potência heterogênea, a potência de um pensamento que se tornou ele próprio estranho a si-mesmo: produto idêntico ao não produto, saber transformado em não-saber, logos idêntico a um pathos, intenção do inintencional, etc. (Ranciére,2005a, p.32)
O efeito de distinção sobre o qual Bourdieu (2007) chamou a atenção (ricos/pobres, expertos/ignorantes, cultos/incultos, etc), por sua vez amplamente ratificada pelo mercado da arte, revela a complexa institucionalização a que, muitas vezes, o fazer artístico foi e é submetido, e onde ele agoniza. Sendo assim, a arte não poderia ancorar-se jamais na positividade absoluta dos julgamentos arbitrários do gosto que constituem as instituições de arte. E quando ela o faz, arrisca-se ao seu próprio aniquilamento. É, diferentemente, no bojo de uma revolução estética que Jacques Ranciére compreendeu a própria possibilidade do inconsciente freudiano, que foi, para Rancière, uma das versões da revolução estética em curso no final do século XIX. O conhecido convívio, fundamental para Freud com a literatura, com os escritores de sua época, e a sua premiação com o prêmio Goethe revelam, de fato, que um debate estético estava em curso no seio da constituição do saber-fazer psicanalítico3 . É, do mesmo modo, intrigante a preocupação de Freud, em dado momento, com a institucionalização da psicanálise e os perigos daí decorrentes, tantas vezes ameaçadores para a própria psicanálise. Cito Freud: Porém estou seguro de uma coisa. Não importa muito qual seja a resolução que vocês farão recair sobre a questão da análise leiga. Qualquer que seja, só pode ter um efeito local. O que é verdadei-ramente importante é que as possibilidades do próprio desenvol-vimento que, em si, engendram a Psicanálise não podem ser restringidas por leis nem regulamentos (Freud, [1926] 1981, p.2953).
Essas palavras de Freud não são exatamente reveladoras do que aconteceu e acontece com o movimento psicanalítico, hoje repleto de instituições de todas as cores e credos, mas podem ser recordadas como alerta sobre um Não poderemos discutir mais apropriadamente esse aspecto aqui, porém remeto o leitor ao texto de Jacques Rancière intitulado El inconsciente estético. Buenos Aires: Del Estante, 2006.
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paradoxo: a necessária institucionalização, para que algo se transmita, deve vir acompanhada da contínua oposição a essa mesma institucionalização, que compacta e solidifica a coisa, a fim de transmiti-la a partir de posições de consenso. Trata-se da mesma questão que tentamos propor acima. O que são posições de consenso, quando se trata de uma obra de arte ou de um artista? Essa conhecida e autoevidente afirmação freudiana insiste em afirmar aquilo que foi necessário para que a própria psicanálise adviesse: a sustentação do pathos na experiência, mais tarde denominada psicanalítica, diante do estrondo ensurdecedor da ruína do lógos. Poderá isso caber e ser transmitido pelas instituições? Um pequeno exemplo, extraído da história da psicanálise, pode auxiliar a evidenciar o papel incerto que toda institucionalização comporta, sobretudo quando se trata de transmitir práticas e saberes que dependem de sua dinâmica instável e irresolúvel, como arte e psicanálise. Em 1910, Freud publica um texto intitulado Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. Recordemos apenas um seguinte trecho da biografia de Leonardo destacado por Freud em seu estudo: Pareço-me ter sido destinado a ocupar-me particularmente do abutre porque uma das minhas primeiras recordações de infância é que, estando ainda no berço, um abutre chegou até mim, abriu-me a boca com seu rabo e, várias vezes, bateu-me com o rabo entre os lábios (apud Viderman, 1990, p.136).
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A interpretação freudiana então vê nessa fantasia recordada ou recordação fantasiada o desejo de “ser amamentado por sua mãe, e vemos aí a mãe substituída por um abutre.” A atenção de Freud recairá sobre o abutre e a simbologia que o acompanha, por exemplo, na escritura sagrada egípcia, em que a mãe é representada por um abutre e toda a hipótese sobre a anseio de Leonardo em ser filho de uma mãe abutre, mãe viril, mãe, sem pai. Num trabalho de 1913, Oskar Pfister, amigo e discípulo de Freud, descobre que no Louvre, num quadro de Leonardo que representa Santa Ana, a Virgem e o Menino, na prega drapeada da vestimenta da virgem Pfister vê um abutre, como numa imagem enigma proposta pelo próprio artista. Descrevendo a imagem detalhadamente Pfister observa que “A extremidade à direita desse rabo está dirigida para a boca do menino, exatamente como seu prófético sonho de infância.” (apud Viderman, 1990, p.146) Em 1952, um especialista de língua e literatura italiana, numa nota ao pé de página, afirma que Freud traduziu de maneira equivocada o texto de Leonardo. Não se tratava de um abutre, mas de um milhafre, ave muito diferente.
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Segue-se daí, como consequência, a ruína de toda interpretação freudiana calcada na figura do abutre quanto mais ela seja referida às bases materiais da descoberta (abutre ou milhafre). De outro lado emergem, como numa erupção, os elementos constitutivos do trabalho psicanalítico revelados nesse ‘erro’. O parentesco que Freud encontrou entre o milhafre e o abutre resultaram de sua própria atividade associativa e fantasmática, bem como o abutre que Pfister encontrou no quadro de Leonardo, cuja tela em si mesma permitiu que ali fosse projetada a figura de um abutre. Essas interpretações sucessivas evidenciam-se então como trabalho associativo incessante que recobre a própria interpretação em psicanálise e a faz render, de onde seu caráter interminável. A interpretação da interpretação encontraria seu desmentido na reinterpretação que a sucede para fazer surgir no próprio espaço analítico [...] verdades que não estavam em nenhuma outra parte antes de serem construídas na situação analítica por meio do trabalho que a constitui” (p. 151 Viderman) “Pouco importa o que Leonardo tenha visto (sonho ou recordação); pouco importa o que Leonardo tenha dito (abutre ou milhafre) – o que importa é o que o analista, sem respeito pela realidade, ajusta e reúne esses materiais para construir um todo coerente que não reproduz uma fantasia preexistente no inconsciente do sujeito, mas fá-la existir ao dizê-la (Viderman, 1990, p.151-152).
Um sem fim de interpretações apoiadas sobre as bases frágeis do sentido e da significação, vindoura e fantasmática, conservam e perpetuam o trabalho psicanalítico. É precisamente isso que Freud, segundo Jacques Ranciére, apreendeu da revolução estética, sendo a revolução psicanalítica fundamento e expressão de ambas as revoluções, não só sintônicas, mas, num certo sentido, indiscerníveis. Nesse sentido, poderíamos falar de uma intervenção no espaço analítico e de deslocamento e refundação de lugares que nada devem aos significados instituídos e de consenso. De modo flagrante, o que se denuncia no episódio de Leonardo, e na reflexão de Serge Viderman, é esse desencontro notável entre duas expressões, a obra de arte e a psicanálise, que dialogam sobre suas verdades, na exigência que uma faz a outra na direção de seus princípios revolucionários. Daí o fracasso da interpretação psicanalítica se ela quer apenas compatibilizar elementos dispersos (a ave-a cultura egípcia-a simbologia das escrituras) em torno de alguma hipótese vitoriosa e constatativa, o que não seria mais do que voltar à primeira teoria do trauma cometido pelo genitor na
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gênese da histeria ou um giro em direção ao modelo proposto por Jung e a teoria dos arquétipos e a hipótese de um inconsciente coletivo.4 A possibilidade da interpretação fracassada da obra de arte revela o trabalho inconsciente do próprio Freud e, talvez, de Leonardo, cujo resultado é uma composição original, inédita e instável, como é a própria interpretação psicanalítica e seu devir. Podemos terminar com uma elaboração bastante satisfatória dos elementos que apresentei para vocês em relativa dispersão. Cito mais uma vez Rancière: O que está em jogo a princípio para ele (Freud)(...)não é estabelecer uma etiologtia sexual dos fenômenos da arte. É intervir na ideia do pensamento inconsciente que normativiza as produções do regime estético da arte, ordenar a maneira em que a arte e o pensamento da arte fazem jogar as relações do saber e o não saber, do logos e do pathos, do real e do fantástico. Com suas intervenções, Freud busca, antes de tudo, afastar certa interpretação dessas relações, a que joga com a ambiguidade do real e do fantasmático, do sentido e do sem sentido para conduzir ao pensamento da arte e à interpretação das manifestações da “fantasia” até uma última palavra, que é a pura afirmação do pathos, do sem sentido bruto da vida (2006, p.68) [tradução minha do espanhol].
Poderíamos extrair daí a potência política da arte e da psicanálise. Seu espírito inquietante no seio da adversidade gerada por toda e qualquer imposição de hegemonia. J.B Pontalis (1974) já havia dito que a psicanálise só existe ante aquilo que resiste a ela. Não se ará o mesmo com a arte? Poderíamos imaginar psicanálise e arte sem alguma resistência que se lhes oponha?
Remeto o leitor a Endo, P.C. Freud, Jung e o Homem dos lobos: percalços da psicanálise aplicada. Ágora, v.4, n.1,p.115-129, 2001; onde discuto mais detalhadamente o episódio Freud e Jung e algumas consequências metapsicológicas dessa dissidência no movimento psicanalítico.
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REFERÊNCIAS BOURDIEU. P. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Editora Zouk, 2007. COELHO, T. Guerras Culturais.São Paulo: Iluminuras, 2000 FREUD, S. Um recuerdo infantil de Leonardo da Vinci. [1910] In: ______. Sigmund Freud: obras completas, T.II. Madrid, Biblioteca Nueva, 1981,p.1577-1619. _____. Analisis profano. [1926] In: _____. Sigmind Freud: Obras Completas, T. III. Madrid, Biblioteca Nueva, 1981, p. 2911-2959. PONTALIS J-B. Bornes ou confins? Nouvelle Revue de Psychanalyse, n.10, automne 1974, P.5-16 RANCIÈRE, J. El inconsciente estético. Buenos Aires: Del Estante, 2006. RANCIÈRE, J. Política da arte. Disponível em: www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/ subindex.cfm?Referencia=3806&ID=206&ParamEnd=9. o em: 2005. RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005a. VIDERMAN, S. A construção do espaço analítico.São Paulo: Escuta,1990. Recebido em 13/10/2012 Aceito em 15/11/2012 Revisado por Maria Ângela Bulhões
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OBRA NA TOTALIDADE BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gramática inconsciente. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [19571958]. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1999. PARTE DE OBRA CALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et al. O laço conjugal. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994. p. 11-24. CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo. São Paulo: Comp. das Letras, 1993. p. 21-9. FREUD, Sigmund. El “Moises” de Miguel Angel [1914]. In: ______. Obras completas. 4. ed. Madrid: Bibl. Nueva, 1981. v. 2. ARTIGO DE PERIÓDICO CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? Cadernos da APPOA, Porto Alegre, n. 71, p. 12-20, ago. 1999. HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 14, p. 43-53, mar. 1998. ARTIGO DE JORNAL CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista com Maria Rita Kehl. Zero Hora, Porto Alegre, 5 dez. 1998. Caderno Cultura, p. 4-5. DISSERTAÇÃO DE MESTRADO KARAM, Henriete. Sensorialidade e liminaridade em “Ensaio sobre a cegueira”, de J. Saramago. 2003. 179 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária). Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2003. TESE DE DOUTORADO SETTINERI, Francisco Franke. Quando falar é tratar: o funcionamento da linguagem nas intervenções do psicanalista. 2001. 144 f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada). Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2001. DOCUMENTO ELETRÔNICO VALENTE, Rubens. Governo reforça controle de psicocirurgias. Disponível em:
. o em: 25 fev. 2003.
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