Serge Gruzinski - Pensamento Mestiço 536a6f

SERGE

GRUZINSKI

o pensamento

mestiço

Tradução

Rosa Freire d' Aguiar

SBD-FFLCH-USP

III~IIIIIIJ~ ~~~IIIIIIIII COi"ANA~"ETRAS

são contemporâneas

da instalação, entre 1570 e 1640, da primei-

3- O choque da conquista

ra economia-mundo." Em alguns decênios, espanhóis e portugueses conseguiram dominar a Europa ocidental, grande parte da América e as costas da África, afirmando

também suas ambi-

ções nas Filipinas, em Nagasaki, em Macau, nas costas da China, em Cochin e Goa, no oceano Índico. Empregaremos turas que ocorreram

a palavra "mestiçagern" para designar as misem solo americano

res humanos, imaginários tinentes

-

América,

no século

XVI

Europa, África e Ásia. Quanto

"hibr idação", aplicaremos

entre se-

e formas de vida, vindos de quatro conàs misturas

ao termo

que se desenvolvem

den-

tro de uma mesma civilização ou de um mesmo conjunto histórico -

a Europa cristã, a Mesoamérica

-

e entre tradições que,

muitas vezes, coexistem há séculos. Mestiçagem e hibridação dizem respeito tanto a processos objetivos, observáveis em fontes Quando se via o país por nossa visão interior, ele aparecia cheio

variadas, como à consciência que têm deles os atores do ado, podendo

essa consciência

se expressar tanto nas manipulações

que eles se dedicam, como nas construções discursos e condenações

de grandes trevas, mergulhado na conjusão das transgressões e

a

numa desordem absoluta.

que elaboram ou nos

Motolinía,

que formulam." As mestiçagens desencadeadas

pela conquista do Novo Mun-

do' parecem indissociáveis de dois outros fenômenos América do século

XVI:

Memoriales

maiores na

de um lado, o que costuma se chamar "o

choque da Conquista", e, de outro, o que chamei de ocidentalização,

essa empreitada

multiforme

que levou a Europa ocidental,

no rastro de Castela, a fazer a conquista dos territórios

do Novo Mundo.'

das almas, dos corpos e

O fato de as mestiçagens

ame-

ricanas terem se inscrito numa fase de expansão da Europa e num contexto de colonização impede que sejam reduzidas a um fenômeno cultural. Se queremos compreendê-Ias,

não podemos

trair seus laços com a Conquista e a ocidentalização

que as acom-

panham. Resta esclarecer a natureza desses laços. 62

abs-

63

nham

3

MUNDOS

DERRUBADOS

se transformado

nou-se Em geral, as mestiçagens águas turvas,

dos tempos

em leitos de identidades

as mestiçagens

nascem

quebradas.

necessariamente

sencadeadas

pela expansão

colonial

riavelmente

sobre os escombros

modernos

na América

e pavoroso

genas. Devemos

do período

Um e~pítulo Cidade

descrição

haviam

de sua crônica

do México,

inva-

apelidado descreve

humano,

crueldade,

e o sangue

do Méxi-

e seus aliados

indí-

a um monge

fran-

de Motolinía,

as repercussões

"O Pobre". da queda

da

no início dos anos 1520:

de sangue, matou

as atrocidades

entenda-se.

"Nesta

"esta terra

crianças

e adultos.

adas: terra

que se derramava

tor-

a prática

reinara

uma

era oferecido

Foi

do saimensa

a Satanás,

o anjo demoníaco." A segunda

...": a Cidade

espanhóis

que os índios

iniciam-se

de uma derrota.

Em 1521, esse "ano triste

ciscano

as de-

de morte". A doença

assim que Deus castigou crifício

Se nem todas

de uma conquista,

co cai nas mãos de conquistadores a melhor

dão-se em

sangue

em torrentes

praga

arrastou

os combatentes

indígenas

para a

morte:

A água lamacenta

da lagoa da Cidade do México deu rãs, em vez

de peixes. Os mortos boiavam, inchados, ingurgitados nham os olhos exorbitados brancelha,

olhando

de água, ti-

como as rãs, sem pálpebra

nem so-

em direções opostas, sinal que mostra a dis-

solução do pecador... Deus castigou

esta terra com dez pragas muito cruéis por causa

da dureza e obstinação

de seus moradores,

e por reterem prisio-

neiras as filhas de Sião, isto é, suas próprias Faraó [... J. A primeira

almas sob o jugo do

dessas pragas foi que, num de seus navios,

Os cadáveres envenenando roboram

atulham

as águas dos lagos como

o ar e os alimentos.

Os testemunhos

peixe podre, indígenas

cor-

a visão aterradora:

veio um negro atacado de varíola, uma doença que nunca se tinha visto nesta terra.' Uma epidemia índios,

e regiões

Então, muitos mo tempo,

de tamanha

inteiras

morreram

dizimadas,

virulência

perderam cuidar

a comida".

enterrá-Ias,

mandaram

mortos,

dando-lhes

seus lares como

de feridas

"a grande de varíola

do que ocorrera 64

todos adoeciam

os

ao mes-

e não havia

Em vários lugares,

"e para acabar

entre

de seus moradores.

uns dos outros

podiam chamada

espalhou-se

a metade

de fome: "Como

não podiam

guém para preparar ras foram

E ossos quebrados

famílias

ninintei-

com o fedor, já que eles não

derrubar

parecer

as casas têm seus telhados

afundados

Os cabelos são esparsos; e suas paredes avermelha-

das. Nas ruas, nas praças os vermes proliferam, ma dos muros estendem-se

enquanto

em ci-

os miolos. A água está avermelhada

como água que tivesse sido tingida. Beberam-na

tal como estava.

Bebeu-se até água salobre. [... ) Valíamos todos a mesma coisa, jovem, padre, moça ou criança.'

as casas em cima dos

sepultura".

Essa doença

foi

leprosos".

no Egito, onde as águas, as nascentes

À hecatombe

segue-se

a fome: "A fome faz sofrer cruelmen-

te, estica e torce o estômago

e as tripas

A exemplo

Dessa grande

morreram

e os rios ti-

soas de pouco".'

lepra", "pois dos pés à cabeça eles se cobriam que os faziam

jazem nos caminhos.

fome muitos Fome,

guerra,

até que venha a morte entre

epidemia,

os pobres

[... [.

e as pes-

os três cavaleiros 65

do

Apocalipse

dedicam-se

a riscar os índios da terra onde eles vi-

viam."

em masmorras

de onde só saem

para morrer, "pois os espanhóis os tratavam de maneira bestial e

À desorganização

pelo abandono

torquir seus bens; trancam-nos

da. produção

causada pelas destruições

dos trabalhos agrícolas somam-se

novo sistema de exploração

e

os estragos do

e a punção dos impostos.

Contra-

faziam deles menos caso que de seus animais e seus cavalos'." Por todo lado, gigantescos rebanhos

humanos

dade do México, onde são marcados

convergem

para a Ci-

com ferro em brasa. É a oi-

mestres e escravos negros tiranizam os índios como os "opresso-

tava praga, e não a menor delas. A nona é ainda pior. É o trabalho

res egípcios que faziam o povo de Israel sofrer". "Eles envenenam

forçado nas minas. A descrição do monge dispensa comentários:

e corrompem

tudo, fedorentos

como carne atacada por moscas,

em razão de seus maus exemplos." Invasores que, na Espanha, não avam de camponeses

julgam-se

dar ordens aos senhores "naturais"

Quanto aos escravos mortos nas minas, o fedor deles era tamanho

senhores e começam

a

do México; negros "se fazem

que provocou uma pestilência, em especial nas minas de Huaxyacac. Lá, a meia légua ao redor e em boa parte do caminho só se an-

servir e temer mais do que se fossem os senhores dessa gente'" A

dava sobre cadáveres e ossos. Os abutres e os corvos que vinham

desagregação das hierarquias

devorar os corpos dos mortos e se refestelavam com essa cruel car-

sociais acompanha

nos igualmente incontroláveis. "nos laços e nas correntes

outros fenôme-

A febre do ouro joga os espanhóis

do demônio,

sem sofrer ferimentos cruéis".

Enquanto isso, as aldeias se despovoavam

A Cidade do México, antiga capital dos mexicos e que se tornou a "cabeça da Nova Espanha", está no centro do turbilhão. reconstrução te os primeiros

A

da cidade é uma tarefa gigantesca, "da qual durananos participa

Templo de Jerusalém,

nificina eram tão numerosos que faziam sombra ao sol."

de quem não escapam

mais gente que na edificação

na época de Salornão"

Mobilizou

do

formi-

A crise não poupou

as fileiras dos vencedores.

pragas do México foram piores que as do Egito: duraram

com as cargas que lhes eram im- .

tempo, causaram

postas: "Enquanto

uns recebiam vigas, outros caíam

da cobiça dos homens do que da manifestação

no vazio ou eram arrastados pela queda das construções

demoli-

das aqui para serem refeitas ali". Como no Apocalipse,

num fu-

racão de trovões e raios a cidade foi dividida em três e entregue

As rivalida-

des entre os conquistadores geraram tumultos: "dissensões e facções" arrastaram o país à beira da guerra civil. Por isso é que as

gueiros de homens extenuados trabalhavam,

e os índios se refu-

giavam nas montanhas. Foi a época das "trevas pavorosas e opacas':

IMAGENS

mais mortes,

DE CATÁSTROFES

resultaram

E CHAVES

mais

mais da crueldade

e

da ira divina."

MILENARISTAS

"à cobiça da carne, à dos olhos e à arrogância dos vivos". É assim que a pena de Motolinía denuncia a vaidade dos vencedores lou-

o monge

tira suas imagens e interpretações

do Êxodo e do

cos para construir para si mesmos casas gigantescas com que suas

Apocalipse. Sua retórica da catástrofe e do castigo destina-se, em

linhagens jamais poderiam sonhar.

primeiro

Milhares de índios são reduzidos à escravidão. Pais vendem os filhos para pagar o tributo. Atormentam-se 66

os nativos para ex-

perspectiva

lugar, a fixar os acontecimentos metafísica e providencialista.

da Conquista A lembrança

numa das pra-

gas do Egito, a evocação do segundo, do sexto e do sétimo anjos 67

do Apocalipse

conferem ao relato um alcance universal e ressal-

tam a singularidade

do acontecimento.

Águas pútridas,

rios de

sões entre os vencedores. Às repercussões

ta, identifica das nas três primeiras pragas, acrescentam-se

sangue, espíritos imundos surgindo da goela do dragão e ela Bes-

tos desestabilizadores

ta, raios e trovões, paralelos históricos com a queda de Jerusalém

reCém-chegados

e sua destruição

tos e a edificacão da infra-estrutura

por Tito: tudo é lembrado

para traduzir

a con-

imediatas da Conquis-

da dominação

os efei-

espanhola. A instalação dos

provoca uma precariedade

geral: os maus-tra-

colonial esgotam a mão-de-

fusão dos tempos, pintar os estragos da doença e da guerra, des-

obra indígena. A escravização

de grande parte dos vencidos es-

crever a perversão das relações sociais e o reino ir elo ou-

maga as velhas estratificações

sociais, ellq uan to os confrontos

ro e da prata.

entre conquistadores

Desde a Idade Média, textos e imagens de tradição

líptica fornecem os meios para se imaginar a desordem e visualizar suas repercussões

aterradoras.

As paredes da Capella Nuova

da catedral de Orvieto são uma prova. Foi lá, nos últimos anos do século xv, que Luca Signorelli representou cristo, longamente

comentado

tão de descrever e explicar os transtornos tolinía, a crise do México da Conquista, espetaculares

e calamidades

de arte." Os

são um modo crisdo mundo. Para Mo-

submetido

a mutações

inauditas, só pode ser expressa pelas

formas extremas do relato apocalíptico." Não é a inflexão milenarista modo de Motolinía referências

interpretar

a.o Apocalipse

ele reconheça

e ao Velho Testamento

As

fornecem-lhe

geradas pela Conquista,

seu aspecto aproximativo:

sas foram inteiramente

tão bem o país que muitas ca-

abandonadas.

Não houve nenhuma

que

ignorasse a dor e as lágrimas, e isso durou anos."

Na pena de Motolinía, a desagregação se caracteriza pelo ritmo acelerado e pelos descontroles: "Era grande o afã com que nos primeiros que impunham

anos os espanhóis

fizeram escravos [... ], a pressa

aos índios". O monge toma o cuidado de diferen-

ciar os choques exógenos -

militares ou epidêmicos

mente ligados à invasão, das perturbações

que nos interessa aqui, mas o uma situação imprevisível."

um modelo para as catástrofes

As revoltas e as pragas destruíram

o reino do Anti-

pelos historiadores

afrescos de Orvieto ou o texto de Motolinía

arrastam o país para a beira do abismo:

apoca-

"Olhando

embora

bem, há for-

pelo estabelecimento

endógenas

dos espanhóis. A instabilidade

mina a paisagem social nos primeiros

-,

diretacausadas

crônica do-

decênios' da colonização.

Por último, em vez de se ater a uma explicação providencialista - Deus castiga os índios -, O monge reintroduz a responsabilidade

dos homens

na engrenagem

das catástrofes

que eles

tes diferenças entre essas pragas e as do Egito". O monge esforça-

provocam. E os homens de quem fala são tanto os espanhóis co-

se em estabelecer

mo os índios. Se a epidemia, assim como a guerra, aparece como

uma relação entre a série de acontecimentos

por ele escolhidos.

Longe de ser arbitrária,

a sucessão de pragas

que se abatem sobre o México forma um repertório dos fatores da crise: epidemia tirania dos intermediários

-

senfreada de ouro -

reconstrução

de muitas mortes -

escravidão

68

estragos da guerra -

extorsões de todo tipo -

detalhado fome busca de-

da Cidade do México à custa -

trabalho

nas minas -

divi-

um castigo divino dirigido contra as diferentes camadas da população indígena, outros males fustigam vencidos inocentes, impotentes ou aterrorizados.

Desde a terceira praga, o alvo do mon-

ge a a ser outro. Ele compara

os conquistadores

espanhóis

aos "opressores do Egito que afligiam o povo de Israel", a carrascos que tratam os índios como animais, a adora dores do Veloci69

no de Ouro que caíram nas redes do demônio. Agora só se trata

dígenas recuperados

de "atribulações

res e muralhas

e provações que se abateram

sobre os índios". A

"visão dos vencidos" se substituiu à dos vencedores. Mas, na conclusão; Motolinía volta a questionar cepção das coisas. O capítulo caos social: divididos espanhóis

se encerra com a constatação

e prestes a se matarem

listas ou maniqueístas,

do

uns aos outros, os

são cercados pelos índios, por sua vez dispostos

vestir contra seus vencedores."

denteadas

dievo-renascentista, essa per-

Afastando as interpretações

o monge restitui a instabilidade

à castelhana.

os modelos imaginários

vas de reconstrução. surpreendente:

A composição

turando corpos, odores e vozes.

é um convite a

captar o ado em sua desordem e complexidade, mas sem que o monge abdique um só instante de suas convicções profundas. Dessa representação

do ado -

com a realidade que designa -, nascimento

que não deve ser confundida

reteremos que um monge do Re-

não estava mais mal equipado

que nós para descre-

ver o choque da Conquista.

dos conquistadores,

de sua população

também é

e nos edifícios públicos, mis- .

À confusão dos espaços soma-se o desregulamento

rências temporais enfrentam.

resultante

das refe-

das diversas temporal idades que se

Nos anos de conquista,

as temporalidades

como elas são, ou seja, como construções

aparecem

próprias a cada univer-

so, representações da agem do tempo, expressas por instituições, ritos e técnicas de medição. A sociedade pré-hispânica dava a maior importância gar fundamental

à «conta dos tempos", que ocupava um lu-

na cosmologia. Calendários elaborados mediam

. o ar do tempo para indicar a sucessão ininterrupta A DESORDEM

DAS COISAS

que ritmavam

o ano indígena. As celebrações

cerdotes nauas a possibilidade Por volta de 1530, olhando a Cidade do México do alto das ruínas ainda maravilhosas

da pirâmide do Templo Mayor, tería-

mos descoberto

uma espécie de monstro

tura heterogênea

feita de vestígios de desabamentos

sendo construídos.

e de edifícios

A guerra e, depois, as obras para se construir

uma cidade à espanhola quebraram pré-hispãnica.

urbano, uma arquite-

as linhas regulares da cidade

Mas esta não se tornou um burgo de Castela, cujas

raízes teriam se fincado no centro dos palácios destruídos.

O ho-

rizonte urbano junta ou justapõe e, no mais das vezes, superpõe um amontoado 70

heterogêneo

de restos abandonados,

edifícios in-

efeti-

quistadores vindos de toda a Espanha, negros da África vivem lado a lado nas ruas, nas residências

seu testemunho

nesse «meio vencida, a alte-

nobres indígenas, escravos e criados índios, con-

À diferença das versões hispanófilas

redutoras,

e me-

as ambições urbanas das novas linhagens e as capacidades

turbações de um mundo que ele pudera observar nos anos 1520. ta, ambas igualmente

Hispano-indígena

a nova cidade desenvolveu-se

petl pré-hispânica,

dua-

ou indigenófilas da Conquis-

casas fortes dotadas de tor-

lá, meio cá" indefinível que separa a aglomeração

a in-

e as per-

ou demolidos,

aos sa-

de agir sobre os ciclos do tempo,

que eles sabiam acelerar ou retardar tâncias. As corridas desenfreadas des do vale precipitavam

das festas

ofereciam

de acordo com as circuns-

que organizavam

entre as cida-

o seu ritmo; as lentidões calculadas da

vítima que galgava os degraus da pirâmide antes de sucumbir sob a faca deobsidiana

adiavam temporariamente

te. A orgia de oferendas e vítimas contribuía da dos deuses que se alimentavam mente pelos sacrifícios humanos. A chegada dos espanhóis

o instante da morpara prolongar

do sangue jorrado

a vi-

generosa-

e a abolição das grandes festas-

proibidas, assim como foi proibido o sacrifício humano,

ou, do-

ravante, irrealizáveis ação -

por falta de homens, recursos e liberdade de

mergulharam

as massas indígenas num vazio crescente.

Em poucos anos, elas se viram privadas dos meios de marcar a agem do tempo e de exercer sobre ele uma influência quer. O Tempo entre os índios -

ou, mais exatamente,

qual-

o que lhe correspondia

se pulverizava.

Ora, o tempo dos cristãos não podia se substituir de imediato aos tempos indígenas." instalou-se um período estranho, perturbado

pelas aparições

diária, é ainda mais complicado

imaginar o mal-estar que ela di-

consideradas

uma antecipação

da ocupação

do México. Como

livrar a Cidade do México do dcsti no dos povoados das Antilhas, que, mal foram fundados,

acabaram

vezes refúgios de fantasmas

desertados,

que aterrorizavam

tornando-se

às

os visitantes

de

agem?

"ZONAS

ESTRANHAS"

CONQUISTA

E INSTABILIDADE

CRÔNICA

Arrisquemo-nos

ao anacronismo

e voltemos ao filme Euro-

pa, de Lars von Trier. Não ocorreria a ninguém aproximar

a der-

rota da Alemanha hitlerista e a queda do México indígena. Mas, na maneira de Lars von Trier filmar, descobre-se namente bem-sucedida,

a vontade, ple-

de evocar em imagens a interpenetração

de dois universos que se enfrentam. ilustra o choque das memórias

Uma seqüência

e dos tempos. A bor-

do de um trem que se lança n~ noite alemã por entre os escombros de um país derrotado, campos de concentração,

surgem perfis saídos do universo dos imagens monstruosamente

de esqueletos dentro de seus andrajos de deportados, dos sobre estrados superpostos. sado nazista engatam-se de Europa, instaurando

O imediato pós-guerra

continuidades

No México, assim como em todas as frentes do Novo Mundo, a chegada dos europeus foi, primeiro,

sinônimo

e caos. Gerou zonas de altas turbulências,

tanto no Caribe (1493-

1520) como nos Andes (1532-55),.s.u Não se pode compreender turas provocadas

pela conquista

espanhola

se esquecemos

esses

"Alterações e discórdias", anota o cronista Pernández de Ovie-

amontoa-

das por um questionamento

inconcebíveis.

no Brasil dos portugueses.

dados iniciais. do." Abaladas pelas dissensões,

e o pas-

de desordem

a evolução da colonização nem as mis-

familiares

um no outro como os vagões do trem

No México, o caos da vida urbana e a confusão acentuaram

ser quc a colonização antilhana e a catástrofe que se seguiu fossem

dessa situação interme-

fundiu.

alucinante

de nenhum precedente, a não

dos antigos deuses e as do novo de-

mônio. Se é difícil analisar a estranheza

apocalíptica

ciedade para a qual não dispunham

revoltas ou guerras civis, agita-

radical dos aparelhos políticos e das

hierarquias ancestrais, essas "zonas estranhas", para retomar a expressão de Lars von Trier, tornam-se

em poucos anos o teatro de

uma fratura das sociedades locais e de uma metamorfose do tempo

a desordem política e social. Ao longo de todo o de-

rada do corpo social. Elas enfrentam perturbações,

acele-

todo tipo de flutuaçõ

es e

que na maioria escapam à influência dos homens.

cênio de 1520, a falência das soluções implantadas pelo novo poder aumentou a balbúrdia geral. Impotentes, ou indiferentes,

É o caso dos estragos causados pela morte e pela doença em po-

diante da hemorragia

demográfica

de barrar as patologias européias. As epidemias introduzidas

dígena, os dirigentes

espanhóis

72

que dizimava a população

tiveram de improvisar

in-

uma so-

pulações autóctones los europeus mataram

desprovidas

de defesas imun itárias capazes

as gerações e as memórias

pe-

com mais efi73

cácia do que as espadas de aço ou os canhões ensurdecedores

de

cheiro nauseante.

tremadura,

No rastro da Conquista, surgiram "zonas estranhas" nas ilhas antilhanas,

no México, e depois no Peru e no Brasil. A expressão

"sociedade

colonial" é imprópria

para qualificá-Ias,

certo grau de realização e uma estabilidade

relativa que só serão

lhões de criaturas. Em vez disso, distinguimos

o aparecimento

de

"agregados" tão indefiníveis quanto incertos a respeito de seu futer liquidado

conta que, a todo instante, com a presença

espanhola

os índios poderiam

mo um fato irremediável. turbulências

estas, às vezes, se intensificam, -

co-

Esses agregados am por fases de

mais ou menos acentuadas,

mais ou menos longas;

provocando

(no Peru), ou então terminam

pois à imbricação

forçada -

potência não poupam

construção

brutal-

crôn ica. A precariedade

e dee a im-

dos novos estabelecimentos:

em que repousava

a

em sua maioria os arte-

sãos "estavam doentes, magros e famintos, e pouco podiam porque lhes faltavam as forcas"." No México, os invasores europeus constituem 74

no desconhecido

Irnprevisível

uma escassa legião cortada de suas bases insulares -

e no imprevisível.

tendo desembarcado

em novembro,

numa paisagem de

nevadas, diante de uma aglomeração

que provavelmente

da descoberta:

em abril de 1519 na costa tropical de Veramonstruosa,

é então a maior cidade do mundo,

Imprevisível

po espanhol seguramente

da Conquista:

México-

as dissensões-no

cam-

deixaram Cortés e seus partidários

em

perigo tanto quanto as reações dos indígenas. Atacadas, aterrorizadas

e derrotadas,

as sociedades

mutiladas, socialmente que pretendiam

indíge-

fraturadas, dizima-

exercer na maior parte do indígenas

dos espanhóis,

mais favorecidos, logo tomam consciência

da preca-

riedade de sua situação e da incerteza que os espreita. As relações entre vencedores, vencidos e colaboradores dos saídos de universos com trajetórias tão diferentes seqüências disso são de uma complexidade

apegados a seu esta-

a pôr a mão na massa, a doença en-

o meio profissional

longe de seus pa-

Dia após dia, eles afundam

tampouco

à justaposição

quando os primeiros colonos, furiosamente fraquece e desorganiza

desde a infância, exilando-se

a que tinham

rentes e de seus amigos?" (Oviedo)

México central. Mas os colaboradores

os invasores. Desde a chegada às Antilhas,

tuto de hidalgos, recusam-se

sido acostumados

deram a hegemonia

numa estabi-

de sociedades e grupos que a Con-

quista atirou numa instabilidade

para trás todas as comodidades

de suas

das pela guerra e pelas epidemias. Os mexicas e seus aliados per-

lização progressiva, como no México. Tais agregados correspondem

entre to-

em terras tão distantes

pátrias, deixando

nas são politicamente

catástrofes humanas

os três milhões de mortos nas Antilhas, entre 1494 e 150820-

e guerras contínuas

"Como é possível que tenha havido sobreviventes

Tenochtitlán.

da fatalidade, segundo a

Ex-

Andaluzia, País Basco.

montanhas

verdade que as relações de forças foram por muito tempo reverexpressão de Raymond Aron, nos faça enxergar a Conquista

e separada de suas raizes ibéricas -

cruz, os invasores acham-se,

se Deus não os tivesse

mantido num "estado de cegueira" e de milagrosa ividade. É síveis, se bem que a ilusão retrospectiva

ete. -

dos os que foram se estabelecer

pois supõe

atingidos após um ou vários decênios, sem falar da morte de mi-

turo. Motolinía

Cuba, Hispaniola

precedente porque as hibridações

-

to-

e as con-

sem precedente.

Sem

da Ibéria medieval são processos

diferentes das mestiçagens da Conquista. Se a história da península foi por muito tempo feita de trocas e conflitos, de misturas e coexistências entre três mundos, o cristão, o judeu e o muçulmano, contatos se estenderam

no tempo -

"freqüentavam" havia séculos -

os

os habitantes da Espanha se

e se desenvolveram sobre um fun-

do comum: o paganismo antigo e o monoteísmo. 75

sem se expor a uma grande desolação c sem desabar dia após dia,

Na América, o choque é tão brutal como imprevisto. Não se resume a uma questão de simples defasagem,

na falta de um rei e de um chefe à sua frente."

nem à colisão de

dois sistemas estáveis, em que um tivesse de repente sido perturbado pelo surgimento conquistadores

do outro. O ambiente

não tem nada de um bloco monolítico.

sores se vêem socialmente

A corrupção

em que vivem os

como um aglomerado

pouco recomendáveis:

"Naqueles

Os costumes

são relaxados,

zem o que lhes dá na telha." A guerra civil ameaça estourar a qual-

de "diferentes

quer momento entre os conquistadores divididos em "ligas e cabalas", "facções", "partidos", "clãs", arrastados por suas paixões e

inícios, se ava

um homem nobre e de sangue ilustre, vinham dez mal-educados

ambições tirânicas, formando

e outros de linhagens

acusados de querer imitar os comuneros de Castela."

tes e desenraizados mo tipo formarão si1.

24

obscuras e baixas"," Inúmeros

afluem às Índias espanholas; o grosso dos portugueses

Disparidades

regionais

somam-se

castelhanos, bascos e extremadurenhos

delinqüen-

Os imaginários

outros do mes-

detestam-se

dos fatos, assimilariam

cordialmen-

introduzem

uma heterogeneidade

perturbados.

de que descobriam

era mais desnorteante

nado de início. As imagens saídas dos romances de cavalaria _

pelo

deres locais tradicionais,

si só, não conseguiam

sua aura ancestral,

que as novas autor idades hispânicas impor. É que a Conquista

no imperador

a influência

autoridade.

É

do novo poder

Carlos v, que reina ora na Es-

panha ora nos Países Baixos. As distâncias oceânicas e continentais atrasam a transmissão

mais adiante se revelaram

de

""'-

estranha e diabólica. Por algum tempo sonharam

com as sierras

da Dama de Praia e com seu palácio de metal precioso, antes de se deixarem

embalar pelas notícias fabulosas que chegavam do

Peru ou que descreviam, longe, ao norte, as Sete Cidades de Cibola, essa versão norte-americana do Eldorado amazônico."

das ordens e informações.

Para Motolinía, esse afastamento

torna o México, pura e sim-

plesmente, ingovernável: Não se pode bem governar de tão longe um país tão grande; uma coisa tão separada de Castela c tão distante não pode ser mantida 76

explicar -

o que, por

pouca valia, quando tiveram de começar a governar aquela terra

ao o

penam para se definir e se

minou toda e qualquer

limitada, para não dizer inexistente, soberano, encarnado

e privados de

sofrem uma crise de legitimidade,

que

do que haviam imagi-

que bem no começo serviram para que interpretassem

militarmente

do deus

e que a realida-

choque da derrota e pelas deficiências do quadro político. Os poderrotados

e seleção

logo perceberam

os vencidos não eram judeus nem muçulmanos,

re-

e as tensões que os opõem ainda mais acentuada

Os mexicas

a chegada de Cortés ao retorno

Quctzalcoatl." Quanto aos conquistadores,

indígenas e europeus -

ligiosa, lingüística, física, social etc. -

estão igualmente

de, após um paciente trabalho de releitura, maquiagem

sociais:

te e têm a maior dificuldade para se entender. A diversidade dos protagonistas

tantos grupos de pressão que são

tiveram a maior dificuldade em situar os invasores, e só mais tar-

que povoam o Braàs diferenças

a

Inquisição espanhola tem pouca influência e os mais fortes só fa-

Os inva-

espécies de gente";" a se crer em seus cronistas, são quase sempre indivíduos

é generalizada.

MESTIÇAGENS

As relações entre vencedores e vencidos também assumiram a forma de mestiçagens,

alterando

os limites que as novas auto77

ridades procuravam

manter entre as duas populações.

primeiros

tempos, a mestiçagem

corpos -

quase sempre acompanhada

ticas e crenças -,

introduziu

Em sua esmagadora

biológica,

isto é, a mistura

pela mestiçagem

mente violentas para incriminar "os sofrimentos,

de

as mudanças

de prá-

maioria, os primeiros emigrantes comerciantes,

tureiros de todo bordo. Sol teiros ou separados ficaram em Castela ou nas ilhas antilhanas),

euro-

combinada

aven-

vocou o irreparável:

das esposas (que

que acompanhavam

os conquistadores

a febre do ouro, a imperícia,

a exploração desenfreada da mão-

impostos às pressas só fizeram intensificar importação maciça de escravos da África. dar exprime a desordem

mantiveram

terra está perdida", "tudo já está perdido

com essas mulheres relações quase sempre violentas

riam atrás de si. Estupros, concubinagens, finido -

os mestiços -,

bem se deveriam munidades

mais raramente

gam os conquistadores

casa-

ao universo espanhol

indígenas. Em princípio,

gar numa sociedade juridicamente dos índios" e uma "república

0\1

a

no México dos anos 1520: "A e cada dia se perderá

uns contra os outros, como à má condurégios e ao impudor

das pros-

titutas ou ao destino dos espanhóis crivados de dívidas, atirados numa prisão ou condenados

às co-

os mestiços não tinham ludividida em uma "república

reinante

ta das mulheres dos funcionários

de tipo novo, de estatuto inde-

a respeito dos quais não se sabia muito

ser integrados

e que desencadeou

mais"." A expressão aplica-se tanto às disputas armadas que jo-

com as jovens criaturas que deixa-

mentos, geraram lima população

que os paliativos

O México conheceria o mesmo destino? Uma fórmula lapi-

nem sempre procuravam

refrear os excessos. As índias eram presas fáceis dos invasores, que e efêrneras, sem se preocupar

o desperdício,

com boa dose de indife-

Seguiu-se um genocídio "sem premeditação","

mente fora do controle da Igreja. Por muito tempo o clero euroà mais estrita expressão, e os poucos padres

dos invasores,

de-obra indígena, que eles nem sequer pensavam em alimentar.

por estarem em terra pagã, pratica-

peu esteve reduzido

A rapacidade

um

com a ausência absoluta de know-how colonial, pro-

rença e desprezo, precipitaram

os europeus arroga-

as experiências,

que por pouco não pam

os objetivos de curto prazo, misturados

de qualquer vencedor. Comportaram-se

com ainda mais liberdade

e as novidades"

ponto final na questão indígena."

um novo elemento perturbador.

peus eram homens: soldados, funcionários,

ram-se as prerrogativas

zos, outra grande figura da época, não tem palavras suficiente-

Desde os

--

a vagar de ilha em ilha. As conse-

qüências dessa "perdição" para as novas gerações indígenas igualmente desastrosas:

são

dos espanhóis". A [ortiori, quando

se tratava de mulatos nascidos de negras e espanhóis, gros e índias."

ou de ne-

Os jovens de dezoito a vinte anos são tamanhos

vagabundos,

são

tão descarados, bêbados, ladrões, têm tantas amantes, são assassi-

Por todas essas razões, índios, negros e espanhóis

tiveram

nos, celerados desobedientes,

mal-educados,

insolentes e glutões."

de inventar, dia após dia, modos de convívio ou, especialmente os primeiros,

soluções de sobrevivência.

improvisação

venceu a norma e o costume. Foi nesse quadro con-

turbado

que se iniciou o processo de ocidentalização.

cessantes "derrapagens" denunciou 78

Em todos os campos, a Daí as in-

e os impulsos assassinos que Las Casas

em sua Histeria

de Ias Índias. O dominicano

Betan-

Como descrever essas perturbações de apreendê-Ias

não decorre apenas do número de variáveis que

implicam, da imprevisibilidade disparidade

em cadeia? A dificuldade

de trajetórias

que se cruzam, da

de heranças que se chocam. Decorre também da in-

definição dos conjuntos que se enfrentam:

onde começa o mun79

do indígena, onde termina o dos conquistadores? tre um e outro são a tal ponto imbricados

distúrbios e da Conquista

Os limites en-

do século

que se tornam indis-

XVII,

o cronista índio Guaman Poma de Ayala descreve

uma visão aterrorizada

sociáveis. Na verdade, é impossível descrever simples ou univoca-

pesam de modo irreversível. No início

da cidade de Lima às voltas com a confu-

. são entre os grupos e os sinais distintivos:

mente situações tão diferentes como as trocas entre um espanhol e os índios que o cercam, as relações entre as duas comunidades na Cidade do México, ou os vínculos que ligam as duas popula-

Ele viu a cidade cheia de índios ausentes de suas aldeias e circu-

ções no país inteiro. Um mesmo grau de indeterminação,

preca-

lando como bem queriam, tendo se tornado criados ianaconas ou

caracteriza essas diferentes situações, que

instalados como artesã os, quando na verdade eram enviados para

riedade e improvisação

não deveríamos nos contentar

trabalhar nas minas; índios tributários

em analisar em termos de acultu-

de baixa extração porta-

vam um cabeção e uma espada, vestiam-se como os espanhóis;

ração e de deculturação.

outros cortavam o cabelo para não pagar tributo nem servir nas minas. É o mundo pelo avesso [... ]. Da mesma maneira, o autor DO PERU DAS REVOLTAS

AO BRASIL

viu enormemente

DOS MAMELUCOS

índias putas carregadas de pequenos mestiços e

mulatos, todas com saias, botinas e toucas; ainda que sejam casadas, vivem com os espanhóis e os negros, e o mesmo acontece com

No Peru, a desordem foi mais profunda, espetacular e duradoura. Como em outras partes, a irrupção nos Andes provocou

outras que não querem se casar com índios nem sair da cidade pa-

dos conquistadores

ra não abandonarem

um choque social, político e religioso. ~as

dois assassinatos acentuaram

a instabilidade

política e a incerteEssa longa série de turbulências,

za sobre o futuro do país: Diego de Almagro morreu decapitado em 1538 e, três anos depois, Francisco Levantes em série alimentaram pela participação adversários

cias nitidamente

Pizarro foi assassinado.

um clima de guerra civil atiçado

das facções incas divididas entre partidários

dos espanhóis.

sua vida de puta."

Esses acontecimentos

e

contribuíram

mais marcadas

confere às mestiçagens peruanas contradas no México.

características

O Peru parece, assim, ter concretizado

rios. Se as hesitações

autóctones,

mortalidade

num clima de crise das nobrezas

das populações

indígenas,

mento e autodcstruição dos invasores. Foi preciso esperar até meados do século

descnr aiza-

indígenas,

distintas das en-

A colonização do Brasil apresenta um outro quadro, que ignora tanto as guerras civis peruanas

periência mexicana despertara,

de resistên-

entre as populações

para atrasar a instalação de um poder colonial forte e respeitado. todos os temores que a ex-

acompanhadas

como o 'choque dos impé-

da política colonial e a dizirnação

dios nas guerras parecem

aparentar

dos ín-

a situação brasileira

Andes e à do México, a fraca presença portuguesa

à elos

impõe ritmos

mais lentos e, ao mesmo tempo, deixa margem de manobra maior para que a si-

aos grupos de interesses e aos indivíduos

estabelecidos

tuação começasse a se estabilizar e, mais ainda, esperar a chega-

nova. Estes são em parte os degredados,

ou seja, delinqüentes

da elo vice-rei Toledo para que a Coroa impusesse definitivamen-

portugueses

te sua regra a todos os partidos. Ainda assim, as repercussões dos

em parte aventureiros europeus. Daí os comportamentos

q"

XV]

condenados

na terra

ao exílio do outro lado do Atlântico,

e

que va81

lerão à Terra de Santa Cruz uma reputação corrosiva e a prolife-

lhes vem da grande misericórdia

ração de mestiçagens,

os alimentos

cujo testemunho

será uma população

nu-

merosa o suficiente para receber um nome: os mamelucos.

Mais

que nos Andes e no México, as fronteiras entre as populaçõeseuropeus, mestiços, índios convertidos,

índios da floresta -

americanos,

o convívio diário com índios e índias

abalam os costumes e impõem esforços constantes e interpretação.

são

de Deus"," As estações do ano e

franciscano

"A todo instante

semeia-se

de adaptação

e colhe-se", nota o

Pierre de Gand, que não esquecia os invernos rigo-

movediças e pouco nítidas. Mas a ausência de um sólido enqua-

rosos de sua Flandres natal. A evolução dos quadros de vida e das

dramento imposto pela Coroa também confere, e por muito tem-

tradições, que na Europa era lenta e ava quase despercebida,

po, toques selvagens e brutais a essa ocupação, sobretudo

sofre de súbito uma aceleração com aprendizados

e experiências

novas. Negros e europeus

contextos

do ele se traduz

na escravização

depois na importação

das populações

quan-

autóctones

e

maciça de negros da África."

transformam

estão em luta contra

irremediavelmente

que

o sentido das coisas e das rela-

ções entre os homens. Para todos, inclusive os índios, deu-se, em todos os sentidos A PERDA

da palavra, um fenômeno

DAS REFERÊNCIAS

de distanciarncnto,

Pela força das circunstâncias, A era perturbada

que a Conquista

de forma duradoura

inaugurou

influenciaria

o modo de vida das sociedades da América

ibérica. Os adversários

abandonam,

pela força das circunstân-

cada um teve de "recuar"

ca ou as do México anterior à Conquista.

cias. O desmoronamento

o sentido que lhes era atribuído

dígenas, os estragos das epidemias, a interrupção ensino tradicionais, e a exploração

dos sistemas de

a proibição das formas públicas de idolatria

desenfreada

de que são vítimas deixam as popu-

lações indígenas desoricntadas dentes os tormentos

ou prostradas.

Também são evi-

elos escravos negros arrancados

africana e exportados

de sua terra

à força para o México, o Peru e o Brasil,

terras ainda mais desnorteantes Mas o desenraizamento

que as metrópoles tampouco

ibéricas.

poupa os conquistado-

res, que tinham cortado todos os vínculos diretos com a terra dos

Outros fenômenos

recidos tiveram efeitos igualmente perturbadores. tos dos universos tradicionais

das dinastias in-

de seu

meio de origem, fosse esse os campos andaluzes, as costas da Áfri-

cias, ou perdem, sob o efeito da derrota, parte de suas referênou o enfraquecimento

físico e psíquico.

transitavam

Vários elemen-

ou da Europa ocidental perderam originalmente.

de um mundo a outro acabavam

mória de que eram portadores;

sua circulação

Os objetos que cortados

da me-

entre os grupos

dissociava-os da tradição e, às vezes, do poder que continham. mesmo aconteceu

pa-

O

com todos os tipos de práticas e crenças. Co-

mo os índios poderiam

interpretar

as imagens pintadas

ou gra-

vadas, vindas de uma Europa a respeito da qual não tinham a menor idéia? De que mecanismos

dispunham

conteúdo, analisar suas formas, compreender

para captar

seu

o que os europeus

ancestrais,

a casa solartega, a cidade, o ciclo das festas locais, os

entendiam por imagem e representação? A "descontextualização" também não poupava as práticas e

protetores

sobrenaturais

crenças locais. Ocasionalmente,

tomava a forma extrema do de-

sencantamento,

a um só tempo a perda de senti-

cujo culto era mantido pelas confrarias

ibéricas. Uma sensação de distanciamento

obceca esses espanhóis

"tão longe de Castela, sem receber socorro nem ajuda, salvo a que 82

que acarretava

do e a perda de legitimidade.

Criaturas e coisas estavam privadas 83

de sua aura ou de sua força, pois os laços que as uniam à concep-

das em outro tempo ou em outros lugares. Nesse sentido, a con-

ção global, por assim dizer metafísica, da vida e do cosmo se des-

quista espanhola "secularizou"

faziam. A derrota e a humilhação

a informação."

Em outros campos, as pesquisas

das aristocracias indígenas ques-

tionaram concepções que lhes atribuíam de forma quase orgânica

es

parcelas de divindade."

indígena esquemas de interpretação

A destruição

dos ídolos teve um alcance

mais imediato ainda: o aniquilamento

feitas pelos missionários,

e médicos espanhóis projetavam

que o resumiam

ções de uma "natureza" desencantada,

material do objeto deixa-

no ambiente às propor-

de uma "fauna" ou de uma

va apenas cinzas e fragmentos mutilados, e sua fundição fazia de-

"flora" expurgadas de qualquer presença pagã de origem amerín-

saparecer para sempre as preciosas formas metálicas. Ao quebra-

dia. Com raríssimas exceções, as dimensões "metafísicas'' atribuí-

rem os ídolos e demolirem as pirâmides, os invasores ministraram

das pelos índios ao mundo que os cercava eram censuradas,

ig-

noradas ou desprezadas

em

. a prova da impotência

radical dos antigos deuses. Ainda que o

gesto não bastasse para demonstrar

sua inexistência,

desviar a curiosidade

o choque

era duro. Isso foi apenas o início brutal da dessacralização

dos

seres e das coisas, mas acelerou ainda mais a desorientação

dos

índios, na medida em que se deu junto com a interrupção nitiva dos grandes ciclos cerimoniais. Às agressões espetaculares acrescentavam-se de compreender

as nOV

çados pelo confronto

coloniais e os desafios lan-

questionava

inúmeros

comporta-

antigos pela escrita alfabética, o manuscrito

ou com

nova relação com a informação, dios, fazia as vezes de informação. terial de surpreendente

dos códices

e o livro introduziu

aquilo que, para os ín-

A adoção de um e

rnizá-las."

Mas a obrigação

exigências

formuladas

exercício desnorteante

interlocutores,

a sile"nciá-las ou mini-

de fornecer respostas

pelos letrados

europeus

adaptadas constituía

e, volta e meia, acrobático.

ma-

eficácia rivalizava com a forma como eram

a realizar,

uma vez os especialistas locais, instados a conseguir vos senhores uma informação Os estragos

para os no-

legível, .inventaram uma cartograadaptados ao olhar europeu.

das grandes

epidemias,

inauditas, tam bérn per! urbararn

i! .

por suas proporções

os espíritos da população

e de-

sarmaram os curanderos mexicanos. Não podendo co ntinuar a explicá-Ias pela intervenção das divindades indígenas, as vítimas que interrogavam ciando-as

as autoridades

espanholas

terminaram

asso-

a causas sociais e políticas. O choque das doenças e a

imposição de novos modelos de vida levaram os informantes

alfabética também modificou

dígenas a esboçar raciocínios

mações, impondo minante

o ritmo de urna narração

ainda, enquanto

forças divinas presentes das pelos europeus 84

as "pinturas"

das infor-

linear. Mais deter-

dos índios tornavam

as

e quase palpáveis, as técnicas importa-

limitavam-se

a representar

realidades

situa-

um

E o exercício

dispostos glifos e cores de conotações múltiplas. O uso da escrita a seleção e a montagem

às

para os vencedores, centenas de mapas de aldeias indígenas. Mais

fia e um espaço parcialmente

mas as mudanças se estendiam a muitos outros

campos. Uma inovação téc?ica como a substituição

invasora de seus poderosos

indígenas se habituaram

repetiu-se quando os pintores índios foram chamados

a dificuldade

com outros seres e outras técnicas. A ado-

ção forçada do cristianismo mentos e crenças,

defi-

os informantes

pelos europeus. Aliás, preocupados

sociológicos

ventar explicações materialistas. ou não refletido o sentir profundo

in-

avant Ia lettre e a in-

Que essas declarações

tenham

dos índios, o fato é que reve-

lam a pressão constante exerci da pelos novos tempos sobre as representações

das populações vencidas. Assim, o desencantarncn85

to podia enveredar por caminhos -

ry, a escrita -

O

OS PERCALÇOS

saber médico, a cartogra-

na aparência mais indolores e infinitamente

mais O choque da Conquista não conseguiu secularizar a manei-

sutis do que a demolição dos santuários.

ra de ver o mundo. Mas foi suficiente para abalar certos hábitos

Todavia, a pressão colonial também se manifestou, de modo mais brutal e generalizado, na integração

DA COMUNICAÇÃO

arraigados no tempo, semeando a dúvida, a ambigüidade

forçada da mão-de-obra

indígena ao mercado, à mina, à oficina, submetendo-a

a novos rit-

mos e relações de produção, mas igualmente a uma concepção do

as condições e o conteúdo da comunicação

trabalho desvinculada das tradições locais e cosmologias antigas. No entanto, a distanciação, a descontextualização, O desen-

pos repentinamente

cantamento

estabelecer, pois não eram "culturas"

e a perda de sentido não eram vivenciados

por índios e negros. Os vencedores experiência,

das resultaram

apenas

também avam por essa

se bem que de modo infinitamente

o

menos dramáti-

num déficit constante

Multiplicando

cósmica que esse cereal divino tinha para os índios. Se quisessem

uma dinâmica

imaginar,

damentalmente

no campo d~ crenças dos índios,

Teriam então aproximado

postos na presença um do outro. Essas pernas trocas que podiam se se encontrando,

mas frag-

mentos de Europa, América e África. Fragmentos e estilhaços que,

a Conquista

tidas como idolátricas.

entre indivíduos e gru-I

em contato uns com outros, não ficavam intactos por muito tempo.

co e quase sempre menos consciente. Os espanhóis que haviam se habituado a comer milho estavam longe de imaginar a carga teriam de penetrar

e a in-

decisão. Perda de referências e perda de significado modificaram

o milho indí-

os fenômenos

imprimiu

de desorientação

à comunicação

e constrangimentos

e distorção,"

entre as pessoas um tom,

muito singulares.

Ela é fun-

"caótica", no sentido de que todas as trocas que

aí se dão têm um aspecto fragmentado, te:" os interlocutores

aparecem

irregular

e desaparecem,

e intermitenos arranjos

da

gena do trigo de Castela, observando que, por uma astúcia do diabo, os dois cereais ocupavam uma função central nos cultos e

véspera não valem mais no dia seguinte. Todas as etapas da co-

nas representações.

municação', desde a emissão até a recepção, são constantemente

O cacau e o tabaco tiveram destino semelhan-

te. Também se esvaziaram

perturbadas.

das presenças divinas que os impreg-

As interpretações

se desenvolvem

navam. Privilégio reservado à nobreza indígena antes da conquis-

tuações e, volta e meia, fora das normas

ta espanhola,

pelas diferentes tradições. Assim, a maneira

o consumo

de ambos oferecia aos homens o meio

de manter um intercâmbio com o mundo divino. Na época colonial, tendo ado ao estatuto de simples mercadorias, esses produtos acabaram se tornando fana, e, no caso do chocolate, consumi-Ios

imaginando

o foco de uma sociabilidade proàs vezes feminina.

"rituais" requintados

Começou-se

a

que haviam per-

representavam

sua conquista

-

ao acaso das si-

e dos quadros

a Nova Espanha -

de evoluir em função da origem de seus informantes informação que eles conseguiam captar. A indeterminação

e a confusão impunham-se

qüência do que nossas fontes item."

fixados

como os espanhóis não parou e do tipo de com mais fre-

O cronista FenÜndez

dido toda a dimensão religiosa para serem apenas sinais de riqueza e status social. O prazer dos sentidos e o luxo dos objetos

imagens, um juiz espanhol, o licenciado Zuazo, e índios da Cida-

-

de do México. Estabelecido

foram criados serviços de mesa para o chocolate e o tabaco -

suplantaram 86

qualquer busca de um além sobre-humano."

de Oviedo conta um episódio que opôs, a respeito da questão das

estava em campanha

na cidade em 1524, quando

em Honduras,

Cortés

o juiz recebeu um grupo de 87

personalidades

indígenas, "quatro homens entre os mais qualifi-

Deus e sua imagem". Zuazo acatou o pedido, sem desconfiar dos

cados e os mais sábios destas províncias", que haviam ido se quei-

mal-entendidos

xar da destruição

vam que Deus e a Virgem eram um só: "Dizendo Maria ou santa

de seus ídolos. Não sem razão, eles argumenta-

) ram que os espanhóis também praticavam a idolatria: "Os cristãos também tinham os mesmos ídolos e as mesmas imagens"." A afirmação deixou Zuazo embaraçado,

e por meio de intérpretes

explicou a posição dos cristãos: "Nós não adoramos pelo que são, mas aqueles que elas representam

ele

as imagens

e que se encon-

tram lá no céu e de quem nos vêm a vida, a morte, o bem e tudo o que nos diz respeito neste mundo". Ao dizer essas palavras, ele pegou uma estampa de são Sebastião pendurada

em cima de sua

cama e rasgou-a diante dos índios, "dando-Ihes

inúmeras outras

explicações sobre este assunto' para desiludi-Ios

e tirá-los

paganismo;

e ele Ihes disse não acreditar

de seu

que nós adorávamos

imagens como o faziam". A reação dos Índios não se fez esperar: Vendo isso, um deles deu um sorriso para o intérprete eles não acreditavam

e disse que

que o juiz os considerasse gente tão tola; bem

sabiam que eram os amantecas -

os mestres-artesãos

-

que fa-

bricavam essas imagens, assim como eles faziam também as deles; e não as adoravam nhóis -

como imagens,

mas -

assim como os espa-

por causa do sol, da lua, dos luminares

e das influências

que havia no céu e dos quais provinha a vida.

Aparentemente,

a réplica era inapelável,

O licenciado Zuazo

"ficou um pouco confuso e pediu interiormente

a Deus que lhe

desse as palavras para defender sua causa". É provável que o embaraço do juiz não tenha sido um caso excepcional. Por isso, ele foi levado a fazer gestos iconoclastas dos quais poderia se inquietar lima Igreja sempre à espreita de quebradores No final de suas discussões

Maria, estes pensavam que nomeavam

Deus, e chamavam de san-

ta Maria todas as imagens que viam". Em outro lugar, Michoacán, os crucifixos é que eram assimilados a Deus. Essa confusão entre a Virgem, as representações

cristãs e a divindade distorceram

for-

temente a recepção das imagens cristãs em terra indígena. Se o relato elas conversas entre Zuazo e os índios não nos revela toda a extensão dos mal-entendidos interlocutores

-

dos emterrnos

ocidentais -,

que havia entre a Espanha e seus

seus argumentos

são traduzidos

e interpreta-

traduz o tipo de dificuldades

cria-

das pela menor discussão, mesmo "civilizada"." Os percalços da comunicação decorrem da barreira das língu,tS ( da ;:~F::::-s~ic~lir1;lc1prlp. fazer coincidir palavra por palavra universos conceituais e memórias que tudo separava. Mediremos a arnplidão do obstáculo enumerando os esforços Iingüísticos feitos peJas populações

de língua náuatle para designar conceitos e

objetos novos introduzidos pelos invasores." No Brasil, a perplexidade e as explicações embaraçaelas resultantes da santidade de [aguaripe -

um movimento

messiânico de origem indígena que

nasceu na região de Salvador -,

tanto quanto o modo sumário

como os adeptos da seita interpretarem

O

cristianismo,

demons-

tram uma confusão da mesma ordem." O que não quer dizer que v3 \Jbs~tcu!J::: ~J. :c!r.~1~ic:lÇ'80tenhamsidc .:iyenas dc·:)rdem·m:1ceitual; eles foram amplificados

pela brutalidade

dos europeus, que mais freqüentemente baixar seus interlocutores trimônio intelectual.

e pelo desprezo

se preocupavam

em re-

indígenas do que em valorizar seu pa-

de imagens.

com o juiz, os índios pediram

urna imagem da Virgem, "porque não compreendiam 88

que o presente podia gerar. Vários índios imagina-

muito bem 89

europeus SOBREVIVÊNCIA,

ADAPTAÇÃO

Tais deficiências nômeno

E MESTIÇAGENS

de comunicação,

durável, são indissociáveis

a persistência

das mestiçagens.

fragmentos intensifica

práticas inauguradas

espécie de zapping instaura-se

essa

da Conquista,

de adaptação ao novo ambiente americano fo decisivo, por vezes vital: a incapacidade xico recém-conquistado O imperativo

os grupos mais diretamente aprendido,

um trun-

tenham

cais e parciais. Os vencedores dos mexicas tomaram o poder num país do qual tudo ignoravam. Da mesma forma, o Império espapara os índios, agora tributários

der misterioso emanando

de um po-

de uma parte do universo que, nas pa-

lavras dos antigos, só era ocupado pela água primordial.

Quem

poderia dizer quantos espanhóis, nos primeiros tempos, uma vez satisfeitas suas exigências materiais e religiosas, tentaram rir

familiaridade

adqui-

Como os prisioneiros

de um labirinto, atores ameríndios

e

aceitam as práaté conseguirem dos la-

e criativas. Indivíduos

as proezas de astúconstante

das capa-

e grupos devem criar

analogias mais ou menos elaboradas, mais ou menos superficiais entre os vestígios, fragmentos e estilhaços que eles conseguem re..... .._" ,-

colher. Cada um é condenado soal a partir das impressões, dando-lhes

significados

a construir

seu palimpsesto

pes-

imagens e noções que ele captou,

e valores novos. Na falta de se poderem

decodificar de modo linear as informações

recebidas de toda par-

te, obtêm-se saberes ou práticas que, de tanto justaporem neira ocasional e aleatória os dados e as impressões

de ma-

assim reco-

lhidos, formam conjuntos jamais fechados em si mesmos. Isso explica que, mesmo multiplicando preensões e as situações aproximativas,

os desvios, as incom-

a realidade imposta pela

Conquista não seja de todo estéril e destruidora.

real com os mundos indígenas?

no início

de uma visão parcial da situação global,

E requer uma mobilização

cidades intelectuais

,

a partir de então, a contar apenas com os saberes lo-

nhol era enigmático

cia e habilidade.

e mais ricas.

na Conquista

quando,

de seus aliados indígenas,

a necessidade de avançar obriga a multiplicar

ou de adaptação explica que

implicados

e tolerada

por motivos táticos, os espanhóis

birintos só se disponha

a faculdade

incitou muitos deles a tomar o caminho

de sobrevivência

e mudanças se sucedem. O im-

Deduzir, inventar, aprender. .. Embora na exploração

de se enraizar no Mé-

de outras terras, que imaginavam mais hospitaleiras

a

os meios de proibi-Ias.

quando não de

representa

moeda corrente

ticas antropofágicas

indígena, ter suas

vida e de morte. Porém, mesmo para os espanhóis,

e combinar

da Europa, com molhos e condi-

zinhas, adaptações, compromissos pensável torna-se

que e violência física que nunca se deve perder de vista. Para os próprias referências é questão de sobrevivência,

-

sem sacrifí-

mentos indígenas. Desde o alto das pirâmides até o fundo das co-

num contexto de conquista, cho-

negros, como para grande parte da população

fazem da

para outros, um exerci-

visto que agora estão proibidos

carne de porco, uma novidade

no México do Renascimento. XVI,

das situações

para uns, e da adaptação,

cio humano -

que na verdade

Com a pequena diferença de que, na América do século

a imprevisibilidade

mo as mais triviais: saber inventar rituais indígenas

de todos os can-

um exercício planetário,

as

cio de miopia." Há que resolver tanto as questões mais vitais co-

nosso universo. O esforço que fazemos para juntar os

tos do globo tornou-se

progressivamente

e as escolhas que se oferecem a eles. A complexida-

sobrevivência,

Se revelam

plurais que hoje

que nos chegam ininterruptamente

pé ante pé, resolvendo

de, o imbricamento,

um fe-

também prefi-

guram nossos modos de abordar as realidades compõem

dificuldades

q';1e constituirão

da onda de choque da Conquista,

avançam

pacidades de invenção e improvisação,

Ela estimula ca-

exigidas pela sobrevivên91

cia num contexto extremamente do-afro-europeu)

perturbado,

heterogêneo

(in-

e sem precedente. Tal limitação molda nos so-

4. Ocidentalização

breviventes uma receptividade particular, a flexibilidade na prática social, a mobilidade do olhar e da percepção, a aptidão para combinar os fragmentos mais esparsos." Partindo daí, compreende-se melhor que a tônica de antropólogos como G. M. Foster tenha sido no período inicial. Os primeiros decênios foram o tempo das decisões rápidas, das escolhas imediatas, individuais e coletivas, conscientes ou inconscientes a respeito de inúmeras questões." '0 choque da Conquista obrigou oS.grupos ali presentes a se adaptarem a universos fragmentados

e fraturados, a viverem si-

tuações precárias, instáveis e imprevisíveis, a se contentarem com intercâmbios quase sempre rudimentares. Essas características marcaram fortemente as condições em que se desenvolveram as mestiçagens da América espanhola, criando, em todos os senti-

o universo

te batiza,

dos da palavra, um ambiente caótico, sensível à menor perturbação. Mas outro processo também desempenhou um papel igual-

E a gente se desenraiza.

mente apreciável.

E ai, que se movimente

O mundo simpatiza

E ai, o Ocidente. Guesch Patti, Ia Marquisé

Se os conquistadores

da América espanhola se preocupa-

ram, primeiro, em anexar pelas armas territórios

que se esten-

diam da Flórida à Terra do Fogo, das Pequenas Antilhas às costas do Pacífico, as autoridades civis e eclesiásticas trabalharam

obs-

tinadamente, em seguida, para aí implantar os quadros e os modos de vida que a Europa ocidental elaborara no correr dos séculos. Quiseram até transformar

em cristãos os "naturais" que

povoavam esse novo mundo. A ocidentalização

cobre o conjunto dos meios de domina-

cão introduzidos na América pela Europa do Renascimento: a re92

93

ligião católica, os mecanismos

do mercado, o canhão, o livro ou

Galícia, a Nova Castela e tantos outros reinos de nome tão familiar, duplicatas evocadoras das províncias da península.

a imagem. Assumiu formas diversas, quase sempre contraditó-

A reprodução

rias, às vezes até em franca rivalidade, já que foi a um só tempo material, política, religiosa -

caso da "conquista

espiritual" -

e

estenderam

das instituições

depressa ao conjunto

européias teceu redes que se das possessões espanholas. Co-

artística. Mobilizou instituições, grupos - monges, juristas, conquistadores etc. -, mas também famílias, linhagens e indivíduos.

mo na Castela longínqua, as cidades foram comandadas

Uma vez na América, uns e outros empenharam-se

multiplicaram-se

em edificar

réplicas da sociedade que haviam deixado para trás. Em sua versão castelhana, a ocidentalização tre os séculos

XVI

e XIX, a transferência

tico dos imaginários empreitada

operou, em vagas sucessivas en-

e das instituições

DO

VELHO

descoberta e a conquista do arquipélago das Filipinas, esforçando-se para transformar Manila numa cidade castelhana da Ásia,

com outros conteúprosseguiu

o conjunto

até os dias

e depois se interessaram -

do globo.'

novas referências

materiais,

XVI,

por Nagasaki, em prelúdio à conquista

na verdade jamais encetada - do Japão e da China. Essa extensão irresistível foi acompanhada de uma política da língua e da lei. Da Flórida ao Chile, o caste-

lhano foi o instrumento da istração, a língua dos vencedores, dos mestiços, negros e mulatos, e também a das elites indí-

MUNDO

Ao longo de todo o século

O

do Velho Mundo. Foi uma

de uniformização A RÉPLICA

ao ritmo da expansão da jovem cristandade.

crescimento das instituições hispânicas ocorreu na medida da írnensidão americana. Nada parecia ser capaz de freá-lo, nem mesmo o imenso oceano Pacífico, já que os espanhóis fizeram a

dos, objetivos e ritmos, a ocidentalização progressivamente

derosas municipal idades, os cabildos. Bispados e arcebispados

para o outro lado do Atlân-

colossal. Sob outras aparências,

de hoje, ganhando

por po-

a ocidentalização

políticas, institucionais

instaurou e religiosas

genas. Na introdução

de Política indiana, o legista Solorzano

y

Pereyra exalta esse :'império que reúne tantos reis, tão variadas,

destinadas a controlar os distúrbios induzidos pela Conquista. A construção sistemática do território e da sociedade colonial rea-

ricas e poderosas províncias, a monarquia mais extensa que se viu no mundo, pois contém verdadeiramente um outro rnundo'"

lizou-se como uma duplicação.

Decretos destinados a uma região da América eram aplicados em

minar a reconstituição para a América,

É desse ângulo que convém exa-

ou a transferência

das linhagens ibéricas

sempre que famílias de conquistadores

e suas

clientelas se lançavam na conquista do Novo Mundo. É também pensando

nisso que se deve analisar o surgimento

estrutura

de tipo europeu, com a construção

de uma infra-

de cidades, portos,

estradas, fortalezas e arsenais; a criação das universidades; as gigantescas campanhas de obras que cobriram de igrejas, catedrais, claustros, capelas e hospitais no. Assim nasceram 94

uma parte do continente

america-

todo o império. As famosas "leis das Índias", compiladas

a partir

do século XVII, foram fruto da transplantação das leis de Castela para um continente e dois hemisférios. Das Califórnias a Buenos Aires, o direito castelhano Índias (Derecho indiano) -

ou melhor, o direito castelhano nas regia a vida cotidiana, definia as rela-

ções do indivíduo e do grupo com o Estado, impunha

a noção de

propriedade privada e legitimava o lucro. O jesuíta José de Acosta resumia essa uniformização do direito da seguinte maneira:

a Nova Espanha (isto é, o México), a Nova 95

A multidão de índios e espanhóis

forma uma só e mesma comu-

blica dos índios" diante daquela dos espanhóis. Institucionalmen-

nidade política, e não duas entidades distintas uma da outra; to-

te eles formavam comunidades inspiradas do modelo castelhano.

dos têm o mesmo rei e são sujeitos às mesmas leis, um único tri-

A um só tempo, a Coroa espanhola separava e juntava: crista-

bunal os julga, e não há direito diferente para uns e para outros,

lizava as sociedades vencidas numa posição de alteridade, mas esta era um decalque do universo hispânico. Por toda parte as elites

mas ü mesmo para todos.'

indígenas serviram de intermediárias A América espanhola era uma réplica da Castela real ou ideal,

interessadas -

forçadas -

e muitas vezes

entre europeus e massas ameríndias. Estas forne-

da Europa imperial e romana, como lembra o título de César que

ceram os contingentes de mão-de-obra

Carlos v recebia na correspondência

canteiros de obras que se abriram na América Central, nos Andes

vinda do Novo Mundo. A

necessários aos inúmeros

bem da verdade, essa América inovava, pois não precisava levar

e no México. Foram elas que produziram

os víveres exigidos pe-

em conta, como na Europa, os obstáculos herdados do ado

los vencedores, fabricaram inteiramente

um novo quadro de vi-

medieval, e adaptava-se livremente ao que subsistia dos substra-

da para eles e arrancaram

tos indígenas. Criava cidades com um traçado de tabuleiro de xa-

Atraídas pelo ganho ou pela novidade, mas no mais das vezes sub-

drez, das quais a mais bela realização foi a cidade imperial de Mé-

metidas e laçadas em armadilhas, as populações autóctones con-

xico- Tenochtitlán.

frontaram-se com outros modos de trabalhar, ao mesmo tempo

Cruzadas por ruas regulares formando

um

ouro e prata das entranhas

da terra.

ângulo reto, cidades e vilas ofereciam uma fôrma de urdem per-

que se projetavam numa nova economia mercantil que ligava seus

feita, em que a sociedade colonial teria apenas de se encaixar. Por

destinos à economia européia.

toda parte, nos centros das cidades erguiam-se os símbolos da supremacia dos vencedores: a igreja, a sede da prefeitura e do representante

do rei, a fonte na praça principal. Criadas inteira-

UMA

OUTRA

CRISTANDADE

mente do nada, cidades como Puebla, no México, e Lima, no Peru, prefiguraram as fundações mais recentes do continente america-

"Os naturais eram o motor e o objetivo de todos os proje-

no: foram as "Brasílias" do Renascimento. Essa política urbanís-

tos empreendidos pelas ordens mendicarrtes.t=Irabalhadores,

tica materializava

cravos de direito ou de fato, criados, consumidores

a vontade imperial de inscrever na paisagem

americana o triunfo do poder e da fé. Iriam os espanhóis se contentar em erguer um cenário europeizado, destinado a reproduzir

na América a Castela medie-

es-

ou colabora-

dores, os índios não só tiveram seu lugar nos reinos do Novo Mundo como despertaram

o interesse apaixonado e prioritário

do círculo dos recém-chegados mais preparados intelectualmen-

val e renascentista, burocrática e conquistadora? A réplica do Ve-

te: a Igreja dos missionários. A integração dos Índios à sociedade

lho Mundo não excluía a população indígena. Melhor ainda, não

colonial dependia de uma condição imperativa: os derrotados ti-

podia dispensá-Ia. Juridicamente,

nham de abjurar suas crenças. Todos eram considerados "idóla-

os vencidos constituíam

um

dos dois corpos e dos dois pilares da sociedade colonial: a "repú96

tras", fossem vítimas do diabo ou os esquecidos da Revelação. Por 97

ainda no México, a abóbada conseguinte,

todos foram forçados à conversão, como haviam si-

do os mouros de Granada. A cristianização dos índios da América repetiu a dos mouriscos.' Mas também procurou va, apresentando-se

reproduzir

a cristandade

primiti-

to, em sua luta contra a idolatria, ou da Tebaida egípcia, em sua busca de ascetas e uovos desertos. Um funcionário

da Coroa es-

panhola, grande leitor de Luciano e do humanista

Thomas Mo-

afirma que via "nesta Igreja do

Novo Mundo, primitiva, nova e renascendo, da primitiva

a sombra e a forma

Igreja de nosso mundo, no tempo dos santos após-

tolos'" Mas a conversão seria apenas uma questão de salvação? Para o europeu do Renascimento, inextricavelmente.

nio para os índios, que ignoravam

religião e política misturavam-se

A integração política dos povos indígenas exi-

gia sua cristianização, pois a fé era o único denominador comum dos súditos de Carlos v, que incluíam tanto os flamengos de Gand como os mouros de Granada e os bascos de Bilbao. Aliás, o cris-

tudo desse processo de cons-

trução. Tal técnica audaciosa

contribuiu

vento de um novo império,

simbolizando

liferação dos conventos-fortalezas, um aspecto francamente

para comprovar

o ad-

espetacularmente

a

"Casca protetora

índios ou espanhóis? -

da nave e do claustro, prodígio

da, majestade do pórtico, quadriculado tãos":" es

os

se proteger."

por uma praça dominada

da abóba-

das ruas que se cruzavam

pela casa de Deus (ou teocallii dos cris-

e promotores

tinavam-se em balizar o território

da conquista espiritual obs-

americano

cias que os índios tinham permanentemente

com novas referêndiante dos olhos.

Mas o cenário e a réplica estilizados de um modelo europeu só teriam pleno sentido se as populações

recebessem a formação

cristã capaz de extirpar as raízes da idolatria. A chegada dos pri-

ção, a moral, a arte, a sexualidade,

primeira

lações de casamentos, ritmava a agem do tempo e os momentos fundamentais da vida. Por todas essas razões, a cristianização

de arneias, deu

militar a essa presença, sem que hoje se

franciscanos procuravam

meiros franciscanos

as re-

com muralhas

saiba ao certo contra qual inimigo -

tianismo do Renascimento era mais um modo de vida do que um conjunto bem definido de crenças e rituais: englobava a educaas práticas alimentares,

e fascí-

ordem terrestre e celeste que a Igreja reivindicava para si.' A pro-

como urna nova versão do Velho Testamen-

re, e futuro bispo de Michoacán,

era motivo de estupefação

empreitada

ao solo do México foi o lance inicial de urna

de educação fortemente

metade do século

XVI.

inspirada no humanismo

Multiplicaram-se

da

as escolas nos

mosteiros; os filhos da nobreza indígena aprenderam

a ler e es-

crever; os melhores tiveram o privilégio de se formar na Cidade

foi um elo essencial da ocidentalização do Novo Mundo. Os instrumentos da conversão revelam a diversidade das es-

liarizaram com o latim, a tipografia e os grandes clássicos da An-

tratégias desenvolvidas

tiguidade.

pelos monges para submeter os vencidos

à sua lei e torná-I os cristãos. Se o urbanismo ficava uma ruptura populações programa.

física e uma substituição

indígenas -, A construção

à européia já signi-legíveis

a igreja, por si só, já materializava nova visualizava uma supremacia

ritual e técnica, que casava com as formas da arquitetura péia. Reproduzida

para as esse espieuro-

do México, no colégio de Santa Cruz de Tlatelolco, onde se famiO humanisrno

de filiação erasrniana

e nutrido

das

idéias de Thomas More presidiu à formação de uma intelligentsia indígena que quase chegou a ser itida no sacerdócio e ajudou com eficácia a salvar parte dos saberes pré-hispânicos. essa ocidentalização nascimento,

despertou

Aliás,

de alto nível, calcada num modelo do Rea preocupação

dos leigos espanhóis,

em centenas de exemplares, nos Andes e mais 99

_o

des-

contentes de verem chefes índios dominando

a escrita, tão bem e

tos voluntaristas,

já que os artesãos indígenas

pressões dos invasores se apropriaram,

talvez melhor que eles. À conquista dos espíritos acrescentou-se

a conquista dos cor-

sibilidade, das técnicas européias,

mais expostos às

sempre que tiveram a pos-

e muitas vezes superaram

em

habilidade

os mestres espanhóis. Os índios não apenas tentaram

mais íntimos às normas universais da Igreja. Desde fins dos anos

reproduzir

por todos os meios as artes do Velho Mundo, como

1520, a difusão maciça do casamento

cristão pareceu o meio rr.ais

queimaram

etapas. Foi o que ocorreu com o aprendizado

eficaz de se obter uma cristianização

profunda e rápida da popu-

preparação

do ouro usado em trabalhos

pos, destinada

a submeter

lação indígena.

Durante

a família, o casamento

os decênios posteriores

e os hábitos

à Conquista,

e

sem esperar pelo Concílio de Trento, os monges definiram e adaptaram o sistema de valores, ritos e comportamentos ger o casamento e uniforme,

e a vida conjugal dos derrotados.

que devia reCódigo único

válido em todos os lugares, fossem quais fossem o

arem oito anos aprendendo espanhol

considerava

-

necessário

para a

de douração. Em vez de

era o tempo que um mestre -,

dos os detalhes do ofício, contaram

os índios "observaram as marteladas,

to-

olharam onde

o mestre batia, como ele virava e revirava o molde, e antes de um ano produziram

ouro batido; e para conseguir isso peg~ram um

grupo de origem e o estatuto social, baseado na tradição e no di-

pequeno livro do mestre, sem que este percebesse".'; A espiona-

reito escritos, a monogamia

gem dos menores

cristã participava,

em todos os sen-

gestos," a decomposição

meticulosa

das eta-

tidos da palavra, da replicação das formas de vida ocidentais. Por

pas de fabricação e sua memorização,

último, o controle das almas também ava pelo da carne e dos

vro de magia, tudo servia para descobrir o segredo dos espanhóis.'>

prazeres mais secretos, como revelam os manuais

de confissão

O uso do tear de Castela também

e até a utilização de um liteve um êxito fulgurante.

Os índios copiavam roupas, móveis e até instrumentos

escritos em língua indígena."

musicais,

que depois fabricavam em série:

A CÓPIA

INDÍGENA:

PRODUÇÃO

Eles fizeram vih uelas e harpas [... ]. Fizeram flautas que soam afi-

E REPRODUÇÃO

nadas, com todas as vozes exigidas para a missa e o canto polifõ-

Reproduzir

o Ocidente

era também

cas." Tal projeto acompanhou supunha

importar

uma transferência

dígena. As condições distinguem-se

um modo de vida ocidental. Asdos conquistadores

de técnicas para a população

dessa transferência

in-

e dessa aprendizagem

pela parte crescente da iniciativa indígena e pela

qualidade da cópia indígena." O ritmo da adaptação surpreende 100

da

nico. Também fabricaram

flautas e fundiram

trombones

de vara

de qualidade."

concebida nos moldes do Re-

sim, as exigências do clero e as necessidades implicavam

suas técni-

desde sempre os progressos

evangelização, pois a cristianização nascimento

reproduzir

Bartolomeu instrumentos

No entanto, primeiros

havia inúmeros

órgãos -

instrumento

obstáculos.

complicado"

-

esbarrou

Neste caso, a cópia foi precedida

A fabricação

sem equivalente

indígena e para o qual os índios tinham neologismo

tanto quanto seus aspec-

de Ias Casas ficou perplexo com a qualidade dos

musicais que saíam das mãos dos índios.'? dos

na sociedade

criado em náuatle

um

em muitas dificuldades.

pela invenção de substitutos: 101

"No lugar de órgãos, eles organizam

um concerto de flautas cuja

música parece a dos órgãos de madeira, de tão numerosas sas flautas"," Em outros casos, os índios praticaram e a reutilização:

"De um candelabro

a bricolagem

eles fazem um trombone

vara"." A fabricação de instrumentos da música ocidental-

são esde

musicais e a difusão rápida

"a música tomou pé neste país" -

pro-

piciaram a ocasião para se fazer uma avaliação global das capacidades miméticas

dos índios: "Essas pessoas são como macacos, o

que umas fazem as outras copiam logo". A figura do macaco designa na retórica medieval a capacidade de imitação. . Os índios deram provas do mesmo talento reprodutor matéria de construção

em

ou de engenhosidade

tilo europeu respondia à demanda espanhola,

ávida por conseguir

de uma clientela, indígena ou

esses produtos

ço. A cópia indígena teve repercussões

cia a que se lançavam artesãos espanhóis

fabricam tudo o que viram nossos operários fazer, tanto arcos [... ] como pórticos e janelas, que exigem muito trabalho;

realizam to-

com as figuras grotescas e os monstros que eles

e índios. Permitiu

nativos quebrar

o monopólio

dos artesãos espanhóis,

do mercadorias

de qualidade

aos consumidores

campo. Aqui, mimetismo

aos

oferecen-

da cidade e do

e o ao mercado parecem

andar

juntos. O mimetismo dental. Entretanto,

Desde a chegada dos talha dores de pedra da Espan ha, os índios

pelo menor pre-

imediatas na concorrên-

teve efeitos ambivalentes.

ção dos índios no universo econômico

e arquitetura:

dos os ornamentos

inesgotável." A fabricação de objetos de es-

pendência

-

Precipitou

a inser-

e técnico de origem oci-

ao mesmo tempo que estabeleceu la~os de de-

dos copistas em relação ao modelo, do México

indígena em relação à península vre para os trabalhadores

Ibérica -,

deixou o campo li-

indígenas. Para os índios mais qualifi-

cados abriu-se uma margem de manobra

e invenção que eles lo-

go aproveitaram.

viram, assim como belas igrejas e casas para os espanhóis.

Mas tal margem bastava para salvar as crenças e os gestos anUrna historinha sos do mimetismo panhol

usando

divertida

ilustra a extensão e até os exces-

indígena. Um artesão índio encontrou

o boné pontudo,

o sambentto,

um es-

dos condenados

tigos? A multiplicação

das cópias operava-se num quadro desr i-

tualizado, que perdera o sentido atribuído

pela tradição autócto-

ne ao trabalho dos homens. Esse desencantamento

também

pela Inquisição. Intrigado com que imaginou ser uma roupa usa-

explicado pelo lugar crescente que a máquina

da ~lurante a quaresma,

pando. Se os tecidos de tipo espanhol eram idênticos aos mode-

vendê-Ios comprar

logo começou a fabricar sambenitos e a

nas ruas gritando:

«·~Ticohua/.nequi

um benitot'"). Os moradores

na história, que inspirou

benito?" ("Quer

da cidade acharam

graça

até mesmo um ditado. Era talo frenesi

de copiar que às vezes levava os produtores

indígenas

a fabricar

A reprodução

Essa pequena história levanta outra questão: a da relação dos índios com o mercado colonial. Sua extraordinária

ia ocu-

em teares de origem pe-

ninsular c segundo uma organização protocapitalista acelerada, em escala e em quantidade

da produção. pré-indus-

trial, resultava da intervenção da máquina européia. Isso era mais verdadeiro

qualquer coisa."

mética era mais que uma demonstração

los hispânicos é porque eram produzidos

européia

era

ainda para os livros e as gravuras saídos das prensas

das gráficas. Mercado, máquina e mimetismo

pareciam sócios.

capacidade rni-

gratuita de virtuosismo

102 103

MIMETISMO

ventos franciscanos. À leitura e à escrita tinham se somado a mú-

E COMUNICAÇÃO

sica, o desenho, a caligrafia e a pintura. A partir do teatro e da ritualização do imaginário

ocidental

cesso mirnético.'

dramática,

a reprodução

criou uma nova dimensão

Os missionários

para o pro-

utilizaram o teatro para explicar

diam a reproduzir

Os jovens índios apren-

a imagem européia ao mesmo tempo que pe-

netravam em outro universo de comunicação É importante

que o aprendizado

gráfica e sonora."

da escrita, da música e do

e difundir o conteúdo da fé cristã. Obras edificantes "representa-

desenho tenha sido feito simultaneamente.

ram", ou seja, mostraram

onze ou doze anos, que sabem ler e escrever, entoam o cantochão

os episódios

da história

sagrada, das

grandes figuras do panteão cristão e da geografia sagrada do Oci-

e o canto gregoriano e podem até anotar os cantos, sozinhas." Na

dente. Mais uma vez, os índios tiveram nisso uma participação

verdade, os três modos ocidentais

direta. O roteiro do espetáculo

mesmo princípio:

realizado pelos próprios

era inspirado

pelos monges mas

índios." Estes fabricavam

os cenários, encarregavam-se

da parte musical e cantada, repre-

de expressão baseiam-se

no

sinais alfabéticos, notas e "imagens", encarre-

gados de reproduzir

e montavam

"Muitas crianças de

a palavra, o som ou a visão. A cada vez os'

alunos índios eram confrontados

com concepções e técnicas iné-

interpretavam

ditas para eles." É provável que a coerência do sistema europeu

seus próprios papéis. A qualidade e a fidelidade da representação

tenha facilitado a tarefa dos monges professores. Seus discípulos

indígena impressionaram os observadores espanhóis. As expressões "imitar" (corztrahacer) e "de aparência natural" (alnatural)

num espaço de três dimensões

sentavam todos os personagens

e, com freqüência,

se repetem em seus textos para elogiar a perfeição de realizações que se aproximavam confundindo

tanto do modelo proposto que acabavam se

COm ele. Para o dominicano

sas, "são anjos ou monstros lidade mirnética

de ordem seguidos pela composição escrita ou pela distribuição dos sons numa harmonia hispano-flarnenga."

entre os homens"," Dessa-vez, a habi-

deixa de lembrar a imagem caricatural

do ma-

- COPIAR

OU INTERPRETAR

anjos

o envolvimento

cujas capacidades superavam as do ser humano.

O mimetismo

das figuras

obedecia aos mesmos princípios

I3artolomeu de Ias Ca-

caco e sua animal idade, e convoca o exemplo de criaturas ou monstros -

mexicanos podiam se dar conta de que a arrumação

também operava no culto católico. Motolinía

direto dos índios nas representações teatrais explica a eficácia do espetáculo e seu impacto no público;

conta corno ficou irado e achou graça em visita a uma aldeia.

que por sua vez era convidado a participar

Antes de sua chegada, os índios haviam convocado

venção indígena marca também os limites e as ambigüidades

os fiéis para

da ação. Mas a interdo

e da consagração,

mimetismo cênico. Embora os monges não tivessem consciência, a representação indígena tendia a se desviar do modelo his-

"e isso se pratica há mais de seis anos". Que o zelo dos recém-con-

pânico original, pois estava sujeita ao enfoque indígena da inter-

vertidos possa causar boas surpresas

pretação e do palco. Ator c personagem

a missa, recitado o catecismo e dito as orações; e até tocaram os sinos como se fosse o momento

entusiasmo

do fr anciscano."

explica pela formação 104

do ofertório

à

Igreja não parece esfriar o

Essa surpreendente

disposição

se

que os índios haviam recebido nos cori-

dos índios, que durante nominação

-

ixiptla -

confundiam-se

séculos tinham atribuído

no espírito a mesma de-

à vítima do sacrifício, ao deus que ela 105

encarnava e ao sacerdote que usava seu nome. O mimetismo posto pelo Ocidente prestava-se, vam sob as aparências

assim, a desvios que prospera-

enganosas

doxal, mas típico de inúmeras

im-

da cópia fiel. Resultado para-

situações em que se confrontam

ocidentalização e reações indígenas. Na verdade, desde os primeiros tempos a noção de cópia revelou-se extremamente

elástica, variando da reprodução

da cópia fiel à interpretação

dizado da escrita começou pela realização de cópias tão perfeitas que a distância entre original e réplica era imperceptível. É sigI?-ificativo que o primeiro exercício de escrita tenha sido o de mando pareceu de um realismo impressionante, Os discípulos

indígenas também

O resulta-

"a cópia era tão fiel".

eram excelentes em caligrafia:

"Eles imitam tão bem [as letras] que ninguém consegue ver a diferença entre a amostra e a cópia que fazem dela". Las Casas conta que um monge franciscano

mostrou-lhe

um livro escrito por

um índio e que, por instantes, ele pensou se tratar de uma obra impressa, de tal forma a qualidade da tipografia aproximava o trabalho

manuscrito

de uma obra saída das prensas ocidentais."

Las Casas cita ainda o exemplo de uma carta que lhe fora enviada pelos índios da Cidade do México e que ele pôs diante dos olhos do Conselho das Índias. Os conselheiros ficaram perplexos, incapazes de determinar

se se tratava de um texto impresso

ou escrito à mão. Os índios haviam se tornado fos, rivalizando

com o trabalho

da máquina

para imprimir). Raramente um mimetismo Em matéria de pintura, a constatação ca. Desde os anos 1540, os pintores

mestres calígra(no caso, a prensa

terá sido tão perfeito. também é inequívo-

tlacuilos tornaram-se

lentes copistas segundo as normas européias:

grandes pintores; desde

que chegaram os modelos e as imagens de Flandres e da Itália, que os espanhóis

trouxeram

[... ], não há retábulo

mais notável que seja, que eles não consigam

nem imagem, por copiar e imitar, em

especial os pintores da Cidade do México, pois é aí que chega tudo o que vem de bom de Castela."

exata e

inventiva. No plano técnico o apren-

dar um índio de Texcoco copiar uma bula pontifical.

Desde a chegada dos cristãos, apareceram

exce-

Bartolomeu

de Ias Casas, pelo visto inspirado

nía, também faz elogios. Os "progressos" tórios em matéria "história

de representação

verdadeira"

da conquista

Castillo, que em geral é implacável

por Motoli-

são particularmente

humana

e animal."

no-

Na sua

do México, Bernal Díaz del com os índios, desdobra-se

em elogios ao talento dos pintores mexicanos." Entretanto, evitemos imaginar a cópia antiga a partir do nosso emprego da fotografia, do scanner e da fotocopiadora, tamos muito acostumados No século

XVI,

à exatidão

da reprodução

o único campo, em princípio,

dia ser tecnicamente

pois esmecânica.

em que a cópia po-

perfeita, o único registro em que era prati-

camente um puro produto gravura e da impressão

da intervenção

da máquina,

era o da

gráfica. Em todos os outros casos, com

exceção dos dogrnas, a concepção européia da reprodução va um campo considerável à interpretação.

deixa-

Em especial no regis-

tro artístico. Mesmo se o modelo europeu

continuava

essência, a manifestação

dos vencedores,

da superioridade

reito à invenção na cópia era reconhecido se refere explicitamente

a ser, por o di-

aos índios. Las Casas

a isso quando louva "as maneiras tão so-

fisticadas e tão novas que eles inventam", e acrescenta: "Tudo lhes oferece matéria para ornar e aperfeiçoar

as peças que pretendem

representar"," A pintura

européia procurava

antes de tudo evocar um te-

ma com a ajuda de uma gama restrita de elementos absolutamente indispensáveis, 106

sempre tirados de um repertório

conhecido 107

da

grande maioria das pessoas." A margem deixada ao artista coin-

ce como uma empreitada

cidiu com o dcspreparo

lho Mundo, de reprodução

suíam .nenhuma

dos pintores

noção de história

mexicanos. Estes não posela pintura

européia nem de

tação dos imaginários

de duplicação

europeus,

da Nova França, da Nova Holanda

eram novas demais para qlle se sentissem

ao contrário

dos. O desconhecimento

tolhi-

e a distância foram, ao mesmo tempo,

conquista

das experiências espanhola

do Ve-

isso também é verdade no caso

evolução dos estilos, e as formas que se aplicavam em reproduzir interiormente

das instituições

das coisas do Ocidente e de represenou da Nova Inglaterra.

Mas,

inglcsa, holandesa e até sa, a

fez do índio um dos protagonistas

da re-

produção. Para o bem e para o mal: "Quem edificou todas as igre-

um handicap técnico e uma fonte de relativa liberdade."

jas e os mosteiros que os monges possuem na Nova Espanha, senão os índios com suas próprias mãos e seu próprio suor?":' Essa CAOS,

OCIDENTI\LIZAÇÃO

Processos semelhantes defasagens decorrentes às particularidades

E MESTIÇAGENS

ocorreram

nos Andes, embora com

das guerras civis e das variações ligadas

das ordens religiosas e das populações

subju-

diferença

fundamental-

terminou

sendo inelutavelmente

terminado

-

fora da América castelhana, marginalizado,

explica que o mimetismo

ção da situação colonial deu-se no quadro de um vasto empreen-

amalgamas, interpenetrações,

dimento

zados do mirnetismo e das mestiçagens.

tomou

a ocidentalização

-

que primeiro

a forma de um enxerto brutal dos modos de vida euro-

possa se tornar automaComo a repro-

dução na versão indígena sempre se desdobra numa interpretação, ela desencadeia

-

excluído ou ex-

ticamente fonte de invenções ou de mestiçagens.

gadas." No hemisfério norte como no hemisfério sul, a cristalizade reprodução

o índio

uma avalanche

de combinações,

em que se produzem

Por certo, a ocidentalização

justaposições, os fogos cru-

esbarrou em resistências que to-

peus, e em seguida se renovou, no correr do tempo, pois as trans-

maram diversas formas, desde a rebelião aberta até todo tipo de

formações

hostilidade

sucessivas que ocorriam

na Europa ocidental

repercutidas e adaptadas na América espanhola. As dinâmicas" miméticas da ocidentalização, festaram

em ambientes

progressivamente tiplicaram

conturbados,

canalizaram

sua vez produziram todas as origens ou econômicos tabilizadores.

que se mani-

irnprevisíveise equilíbrio

incertos, Mul-

e inércia, que por

novas formas de vida e expressão. Traços de institucionais,

~ aglutinaram-se,

religiosos, artísticos, jurídicos então, para formar pólos es-

É o caso do culto às imagens marianas;

mente a da Virgem de Guadalupe,"

primeira-

que ocupou lugar de desta-

108

dos de populações,

recusaval)1 o cr istianisrrio."

ou que simplesmente

a ocidentalização

apare-

esses ajuntamentos

Os

força-

os que escapavam para as florestas do Petéri" sabotavam

o trabalho nas minas, expressa-

ram sua rejeição aos modos de vida que a Coroa e a Igreja pretendiam Ihes impor. Mas tais atitudes jamais questionam a dominação

espanhola,

salvo em suas fronteiras.

de fato

E, sobretudo,

sempre coexistem com outras formas de reações diretamente duzidas pela ocidentalização

e que aproveitam

cristianização

ou pela introdução é neste contexto

dida, nos primeiros

in-

a margem de ma-

nobra, por menor que seja, deixada às populações Portanto,

que na sociedade colonial." Se, no caso da América espanhola,

larvar. Os "idólatras"

índios que fugiam das "congregações",

as desordens da Conquista.

efeitos de convergência,

foram

vencidas pela

de técnicas européias. global-

tempos da Conquista,

caos da América invaocidentalização 1°9

im-

posta em escala continental, índios -

mimetismo

exercido pelos próprios

que convém analisar as mestiçagens da América hispâ-

nica. Estudadas

no triplo contexto da Conquista,

da ocidentali-

zação e do mimetismo,

as mestiçagens

reação de sobrevivência

a uma situação instável, imprevista e am-

plamente

A esse título, correspondern

imprevisível.

estado de fragmentação. to da ocidentalização

aparecem primeiro

como

bastante ao

Mas essas "bricolagens" são também efeiquando resultam da replicação

e da apro-

priação, pelos índios, de elementos europeus. Assim, há que se imaginar as mestiçagens só tempo como um esforço de recomposição

americanas

a um

de um universo de-

sagregado e como um arranjo local dos novos quadros impostos pelos conquistadores.

Os dois movimentos

Nem um nem outro escapam ao ambiente turbado

que descrevemos.

são indissociáveis. profundamente

per-