Narrativas Sensoriais Osmar Gonçalves
Osmar Gonçalves [org.]
Narrativas Sensoriais Ensaios sobre cinema e arte contemporânea
Edição
imagem de capa
Renato Rezende
Katia Maciel Caixa de Luz 2013 acrílico, espelhos, polipropileno, metal e eletrônicos 16 x 30 x 30 cm
projeto gráfico
Rafael Bucker Diagramação
Luisa Primo revisão
conselho editorial
Heyk Pimenta
Ana Paula Kiffer Claudio Oliveira Eduardo Guerreiro Brito Losso Katia Maciel Roberto Corrêa dos Santos
capítulo 6 A questão da
“forma-tela”: espaço, luz, narração, espectador Tradução
André Santiago revisão
Érico Araújo
Rua Joaquim Silva, 98, sala 201, Lapa CEP 20241-110, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Tel./fax: (21)2252-0247 (21)2232-1768 www.editoracircuito.com.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gonçalves, Osmar (org.) Narrativas Sensoriais 1ª ed. - Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2014 ISBN 978-85-64022-41-6
1. Arte-Brasil 2. Arte contemporânea 3. Artes visuais 13-09944 Índices para catálogo sistemático: Brasil: arte contemporânea: artes visuais
CDD-709.810904
Para Nicole Duarte
Sumário
Osmar Gonçalves
Introdução p.9 Beatriz Furtado
Um campo difuso de experimentações p.27 Cristian Borges
Mais perto do coração selvagem (do cinema) p.41 Denilson Lopes Silva
Sensações, afetos e gestos p.61 Consuelo Lins
Ex-isto: Descartes como figura estética do cinema de Cao Guimarães p.83 André Parente
Moving Movie – Por um cinema do performático e processual p.103 Philippe Dubois
A questão da “forma-tela”: espaço, luz, narração, espectador. p.123
Eduardo de Jesus
Duas ou três coisas que sei sobre ela p.171 Priscila Arantes
Imagem e mídia como forma de pensamento: narrativas múltiplas, cinema e banco de dados p.185 Patricia Moran
A repetição da diferença Jogos entre sons e imagens p.197 Andréa França e Patricia Machado
A imagem-excesso, a imagem-fóssil, a imagem-dissenso: três propostas cinematográficas para a experiência da Ditadura no Brasil p.209 Cezar Migliorin
Ensaio na revolução: o documentarista e o acontecimento p.235
Katia Maciel
Suspense. p.159
biografias p.263
9
Narrativas Sensoriais Osmar Gonçalves
D
e saída, uma questão se impõe: que possibilidades emergem quando nos instalamos na fronteira, quando escolhemos a dobra ou o limiar como morada? O que se abre em zonas de
trânsito e atravessamento, nessa região incerta e inquietante que constitui o entre? Eis aí uma questão fundamental, eis um problema que é preciso enfrentar, ao menos para aqueles interessados em pensar o universo do cinema e das artes contemporâneas. Desde os anos 1980, pelo menos, é sabido que vivemos sob a égide do hibridismo, sob a lógica da mestiçagem e do contrabando. Raymond Bellour o definiu muito bem com sua poética das agens e, mais recentemente, Jacques Rancière (2012) tem falado em uma estética da indistinção, no “caos das materialidades” – um regime sensível no qual a mistura e o entrelaçamento entre as artes atingiu tal estágio que se tornou praticamente irreversível. Ora, ante um cenário como este, não há discurso ontológico que se sustente, não há obra ou imagem “pura” que resista. De fato, foi-se o tempo das demarcações categóricas, foi-se o período das
10
Osmar Gonçalves
narrativas sensoriais
oposições e clivagens modernistas. O reinado do “ou” – a ideologia
brias e minimalistas, atentas aos pequenos gestos, aos pequenos
da pureza e da especificidade, tão cara ao pensamento modernis-
eventos que emergem na superfície do cotidiano. Obras cuja for-
ta – deu lugar ao advento do “e”: a era do entre, do pós, do trans.
ça parece emergir de certo rigor descritivo, de um olhar fotográ-
Pois bem. Hoje, num momento marcado como nunca pela dis-
fico – essencialmente distendido e silencioso – que se volta às de-
solução das fronteiras, por intensas migrações entre os campos do
licadezas, às insignificâncias, às pequenas epifanias do cotidiano.
cinema, da fotografia e das artes plásticas, vemos nascer uma série
Numa palavra: obras sobre quase nada, filmes e instalações que
de obras desconcertantes e inclassificáveis, obras sem lugar, diría-
parecem recusar a história em benefício do “simples acidente”,
mos, que parecem pôr em movimento um pensamento oblíquo e
do simples fluir da vida. O que se percebe aqui, de fato, é um de-
transversal, modos de sentir e pensar que se produzem no cruza-
sejo de retorno às próprias coisas, retorno ao aberto e ao mundo,
mento, na contaminação entre diversas artes e linguagens. Longe
uma vontade de filmar o curso da vida sem conflito nem tensão,
do domínio exclusivo deste ou daquele campo, portanto, desta ou
sem depender de uma trama ou ficção dominante. “Nada de ex-
daquela linguagem, essas obras não cessam de produzir linhas de
traordinário”, nos diria Jonas Mekas, “nada de especial”, apenas
fuga, de propor variações, fissuras, de pensar novos arranjos na pai-
“coisas que todos nós vivemos ao longo de nossas vidas”1.
sagem (audiovisual e teórica) contemporânea. É a partir desse lugar
De outro lado, nos deparamos com uma série de mundos
inquietante, de fato, que elas criam um campo de experimentações
dispersivos e lacunares, universos sem totalidade nem encade-
difusas, uma região aberta de possíveis que relança a hierarquia en-
amento – um conjunto de caleidoscópios audiovisuais abertos e
tre as artes, que embaralha suas lógicas e lugares, reconfigurando
em movimento. São obras que orquestram cenas polissêmicas e
os mais diversos aspectos da experiência (áudio)visual.
polifônicas, apoiadas sob o conceito de rizoma ou de “enredo mul-
O fato é que, neste campo aberto e instável, as inúmeras tro-
tiforme”2, nas quais a narrativa se fragmenta, decompondo-se em
cas e rearranjos que se criam, acabam instaurando novos modos
pequenos quadros, pequenos blocos de espaço-tempo que se cru-
de ser das imagens, abrindo outras lógicas e perspectivas para
zam e se atravessam, formando mosaicos extremamente comple-
o universo das poéticas (áudio)visuais. Trata-se, sem dúvida, de
xos. Labirínticas e enigmáticas, essas obras tendem a oferecer um
uma nova constelação com outros arranjos estéticos. E, neste con-
excesso de imagens que não chegam a compor um corpo ou orga-
texto de abertura exploratória (de pesquisa e invenção de possíveis), gostaríamos de atentar para o problema da narrativa, para o modo como esta tem sido repensada e redefinida, para as novas abordagens que aí se instauram, pois, em meio aos processos de atravessamento e contaminação, vemos surgir outras formas de narrar, novas potências e modulações da narrativa. De um lado, com efeito, parece haver um movimento no sentido da contenção e da rarefação, a busca por formas mais só-
1 Sinopse do filme As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty, de 2000. 2 Para uma discussão sobre o conceito de “enredo multiforme”, ver os trabalhos de Peter Weibel, em especial Teoria Narrada: projeção múltipla e narração múltipla (ado e futuro). In: LEÃO, Lúcia (org.). O Chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Senac, 2005; e também Lev Monovich, Spatial Computerisation and Film Language. In: RIESER, Martin e ZAPP, Andrea (org.) New screen media: cinema, art, narrative. London: British Film Institute, 2004.
11
12
Osmar Gonçalves
narrativas sensoriais
nismo, mas propõem, antes, “agens entre corpos e imagens,
Se, como já notou Jacques Aumont, o cinema esteve durante
viagem e nomadismo de sentidos” . Se concordamos com Philippe
décadas preso à lógica dramatúrgica (literária e teatral)5, se no
Dubois, nesses trabalhos, o todo se desregra e se desfaz, pequenas
curso de anos ele não soube produzir outra beleza formal diferen-
histórias se cruzam e se misturam a serviço de sensações múl-
te daquela proporcionada pelas convenções narrativas mais tradi-
tiplas, cabendo ao espectador organizar os elementos dispersos,
cionais (a ênfase na teleologia e nos encadeamentos dramáticos,
estabelecer relações, montar as peças do mosaico enquanto deam-
a atenção praticamente exclusiva à história, aos conflitos e revira-
bula por um espaço simultaneamente real e fictício .
voltas nos destinos humanos), hoje ele parece superar essa fatali-
3
4
Para os críticos Martin Rieser e Andrea Zapp (2004), não há
dade estética. Cada vez mais, vemos surgir, ao lado dos “cineastas
dúvidas de que os modos narrativos am hoje por um processo
da escrita e do equilíbrio”6, uma outra e renovada categoria que
de diferenciação, um movimento que tem posto em causa formas
não busca unicamente a beleza da história e do drama, mas regis-
fixas e estáveis, temporalidades cronológicas, lineares, estrutu-
tros singulares, produzidos no limiar entre as artes, numa zona
ras orgânicas e bem ordenadas. O que vemos, ao contrario, é o
de fronteira entre o plástico e o narrativo, entre a fotografia e o
gesto recorrente do desvio, a vontade de pesquisa e invenção, a
cinema, a música e a performance.
afirmação de outras potências. Em boa parte das obras (áudio)
São outras forças que se afirmam, novos modos de explorar
visuais contemporâneas, de fato, a narrativa tem seus modelos
as potências do tempo e da imagem. Não apenas o prazer ou a dor
e convenções questionados e subvertidos. Frequentemente, ela é
derivados do storytelling, mas outras experiências, formas diversas
suspensa e/ou interrompida, sofrendo os desmandos do tempo, se
de pensamento e percepção ligadas ao campo do sensível, a um
deixando atravessar por temporalidades múltiplas e anacrônicas,
domínio onde opera também um jogo de forças (instáveis, em de-
por descontinuidades, desencontros, defasagens. Com frequên-
vir) – de atmosferas e vibrações, de pequenas ou micropercepções –
cia, ela a por momentos de desregramento e subversão, uma
e não apenas de formas (estáveis, simbólicas, representativas).
série de desvios e variações que afetam profundamente seus modos de ser e que instauram, neste processo, novas modulações, outras abordagens que tem exigido a constante reformulação de
Devires mais que história
nossos conceitos estéticos. 3 Feliz expressão de Cezar Migliorin, forjada para investigar a instalação Voyage(s) en utopie, à La recherche d’un théorème perdu, de Godard, mas que nos parece útil para pensar uma grande variedade de instalações audiovisuais contemporâneas. In: As mil faces de Godard: exposição/instalação. Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/godardcezar.htm. o em 4 de fevereiro de 2014. 4 Ver o artigo de Philippe Dubois nesta coletânea. A questão da “forma-tela”: espaço, luz, narração, espectador.
5 Não à toa, Peter Greenaway define o cinema como a arte do “texto ilustrado” e Noël Burch fala da “gestação de um gênero literário no seio do cinematográfico”. Cf. a este respeito, GREENAWAY, Peter. 105 anos de texto ilustrado. In: MACIEL, Maria Esther (org.). O cinema enciclopédico de Peter Greenaway. São Paulo; Unimarcos, 2004; e BURCH, Noël. De Mabuse a M: le travail de Fritz Lang. In: Dominique Noguez (org.). Cinema: Theorie, lectures. Paris: Klinckesieck, 1978, p.22. 6 AUMONT, 2004, p.87
13
14
Osmar Gonçalves
narrativas sensoriais
No cenário contemporâneo, é possível perceber que muitas
experimentá-lo. Eis aí o que está em jogo, eis o essencial: a arquite-
obras parecem interessadas em explorar não exatamente o dra-
tura secreta dessas obras e criações. É que há um movimento aqui
ma da comunicação – em arquitetar conflitos, tramas, construir
que desloca a centralidade da interpretação em nosso dia a dia, o
discursos e relações de significação. Elas investem em algo de an-
interesse e a busca praticamente exclusiva por relações de sentido,
terior, algo a “incomunicar” talvez (se é possível falarmos nesses
em prol de momentos de intensidade e de apreensão corporal dos
termos)7. Apostando na sobriedade e no rigor descritivo, essas
fenômenos, em favor de experiências nas quais entram em jogo
obras nos apresentam pequenos blocos de espaço-tempo, peque-
modos de saber mais plásticos e sensoriais. Vontade de se manter
nos segmentos de imagens arrancados ao fluxo da vida, algo assim
na superfície, portanto; se conservar rente aos fenômenos, e ten-
como lampejos ou vislumbres de beleza, celebrações efêmeras de
tar preservar, assim, toda a riqueza, a desmesura e a imediatez da
gestos, movimentos e sensação. É como se o cinema recomeçasse
experiência sensível – todo o “o peso do aqui agora das sensações”
de novo, é como se ele reencontrasse sua vocação original de nos
que aí se produzem8. Trata-se, em outras palavras, de afirmar ou-
dar a ver as coisas, de investir os seres e a vida de olhar.
tros modos de entendimento e de apropriação do mundo, modos
Evidentemente, há aqui uma espécie de recuo do sentido, um
de saber essencialmente corporais e não-hermenêuticos9.
movimento de contenção, uma redução minimalista ao elementar
Ora, se há algo que caracteriza boa parte dessas obras é jus-
ou ao essencial. Há, ao mesmo tempo, um desejo de retorno ao real,
tamente este olhar, a um só tempo, despojado e sensorial, tátil e
ao que há nele de imprevisível e imponderável (seus acasos e encon-
minimalista, um olhar que se debruça sobre o mundo, sobre suas
tros), ao que nele escapa a todo roteiro, programa ou preconcepção,
potências e banalidades, mas que, ao mesmo tempo, se abstém de
retorno, enfim, às próprias coisas, às “realidades simples” – a um
organizá-lo, que não deseja fazer comentários nem busca conti-
aquém (ou além) da história. Diante da paisagem (áudio)visual ho-
nuidades. A aposta, aqui, é sobretudo na força contemplativa das
dierna, com efeito, temos a impressão de que a história é realmente
imagens, em sua capacidade de revelar os acontecimentos – em
deslocada, perdendo importância ante a “pura” presença das coisas,
toda sua riqueza e multiplicidade – sem reduzi-los a um roteiro
perante a potência plástica e afetiva dos corpos, luzes e paisagens,
ou discurso prévios, sem a necessidade de introduzi-los em ca-
ante a percepção “pura” do movimento e do tempo em si mesmos.
deias que os estruturem ou possam explicar10.
Aqui, é preciso dizer, estamos diante de outra abordagem do mundo: uma postura que ensaia novos processos de subjetivação,
8 RODRIGUES, 2003, p.167
outros modos de ser e de estar que se conectam a experiências cujo intuito não é mais dominar ou interpretar o mundo, mas
9 Para uma discussão sobre os efeitos de presença e o chamado campo não-hermenêutico da experiência, ver GUMBRECHT, Hans U. Production of Presence. California: Stanford University Press, 2004; e SONTAG, Susan. Against interpretation. New York: Picador, 2001.
7 Ver a este respeito, entre outros, AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005; e SONTAG, Susan. The aesthetics of silence. Disponível em http://www.ubu.com/aspen/aspen5and6/threeEssays.html#sontag. o em 25 fevereiro de 2014.
10 De certo modo, estamos próximos aqui de certa tradição pictórica oriental (especialmente da pintura chinesa e da miniatura persa), de modos de representação nos quais o mundo é visto sempre como maior e mais importante do que o homem, como uma entidade cujo sentido não pode ser determinado pelas ações, desejos ou empreendimentos huma-
15
16
Osmar Gonçalves
narrativas sensoriais
Nos últimos anos, de fato, temos percebido na produção (áu-
é que aqui, dificilmente, depreendemos enredos, intrigas ou en-
dio)visual uma série de trabalhos que parecem compor uma certa
cadeamentos dramáticos. Esses trabalhos costumam apontar, an-
constelação, uma família ainda que instável, no modo como com-
tes, para algo mais frágil e tênue: como a agem do vento, um
partilham certas temáticas e modos de abordagem. A intimidade
certo tom de azul, uma lágrima, o silêncio. Trata-se de devires,
e o cotidiano, o corpo e a presença, a paisagem, a viagem e o êxo-
mais do que histórias, de um conjunto de imagens que aparecem
do são questões que peram boa parte desses trabalhos, que se
como descrições puras, que emergem como potências sensoriais
tornaram foco de atenção na última década. Para além do aspecto
e afetivas, fora de um finalismo ou de um esquema sensório-mo-
temático, entretanto, é o olhar que lançam sobre o mundo que
tor. Trata-se de um cinema de vidência, uma prática audiovisual
os aproxima, são os modos como pensam o tempo e trabalham
que acredita na constituição de um novo olhar sobre o mundo –
as imagens. Em todos eles, é possível identificar uma atenção es-
um olhar que se propõe mais livre, poético, sensorial.
pecial ao micro e ao banal, a aposta num olhar essencialmente
O intuito deste livro é estabelecer um diálogo com algumas
neutro, silencioso, e, acima de tudo, a valorização da imagem e
dessas obras para que possamos pensar, a partir delas, mas também
do tempo em detrimento do fluxo narrativo.
para além delas, a emergência de um tipo de produção contempo-
Produzidas nos últimos vinte anos por cineastas e artistas
rânea que se sustenta na autonomia da imagem, que aposta em
como Cao Guimarães, Marcevlls L., Miguel Rio Branco, Lucas
sua força plástica e fragmentária mais do que na narração ou em
Bambozzi, Katia Maciel, André Parente, Abbas Kiarostami, Doug
qualquer outra articulação de linguagem. Esses filmes e instalações
Aitken, David Claerbout, Elija-Llisa Ahtila, Pipilotti Rist, Pierre
recusam a ideia da arte como representação e afirmam uma com-
Huygue, entre outros, essas obras se caracterizam por privilegiar
preensão do audiovisual que vai além do “contar histórias”. De fato,
não o desenrolar de um acontecimento ou o desenvolvimento
se há narrativa nesses trabalhos, são narrativas mínimas ou inci-
de um raciocínio, mas a pura descrição de paisagens, eventos e
pientes, formas expressivas ligadas a uma lógica do sensível. Nossa hi-
situações. Elas tendem a descrever, com efeito, acontecimentos
pótese é de que esses trabalhos põem em jogo narrativas sensoriais,
sem maiores encadeamentos, sem continuidades entre uma ação
formas expressivas que funcionam através de blocos de sensações11,
e outra, entre um espaço e outro, uma fala e outra.
de um sistema de impressões ínfimas, imperceptíveis, daquilo que
É que tais obras nos apresentam imagens autônomas, ima-
Leibniz e José Gil (2005) chamaram de pequenas percepções.
gens que não se subordinam umas às outras, que não se prolon-
Recentemente, Andrea França (2005) chamou atenção para
gam formando linhas ou cadeias de sentido, mas que valem por
certas produções contemporâneas que se colocam na fronteira en-
si, por sua qualidade plástica e força contemplativa. E o resultado
tre o narrativo e o nãonarrativo, entre as narrativas convencionais e idealizantes do cinema clássico e as narrativas reflexivas (falsi-
nos. Essencialmente aberto e misterioso, o mundo é o que resiste, é o que nos escapa sempre. E, neste contexto, a ação e o drama perdem relevância, são como que esvaziados, apagados, colocados entre parênteses. Ver a este respeito, YSHAGHPOUR, Youssef. La miniature persane: les couleurs de la lumière, le miroir et le jardin. Edições Verdier, 2009.
11 Ver, entre outros, MASSUMI, Brian. The Autonomy of Affect. In: PATTON, Paul (org.). Deleuze: A Critical Reader. Oxford: Blackwell, 1996.
17
18
Osmar Gonçalves
ficantes ou “disnarrativas”) do audiovisual moderno. Para França,
narrativas sensoriais
Apontamentos numa era pós-midiática
esses trabalhos têm como principal característica o fato de serem implicados por um corpo de sensações e afetos. Há neles, de fato,
“As práticas cinematográficas são hoje constitutivas das ar-
todo um sistema de sensações que é percebido na imagem, e no
tes contemporâneas”, nos diz Beatriz Furtado, “entre seus devires
qual trabalham os afetos, as impressões mínimas, infinitesimais,
múltiplos, o cinema ocupa cada vez de forma mais recorrente o
dadas pela composição, pelas cores, texturas e ritmos do filme.
espaço das galerias, dos museus e das bienais de arte”12. Desde os
Em The cinematic body, o pesquisador Steve Shaviro (1993) tam-
anos 1990, de fato, sabemos que o mundo da arte contemporânea
bém analisa certa produção audiovisual hodierna, cuja caracterís-
tem sido “invadido”, em todos os níveis e de todos os modos, por
tica fundamental é se apoiar ou se construir sobre uma lógica do
aquilo que Philippe Dubois chamou de efeito cinema. Basta ver que
sensível. Trata-se de uma produção que não inventa ou representa
já não há mais grandes exposições (como as Bienais de Veneza,
um estado de coisas, mas cria uma fascinação visual sem ter refe-
São Paulo, a Dokumenta de Kassel etc), museus, centros e galerias
rências histórico-sociais imediatas. São filmes e instalações que nos
de arte que não anunciem a cada nova programação obras que
afetam, em primeiro lugar, como imagem e sensação. Encontramos
impliquem, de uma forma ou de outra, o “cinema”, seu universo
neles, com efeito, todo um investimento na materialidade das ima-
e imaginário. Vivemos hoje, com efeito, a era da mestiçagem, da
gens, em sua potência plástica e sensorial, e a aposta em uma tem-
contaminação, do contrabando de poéticas, linguagens e saberes.
poralidade que se desloca das ações dos personagens em direção à
E, nesse contexto, as fronteiras entre o cinema e as artes plásticas
duração, a um tempo múltiplo e aberto, fora dos eixos. Nesses tra-
se esmaecem, tornam-se fluídas, móveis, problemáticas.
balhos, podemos dizer que o tempo é liberto de seus grilhões (da
O fato é que uma geração de artistas plásticos, bastante co-
teleologia, do reconhecimento, da verossimilhança, da totalidade)
nhecidos no plano internacional, parece ter se apossado do obje-
aparecendo como duração, como devir e mudança constante.
to e do pensamento cinema, levando seu imaginário e/ou dispo-
Aqui, portanto, as ideias de representação e reconhecimen-
sitivo da sala escura para o cubo branco. Ao mesmo tempo que
to são subvertidas, deixadas de lado. Tais filmes e instalações nos
inúmeros cineastas se voltam atualmente para o campo das artes
apresentam um mundo em criação e movimento, um mundo em
visuais, procurando “expor” seus filmes, tentando criar “espacia-
constante devir. Ainda vislumbrado, precário, ainda por se fazer.
lizações” de suas obras ou seu universo criativo. Não há dúvida
Nas narrativas sensoriais, o que vislumbramos são novas modali-
de que esse movimento do cinema na arte e, inversamente, da
dades de apreensão e de percepção do mundo, modos mais aber-
arte no cinema – todos esses processos de migração e atraves-
tos às ambiguidades e transformações do real, onde podemos per-
samento – colocam em questão as identidades e o estatuto de
ceber não apenas o valor da representação e do simbólico, mas
ambos os campos e nos instigam a repensar, assim, a “natureza”
também das forças (instáveis, em devir), das pequenas impressões, das atmosferas onde nada de preciso é ainda dado, onde o pensamento apenas se ensaia, se deslocando levemente da experiência.
12 FURTADO, Beatriz. Um campo difuso de experimentações. In: Narrativas sensoriais: ensaios sobre cinema e arte contemporânea. Rio de Janeiro: Circuito, 2014, p. 32.
19
20
Osmar Gonçalves
narrativas sensoriais
e os “limites” dessas formas expressivas. Essas obras nos levam a
to em que cinema e artes visuais se atravessam nas exposições
pensar as fronteiras, as dobras, o que se a entre os campos, as
contemporâneas. Pois, nesse período de abertura exploratória, a
linguagens e os saberes. Ajudam-nos a pensar, de fato, o cinema
narrativa é obviamente afetada, ganhando outras lógicas, novos
para além do cinema, o cinema como uma arte da simultaneida-
modos de funcionamento. Como apontamos anteriormente, for-
de13, como experiência integral, mais associado a outras práticas
mas mais complexas e abertas, não raro múltiplas e labirínticas,
e criações. Ao mesmo tempo, afirmam as artes visuais como uma
mas também mais sutis e delicadas, ligadas a pequenos gestos, a
prática que se expande em direção a outras linguagens, que mi-
microacontecimentos, formas que parecem suspender a história,
gra do cubo branco em direção a um campo expandido, colocan-
nos colocando diante de eventos mínimos, banais, quase imper-
do em diálogo imagem, corpo e performance.
ceptíveis. E, em ambos os casos, é possível destacar uma atenção
Boa parte das pesquisas nesse campo, contudo, se debruça
especial aos aspectos plásticos e sensíveis das imagens, a afirma-
atualmente sobre a questão institucional – o problema dos terri-
ção da vocação sensorial múltipla do cinema, o fato muitas vezes
tórios, das cartografias, das disputas e legitimações simbólicas –
esquecido ou conscientemente recalcado de que, “assim como a
e acaba tomando o cinema como ponto de partida. Conceitos em
música, ele pode ser apenas sentido”15.
14
voga na crítica contemporânea, como Pós-cinema, Beyond Cinema
Refletindo sobre essas questões, Dubois deixa claro que:
ou Terceiro cinema são emblemáticos dessa postura e ilustram um pouco esse modo de abordar o problema. Nosso interesse aqui,
A narrativa sempre foi uma das dimensões essenciais do cinema,
entretanto, é outro. De um lado, queremos focar nas agens,
que não parou de se posicionar em relação a ela e de (re)definir
nos interstícios, justamente no que se a entre os campos.
suas modalidades de funcionamento. (...) Em contrapartida, está
Trabalhar com o conceito de campo expandido ou com aquilo
longe de ser uma categoria tão central no campo das artes plás-
que Rosalind Krauss (2000) denominou “condição pós-midiática”
ticas e mesmo da arte em geral, onde ela foi frequentemente tida
da arte contemporânea. Trata-se de propor conceitos e perspecti-
como secundária ou como parasita. Em todo caso, como um “ou-
vas que atravessam e perfuram todas as especificidades; de obser-
tro” (o outro da figuração, da imagem, do plástico, do figural, etc)16.
var, nesse processo, não um meio em específico, mas justamente o que há de um meio em outro: as fricções, os atravessamentos,
No cenário contemporâneo, entretanto, essas relações se re-
as tessituras. O que há de pintura no cinema, de fotografia na
configuram no momento em que os artistas visuais começam a
performance, da música no vídeo, e assim por diante. De outro lado, nos interessa focar mais estritamente na questão da narrativa, de sua expansão e/ou reinvenção nesse momen13 BAZIN, 1991 14 BOURDIEU, 1996
15 Ver o artigo de Cristian Borges nesta coletânea. Mais perto do coração selvagem (do cinema). 16 DUBOIS, Philippe. A questão da “forma-tela”: espaço, luz, narração, espectador. In: Narrativas sensoriais: ensaios sobre cinema e arte contemporânea. Rio de Janeiro: Circuito, 2014, p. 146.
21
22
Osmar Gonçalves
narrativas sensoriais
encarar o problema da narração17 e que os cineastas am a bus-
gem como presença, como força expressiva fora das cadeias nar-
car formas expressivas mais ligadas às artes plásticas. Do choque
rativas. Recorrendo a Deleuze, diríamos que “em vez de uma ima-
e das trocas entre esses campos, vemos surgir, de um lado, obras
gem depois da outra, há aqui uma imagem mais a outra” (2006,
que trabalham a partir de uma lógica plástica, que vão inventar
p.255). E, nesse contexto, a história e suas significações tendem
gestos e formas estéticas mais ligadas a um jogo de forças, de in-
a ficar em suspenso, tendem a ser substituídas por outra(s) “nar-
termitências e fulgurações – ao contrário das escrituras baseadas
rativa(s)”, feita(s), agora, por blocos de afetos e sensações. São ou-
na concatenação de ações, dramas e personagens . De outra par-
tras lógicas que se divisam aqui, novos problemas, outros modos
te, vemos surgir trabalhos que fragmentam e multiplicam a(s) nar-
de explorar as potências do tempo e da imagem.
18
rativa(s), nos convidando a interagir em tempo real com uma rede complexa de imagens e sons, uma multiplicidade desierarquiza-
•
da, que cabe ao espectador organizar. A obra se apresentando, desse modo, como um processo, uma disposição múltipla e aberta19.
Os artigos reunidos neste livro exploram diversos aspectos das
Seja num caso ou em outro, é preciso ressaltar a autonomia
questões e problemas levantados acima. Trata-se de tentar com-
que a imagem alcançou na produção (áudio)visual contemporâ-
preender essa nova constelação estética que se desenha hoje nas
nea, pois ela não se encadeia mais num todo, nem está subordina-
trocas e atravessamentos entre os campos do cinema e das artes
da a um encadeamento cronológico e/ou actancial. O que se nota
contemporâneas, tendo como foco principal – porém não exclusi-
aqui é a predileção pelo fragmento, a valorização do instante e do
vo – o problema da narrativa. De modo geral, os textos apresentam
detalhe, uma aposta, enfim, na força singular da imagem, na ima-
dois tipos de abordagem. Há aqueles concentrados na análise do cinema contemporâneo, que vão observar a lógica do sensível na
17 De acordo com Dubois, um processo que tem início ainda nos anos 1980, quando presenciamos a aparição do “efeito cinema” no campo das artes. Neste momento, diversos artistas começam a colocar de forma frontal o problema da narração. Trata-se de saber como estruturar uma narrativa no (e pelo) espaço de uma instalação; ou sob que condições e formas a narrativa pode ser “exposta”, espacializada. Aparecem aqui, então, simultaneamente, as questões da multitela, dos “enredos multiformes” e dos chamados percursos narrativos.
própria escritura dos filmes, em sua dimensão estética e formal.
18 Neste ponto, cabe perguntar se existiria algo como uma narrativa plástica. Referimo-nos a uma narratividade que operasse por meio de uma dramaturgia sensível, de uma dinâmica das linhas e cores, da plasticidade das luzes e texturas, por meio, enfim, de acontecimentos plásticos, acontecimentos da própria imagem.
Um dos objetivos principais de Narrativas Sensoriais, portanto,
19 “Seja porque o espectador tem de percorrer o espaço para acompanhar a narrativa, seja porque cabe a ele editar as imagens que presencia ou porque sua presença aciona uma rede de narrativas possíveis”, como explicita Kátia MACIEL. In: Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009.
E há aqueles que vão, num gesto expansivo, pensar obras que extrapolam a “situação cinema” convencional, obras que movimentam os dispositivos, colocando-se em diálogo com as artes plásticas e deixando ver a emergência de novas modulações narrativas. é tentar traçar um panorama múltiplo e fragmentário, estudar um conjunto variado de obras fílmicas e instalativas, considerando-as em sua singularidade (as questões que suscitam, aquilo que inventam e trazem de novo), mas procurando, ao mesmo tempo, enxergá -las numa perspectiva mais comparativa, em conjunto ou em bloco. O intuito é tentar identificar a forma como se inserem na produção
23
24
Osmar Gonçalves
visual contemporânea, constituindo uma certa constelação, uma família, ainda que instável, no modo como compartilham certos
narrativas sensoriais BURCH, Noël. De Mabuse a M: le travail de Fritz Lang. In: Dominique Noguez (org.). Cinema: Theorie, lectures. Paris: Klinckesieck, 1978.
procedimentos, temáticas e modos de abordagem. Do particular ao
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo, Cinema 2. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
todo, portanto, do micro ao macro – do fragmento ao mosaico, diria
DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard. Trad. Mateus Araújo Silva. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
Benjamin – trata-se de mapear e investigar também os deslocamentos mais amplos em andamento no domínio das artes e da cultura. Vale frisar que esta coletânea resulta de uma pesquisa ainda em andamento e que, como tal, mantém sua qualidade investigativa. Somos conscientes de que o livro não esgota as inúmeras possibilidades de leitura sobre o fenômeno, mesmo porque a produção (áudio)visual contemporânea se transforma a cada dia, trazendo
FRANÇA, Andrea. Foucault e o cinema contemporâneo. Revista Alceu. Vol. 5 – n.10 – p.30-39, jun.2005. GIL, José. As pequenas percepções. In: LINS, Daniel e FEITOSA, Charles. Razão Nômade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. GREENAWAY, Peter. 105 anos de texto ilustrado. In: MACIEL, Maria Esther (org.). O cinema enciclopédico de Peter Greenaway. São Paulo; Unimarcos, 2004.
novas questões, outros atores e exigindo a reformulação contínua
GUMBRECHT, Hans U. Production of Presence. California: Stanford University Press, 2004.
dos conceitos estéticos. Nossa intenção aqui é tão-somente expor
KRAUSS, Rosalind. A Voyage on the North sea: art in the post-medium condition. Nova York: Thames &Hudson, 2000.
um momento de reflexão sobre esse fenômeno que, em seu movimento de constante fluxo e devir, tem balançado antigas certezas no plano estético e epistemológico, impondo grandes desafios
LEÃO, Lúcia (org.). O Chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Senac, 2005.
aos criadores e estudiosos do cinema e das artes contemporâneas.
MACIEL, Kátia (org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009.
Por fim, gostaríamos de agradecer imensamente a participação de
MASSUMI, Brian. The Autonomy of Affect. In: PATTON, Paul (org.). Deleuze: A Critical Reader. Oxford: Blackwell, 1996.
todos os autores. Agradecemos a Renato Rezende, Rafael Bucker, Luisa Primo e Heyk Pimenta pela revisão e formatação do livro. Agradecemos particularmente a Érico Araújo, Henrique Codato e Vianney Mesquita por suas valiosas críticas e sugestões.
MIGLIORIN, Cezar. As mil faces de Godard: exposição/instalação. Disponível em http:// www.revistacinetica.com.br/godardcezar.htm. o em 4 de fevereiro de 2014. RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. RIESER, Martin e ZAPP, Andrea (org.) New screen media: cinema, art, narrative. London: British Film Institute, 2004.
Bibliografia
RODRIGUES, Silvina. Literatura, defesa do atrito. Lisboa: Vendaval, 2003.
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.
SONTAG, Susan. The aesthetics of silence. Disponível em http://www.ubu.com/aspen/ aspen5and6/threeEssays.html#sontag. o em 25 fevereiro de 2014.
AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campinas, SP: Papirus, 2004.
SHAVIRO, Steven. The cinematic body. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993.
BAZIN, Andre. O Cinema. Ensaios. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991.
YSHAGHPOUR, Youssef. La miniature persane: les couleurs de la lumière, le miroir et le jardin. Edições Verdier, 2009.
BELLOUR, Raymond. Entre-imagens: foto, cinema, vídeo. Campinas: Papirus, 1997.
25
27
Um campo difuso de experimentações Beatriz Furtado
O
cinema foi desde sempre um lugar de experimentações e implicações de tendências estéticas.1 No mais das vezes essas questões são motivadas por novos aparatos tecnológicos em-
bora, sobretudo, resultem das investigações e dos processos de criação de artistas, teóricos e realizadores. Ainda que tenha sido assimilado como produto industrial e, portanto, submetido à lógica e às regras do mercado cinematográfico, jamais perdeu sua capacidade de experimentação e a radicalidade da arte, criando para si diferentes campos, circuitos e movimentos. O cinema se fez acompanhar das investidas estéticas das vanguardas históricas, trazendo para si os problemas do espaço pictórico da mesma maneira que dialogou com as artes cênicas e suas dramaturgias, tencionando o seu próprio lugar dentro do 1 Utilizo a expressão tendências estéticas para dizer de movimentos que, embora nem sempre constituídos como tais, apontam para o que Jacques Rancière define como um tecido de experiência sensível no seio do qual se produz um regime de identificação das artes. (Aistesis. Scènes du régime esthétique de l ‘art, Galilée, 2012, pag. 10.).
28
Beatriz Furtado
narrativas sensoriais
campo das artes ao mesmo tempo que esses trânsitos o impeliam
Nunca o cinema foi absolutamente apenas um modelo in-
a se inscrever como um pensamento plástico (visual e sonoro),
dustrial. A mais complexa e contundente história do cinema, a
impulsionando o surgimento de um espaço de fronteiras entre o
que fez Godard em suas Histoire (s) du Cinéma, é um Atlas, nos
que a modernidade forjou como linguagens específicas.
termos de Aby Warburg, uma forma de reunir e articular, de
Desde pelo menos os anos 1960, sob uma vaga de fissuras de
diferentes maneiras, pedaços soltos, espedaçados de imagens
cânones modernos, o que se fazia como interseção entre diferen-
que se infiltram umas sobre as outras, criando uma verdadeira
tes linguagens artísticas, veio a se constituir como um enorme
reconfiguração de ordens de tempos, que em nada se deixam
alargamento dos limites do cinema. Marcos antes constituídos de
apanhar como um arquivo morto, mas, diferentemente, en-
forma rigorosa, catalogados em áreas consolidadas, foram sendo
saiam um desconcertante deslocamento dos contínuos históri-
desarticulados. Hoje, o que podemos chamar de cinema imprime
cos. Talvez essa reconfiguração dos tempos seja uma das mais
fissuras aos traços que o definiram como imagem em movimento,
importantes contribuições de Godard ao pensamento do que se
esta que talvez seja sua referência principal. Várias obras chegam
poderia dizer sobre o cinema contemporâneo, cuja inscrição do
ao extremo da desconstrução dessa concepção de cinema como
tempo é mais rizomático e anacrônico que contínuo e linear.
imagem em movimento ao experimentar um tipo de movimento
Ou seja, a história do cinema proposta por Godard é claramen-
na imagem que se encontra na fronteira do fixo, o que produz um
te uma explicitação da tese de que nenhuma arte é sincrônica
questionamento sob o próprio estatuto de movimento em função
com o seu próprio tempo, o que, em última análise, significa
de outras forças da percepção. Outros mais realizam um cinema
afirmar que o anacronismo na história da arte é, nos termos de
que é todo fotografia, como o fez Chris Marker em La Jetée, dei-
Didi-Huberman (2013), sempre uma história sobre a potência
xando apenas um piscar de olhos para insinuar-se como movi-
dos gestos, sobre o que aparece, está à luz, e não sobre o que
mento, obra que é uma referencia das mais importantes para o
lhe é sincrônico.
debate dessa questão.
Pensar a história do cinema sob a forma criada por Godard,
Por outro, ao se tomar em conta a teoria da montagem em
em suas História(s) do Cinema, é compartilhar do anacrônico do
Eisenstein, tem-se uma configuração de cinema cujo embate
cinema, é poder afirmar a possibilidade do contemporâneo como
com a narrativa é um jogo de partes dispersas, onde imagens se
um estado de coalizão entre forças do ado e latências, for-
justapõem para se contraporem e assim produzirem um choque
ças essas incapazes de narrar uma totalidade e, portanto, feito
no ato de pensar que é da ordem da aistesis. Ali o pensamento é
de modulações temporais, que do ponto de vista cinematográfico
um dado do sensível, fazendo com que todo corpo pense em ima-
quer dizer história(s) do cinema como uma montagem lacunar,
gens a um só tempo que o cinema se faz como matéria de mon-
de temporalidades emaranhadas, em intervalos de aparição e de-
tagem, num explícito contágio com a escrita das constelações
saparição, sem lugar para modelos narrativos lineares.
benjaminianas, assim como das experiências do surrealismo e da fotomontagem.
História(s) do Cinema de Godard dão a ver a medida do desfazimento de modelos narrativos que mobilizam certa produção
29
30
Beatriz Furtado
narrativas sensoriais
fílmica, que toca o mundo, e que é sensível àquilo que é estado
les films sont
de virtualidade no contemporâneo. Não é sobre uma mistura de
des marchandises
linguagens heterogêneas ou interligamentos de campos diversos
et, il faut brûler les films
que se pauta a produção cinematográfica contemporânea, mas
je l ‘avais dit à Langlois
sob uma temporalidade de multiplicidades de encontros, de des-
mais attention
locamentos, de configurações, de descontinuidades, de defasa-
avec le feu intérieur
gens. Uma história do cinema, afirma Godard, é uma tarefa inca-
matière et mémoire
paz de se fazer como narrativa.
l’art est comme l ‘incendie il naît
Peut-on raconter le temps
de ce qu’il brûle.3
Le temps en lui-même Comme tel
Desse incêndio interior, dessa arte que queima entre Vinci,
Et en soi
Cézanne, Vermeer e Manet, entre Auschwitz, Sarajevo, Hiroshima
Non, en vérité
e Leningrado. Todas as histórias, uma só história. Entre Vigo,
Ce serait une folle entreprise
Antonioni e o museu do real. Uma arte do século XIX, o cinema,
Un récit où il serait dit
que fez existir o século XX, e que encontrou nesse espaço difu-
Le temps ait
so de experimentações seu jeito de ser exceção frente à regra –
Il s’écoulait
como em Saravejo (1993), filme realizado a partir de única foto, o
Le temps suivant son cours
necessário para que Godard pudesse expor a violência da guerra
Histoire du cinema
na Bósnia.
Jamais un homme sain d’esprit
O cinema é esse campo de experiências estéticas, éticas, po-
Ne l’obtiendrait pour une narration
líticas, campo de embate das produções de imagens, nas inven-
Histoire du cinema
ções de fluxos temporais e de construção de espaços, algo que
2
se deve e se faz, sobretudo, pelo lugar que a arte da imagem em Essa história(s) do cinema, a que fez Godard, que não se
movimento ocupa no campo das artes. Nos diálogos e nos en-
inscreve por modelos e códigos mais ou menos narrativos, mas
trecruzamentos de diferentes movimentos artísticos, em especial
fazendo-a queimar em fogo, uma arte que nasce de um fogo inte-
nas aproximações com as artes visuais, como cinema inscrito nos
rior, matéria e memória.
espaços expositivos, seja transferindo o lugar do espectador para o jogo com diferentes dispositivos arquitetônicos ou na sua rela-
2 GODARD, 1998, p. 165
3 GODARD 1998, p. 168
31
32
Beatriz Furtado
narrativas sensoriais
ção com as múltiplas formas de visibilidade da imagem e do som,
entender as trajetórias de cada um dos realizadores-artistas, que
seja tensionando o lugar da narrativa, das formas fílmicas e de-
propriamente para categorizar um tipo de arte.
sorganizando no espaço a linearidade da operação de montagem.
Nessa vaga de obras fílmicas que se inscrevem no campo das
Todas estas questões que implicam diretamente na experiência
artes contemporâneas, inúmeros artistas trazem consigo algo
cinematográfica, da tela única, da sala escura e isolada de qual-
que há muito se insinuava e criava fissuras no próprio espaço das
quer ruído exterior, do corpo sentado e imerso, de um mesmo
instituições cinematográficas. Em meio às artes contemporâne-
formato de tela, etc.
as, as regras cinematográficas – de linguagem, narrativa, gênero,
Esses deslocamentos todos colocam em questão a própria ideia
etc. – não têm nenhuma razão de permanência. Há um vácuo de
de cinema e põem em cena imagens em movimento com diferentes
ordens, uma extrapolação das medidas fílmicas. Mais que nunca
escalas, velocidades, texturas, sonoridades e experiências estéticas,
o cinema se sustenta sobre razões da diferenciação, se reconhece
constituindo um cinema que já não se faz como um campo isolado,
dentro de uma lógica da arte como contínua variação de si.
específico e, sobretudo, criado abrindo-se para elaboração de propo-
Nenhuma medida da indústria cinematográfica, do rigor
sições nas fronteiras, que já não são mais um marco identitário de
das formas de distribuição, dos ditames dos exibidores que con-
uma linguagem, mas que fala em línguas sem territórios.
trolam as salas de exibição. As novas regras são a do mercado da arte, a das instituições museológicas, dos colecionistas, dos
A exceção, vácuo de ordens.
proprietários de galeria, curadores, críticos de arte. O que ocorre com essas obras fílmicas talvez possa ser acompanhado a partir das incursões do cinema pelos museus, provocadas por Jonas
As práticas cinematográficas são hoje constitutivas das ar-
Mekas, desde os anos 1960, nos Estados Unidos, ainda que a influ-
tes contemporâneas. Entre seus devires múltiplos, o cinema ocu-
ência do museu sempre tenha acompanhado os cinemas. Os da
pa cada vez de forma mais recorrente o espaço das galerias, dos
Nouvelle Vague, segundo Godard, eram filhos do museu, inclusi-
museus e das bienais de arte, se fazendo como obra. O que em
ve do Museu do Cinema, as cinematecas.
determinado período apareceu como um diálogo entre o cinema
Mas foi Mekas quem deu os primeiros os do cinema em
e as artes visuais, devido, sobretudo, às tecnologias do 16mm,
direção aos espaços expositivos, trazendo consigo todas as con-
Super-8 e o vídeo, abrigado sob a categoria de filmes de artistas,
sequências não apenas desse outro modo de instalar as imagens
ou a ser um traço que não distingue uma e outra forma de
em movimento, mas, sobretudo, criando um outro estatuto para
criação de obras. O museu, diz Rancière, torna-se um lugar de
essas imagens. Mas não foi qualquer filme que se impôs no es-
indistinção das artes. Cineastas-artistas, artistas-cineastas ou vi-
paço expositivo. Mekas estava inscrito dentro de um grupo de
deoartistas são perfis de realizadores que ajudam muito mais a
cineastas experimentais que nos anos 1960 organizou coletivos
4
independentes, cujas investidas estéticas primavam pela recusa 4 RANCIÈRE, 2012, p. 238
aos limites do filme narrativo, ao formalismo, à rigidez temática
33
34
Beatriz Furtado
narrativas sensoriais
e à dependência de grandes orçamentos. É nesse âmbito do expe-
atitude de vida. A postura foi, desde sempre, de expandir o espaço
rimentalismo que as instituições das artes vão ganhar interesse
de intervenção do artista, abrindo outras possibilidades para a
pelo cinema e vão de alguma forma absorver, tomar para si, esse
imagem em movimento, o que mostra uma disposição para to-
cinema feito por uma geração de cineastas reunidos em torno do
mar o cinema como um campo e um corpo difuso das artes.
conceito do experimentalismo e do filmes de artistas.
Essa atitude de Mekas o faz próximo do movimento Fluxus,5
A revista Film Culture, número 19, publicada no ano de
orientado por seu amigo George Maciunas, com o qual dividiu
1959, trazia uma “chamada por uma nova geração de cineastas”,
espaço em seu ateliê de trabalho, a Film Makers, no Soho, e tro-
cujo eixo central era exatamente anunciar os primeiros sinais
cou influências em relação às investigações artísticas. Maciunas,
que davam a ver um cinema que quebrava as convenções do filme
segundo Mekas (1993), começou seu projeto do Filme Fluxus, so-
narrativo. Fundamentalmente, esse movimento rejeitava todos
bre os quais, se podem ver muito mais sobre as possibilidades es-
os fundamentos que metiam o cinema sob os dogmas do grande
senciais do cinema que de seu conteúdo literal. “Eles foram con-
negócio cinematográfico com as consequentes imposições estéti-
cebidos como filmes conceituais, mas uma vez esses conceitos
cas. A produção experimental, esta que subverteu as narrativas
materializados em filme, tornam-se eventos visuais, radicalmen-
lineares, a figura e a significação, ocorre num clima de múltiplas
te cinematográficos”.6 George Brecht, integrante do Fluxus, reali-
tendências plásticas que surge com a Pop Arte, a Minimal Art, a
zou Entrance, um filme de sete minutos em que há uma agem
Arte Povera, entre outros movimentos que dialogavam entre si.
progressiva do branco depois de um plano com a sinalização de
Proposição que se fazia também em paralelo ao surgimento de um
entrada até um plano de sinalização de saída.
cinema americano independente, que apostou em improvisações
Essa radicalidade cinematográfica de que fala Mekas sobre
e incursões na vida noturna de Nova York (John Cassavetes, Moris
os Filmes Fluxus foram levadas às últimas consequências por
Engel, Alfred Leslie, Robert Frank, Jerome Hill, etc.), assim como
Andy Warhol, em seus longas metragens diretos (as seis horas
ao filme estrutural e underground e dos novos cinemas europeus
de Sleep, seu primeiro filme, de 1963; e nas vinte horas de Empire
do pós-Guerra (a Nouvelle Vague e o Neorrealismo Italiano).
State Building, de 1964). Nada mais contundente em relação à pro-
Jonas Mekas foi porta-voz desse movimento do cinema independente novaiorquino, suas obras estavam informadas pelo modernismo pictórico, o movimento do cinema direto e a invenção de um documentário sem os purismos formais e acadêmicos. O papel de Mekas foi fundamental para que o cinema experimental ganhasse conotações bastante radicais. Tratava-se de instaurar um cinema com preocupações estéticas e políticas, de fazer do cinema uma arte que movesse padrões, que experimentasse a liberdade da câmara, da montagem intuitiva, do cinema como uma
5 Grupo Fluxus, grupo de artistas, criado no início da década de 1960, que recebe influências das experiencias de Marcel Duchamp e do movimiento Dadá, que pretendiam transforrnar a arte e seu conceito tradicional, partindo da fusão de todas as artes e das diferenças entre arte e vida. 6 Minha tradução. “De sorte que des films Fluxus commme Entrance (Entrée) ou Disappearing Music for Face (Fondu Mususical pour Visage) trateint plus des possibilités essencialles du cinéma que de leur contenu littéral. Oui, dira-on, ils ont été conçu comme des ‘Films conceptuels’. Mais une fois ces concepts ‘materialisés’ sur le film, ils sont devenus des événements visueles, radicalement cinématographiques”. (MEKAS, 1993, p. 93)
35
36
Beatriz Furtado
narrativas sensoriais
posição de cinema direto, da redução ao menor grau da mise en
ainda tecem sobre a produção mais recente do cinema, é possível
scène e do máximo de exclusão da direção, uma realidade cine-
pensar a força de um regime da arte que é de resistência, que é
matográfica que joga com nuances espaço-temporais sem prece-
política no sentido que lhe dá Rancière – já não mais se deixando
dentes. Essa radicalidade do cinema não deixa de ser também
tomar pela fundação de um regime da representativo, este que
um manifesto, uma opção por um mundo minoritário. O termo
supõe ocupar a função de antecipar o mundo, fazer ver e explicar
underground, pelo qual essas produções são identificadas, reti-
a vida –, regime da arte como reconfiguração do sensível.
rado da declaração de Marcel Duchamp, nos anos 1960, quando
Não se trata, pelo menos não exatamente, de uma produção
afirmou que no futuro a arte seria “underground”, diz bem dessa
de arte cinematográfica cuja estética resulta de um programa,
proposição contrária a superficialidade. Uma aposta estética no
como ocorreu aos futuristas estabelecer, expressando sua vonta-
que não se encontra na superfície, mas nas profundezas e que
de de um salto adiante em suas proposições (por exemplo, ofe-
é, ao mesmo tempo um deslocamento de posição em relação às
recer simultaneidade e fusões de tempos e de lugares distintos
vanguardas, proposição esta de entendimento da arte como um
cinematografados), ou aos do Cine-Olho (realizar a concentração e
pensamento para além de seu tempo.
a decomposição do tempo, a possibilidade de ver os processos da
Qual cena, qual movimento podemos encontrar mais
vida em uma ordem temporal inível ao olho humano, assim
de meio século após as perspectivas de futuro das artes de
como em uma velocidade temporal da mesma ordem), compre-
Marcel Duchamp? Sobretudo, o que o Cinema Experimental,
endido como representando perspectivas desse ou daquele pen-
Underground, Independente, aportaram de violência ao amor-
samento de mundo, mas configurando todos esses diferentes fios
tecimento do grande cinema, do circuito mercadológico das ar-
das histórias dos cinemas, em uma arte que se pensa capaz de
tes? Fará ainda algum sentido ao pensamento contemporâneo
criar o tecido de novas formas de vida.
o protesto feito por Jonas Mekas, em um texto pronunciado na
Essa, assim parece, é a resistência de um regime de arte que
Cinemateca sa, numa pequena sala, em fevereiro de 1976,
atravessa a produção contemporânea, as novas cinematografias
no quadro de uma exposição organizada por Peter Kubelka, inti-
que resistem aos modelos instituídos e amortecedores da potên-
tulada Uma História do Cinema? Mekas, em seu manifesto:
cia de arte. O que se encontra em jogo, em disputa, em tensão,
“Nós não somos iguais! Um minuto de filme de Kubelka,
nessa produção, é menos um programa de procedimentos ou de
Baillie, Brakhage faz mais pela humanidade que mil programas
crenças, e mais uma perseguição por um campo difuso, da expe-
duplos integrais de cinema comercial. Nós não somos iguais!
rimentação sob a matéria cinema para além de uma linguagem
O pequeno cinema não narrativo e as outras formas modernas
codificada. O cinema contemporâneo vai ao museu, não apenas
de cinema são sufocados pelas hordas do cinema comercial. Nós
o do cinema, que são as cinematecas que possibilitaram o mo-
somos os Palestinos do Cinema.”
vimento de cinefilia, ou para ocupar salas de cinema, mas para
Faz sentido hoje o gesto dos manifestos, do texto de protesto? Mais que apontar as sobras, as linhas que esses movimentos
fazer um outro deslocamento, que é o de envolver-se diretamente com às artes contemporâneas.
37
38
Beatriz Furtado
narrativas sensoriais
Se o espaço da sala escura deu uma especificidade ao cine-
suras que atravessam a duração dos planos, que interferem na
ma, tornando-se um dispositivo configurador de uma linguagem,
matéria plástica da profundidade de campo, que introduzem ou-
de uma métrica e de um modelo de envolvimento do corpo com
tras possíveis para o campo da montagem, da reconfiguração dos
a cena, não é sem fazer fissuras que ele a ocupar o museu, as
desenhos sonoros, dos que se encontra em campo e fora dele em
caixas brancas. Nesse espaço, seja nas galerias, em forma de cubo
um novo tipo de espaço (seja o cinema projetado nas paredes de
branco ou não, seja nos galpões das grandes exposições, o cinema
uma cidade, de uma galeria ou de no espaço sem tela que aco-
a a pertencer a um regime de arte cujos problemas que lhe
lha a imagem). São problemas da ordem do cinematográfico, do
são postos são de ordens as mais diversas. É isso que a produção
pensamento sobre as imagens e dos sons, sobre a forma fílmica –
de obras fílmicas vai dar a ver.
movimentos, planos, campos, quadros, etc., que se abrem nos ex-
Não aquelas da arte do vídeo, que no final dos anos 1960 e
perimentos artísticos dos realizadores.
início dos anos 1970 experimentaram ao extremo a plasticidade
O que significa esse deslocamento, no que pese um certo
do novo e da imagem pixelada, nem mesmo aquele cine-
modo que se faz já recorrente de instalação fílmica, é a abertu-
ma pode ser visto em fragmentos especializados como peças ex-
ra do cinematográfico para as experimentações as mais difusas.
postas. Obras fílmicas são um tipo de cinema que não apenas se
Uma obra fílmica não demanda especificidades nem linguagem,
expandiu no espaço, ocupou galerias e museus, como trabalhos
mas um movimento de constante variação de si, de uma incessan-
instalados em múltiplas telas, monitores, etc., mas as que se in-
te instabilidade a ser atravessada.
ventam como obra, como pensamento artístico. Em Mouvements Improbables – parcours d’une exposition (2011), Dubois toma o cinema para dizer sobre o movimento das imagens, uma vez que foi
Referências bibliográficas
o cinema o primeiro a colocar o movimento no coração das ima-
DUBOIS, Philippe. La Question Vidéo – entre cinema et art contemporain. Crisnée, Bélgica: Éditions Yellow Now – Côté Cinéma, 2011.
gens. Isso que Dubois chamou de cinematicidade do visível, e que tornou, desde então, o mundo – seja o que se chama de mundo real, seja aquele das artes visuais – apenas percebido que pelo imaginário da imagem em movimento. E para que se dimensione esse força da imagem em movimento é suficiente observar a extensão desse fenômeno nas artes contemporâneas, onde as imagens em movimento, o filme, o cinema, são predominantes. O que se encontra em jogo nessa relação entre cinema e as artes é certamente uma questão das apostas estéticas, artísticas. É menos um modelo de cinema, uma mudança ou proposição manifesta, que uma abertura exploratória, uma produção de fis-
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vagalumes. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013. MEKAS, Jonas. Le Cinéma de la Nouvelle Génération. In: Cahiers de Paris Expérimental. Paris, nov 2002. RANCIÈRE, Jacques. As Distâncias do Cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012,
39
41
Mais perto do coração selvagem (do cinema) Cristian Borges
E
m 1889, o filósofo francês Paul Souriau propõe uma “teoria da arte de se mover”, cujo objetivo seria o de “produzir, por meio do movimento, uma impressão de beleza”. Segundo ele, para
que o movimento possua valor estético são necessárias três condições básicas: “a beleza mecânica do movimento, sua expressão e sua apreensão sensível”.1 Haveria um grau de projeção / identi-
ficação em nossa relação com o movimento, na medida em que o prazer proporcionado por um movimento visto se mede pelo prazer que experimentamos ao executá-lo (em nossa imaginação). Isso diferenciaria, em consequência, a expressão do movimento da impressão que ele produz em seu observador, cuja percepção visual pode ser considerada em três situações distintas: com o olho imóvel, com o olho em movimento e, enfim, com o próprio ob-
1 SOURIAU, Paul. L’esthétique du mouvement. Paris: Elibron Classics, 2006.
42
Cristian Borges
narrativas sensoriais
servador deslocando-se.2 Para Souriau, o interesse que nutrimos
seja, quando algo ou alguém se move, nossa curiosidade é incita-
pelos movimentos dos seres e das coisas é, antes de tudo, prático:
da a seguir (ou adivinhar) esse movimento até seu destino final. Daí nosso fascínio pelo que se move: da criança por um carrinho
Vivendo em permanente estado de guerra, os animais precisam
a correr e um pião ou carrossel a girar; do adulto pela lua desli-
perceber o mais rápido possível tudo o que se a à sua volta.
zando por entre as nuvens, por pessoas dançando ou por imagens
Qualquer movimento insólito, uma folha que se agita, uma sombra
em movimento projetadas sobre uma tela.
que a atrairá imediatamente sua atenção. Talvez seja um ini-
Esse movimento expressivo “subjetivado”, que teria contri-
migo que se aproxima, talvez uma presa. Com o homem em estado
buído de modo fundamental para o advento do cinema, parti-
selvagem acontece o mesmo; e hereditariamente essa curiosidade
ciparia ou escaparia de uma determinada fluência narrativa,
deve ter se tornado instintiva também no homem civilizado. A crian-
dependendo do caso, podendo ser, por outro lado, mais repre-
ça, que vive em perfeita segurança na paz do ambiente familiar, agi-
sentativo da “realidade” – seguindo a tradição mais “naturalista”
ta-se quando percebe um movimento brusco; a visão inesperada
de um Muybridge – ou mais ilusório – ao lidar, por exemplo,
de determinados objetos provocarão nela gritos de terror. Ela tem
com dimensões mais abstratas e rítmicas, como as de Marey.4
medo antes mesmo de saber que algo poderia lhe fazer mal, pois
Evidentemente, esses exemplos só farão sentido se considerar-
possui o sentido do perigo, ainda que nenhuma experiência prece-
mos aqui a substituição da já exaurida (e nem sempre justa) con-
dente lhe tenha proporcionado essa noção.
traposição entre Lumière e Méliès, operando desse modo um re-
3
cuo ainda maior no tempo no que diz respeito à velha oposição Somente mais tarde esse interesse viria a se tornar, sobretu-
representação do real versus criação de mundos imaginários – a qual
do teórico e contemplativo. Tudo o que se move a a aguçar nos-
se vê comumente reduzida à pouco produtiva polarização “docu-
sa curiosidade de maneira imediata e irrefletida. De certo modo,
mentário x ficção”, ignorando-se nuances importantes das quais
esperamos ingenuamente que todo móvel atinja seu repouso, ou
essas duas categorias não conseguem dar conta, como, por exemplo: filmes de ficção totalmente voltados para a representação da
2 O que remeteria a uma ideia cara a Diderot, e recuperada mais recentemente por Jean Louis Schefer, segundo a qual caberia ao próprio espectador conferir movimento a imagens estáticas, como as da pintura; seria ele, e não os detalhes na imagem, que poria as imagens em movimento com seu olhar — o qual funcionaria como uma verdadeira “máquina de ver” (com direito a enquadrar, selecionar, detalhar e efetuar travellings). Desse modo, para Schefer, o cinema viria apenas materializar uma espécie de “aparelho óptico invisível” que já existia no espectador: “não foi, portanto, a variedade dispersa de espetáculos (pintura, teatro…) que tornou o cinema possível, mas o espectador: porque nele o tempo já rodava como a perpetuação das imagens ou o encadeamento dos instantes no instante subsistente” (SCHEFER, 1997, p. 34-39). 3 SOURIAU, Paul. L’esthétique du mouvement. Op. cit., p. 254.
“realidade”; ou então filmes ditos documentais que partem da criação de universos ou personagens imaginários, que inexistem tais e quais. Na mesma época em que Souriau propunha sua “estética do movimento”, eram publicados os primeiros textos modernos de
4 Traços diferenciadores dos dois célebres produtores de cronofotografias são apontados, por exemplo, pelo artigo de Annateresa Fabris sobre o fotodinamismo, A captação do movimento: do instantâneo ao fotodinamismo, in Ars v. 2, n. 4, São Paulo, 2004, p. 50-77.
43
44
Cristian Borges
narrativas sensoriais
teoria da dança, acompanhando e de certo modo preparando o advento da modernidade no seio dessa arte que se caracteriza pelo uso do corpo para exprimir movimentos previamente estabelecidos (com uma coreografia) ou improvisados (na dança livre). François Delsarte e Stéphane Mallarmé foram alguns dos primeiros a se dedicar a pensar essa arte tão fascinante quanto misteriosa. Outros viriam a se manifestar em seguida: amantes, curiosos ou praticantes, tais como Loie Fuller, Isadora Duncan, Valentine de Saint-Point, Kandinsky, Marinetti, Nijinski, Steiner, Valéry e Laban, entre tantos outros.5 Será que podemos vislumbrar alguns pontos de contato entre os métodos gráficos de Marey / Muybridge e as notações coreográficas da dança dita moderna ou contemporânea, sendo que os primeiros são da ordem do registro mecânico e os últimos resultam de uma codificação manual? Observando atentamente a evolução das formas de reprodução da dança, desde a Antiguidade, e ando pelas técnicas de notação coreográfica desenvolvidas na Europa, sobretudo a partir dos séculos XVI e XVII, notaremos uma curiosa proximidade, por exemplo, entre as fotos de Charlotte Rudolph e os desenhos de Wassily Kandinsky representando a dançarina Gret Paluca, nos anos 1920; ou ainda entre o cartão de notação coreográfica que Valerie Preston-Dunlop enviou como presente de aniversário pelos setenta anos do dançarino e teórico Rudolf Laban (1949); o diagrama de luz e movimentos dos atores que Lucinda Childs preparou para a ópera de Bob Wilson e Philip Glass, Einstein on the Beach (1984); e o gráfico de continuidade elaborado por Sylvette Baudrot, continuísta ha-
Eadweard Muybridge, 1887 Étienne-Jules Marey, 1890
5 Para uma seleção cuidadosa, ainda que fragmentária, desses textos seminais, em francês, ver MACEL, Christine; LAVIGNE, Emma (ed.). Danser sa vie: écrits sur la danse. Paris: Centre Pompidou, 2011.
45
46
Cristian Borges
narrativas sensoriais
bitual do cineasta Alain Resnais, para o filme O Ano ado em Marienbad (1961).6 Interessa aqui iniciarmos uma reflexão acerca da invasão da narrativa cinematográfica, já centenária, por um fenômeno que poderíamos chamar de apelo coreográfico – algo que ocorreria, na maioria das vezes, em um momento de suspensão dessa mesma narrativa, a qual se vê tomada por uma movimentação de corpos muito próxima da dança contemporânea e que sugere laços estreitos, por um lado, com o gênero musical e, por outro, com as “atrações” dos primórdios do cinema. Um exemplo célebre, entre tantos outros, seria a mise en scène alucinada de Glauber Rocha em Terra em Transe, em particular nas sequências filmadas no topo do Parque Lage, no Rio, nas quais a dança dos corpos dos atores e da câmera de Dib Lutfi tomam conta do espetáculo cinematográfico, relegando a narrativa ao segundo plano. Porém, como veremos a seguir, talvez não se trate propriamente de uma invasão, mas antes da tentativa de recuperação de um espaço perdido (dominado) anteriormente… Charlotte Rudolph (fotos) e Wassily Kandinsky (desenhos) representam a dançarina Gret Paluca, in Das Kunstblatt, v.10, março de 1926.
Mobilidade versus palavra
Valerie Preston-Dunlop, Cartão de notação coreográfica, 1949 Lucinda Childs. Diagrama de luz e movimentos dos atores de Einstein on the Beach, 1984. Sylvette Baudrot, Gráfico de continuidade para as filmagens de O Ano ado em Marienbad, 1961.
Com o advento do sonoro, entre o final dos anos 1920 e o início dos 1930, muito rapidamente intensifica-se algo que já começava a despontar, ainda que timidamente, no cinema silencioso: os corpos vão gradualmente perdendo sua mobilidade em nome da proeminência das palavras. Muito pouco daquilo que
6 Esse gráfico foi reproduzido duas vezes na revista Cahiers du cinéma, em 1961: a primeira vez, invertido (n. 123, setembro, p. 19), e a segunda vez, no sentido correto (n. 125, novembro, p. 48), acompanhado de uma explicação sobre como decodificá-lo.
47
48
Cristian Borges
narrativas sensoriais
se via na movimentação delirante e às vezes difusa dos filmes de
mistérios.8 Parecem ignorar que o cinema, como a música, tam-
Méliès, das comédias burlescas de Mack Sennet, Charles Chaplin
bém pode ser apenas sentido – apesar da diferença básica entre os
ou Buster Keaton e de obras das vanguardas europeias, como as
dois: enquanto a música é a arte que mais abstração faz de uma
de Vertov, Eisenstein, Epstein, Dulac e Buñuel, permanece nesse
suposta “realidade”, o cinema é aquele que mais diretamente a
cinema em que falar, muitas vezes compulsivamente, torna-se a
ela se refere.9
tônica. As talking heads, que tomariam conta da televisão (e dos
Roland Barthes, em um texto que questiona a pintura como
documentários) apenas décadas mais tarde, já se encontravam
linguagem, já chamava nossa atenção para o fato de que um qua-
prenunciadas nesses talking bodies do cinema da era sonora.
dro não se conta, já que este “nunca é mais do que sua própria
Isso não significa, obviamente, que os personagens do cine-
descrição plural”.10 Ora, por que então haveríamos de contar um
ma silencioso não falavam ou que aqueles do sonoro não se mo-
filme de maneira única e inequívoca? O cinema experimental
viam; apenas que a ênfase dada a cada uma dessas ações – falar
desde o início do século XX, os clipes musicais da era pós-MTV e
ou mover-se – é deslocada de um período a outro. E como certas
inúmeros vídeos e filmes apresentados em galerias e museus nas
coisas andam sempre de mãos dadas, percebe-se que o aumento
últimas décadas comprovam essa vocação sensorial múltipla
considerável do peso dado à palavra e ao uso dos diálogos, por
do cinema.
outro lado, recai sobre o modo algo ditatorial com que, ao longo
Ao esboçar, ainda que de maneira extremamente sucinta
de um século, vem-se acompanhando a predominância inques-
e inicial, uma estética da movimentação dos corpos no cinema,
tionável do roteiro literário sobre outras formas de concepção
parto do pressuposto de que o cinema sonoro tenta, por assim di-
de obras audiovisuais – contradizendo e eclipsando, assim, sua
zer, “silenciar” essa dinâmica corporal na tela ao concentrar seu
vocação movente e sua aproximação intrínseca com a música e
foco na fala e no sentido das palavras, reduzindo ou eliminando
a dança.
toda a incrível potência – plástica, e mesmo semântica – contida
7
Os criadores (sejam eles diretores, roteiristas ou produtores) e os gestores de políticas culturais (que coordenam os mais diversos editais e outras formas de financiamento público ou privado) ainda permanecem atrelados à ideia, um tanto antiquada, de que a função primordial de uma obra audiovisual é “contar uma história” – que deve ser apreendida, ou melhor, compreendida de maneira clara e inequívoca, ainda que a trama conserve seus
7 Que acaba explodindo de forma incongruente e histérica nos filmes de ação estadunidenses, os disaster movies e seus congêneres do filão blockbuster.
8 Como diria Antonin Artaud, num de seus textos sobre o cinema (Sorcellerie et cinéma, de 1927, in Œuvres complètes III. Paris: Gallimard, 1970, p. 82-85): “Fazê-lo servir a contar histórias, uma ação exterior, é privá-lo do melhor de seus recursos, contrariando sua finalidade mais profunda. Eis porque o cinema parece-me sobretudo feito para exprimir as coisas do pensamento, o interior da consciência, e não tanto pelo jogo das imagens, mas por algo mais imponderável que nos restitua essas imagens com sua matéria direta, sem interposições, sem representações”. 9 Como bem lembra Richard Dyer, citando o trabalho de Suzanne K. Langer, no artigo Entertainment and Utopia. In: ALTMAN, R. (ed.). Genre: the Musical. Londres / Boston / Henley: Routledge & Kegan Paul, 1981, p. 178. 10 BARTHES, R. A pintura é uma linguagem?, in O óbvio e o obtuso: Ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 136.
49
50
Cristian Borges
narrativas sensoriais
na cinética dos corpos. Algo que os filmes musicais, por exemplo,
a uma ética definida socialmente, enquanto que o número mu-
com seus corpos inquietos e suas quebras no fluxo narrativo pela
sical, que proporciona aos personagens (e ao espectador) “uma
eclosão de números musicais – “uma característica definidora
oportunidade de exercitar a imaginação e a liberdade pessoal”,
do gênero”, como enfatiza Alan Williams – vão de certo modo
funcionaria como o “id” do filme, momento de desregramento
recuperar, ainda que apenas em momentos privilegiados – os
e subversão.14 Assim, apesar das técnicas cada vez mais sofistica-
quais Laura Mulvey vai chamar, em relação aos melodramas de
das de homogeneização ou uniformização que os musicais vão
Douglas Sirk, de momentos ou segmentos “ocultos, de significa-
gradualmente desenvolvendo, continua sendo difícil confundir o
ção diferenciada” –, parte dessa potência perdida. Como explica
naturalismo habitual das cenas narrativas mais contidas e bem
Martin Sutton:
comportadas com os arroubos extravagantes típicos das cenas
11
12
dançadas / cantadas. Aliás, a esse respeito Michel Chion recorre à
O número funciona [assim] como uma interrupção narrativa, uma
Rick Altman ao salientar justamente as agens ou os interva-
tangente fantástica que ao mesmo tempo frustra e libera o espec-
los entre esses momentos tão díspares:
tador (…) da crescente tensão entre trama realista e número espetacular (…) essas forças contraditórias localizadas, por um lado,
No quadro da definição altmaniana, as agens de encadeamen-
no protagonista e nos números (liberdade) e, por outro lado, nas
tos da palavra ao canto, e do movimento “natural” à dança (e vice-
estratégias reconciliatórias e convencionais do roteiro (inibição).
versa) constituem momentos cruciais, assim como a demarcação
13
entre o mundo em que se fala e se move e aquele em que se canta e / ou se dança.15
Já é conhecida de todos essa marca contrastante e característica do musical clássico hollywoodiano, que Lars von Trier radicaliza em chave crítica no filme Dançando no escuro (2000), e que Sutton vai aproximar da psicanálise freudiana ao chamar a trama
Números = atrações
convencional e previsível de “superego” do texto fílmico, sujeito 11 Williams, Alan. The Musical Films and Recorded Popular Music. In. ALTMAN, R. (ed.). Genre: the Musical. Op. cit., p. 149. 12 Mulvey, Laura. Death 24x a Second. Londres: Reaktion Books, 2006, p. 147-148: “Momentos privilegiados ou tableaux são construídos em torno de uma unidade estética integrada que se descola do todo, embora em última instância faça parte dele”. 13 SUTTON, Martin. Patterns of Meaning in the Musical. In: ALTMAN, R. (ed.). Genre: the Musical. Op. cit., p. 191 (grifo meu). Cabe ainda salientar que, para Sutton, o protagonista do filme musical é “um personagem em conflito com o ambiente que o cerca e sua natureza estática” (p. 193).
Fatalmente, observamos aí um inegável parentesco entre os números musicais e as “atrações” que, segundo André Gaudreault, são “o princípio dominante” dos primórdios do cinema, “em contradição com o princípio dominante do cinema 14
Ibid.
15 Cf. CHION, Michel. La comédie musicale. Paris: Cahiers du cinéma / Scérén-CNDP, 2002, p. 6.
51
52
Cristian Borges
narrativas sensoriais
institucional: a narração”.16 Por outro lado, diz ele, “o cinema
gem de atrações consiste na “montagem livre de ações (atrações)
narrativo está repleto de atrações”: nos filmes de aventura e de
arbitrariamente escolhidas e independentes (também exteriores
ação, nos musicais, para não falar dos filmes pornográficos, nos
à composição e ao enredo vivido pelos atores), porém com o ob-
quais as “atrações” ganham lugar privilegiado. Em seu estudo so-
jetivo preciso de atingir um certo efeito temático final”.20 Logo, o
bre o primeiro cinema, Flávia Cesarino Costa destaca, sobretudo
que lhe parecia fundamental reivindicar nesse momento, talvez
a partir dos trabalhos de Tom Gunning e Gaudreault, a oposição
mais na teoria do que na prática, era menos uma narrativa que
de base entre o cinema como espetáculo, que se dá a ver sob um
costurasse as atrações do que as atrações em si – algo que seria
regime de “confrontação exibicionista”, distinto daquele que se
posto em prática, de fato, muito mais pelo René Clair de Entreato
propõe como narração e que se dá a ver sob um regime de “absor-
(1924), pelo Fernand Léger de Balé mecânico (1924) e pelo Buñuel
ção diegética”, consagrando-se como instituição após um perío-
de Um cão andaluz (1929), ou ainda pelos “filmes pornô sem histó-
do de “domesticação” daquele primeiro cinema mais desregrado
ria” ou por um hipotético filme de ação que só contasse com as
e selvagem, através da substituição da figura do mostrador pela do
cenas de ação.
17
narrador, ou cineasta.18
Percebemos, portanto, a existência de pelo menos dois tipos
Eisenstein, graças à experiência adquirida no teatro, sob a
ou duas modalidades de atrações no cinema: uma que diz respei-
tutela de Meyerhold, e ao conhecimento do Kabuki japonês, con-
to ao cinema dos primórdios e que é comumente associada aos fil-
siderava, como lembra François Albera, que “a unidade do espetá-
metes de cerca de um minuto realizados, sobretudo, entre o final
culo não é requerida, tampouco o encadeamento das ações ou dos
do século XIX e o início do XX, cuja forma rudimentar de “monta-
gestos; basta uma montagem de momentos fortes, agressivos, sig-
gem” consistia na mera ordenação, mais ou menos arbitrária, dos
19
nificativos, livremente associados em vista do efeito desejado”.
filmetes disponíveis, efetuada geralmente pelo próprio projecio-
Para o cineasta soviético, era fundamental pensar a obra em sua
nista que os exibia; enquanto que a segunda corresponde ao que
relação direta com o espectador – daí a centralidade das atrações
Eisenstein chamava nos anos 1920 de “montagem de atrações”,
na fase inicial de sua obra fílmica e teórica. Ele dirá que a monta-
ou seja, à sua associação em busca de um efeito determinado no
16 Gaudreault, André. Film and Attraction: From Kinematography to Cinema. Urbana / Chicago / Springfield: University of Illinois Press, 2011, p. 51. 17 Cf. Gunning, Tom. “The Cinema of Attractions: Early Film, its Spectator and the Avant-Garde”, in Elsaesser, Thomas & Barker, Adam (ed.). Early Cinema: Space-FrameNarrative. Londres: BFI, 1990, p. 56-62. 18 Cf. Cesarino Costa, Flávia. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue, 2005. 19 Albera, François. Eisenstein e o construtivismo russo. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 239.
espectador. Desse modo, se a primeira modalidade faz referência à autonomia dos elementos, a segunda, por outro lado, reforça sua interdependência. Quando o gênero musical surge no final dos anos 1920, propiciado pelo advento do sonoro, o que de certo modo ocorre é a transformação das antigas atrações em números (cantados / dança20 EISENSTEIN, Serguei. Montagem de atrações, in XAVIER, I. (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 190-191.
53
54
Cristian Borges
narrativas sensoriais
dos) que são formalmente domesticados pela porção narrativa de
Um retorno às origens?
sua estrutura binária – reproduzindo, dessa maneira, na própria 21
estrutura interna dos filmes a domesticação / castração do cinema como espetáculo empreendida pelo cinema como narração.
Contudo, ao longo desse primeiro século de dominação do roteiro literário e do cinema domesticado que não almeja senão
Mas, vitoriosos e vencidos à parte, o que importa é que as
“contar uma história”, testemunhamos constantemente lampe-
atrações, assim como os números musicais, vão se tornando
jos de resistência e subversão, ou simplesmente de um retorno
desde então os momentos de exceção ou de extravagância dos
a uma estética das atrações. É o que encontramos, por exemplo,
filmes, momentos em que algo escapa à lógica convencional da
em um filme como A cor da romã (1968) de Serguei Paradjanov,
“vida como ela é” desaguando numa avalanche de exageros ou
todo construído a partir de tableaux vivants frontais que são ofer-
impossibilidades / improbabilidades que, tão rápido quanto surgi-
tados ao espectador como algo a ser contemplado como espetá-
ram, esvaem-se abafados por um providencial “retorno à norma-
culo, assumindo uma estética muito próxima à das atrações dos
lidade”. O que acaba lhes garantindo um importante papel sub-
primórdios; ou então em Saló ou Os 120 dias de Sodoma (1976), per-
versivo dentro da morosidade alienada e alienante de um suposto
turbador filme de Pier Paolo Pasolini, cujas cenas das “contadoras
“naturalismo” cinematográfico que, por trás de uma aparência
de histórias”, entre várias outras, se configuram de modo a afron-
inocente e bem comportada, normalmente oculta uma elaborada
tar o espectador, desdobrando-se até o ponto em que os algozes,
codificação, além de estratégias refinadas de manutenção do sta-
no final do filme, assumem o papel de espectadores das próprias
tus quo e de divulgação de uma determinada ideologia dominan-
atrocidades, num espelhamento perverso e tenebroso que alego-
te – a qual se estende, muito naturalmente, à estética empregada
riza o espetáculo cinematográfico (e, por extensão, a indústria
nos filmes.
cinematográfica), levando ao paroxismo, no seio do próprio cine-
22
ma narrativo, a relação de choque com o espectador reivindicada por Eisenstein com sua montagem de atrações. 21 Sutton ilustra (p. 191) de forma cabal essa domesticação do número musical pela porção narrativa do filme com a cena em que um policial interrompe bruscamente, tal e qual um pai repressor, a famosa dança molhada de Gene Kelly em Dançando na chuva (1952). 22 Não terei oportunidade aqui de aprofundar uma reflexão a respeito da forte carga ideológica que se encontra escondida por trás dessa domesticação, presente tanto na história das formas fílmicas quanto na estrutura típica dos musicais hollywoodianos (dentre outros gêneros). Mas fica indicado, no que tange aos musicais, o excelente artigo de Rick Altman, The American film musical: paradigmatic structure and mediatory function, publicado originalmente em Wide Angle v. 2, n. 2, jan. 1978, p. 10-17, e retomado em ALTMAN, Rick. (ed.). Genre: the Musical. Londres / Boston / Henley: Routledge & Kegan Paul, 1981, p. 197-207.
Mas também é o que encontramos, e cada vez mais, em obras recentes exibidas, sobretudo, em museus e galerias, ou então em festivais de cinema mais abertos a formas audiovisuais que não sejam compostas por narrativas convencionais. Em geral, são obras curtas que apresentam apenas uma situação privilegiada, na forma de uma micro-narrativa que não opera mais em regime de causa e efeito nem conta propriamente uma história, consistindo antes em pequenas “atrações” fugidias que são por vezes encenadas – como Answer me (2008) e 1395 days without red (2011) de Anri Sala, ou Jewel (2010) de Hassan Khan – e por outras como que tomadas da
55
56
Cristian Borges
narrativas sensoriais
natureza (ou “roubadas” da realidade) por um olhar maquínico e
De qualquer modo, essas atrações contemporâneas guardam
atrevido de um cineasta voyeur – como Cao Guimarães em Da janela
algo do choque daquelas dos primórdios, sem necessariamente
do meu quarto (2004), ou Marcellvs L. em man.road.river. (2005) –,
buscar conectar-se com outras atrações ou com uma narrativa
numa espécie de recuperação da figura do mostrador dos primór-
mais convencional – o que decerto as aproximaria do musical ou
dios do cinema, metamorfoseado em artista contemporâneo.
da concepção eisensteiniana da montagem de atrações. Elas aca-
23
Quanto à diferença entre essas duas tendências e o cinema
bam irmanando-se muito mais com outra forma audiovisual, his-
narrativo convencional, Abbas Kiarostami nos dá uma pista inte-
toricamente mais desprestigiada e marginalizada pelos estudos
ressante ao distinguir o xadrez (um jogo de controle) do gamão
de cinema, que é o clipe musical.25
(um jogo de acasos) em uma reflexão sobre seu filme Five (2003):
Não à toa, acompanhamos igualmente o intercâmbio crescente entre cineastas e artistas visuais, à medida que as bienais de
Em minha opinião, Five deveria ser visto com isso em mente (…):
arte veem-se cada vez mais tomadas por instalações compostas de
a diferença entre um cinema bem feito e este é como a diferença
projeção (de película ou vídeo, pouco importa) e o cinema abraça,
entre o xadrez e o gamão. O xadrez não se deixa afetar por forças
ainda que timidamente, a contaminação de seu tecido narrativo
intangíveis, já que nele tudo é regrado e controlado pelos deuses da
secular por formas que escapam à lógica dramatúrgica (teatral e
cena (o produtor e o diretor). Mesmo não sendo um jogador de ga-
literária) adotada de maneira majoritária em nome de uma dra-
mão, respeito os que jogam, pois seu sucesso é creditado à sorte,
maturgia das formas (audio)visuais. Algo que nos permite, entre ou-
que serve como parâmetro determinante no jogo. De fato, se ima-
tras coisas, analisar um filme como se analisa uma obra musical
ginamos a vida sem esse parâmetro, perdemos boa parte do nosso
ou coreográfica.
senso de realidade. Já o digital serve particularmente a um cinema
Essa transição ou interação acaba resultando em algumas
mais voltado à performance e a padrões ocultos. Para mim, que não
obras híbridas ou bipartidas, que se iniciam com uma narrati-
acredito em narrativas literárias no cinema, Five proporcionou a ex-
va mais ou menos convencional e terminam mergulhadas em
periência de ser um espectador, contando minha própria história
um espetáculo muito mais próximo do universo das instalações
como se estivesse na plateia – numa época em que a sala de cine-
do que do cinema narrativo que conhecemos. Por exemplo,
ma habituou o público a um estado de preguiça mental.
O Fantasma, de João Pedro Rodrigues (2000), ou Mal dos trópicos, de
24
Apichatpong Weerasethakul (2004), talvez não por acaso obras que representam tanto em seu conteúdo quanto em sua forma o 23 Sobre a abordagem daquilo que é filmado e o uso da câmera nessas duas últimas obras, ver: MIGLIORIN, Cezar. Man.Road.River & Da janela do meu quarto: Experiência estética e medição maquínica. In: Contracampo n. 67, disponível em: www.contracampo. com.br / 67 / manroadriverjanela.htm – ado em: 31 out 2013. 24 Disponível em: www.youtube.com / watch?v=xu9cbCJKLs8 – ado em: 31 out 2013.
desejo de um retorno às origens do cinema, de uma recuperação daquela selvageria primordial das atrações, sinalizada como sin25 Aliás, é inegável a semelhança de muitas das obras que causam sensação em galerias e bienais pelo mundo e algumas pérolas da produção de clipes das últimas décadas.
57
58
Cristian Borges
toma de um devir-animal do homem que é colocado justamente como marca de uma ruptura narrativa.
Referências bibliográficas Albera, François. Eisenstein e o construtivismo russo. São Paulo: Cosac Naify, 2002. ALTMAN, Rick. The American Film Musical. Bloomington: Indiana University Press, 1987. ALTMAN, Rick. (ed.). Genre: the Musical. Londres / Boston / Henley: Routledge & Kegan Paul, 1981. Cesarino Costa, Flávia. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue, 2005. CHION, Michel. La comédie musicale. Paris: Cahiers du cinéma / Scérén-CNDP, 2002. Dyer, Richard. Entertainment and Utopia, in Movie n. 24, primavera de 1977, p. 2-13, retomado em ALTMAN, R. (ed.). Genre: the Musical. Londres / Boston / Henley: Routledge & Kegan Paul, 1981, p. 175-189. EISENSTEIN, Serguei. Montagem de atrações, in XAVIER, I. (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 187-198. Elsaesser, Thomas &Barker, Adam (ed.). Early Cinema: Space-Frame-Narrative. Londres: BFI, 1990. FABRIS, Annateresa. A captação do movimento: do instantâneo ao fotodinamismo, in Ars v. 2, n. 4, São Paulo, 2004, p. 50-77. Gaudreault, André. Film and Attraction: From Kinematography to Cinema. Urbana / Chicago / Springfield: University of Illinois Press, 2011. MACEL, Christine & LAVIGNE, Emma (ed.). Danser sa vie: écrits sur la danse. Paris: Centre Pompidou, 2011. MULVEY, Laura. Death 24x a second: stillness and the moving image. Londres: Reaktion, 2006. Schefer, Jean Louis. Du monde et du mouvement des images. In : Cahiers du cinéma Paris, 1997. SOURIAU, Paul. L’esthétique du mouvement. Paris: Elibron Classics, 2006.
narrativas sensoriais SUTTON, Martin. Patterns of Meaning in the Musical. In: ALTMAN, Rick (ed.). Genre: the Musical. Londres / Boston / Henley: Routledge & Kegan Paul, 1981, p. 190-196. Williams, Alan. The Musical Films and Recorded Popular Music. In: ALTMAN, Rick (ed.). Genre: the Musical. Londres / Boston / Henley: Routledge & Kegan Paul, 1981, p. 147-158. XAVIER, Ismail. Sétima arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva, 1978.
59
61
Sensações, afetos e gestos
1
Denilson Lopes Silva
N
os anos 60 e 70 do século XX, houve uma virada linguística (lingustic turn) a partir da centralidade da linguagem, do discurso e do texto, explorada pelo estruturalismo, pelo pensa-
mento da diferença bem como pela semiologia e pela semiótica. Já os anos 1980 e 1990 teriam sido marcados pela virada cultural (cultural turn) que buscava repolitizar textos e práticas sob a égide dos estudos culturais, pós-coloniais, étnicos e de gênero (gender). Para alguns, o início do novo milênio é marcado por uma virada afetiva (affective turn). Mas o que significa esta virada afetiva? Claramente, estas viradas, como a recente virada especulativa (speculative turn), são estratégias de promoção de intelectuais na universidade norte-americana. Mas para além de simples marketing, acredito também que a virada afetiva não deve ser pensada
1 Este ensaio foi apresentado no GT Comunicação e Experiência Estética no XXII Encontro Anual da Compós em Salvador, na Universidade Federal da Bahia.
62
Denilson Lopes Silva
narrativas sensoriais
como um conceito,2 mas como a delimitação de um campo de
afetos que vem desde Spinoza até os estudos de gênero (gender)
discussões para o qual a publicação de Affect Theory Reader con-
coloca questões para a arte?
tribui para o mapeamento das diferentes abordagens teóricas
Antes de tentar uma resposta bem pontual e específica a esta
existentes relacionadas ao afeto, como podemos ver no prefácio
pergunta no campo da encenação, seria necessário responder o
da coletânea.3 Ou seja, a virada afetiva seria menos interessante
que estou considerando como afecto. Afectos7 são “forças corpó-
por ser um conceito forte e mais por cristalizar, fazer emergir
reas pré-individuais que aumentam ou diminuem a capacidade
questões que talvez sem essa nomenclatura ficariam silenciadas
do corpo em agir”,8 distinta da emoção que teria uma natureza
ou pouco visíveis.
mais individual. Há toda uma ênfase dada por diversos autores,
E o que emerge? Diferente do contexto pós-moderno, defi-
sobretudo os que recuperam a perspectiva de Spinoza, em sepa-
nido, entre outros elementos, pelo que Fredric Jameson (1996)
rar afeto e emoção.9 Para estes, a emoção privilegia o sentimento
chamou de esmaecimento de afetos, de afetos autossustentados
como expressão consciente de um sujeito, talvez ainda no hori-
e impessoais, marcados por certa euforia, por uma intensidade
zonte do Humanismo, e o afeto é um “fluxo impessoal antes de
esquizofrênica valorizadora do presente e por uma falta de me-
ser um conteúdo subjetivo”.10 Seguindo uma perspectiva apon-
mória; ou pelo que Lawrence Grossberg chamou de colapso da
tada por Gilles Deleuze e Félix Guattari em O que é a Filosofia?
relação entre afeto e sentido, em que as experiências afetivas não
que me ajudou na leitura dos filmes, mais do que os trabalhos
estariam mais ancoradas em mapas sociais, incapazes de organi-
específicos de Deleuze sobre cinema, os afectos são “devires não
zar nossas vidas; trata-se de pensar os afetos, não só para enfa-
-humanos”.11 Afectos que, na minha opinião, podem emergir, em
tizar uma dimensão existencial e da experiência do pesquisador
conjunto com perceptos, “as paisagens não humanas da nature-
na reflexão teórica, mas como base para não só pensar formas
za” (idem), entre pessoas, espaços e coisas, portanto mais em sin-
de pertencimento, multidões, comunidades, um regime estético
tonia com as configurações de uma subjetividade pós-humana,
ampliado mas também e, sobretudo o que me interessa aqui: fil-
que desconstrói a centralidade do homem, presente na arte, des-
mes.6 Tento manter no horizonte a pergunta sem pretender res-
de a perspectiva renascentista ao teatro naturalista, no horizonte
4
5
pondê-la de forma abstrata: em que medida a discussão sobre os
2 Mesmo o trabalho de Patricia Clough (2007, 2010) não tem a intenção de dar uma densidade teórica ao termo.
7 Como não há uma homogeneidade entre os tradutores de Deleuze no Brasil, prefiro manter o termo afecto. Talvez o último conceito formulado por Deleuze e Guattari que emerge da obra artística, nesse sentido, mais específico que o termo afeto que será usado quando remeter a outros autores não vinculados ao pensamento dos dois autores.
3 GREGG & SEIGWORTH, 2010
8 CLOUGH, 2010, p. 207
4 GROSSBERG 1992; 1997
9 Idem.
5 NEGRI, 2001; SODRÉ, 2006; GANDHI, 2005; STEWART, 2007
10 MASSUMI apud CLOUGH, 2010, p. 220
6 BERLANT, 2011
11 DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 220
63
64
Denilson Lopes Silva
narrativas sensoriais
de um “devir sensível” que “é o ato pelo qual algo ou alguém não
jetos, onde “a arte é um estado de encontro”18 ou uma estética da
para de devir-outro (continuando a ser o que é)”.12
emergência,19 inserindo a obra numa “produção colaborativa de
Não gostaria de me aprofundar na distinção entre afeto e
desejos”.20 Trata-se de contribuições que, certamente, implicam
emoção, que creio de ser pouca utilidade para minha pesquisa,
uma mudança na leitura de filmes, mas a elas não vamos nos
mas mesmo que a virada para o afeto implique “abrir o corpo
deter. Enfatizo que o afecto está na obra, emerge dela.21 E a este
para sua indeterminação”,13 o fundamental é reter a importância
difícil desafio que gostaria de propor uma modesta saída.
de uma dimensão histórica e cultural nos afectos, como o próprio
No desejo de compreender filmes realizados no Brasil, nos
propõe: não se trata de voltar a um corpo pré-social.
últimos cinco anos, a aposta no afecto se traduz numa procura
O afecto é social numa forma anterior à separação dos indivíduos
de encenações, como já tentamos fazer através do comum22 para
e há uma memória corpórea constituída por uma temporalidade
sustentar estéticas definidas pela rarefação, contenção e desdra-
não linear. Talvez não seja tão necessário separar, de forma tão
matização. Agora, o caminho se alarga para além do comum. Se é
enfática, afeto e emoção.
possível que a obra de arte seja pensada como afecto, este deses-
Massumi
14
De todo modo é na esteira de Spinoza, que Deleuze e Guattari
tabiliza e redireciona a forma narrativa.23
colocam a afirmação que me perturba e estimula: se o artista é
Afectos pictóricos emergem da problematização entre cine-
um criador de mundos, ele será grande na medida em que seja
ma e pintura como uma forma distinta de pensar os filmes fora
Não se
da esteira do cinema clássico, do cinema de gênero ou do cinema
trata de pensar o afecto no autor nem no receptor. Não se trata de
moderno.24 Não se trata de pensar no campo da citação pictóri-
15
inventor de afectos não conhecidos ou desconhecidos.
16
uma aproximação com estudos de recepção nem com estudos dos processos de criação. Ainda que propostas como a estética da recepção ou formas de produção coletivas e colaborativas, distintas da centralidade de um autor individual, desestabilizem o sentido da obra, possibilitem encontros e abordagens como as de uma
18 Idem, p. 18 19 LADAGGA, 2006
estética relacional,17 interessada mais em relações do que em ob-
20 Idem, p. 13. Há outros termos como circuitos afetivos, de Dellani Lima, que não tenho aqui como precisar.
12 Idem, p. 229
21 Gostaríamos de nos aproximar da leitura que Gumbrecht (2012) faz sobre a atmosfera como possibilidade de leitura.
13 MASSUMI apud CLOUGH, 2010, p. 209
22 LOPES, 2012a
14 Idem.
23 DEL RIO, 1998
15 DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 222
24 Propostas como a de Luiz Carlos de Oliveira Jr. (2010) de repensar a encenação no quadro de um cinema contemporâneo ou a defesa de um realismo sensório por Erly Vieira Jr. (2012) podem abrir estimulantes horizontes de diálogos com os filmes brasileiros contemporâneos.
16 Idem, p. 226 17 BOURRIAUD, 2002
65
66
Denilson Lopes Silva
narrativas sensoriais
ca,25 nem na transposição de modelos pictóricos para outro re-
pela qual a constituição dos planos (ou das cenas) a partir da pre-
gistro. Seguindo o desafio enfrentado por Aumont, não se trata
sença humana é só um primeiro indício que nos é ensinado em
tanto de pensar como determinado filme cita a luz de um quadro,
manuais. Se a encenação é a disposição dos atores e dos objetos, os
recria determinada atmosfera associada a um pintor ou dialoga
seus movimentos no interior do quadro;31 o desafio que me coloco
com determinado estilo de época. Trata-se de pensar como o cine-
e que estou longe de cumprir tem suas origens nas vanguardas
ma fricciona a pintura e vice-versa. Ou seja como a pintura pode
teatrais ao pensar “o corpo plástico e vivo em relação direta com
levar o leitor a ver no cinema algo inesperado e vice versa.
a arquitetura e [que] se aproxima da escultura”32 ou mesmo, para
26
Ao buscar a imagem fixa que pode se traduzir num objeto
Artaud, para quem “o domínio do teatro não é psicológico, mas
(natureza-morta), numa pessoa (retrato), num espaço (paisagem),
plástico e físico, é preciso que se diga isso”.33 E o mesmo poderia
não se trata simplesmente de buscar uma alternativa ao tempo rá-
ser dito no cinema, ao menos, no cinema que me interessa hoje.
pido das cidades modernas, da propaganda, dos filmes de ação, dos
Ou seja, que ao olhar um filme, objetos, espaços, luz, figurinos,
games, dos videoclipes mais comuns. Não se trata de buscar um
maquiagem possam ter tanta importância quanto os personagens,
outro tempo como uma resistência crítica ao tempo da produção
seus movimentos e a montagem. Me fascinam filmes em que estes
ou uma nostalgia de um tempo em que a contemplação fosse mais
diversos elementos tenham peso e mesmo autonomia, e possam
possível. Ou seja, a pintura não é um antídoto à hegemonia da
ser vistos para além de um conteúdo explícito, enredo ou diálogo,
televisão. É algo mais do que isso. Faz parte de um esforço de pen-
o que implica rever mesmo já o cinema clássico:
sar uma cena “pós-antropocêntrica”, “pós-dramática”, distinta 27
28
da definição de cena de que é “necessário que alguém comece a
…os espectadores […] concentram-se nos rostos, nos diálogos,
interpretar”. Talvez, se tivéssemos que pensar ainda em drama,
nos gestos, tentando avaliar sua pertinência para o desenrolar da
seria melhor pensar como “alguma coisa que chega, acontece”,
trama. Entretanto, os rostos (e os corpos), as palavras (e seus efei-
nas belas palavras de Paul Claudel, inspiradas pelo teatro Nô.30
tos) e os gestos (e sua coreografia) são linhas diferentes do mesmo
Nesse sentido, parece que os textos clássicos sobre encenação no
bordado. A cada momento, em grande parte do cinema narrativo, a
cinema (ou no teatro) ainda guardam um mirada antropocêntrica,
ficção é orquestrada para nosso olhar pela encenação cinemato-
29
gráfica, que é construída para informar, manifestar ou simplesmen25 AUMONT, 2004, p. 10
te encantar visualmente. Somos afetados, mas não percebemos.34
26 Idem, p. 20 27 FUCHS, 1996
31 MOURLET apud AUMONT, 2008, p. 84
28 LEHMANN, 2007
32 APPIA, s.d., p. 33
29 GUÉNOUN, 2010, p.11
33 apud VALLIN, 2006, p.91
30 apud GUÉNOUN, 2010, p. 17
34 BORDWELL, 2009, p.21
67
68
Denilson Lopes Silva
narrativas sensoriais
Creio que um outro elemento que pode nos ajudar a articu-
de Esmir Filho. Nestes filmes, via um desejo de afeto que não
lar encenação e afeto seja a atmosfera: “a atmosfera de um lugar,
ava pelo melodrama nem pelo comum, mas onde a discus-
de uma situação ou de uma pessoa é um fenômeno físico ou psí-
são de uma outra encenação dos afetos acontecia. Contudo, foi
quico percebido pelos sentidos. De qualquer modo, é um meio
em texto recente41 que escrevi sobre Estrada para Ythaca (2010)
ou uma impressão que os toca, de maneira particular, e que se
de Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes
transforma em afeto”.35 Desse modo haveríamos uma entrada do
que fiz minha primeira tentativa de pensar o fracasso e a ami-
afeto pelas impressões e sensações dos espaços e seus objetos,
zade como o que agora chamo de afeto pictórico, em que uma
talvez mais próximas dos perceptos, não necessariamente pelo
encenação das nuvens, tão recorrentes na história da pintura,
rosto que Deleuze prioriza: “a imagem-afecção é o primeiro pla-
faz da paisagem algo tão importante quando os corpos, atores,
no, e o primeiro plano é o rosto”.
performers.
36
37
38
Nesse sentido, estou procurando uma encenação dos afe-
Se há uma forte tradição de encenação do corpo enquanto
tos e perceptos que tanto se diferencie de uma estética do ex-
presença; em Transeunte (2010) de Eryk Rocha o que se trata é
cesso presente em filmes de gênero associados (mas não só) ao
de uma encenação material da ausência, do fantasma, que pode
melodrama39 e em trabalhos de diretores que estabeleceram
auxiliar num mapeamento de propostas estéticas distintas no ci-
diálogos com este gênero cinematográfico; bem como saia da
nema contemporâneo brasileiro. Aqui, gostaria de tentar ler o
sensação de mal-estar que parece ser apontada pelo livro de
filme de Eryk Rocha a partir de um afeto que emerge da relação
ao falar de um fim da encenação. Mas também não
entre o gesto de andar, o rosto e o espaço. Afeto em trânsito, tran-
se trata só da busca de rarefação, contenção e desdramatização.
seunte que atravessa o protagonista. Corpos am rápidos. Seus
Comecei a desconfiar disto quando escrevi sobre O Céu de Suely
encontros são feitos de entreolhares. O protagonista até poderia
(2006) de Karin Aïnouz e Os Famosos e os Duendes da Morte (2012)
estar na esteira do comum, anônimo e singular que estudei em
Aumont
40
outro momento42. Mas me interessa pensá-lo como um persona35 GIL, 2005, p.21
gem atravessado e constituído por sensações, afetos. Não sei se o
36 SCHAPIRO, 2002.
filme cria um afeto e não pretendo investigar este caminho, mas
37 Aqui tenho uma dúvida que não consegui ainda responder: se deveria substituir a palavra afecto por sensação por esta ser mais ampla. 38 (s.d, 103) 39 Definido, a partir do trabalho clássico de Peter Brook, como uma dramaturgia da hipérbole e do excesso, em que o traço fundamental é “o desejo de expressar tudo” (1995, p. 4) e marcado por uma indulgência com um forte emocionalismo, estados de ser, situações e ação extremas (idem, p. 11) que nos permitem autopiedade e identificação. 40 AUMONT, 2008
há uma encenação de afetos decorrente da relação entre cinema e pintura, de afetos pictóricos que emergem não só da relação entre personagens, mas entre personagens e espaços, do encontro43 en41 LOPES, 2012b 42 LOPES, 2012a 43 “Pelo viés do afetivo, somos levados a ressaltar a dimensão do encontro como aspecto constitutivo das obras” (RAMALHO, 2010, p. 1).
69
70
Denilson Lopes Silva
narrativas sensoriais
tre corpos, entre corpo e câmera, entre corpo e objeto, entre cor-
gem artística46 porque a linguagem está nas sensações e não nas
po e espectador. Encenação traduzida pelo gesto banal de andar e
formas.47 E por isso Malevitch fala num realismo pictural que nos
um rosto, em grande parte, imível, neutro. Uma encenação,
interessa aqui por se tratar da “expressão da realidade real da
um colocar em cena, que não está interessado em pensar o que
não-existência do objeto”48 e conclui que “a única realidade é a
é a singularidade da cena cinematográfica ou pictórica (ou ainda
sensação que não é objeto”.49 Portanto a abstração, muito mais do
teatral), que atravessa distintas formas artísticas sem se ater a
que as repetitivas discussões sobre os limites entre real e ficção,
suas especificidades, mesmo que o que vemos, como Transeunte,
é não só uma sensação, mas um afeto pictórico que nos abriu a
pudesse ser pensado apenas numa tradição cinematográfica.
porta de Transeunte.
Que filme pode haver quando o conflito é pouco? A quem
Há poucos diálogos e falas em Transeunte. Mas quando há
pode interessar? Será que a ausência de dramas é uma simples
fala, ela nada explica. Os diálogos poucos dizem, dizem coisas
afirmação de um aqui e agora sem grandes utopias, feito dia a
banais como idade, nome, onde mora, para onde vai de táxi.
dia? Perguntas, perguntas é o que tenho. Não mera sobrevivência,
O rosto resiste, espesso, como os rostos dos três personagens no
mas uma vida modesta, vivida sem grandes alardes, sem preven-
início de O céu sobre os ombros (2011)50 de Sérgio Borges. Expedito
ção, com todas as precariedades de se estar em cena ou na vida é
(Fernando Bezerra) me lembra Murari, funcionário de empresa
o que vamos conhecer.
de telemarketing, torcedor do Atlético Mineiro e hare krishna.
O que me fascina em Transeunte é que não há uma (melo)
Só que este parece ainda ter um cotidiano preenchido pelo tra-
dramaticidade. Bom, talvez na cena do aniversário quase chegue-
balho e pelo lazer. Expedito e Murari veem jogo de futebol e as-
mos lá. Fascinam-me estes tempos mortos, sem nostalgia, sem
sistem tv. Mas o personagem de Sergio Borges anda de skate pela
utopia, sem tédio, sem o temor do tédio, do vazio, mas o difícil,
cidade, faz graffiti, medita, além de trabalhar. Murari parece ter
belo e insípido cotidiano. “Um cotidiano que esvazia eventuais
mais atividades, mas como Expedito, parece ocupar o seu tempo,
clímaces, pontos privilegiados. É como se nos encaminhássemos para um processo não de mimeses como imitação da realidade, mas de abstração”.44 E seguindo a proposta de Malevitch45 que José Gil utiliza como parâmetro para discutir qualquer lingua-
44 LOPES, 2012, p. 115. Relendo Deleuze, Gregory Seigworth (2000, p. 244) discutirá a experiência vivida como uma coisa absolutamente abstrata, e a experiência vivida como não representando nada, pois o que seria mais abstrato do que o ritmo? Este é um ponto que não posso desenvolver no momento, mas que julgo uma porta de entrada para entender o abstracionismo para além das artes plásticas. 45 MALEVITCH apud GIL, 2010, p.32
46 Idem, p. 45 47 Caminho que encontra eco quando Deleuze considera a obra de arte como “um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos” (DELEUZE, 1992, p. 213), ou de forma mais concisa, concebe a arte como “a linguagem das sensações” (idem, p. 228). 48 Idem, p. 33 49 Ibidem. 50 Há duas leituras sobre este filme que nos auxiliam a pensar o que estou tentando delinear no mais amplo cinema brasileiro contemporâneo (BRASIL & MESQUITA, 2012; MIGLIORIN, 2011).
71
72
Denilson Lopes Silva
narrativas sensoriais
em grande medida, só consigo mesmo. Quase não fala a não ser
O caminhar não será algo que queira definir, problematizar ou
no trabalho e em um encontro ocasional. Expedito e Murari não
criar genealogias. Isto já foi feito.51 O caminhar é apenas um ges-
são narradores como os personagens de Eduardo Coutinho, não
to. Este ensaio também é um gesto, um caminhar.
têm grandes falas como Everlyn, a personagem transexual que faz mestrado de Céu sobre os Ombros.
O protagonista de Transeunte de Eryk Rocha é um esboço de personagem, homem comum, anônimo que anda, sem ne-
Em Transeunte, não há monólogos interiores, narrações em
nhuma outra pretensão de deixar de ser comum. Não se trata
off. O protagonista não, nem qualquer outro personagem, re-
da vida nem de repouso da vida como espetáculo. Apenas o que
flete sobre si mesmo pela fala. Apenas acompanhamos o que
há a se fazer. Viver pouco a pouco. o após o. Pelo dia.
Expedito faz, os seus gestos, a rotina de quem já não mais está
Dia após dia. Expedito anda dentro de casa. Para fora da casa.52
no mundo do trabalho, que vive cada momento sem grandes
Na feira. Vai ao bar de noite. O mundo se encolheu. Os dias fi-
emoções. Há o desejo vivo por mulheres que se esboça no entre-
caram longos. As pessoas sumiram. Na cidade, pessoas cruzam
cruzar de olhos, num encontro que mais parece sonho. No ani-
o seu caminho. Breves momentos. Breves encontros. Na Rua.
versário, só a sobrinha lhe traz um bolo, enquanto o namorado
Na vida. Nada a reclamar. Ninguém para poder reclamar. Apenas
a espera no carro embaixo do prédio. O que é celebrado, no
andar. Um o depois de outro. Parece não ser difícil. Mas as
bar de karaokê, é o aniversário de outra pessoa. Nada foi feito
coisas parecem ficar mais lentas, quase como se prendessem os
para ele, o transeunte. O mundo sobreviverá a ele. Ele não é o
pés no chão. Ao invés de sentar: levantar, erguer-se, caminhar.
centro do mundo, nem do seu mundo. Mas há uma disponibi-
Mesmo que seja apenas uma rotina, sempre algo inesperado
lidade. O mundo todo parece ar pelos olhos de Expedito,
pode acontecer. Uma conversa rápida. Um trocar de olhos. Algo
pelos nossos olhos, coleções de rostos. Não poses construídas
não percebido. Há muito no mundo. Pessoas. Coisas. Espaços.
como nas fotos de August Sander, mas igualmente um pas-
Eles não cessam de mudar. Como a cidade. Como ele. Como eu.
sar de rostos, objetos, comidas que em breve o protagonista e
Como nós. Mais perto do fim mesmo que não esteja. O fim não
nós esqueceremos.
aconteceu quando não se esperava, na juventude, por acidente,
Talvez menos as falas e mais o andar possa nos fazer entrar
por alguma doença fatal. Agora o transeunte é um sobrevivente
no filme. O andar é dessas atividades básicas como respirar, co-
de si mesmo, de seu ado do qual muito pouco sabemos, do
mer, beber, dormir. Atividades tão básicas que talvez não preste-
não ter o que contar, a quem contar. Apenas se mover e parar.
mos atenção o suficiente nelas a não ser quando elas se apresentam como problema. No começo e no fim. Começamos incertos a andar. Terminamos, talvez, sem poder andar. Mas seria o andar apenas isto algo que fazemos sem perceber? Ou pode o andar ser um gesto? Um modo de vida? Aqui não nos ajuda resgatar uma filosofia peripatética, as caminhadas de Rousseau e Kierkegaard.
51 Para uma história do andar (SOLNITT, 2001) e para mapear os vários sentidos do andar na arte do século XX (CARERI, 2009). 52 Penso no Homem que caminha de Giacometti (BONNEFOY, 2012) e em James Turrel (DIDI-HUBERMAN, 2001) como possibilidade de desdobrar o andar como afecto pictórico.
73
74
Denilson Lopes Silva
narrativas sensoriais
Se mover e parar. A cada vez, cada o se torna decidível, mes-
câmara que vai atrás, olha de frente, está próxima, escuta, sem
mo que imperceptível, inconsciente. Só um o. Não como
nada revelar. Tudo resumido ao básico, ao mínimo. Comer. Beber.
se fosse o último. E se fosse o último devido a uma queda no
Respirar. Andar. Não há nada a revelar. Nenhuma grande verdade.
apartamento? Talvez, como em tantas estórias, só seria percebi-
Nada oculto. Nenhuma grande paixão nessa vida de celibatário.
da sua morte dias depois. Como ninguém percebe sua vida, ao
Nenhum êxtase. Sem grandes mágoas, ressentimentos. Sem nada
menos agora, na velhice, no fim da vida. Apenas vive a peque-
pedir a não ser andar, ar.
na solidão, os pequenos encontros. E segue. Não como um ato
A solidão é a palavra “ninguém” escrita num travesseiro
político, de recriação do espaço urbano feito desde os surrealis-
por Leonilson, é só a cama mais leve sem ninguém do lado.
tas aos situacionistas. Andar como atitude básica de sobreviver.
A solidão é cheia de pequenas mudanças de luz, de tempos a
Andar para sair de casa e de si. Nada restou muito em casa. O rá-
serem preenchidos, em que se tem de ser companheiro de si
dio que conserta e ouve. A tv para assistir. Nada de importante,
mesmo. Mas a solidão também é um corpo pleno no mundo,
necessário mais a fazer. Ninguém mais a encontrar. Um dia após
entre outras coisas, pessoas e espaços. Igualmente plenos e sós.
o outro. Um dia a cada vez. Uma longa caminhada que se apro-
É um corpo que é. Sem falta. Há a solidão cheia de pessoas que
xima do fim. Devagar. Sem mais grandes esperanças, desejos,
am sem falar, rostos que am pela câmera como se nós
projetos. Apenas colocar um momento após o momento, o pé
expectadores fôssemos também transeuntes no centro do Rio
diante do outro. É isto então? Num mundo sem mistérios, o que
de Janeiro e na vida. Há a cidade cheia de sons53 ou que vêm do
fazer? Por que continuar a caminhar?
radinho que Expedito escuta pelo headphone, sem que nenhum
Frente ao gesto do andar emerge o rosto. A encenação de
fique por muito tempo. Podem ser de programas de relaciona-
Transeunte é definida por rostos que am e pelo ato de cami-
mento, músicas ou o anúncio do fim do mundo pelo profeta na
nhar, quase sempre pelo tempo do andar (só em um momento,
rua. Tudo está em trânsito, não indiferente, mas que se constrói
Expedito pega um táxi e os espaços se dissolvem). A câmera ca-
num eterno contínuo, que teve seu momento e já começa a se
minha e vê rostos. Sob chuva ou sob sol. Dias am sem que
eclipsar. Trata-se de um discreto contentamento dos pequenos
nenhum seja mais decisivo, mais importante do que outro. O que
gestos. Enfrentar cada dia na sua materialidade. Expedito acor-
sabemos um pouco mais vem quando ele recebe a aposentadoria:
da com a luz no rosto.
informações simples como nome (Expedito Silva Soares), idade
Nem correr nem andar de carro. Andar. o a o. Pé de-
(65 anos) e onde mora (rua Ubaldino do Amaral, 250). Celibatário,
pois de pé. Sem pressa nem urgência. Andar não para pensar.
sem filhos, sem amigos, não fala com vizinhos. Durante todo o fil-
O andar também não significa um distanciamento para afirmar
me, mal ouvimos sua voz, a não ser quando ele canta O “O Homem
uma vontade, um desejo, um posicionamento diante do mundo,
que caminha sem Chegar” no bar de karaokê frequentado por
uma diferença. Anda-se separado, mas em meio à multidão. Sem
pessoas de idade. É quase que pela música ele falasse o que não diz em palavras. Mas o mais importante é dito pelo espaço, pela
53 Para interessante leitura de sons no filme (ANDRADE, 2013).
75
76
Denilson Lopes Silva
narrativas sensoriais
se destacar. Há outros gestos banais que se repetem como tomar
rapidamente. Rosto sólido e discreto, direto, mesmo se tímido.
remédios, ver o prédio em construção, ir ao bar de noite. Gestos
Nada a revelar. Nada a ocultar. O rosto tem um corpo, um espaço,
que não se repetem como comprar uns óculos, ir ao jogo de fu-
uma rotina, um lugar.
tebol, consertar o radinho ou cantar uma canção. Repetição e es-
Cada gesto encena algo mesmo que ninguém veja. A câme-
pontaneidade são os dois lados de uma poética do cotidiano.54
ra próxima, sem temer, sem ter o pudor de enfrentar de fren-
Nada dilacera. Nem dor nem alegria.
te o rosto, mesmo que o olho do ator se desvie, significa não a
Há Expedito, seu rosto preenche a tela, mas sua presença
monstruosidade monumental do rosto de Joana d’Arc em A Paixão
é discreta, tímida, quase muda. Não Bartleby, nenhuma resis-
de Joana d’Arc (1929) de Carl Dreyer. O mundo do transeunte é
tência. Nenhuma rebeldia no gesto de andar. Nenhuma recu-
sem transcendência, sem grandes expectativas nem grandes
sa. Humilde e serena aceitação poderia ser não só a oração dita
gestos. Em Transeunte, nada nem ninguém existe para ser salvo.
diante da transferência das cinzas da mãe que morreu, mas o
Não temos que correr. Ele não corre. O mundo não desaparece-
que sintetiza sua atitude diante da vida. Sem nada pedir sem
rá. Ou melhor. Ele se perde dia após dia, momento a momento,
nada a ser dado. Há uma ividade como gesto de acolhimento
mas vagarosamente.
mesmo que não seja acolhido (também não é repelido, excluído,
A câmera próxima não espetaculariza nem exige nada. Ela
ostensivamente), uma ividade de deixar as coisas seguirem
vê, às vezes, acompanha um rosto, acompanha o andar, às vezes
e ir junto com elas. Um estar disponível mesmo que ninguém
para e deixa que vejamos o que o protagonista vê. Por fim, ela dei-
note. Expedito está próximo, mas não é um corpo que se oferece
xa o protagonista caminhar, se distanciando dela, de nosso olhar,
ao toque como o protagonista de Madame Satã (2002) de Karim
de nossas vidas. Num contínuo caminhar. Sem que ele olhe para
Aïnouz. As imagens em preto e branco reforçam a discrição, são
trás. Sem que deixemos de olhar, até que luz não haja e o filme
nítidas, claras, não chegam à abstração feérica dos espaços ur-
acabe. Não se trata da câmera dos irmãos Dardennes que anda
banos de Anjos caídos (1995) de Wong Kar Wai. Diante da perda
atrás de Rosetta (1999) como se pudesse a qualquer momento co-
do rosto identificada, na contemporaneidade, por Aumont,55 em
locar a mão sobre seu ombro e dizer: “tenha calma”. Gesto que se
Transeunte, temos um rosto neutro, cinza, mostrado sem contras-
concretiza no final quando a mão é estendida. Gesto gratuito para
tes de luz, que nada exprime em particular, sem profundidade
a protagonista, para que o amigo a ampare, para que ela se levan-
psicológica, ele é pele. Poderia ser um enigma, mas o protago-
te, para que ela perceba que não está só. A câmera em Transeunte
nista não é uma esfinge. Seria um enigma pela falta e não pelo
quer apenas nos mostrar gestos comuns da vida modesta de uma
excesso de sentidos. Apenas um rosto qualquer, particular sim,
pessoa comum.
mas que se não fosse pela sucessão de closes, seria esquecido
O personagem termina em movimento. Mas a quem pode interessar estes gestos sem glamour, sem vigor, sem grande ex-
54 LOPES, 2007, p. 89
pressão, talvez com a única exceção de quando canta? Por que
55 AUMONT, 1992, p. 180
acompanhar esse comum, anônimo, inexpressivo a não ser para
77
78
Denilson Lopes Silva
narrativas sensoriais
talvez nos enfrentarmos no que temos de comum, anônimo,
ser alguns. Vemos mais de uma vez o protagonista se levantar.
inexpressivo, quando não estamos em cena, quando não estamos
Os dias am da luz ao escuro. Dias am por ele. Sem deixar
vivendo um grande momento? O comum bem pode ser mais difí-
rastros, reflexões, lembranças. Ele, em breve, também desapare-
cil de viver do que o demasiado, o extremo, o excessivo. Os gestos
cerá. Como nós.
são comedidos, espontâneos. Há a pose ao colocar os óculos e
A encenação se construiu entre o rosto de Expedito, rostos
mais nada. Um rosto sem consciência de ser rosto. A câmera tran-
que ele entrevê e o espaço por que caminha. No ocaso da vida que
sita entre vários rostos. Apenas o dele foi escolhido para ser um
pode ser longo. Nada nos diz que ela se aproxima do fim. O que
pouco mais visto, percebido.
resta é andar. Andar até desaparecer. Nada lhe pertence, mas por
Haveria uma dança dos movimentos inexpressivos? Mas será
tudo a. Para dentro da imagem. E por quanto tempo também
que perdemos a capacidade de perceber gestos, sobretudo os ges-
ainda hei de caminhar? Expedito serei sou fui eu. Deixamos de
tos banais, discretos? Segundo Agamben (2008, p. 12), “o cinema
ser apenas voyeurs, contempladores do mundo, submergimos no
reconduz as imagens para a pátria do gesto. Segundo a bela defi-
mundo, na sensação, no afeto.
nição implícita em Traum und Nacht de Beckett, o cinema é o sonho de um gesto. Introduzir neste sonho o elemento do despertar é a tarefa do diretor”. Talvez isso nos ajude, Transeunte nos leva à
Referências bibliográficas
pátria do gesto pelo caminhar. Mas o caminhar do protagonista
AGAMBEN, Georgio. Notas sobre o Gesto. In: Artefilosofia, Ouro Preto, n.4, jan..2008.
e do diretor também são gestos explícitos de encenação. É na luz
APPIA, Adolph. A Obra de Arte Viva. Lisboa: Arcádia, s.d.
do dia que vemos o último caminhar. Mas o andar não sabemos onde vai dar. Sabemos que os dias se sucedem e algumas ativida-
ANDRADE, Fábio. Transeunte, http: / / www.revistacinetica.com.br / transeunte.htm. ado em 12 fev 2013.
des são feitas, mas a cada momento, a cada gesto, a caminhada
AUMONT. Jacques. Du Visage au Cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 1992.
pode ser interrompida por algo inusitado, algo que Expedito e nós56 vemos, algo que acontece, como o profeta que fala sobre o fim do mundo. Mesmo as conversas entreouvidas e olhares entrecortados que não mudam a direção da caminhada, mas poderiam fazê-lo, carregam em si potência, possibilidades de eventos. Temos uma montagem que picota a vida em dias quaisquer. Não sabemos quantos. Não sabemos quais. Sabemos que parecem
_____. O cinema e a encenação. Lisboa: Texto & Grafia, 2008. _____. O Olho Interminável: Cinema e Pintura. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. BARDAWIL, Andréa. Por um Estado de Invenção. In: NORA, Sigrid (org.). Temas para a dança brasileira. São Paulo, SESC, 2010. BERLANT, Lauren. Cruel Optimism. Durham: Duke University Press, 2011. BONITZER, Pascal. Desencuadres: Cine y Pintura. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2007. BONNEFOY, Yves. Giacometti. Paris: Flammarion, 2012
56 O expectador terá também que reaprender a caminhar, a ver o caminhar, um caminhar banal, não uma perseguição, uma fuga, se quiser ser tocado por este mundo, este gesto, este afecto.
BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz. A encenação no cinema. São Paulo: Papirus, 2009.
79
80
Denilson Lopes Silva BRASIL, A; MESQUITA, C. O meio bebeu o fim, como o mata-borrão bebe a tinta: Notas sobre O Céu sobre os Ombros e Avenida Brasília Formosa, In: BRANDÃO, A; JULIANO, D; LIRA, R (orgs.). Políticas dos Cinemas Latino-Americanos Contemporâneos. Palhoça: Ed. Unisul, 2012. BOURRIAUD, Nicolas. Relational Aesthetics. Les Presse du Réel, 2002. BROOK, Peter. The Melodramatic Imagination. New Haven: Yale University Press, 1995. CARERI, sco. Walkscapes. Barcelona: Gustavo Gili, 2009. CLOUGH, Patricia. Introduction. In: CLOUGH, P; HALLEY, J (eds.). The Affective Turn: Theorizing the Social. Durham: Duke University Press, 2007. CLOUGH, Patricia. The Affective Turn. In: GREGG, Melissa e SEIGWORTH, Gregory (orgs.). The Affect Theory Reader. Durham, Duke University Press, 2010, 206 a 225. DELEUZE, G; GUATTARI, F. Percepto, Afeto e Conceito. In: O que é a filosofia? Rio de Janeiro: 34, 1992. DELEUZE, Gilles. Cinema 1: Imagem Movimento. São Paulo, Brasiliense, s.d. _____. Espinoza: Filosofia Prática. São Paulo: Escuta, 2002. _____. Cinema 2: Imagem Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005. DEL RIO, Elena. Powers of Affection: Deleuze and the Cinemas of Performance. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1998. DIDI-HUBERMAN, Georges. L´Homme qui Marchait dans la Couleur. Paris: Minuit, 2001. FUCHS, Elinor. The Death of Character. Bloomington: Indiana University Press, 1996. GANDHI, Leela. Affective Communities: Anticolonial Thought, Fin-de-Siècle Radicalism, and the Politics of Friendship. Durham: Duke University Press, 2005 GIL, Inês. A Atmosfera no Cinema. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2005. GIL, José. A Arte como Linguagem. Lisboa: Relógio d´Água, 2010. GREGG, M; SEIGWORTH, G. An Invention of Shimmers. In: GREGG, M e SEIGWORTH, G (orgs.). The Affect Theory Reader. Durham: Duke University Press. GROSSBERG, Lawrence. Ideology and Affective Epidemics. In: We Gotta Get out of this Place: Popular Conservatism and Postmodern Culture. New York / Londres: Routledge, 1992. _____. Postmodernity and Affect: All Dressed up with no Place to Go In: Dancing in Spite of Myself. Essays on Popular Culture. Durham / Londres: Duke University Press, 1997.
narrativas sensoriais GROSSBERG, Lawrence. Affect´s Future in GREGG, M & SEIGWORTH, G (orgs.). The Affect Theory Reader. Durham, Duke University Press, 2010. GUÉNOUN, Denis. Qu´est-ce qu´une Scène? In : GUÉNOUN, D. et al. Philosophie de la Scène. Besançon: Les Solitaires Intempestives Éditions, 2010. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosphere, Mood, Stimmung. Stanford: Stanford University Press, 2012, 1 / 20 JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 1996. LADAGGA, Reinaldo. Estética da la emergencia. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007. LEONE, Luciana di. De Trânsitos e Afetos: Alguma Poesia Argentina e Brasileira no Presente. Tese de Doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2011. LOPES, Denilson. Poética do Cotidiano In: A Delicadeza: Estética, Experiência e Paisagens. Brasília: Ed. UnB, 2007. _____. Encenações Pós-Dramáticas e Minimalistas do Comum In: No coração do mundo: Paisagens Transculturais. Rio de Janeiro: Rocco, 2012a. _____. As nuvens e o fracasso: uma leitura de Estrada para Ythaca. Apresentado em São Paulo: XVI Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, 2012b MASSUMI, Brian. The Authonomy of Affect, Cultural Critique, 31, 1995. MIGLIORIN, CEZAR. Escritas da cidade em Avenida Brasília Formosa e O céu sobre os ombros. Revista Eco-pós, v. 14, n. 1, 2011. _____.Por um cinema pós-industrial: notas para um debate In: HALLAK D’ANGELO, R.; HALLAK D’ANGELO, F. (Orgs.). Cinema sem fronteiras. Reflexões sobre o cinema brasileiro 1998-2012. BELO horizonte: Universo, 2012a _____. O que é um coletivo. In: BRASIL, André. (Org.). Teia – 2002 / 2012. Belo Horizonte: Teia, 2012b. NEGRI, Toni. Valor e Afeto In: Exílio seguido de valor e afeto. São Paulo: Iluminuras, 2001. OLIVEIRA Jr., Luiz Carlos de. O Cinema de Fluxo e a Mise em Scène. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010.
81
82
Denilson Lopes Silva PAVIS, Patrice. A encenação contemporânea. Origens, tendências e perspectivas. São Paulo: Perspectiva, 2010. PELBART, Peter Pál. Elementos para uma Cartografia da Grupalidade In: http: / / www. itaucultural.org.br / proximoato / pdf / textos / textopeterpelbart.pdf. ado em 12 fev de 2013.
83
Ex-isto : Descartes como figura estética do cinema de Cao Guimarães Consuelo Lins
PERNIOLA, Mario. Do Sentir. Lisboa, Presença, 1993. RAMALHO, Fábio. As Pertinências do Afeto. Recife: Mimeo, 2010. DEL RIO, Elena. Powers of Affection: Deleuze and the Cinemas of Performance. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1998.
“Deus não morreu. Perdeu os sentidos.”
Renatus Cartesius / René Descartes em Catatau / Ex-isto
SCHAPIRO, Meyer. Impressionismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. SEIGWORTH, Gregory. Banality for Cultural Studies, Cultural Studies, v. XIV, n. 2, April 2000. SODRÉ, Muniz. As Estratégias Sensíveis: Afeto, Mídia e Política. Petrópolis: Vozes, 2006. SOLNITT, Rebecca. Wanderlust: A history of walking. New York: Penguin, 2001. STEWART, Kathleen. Ordinary Affects. Durham: Duke University Press, 2007. VALLIN, Beatrice Picon. A Encenação: visão e imagens In: A Arte do Teatro: Entre a Tradição e a Vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 2006. VIEIRA Jr., Erly. Marcas de um Realismo Sensório no Cinema Contemporâneo. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012.
E
x-isto surgiu de um convite feito ao cineasta Cao Guimarães para integrar uma série de filmes sobre artistas brasileiros contemporâneos intitulada Iconoclássicos.1 Originalmente, a
proposta era de realização de um longa-metragem em torno da obra do escritor e poeta Paulo Leminski. O artista mineiro optou pela livre adaptação de Catatau, romance maior do autor paranaense, cuja ideia central lhe pareceu ível de ser retomada nas condições habituais em que ele costuma filmar: viajando com uma pequena equipe, extraindo imagens e sons na interação com paisagens naturais e urbanas e com indivíduos de todo o tipo. Trata-se do sexto longa-metragem de Cao Guimarães e o primeiro de ficção – o primeiro em que dirige um ator profissional a partir de um texto literário como inspiração, tendo o filósofo
1 Produzida pelo Itaú Cultural, a série Iconoclássicos produziu Ex-isto, uma adaptação do livro Catatau, do poeta Paulo Leminski; e ainda filmes sobre o músico e compositor Itamar Assumpção, o artista plástico Nelson Leirner, o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa e o cineasta Rogério Sganzerla.
84
Consuelo Lins
narrativas sensoriais
René Descartes como personagem central. De imediato, pode nos
mas se coloca como figura estética3 emblemática da sua obra, uma
surpreender o fato de Cao Guimarães ter escolhido uma narrativa
composição de potências sensíveis que condensa de forma exemplar uma
centrada em Descartes – o filósofo francês é, afinal, um dos mais
atitude que estaria na base da relação do próprio artista com o que o
proeminentes pensadores da tradição filosófica que instigou a des-
cerca, mas também daquilo que ele procura suscitar no espectador.
confiança nos sentidos como forma de conhecer o mundo, desqua-
Antes de argumentarmos em favor dessa hipótese, veremos
lificando impressões, sensações e percepções sensíveis em favor
como Cao Guimarães faz uma torção no personagem de Descartes
de um método puramente especulativo para se chegar à verdade.
e cria uma fábula para narrar a emergência de um pensamento
Nada mais contrário ao modo de Cao Guimarães se relacio-
intuitivo e de uma nova sensibilidade no filósofo ao se deparar
nar com o mundo e extrair arte dessa interação. Desde os pri-
com a plenitude da natureza tropical, assim como o ingresso dele
meiros curtas metragens experimentais realizados em Londres
em um outro tipo de regime sensorial. Acompanhamos em Ex-isto
nos anos 1990 o artista mineiro se concentra no oposto do que
um processo de dissolução de uma forma de relação com mundo,
é reivindicado por essa tradição racionalista, que exclui o corpo,
que privilegia o pensamento em detrimento dos sentidos, em fa-
o desejo e a matéria na construção do conhecimento. Desde en-
vor de uma sensibilidade mais afrouxada e menos instrumental
tão o que particularmente o interessou foi explorar a dimensão
com o ambiente em que o personagem está imerso.
sensorial da vida de todo o dia, dar atenção “ao insignificante e
O próprio título Ex-isto, criado por Cao Guimarães, sugere essa
miúdo de ambientes ordinários”, às pequenas coisas do mundo,
dissolução. Fruto de uma inspirada associação de procedimentos
a movimentos, gestos, sons, ruídos – e os efeitos dessa postura
de Leminski em palavras como “ex-estranho” com os célebres dize-
estão disseminados de modos variados por toda a obra do artista.
res de Descartes “Penso, logo existo”, a formulação “ex-isto” denota
Encontramos, contudo, nesse filme filiações aos trabalhos an-
algo ou alguém que foi alguma coisa, que existiu de algum modo, e
teriores do artista e em especial aos seus documentários, especifi-
que já não é mais; aponta para a decomposição de um modo de exis-
camente na maneira como o cineasta investiga a relação do perso-
tir em favor de um outro. Afinal, como veremos com mais precisão,
nagem central com o mundo sensível. Por isso, arriscamos aqui a
é justamente essa transformação gradual do personagem de Renato
hipótese de que o cineasta constrói em Ex-isto um personagem que,
Cartésio que o filme narra, de um existo para um ex-isto. O nome de
de modos variados, não apenas se aproxima de personagens como
“René / Renato” – como bem lembra Cao Guimarães – significa re-
o ermitão (A alma do osso – 2004) e os andarilhos (Andarilho – 2006),
nascido, e no caso do personagem, renascido nos trópicos.4
2
2 Ver LINS & MESQUITA. Filmar o real, sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, p. 45. Nossa abordagem se aproxima do modo como Osmar Gonçalves dos Reis Filho associa as narrativas de Cao Guimarães a uma “lógica do sensível”. Ver Narrativas sensoriais, A lógica do sensível em Cao Guimarães. Imaginários invisíveis, XIII Estudos de Cinema e Audiovisual, v. 1. São Paulo: 2012, pp. 213-224.
3 Retomamos essa expressão de G. Deleuze e F. Guattari desenvolvida em O que é a filosofia?, que será desenvolvida mais adiante no texto. 4 Em inglês, Ex-it tem ainda – além de um sentido próximo à formulação em português – o sentido de saída, que também pode invocar a ideia de saída de um certo estado de estar no mundo.
85
86
Consuelo Lins
narrativas sensoriais
Brasil pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, Nassau trouxe para o Recife, onde morou de 1637 a 1644, cientistas, teólogos, sábios diversos, artistas e artesãos. Por que não Descartes, que gostava de viajar, e que durante muitos anos visitou inúmeros países, para observar, se questionar, dissolver ideias prontas, procurar a verdade? A ideia dessa obra em prosa se transformou primeiramente em conto, publicado em 1968 sob o título Descartes com Lentes. O breve texto pode ser visto como uma introdução à narrativa que será expandida em Catatau. De estrutura mais clássica, embora também muito inventivo, o conto traz ideias e construções textuais que serão retomadas e exploradas intensamente em Catatau. O romance que jamais teve o reconhecimento de público O romance Catatau narra a viagem do filósofo René Descartes
desejado por Leminski é uma narrativa experimental, sem pará-
em terras brasileiras e trata do embate de seu sistema filosófico
grafos nem capítulos ou intertítulos, que expressa a explosão de
com a exuberância fenomenal dos trópicos, com suas criaturas
pensamentos de René Descartes ao entrar em contato com toda
incatalogáveis, paisagens inclassificáveis, toda uma gama de ma-
sorte de “seres tortos e loucos” e o clima tórrido do Brasil. Ao ser
nifestações resistentes a racionalizações. “E se Descartes tivesse
publicada originalmente em 1975, foi saudada por entusiastas
vindo para o Brasil com Nassau, para Recife / Olinda / Vrijburg /
como um clássico experimental, próximo de Finnegans Wake do
Mauritzstadt?”, pergunta Leminski em uma apresentação do li-
escritor irlandês James Joyce e, no Brasil, de Memórias Sentimentais
vro. “(…) Descartes, fundador e patrono do pensamento analítico,
de João Miramar e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, e de
apoplético nas entrópicas exuberâncias cipoais do trópico?”5 Uma
As galáxias, de Haroldo de Campos.
intuição plausível já que René Descartes (1596 / 1650) se engajou
É um livro de difícil leitura, discutido por críticos, mas pou-
em 1618 como voluntário no exército holandês comandado por
co lido – muito diferente do impacto e presença efetivos da po-
Maurício de Nassau, tendo permanecido boa parte da sua vida na
esia de Leminski na cultura brasileira. Ao entregar a obra pela
Holanda – como aliás outros pensadores e artistas que buscavam
primeira vez nas mãos do leitor, Leminski recusou-se a qualquer
nesse país liberdade para escrever e trabalhar. Ao ser convidado
explicação: “Me nego a ministrar clareiras para a inteligência
para ser governador dos domínios conquistados no nordeste do
deste Catatau que, por oito anos, agora, ou muito bem sem mapas. Virem-se.” Talvez o pouco impacto do livro tenha levado o
5 LEMINSKI, P. Descoordenadas artesianas, um livro e sua história, 23 anos depois. In: Catatau. São Paulo: Iluminuras, 2011, p. 211.
autor, na segunda edição publicada em 1989, a redigir dois textos que oferecem algumas pistas de leitura. Em um deles, “Quinze
87
88
Consuelo Lins
narrativas sensoriais
pontos nos iis”, lemos logo no início: “O Catatau é a história
sem vazios, nem espaços por onde o leitor possa se imiscuir e
de uma espera. O personagem (Cartésio) espera um explicador
reinventar o que lê, tampouco experimentar outra duração que
(Artiscewiski). Espera redundância. O leitor espera uma explica-
não seja a de um fluxo textual sem trégua. Uma escrita exces-
ção. Espera redundância, tal como o personagem (isomorfismo
sivamente genial, fascinada pela própria potência de invenção
leitor / personagem). Mas só recebe informações novas. Tal como
a ponto de fabricar, em muitos momentos, a sensação de pres-
Cartésio.” E ainda: Esse “tratado de Medicina Legal da lógica e
cindir do leitor. Trata-se de uma implosão destruidora que tal-
da linguagem” narra “o fracasso da lógica cartesiana branca no
vez queira sugerir a quem o lê buscar outros caminhos a partir
calor, o fracasso do leitor em entendê-lo, emblema do fracasso do
dela – que não são dados pelo romance.
projeto batavo, branco, no trópico” – frase que Cao Guimarães 6
retoma nos créditos finais do filme.
Confrontar-se com essa obra para extrair dela um filme é tarefa árdua. Cao Guimarães teve uma relação muito particu-
Vários comentadores dessa obra de Leminski destacam
lar com o texto, lendo no máximo três ou quatro páginas por
as diferenças entre o sistema filosófico de Descartes e as inser-
dia, em pé e em voz alta. Aos poucos foi selecionando trechos
ções paródicas desse sistema espalhadas pelo romance7 do au-
e visualizando imagens, mas não chegou a elaborar um roteiro,
tor paranaense. Enfatizam que não se trata de um confronto
apenas um percurso de viagem. Para o cineasta, Catatau é “uma
com a filosofia de Descartes, mas de um embate irônico com
investigação sobre a potência e a graça da língua brasileira” e ele
uma concepção do cartesianismo criada e disseminada pelo sen-
explora essa investigação em chave minimalista. Consegue nos
so comum, mas que também atravessa a tradição racionalista
fazer ouvir e sentir a potência criativa do romance de Leminski,
ocidental, que desqualifica a sensibilidade como modo de co-
que por seu virtuosismo, excesso de invenção e proliferação de
nhecer o mundo. Contudo, se o romance produz uma crítica se-
sentidos acabou afastando leitores. O cineasta faz algo por esse
vera a essa tradição, sugerindo outros modos de ser, produz no
texto literário que só uma arte que materializa expressivamente
leitor uma experiência de aturdimento, tamanha saturação de
o universo de sons poderia fazer: de forma parcimoniosa, enfa-
signos produzidos por um “texto canibal”,9 repleto de palavras
tiza os jogos sonoros propostos por Leminski, a música de pala-
inventadas, trocadilhos, gírias, ditados e paródias de ditados,
vras inventadas, o ritmo das frases, a pontuação, em fragmentos
provérbios, frases feitas, expressões gastas e clichês – um texto
do texto de Catatau narrados esplendidamente pelo ator João
8
Miguel – que tem a missão de encarnar no filme o personagem 6 As citações desse parágrafo são de LEMINSKI, op.cit, p. 212, 215.
de Descartes. Tira proveito da arquitetura sonora da prosa do po-
7 SALVINO, R. V. Catatau: as meditações da incerteza. São Paulo: EDUC, 2000, p. 117.
eta paranaense na maneira como faz seu personagem enunciar
8 NOVAIS, C. A. As trapaças de Occam: montagem, palavra-valise e alegoria no Catatau, de Paulo Leminski. Belo Horizonte: tese de doutorado, Faculdade de Letras, UFMG, 2008, pp. 154-155. 9 Fernando Segolin, in SALVINO, 2000, p. 14.
as palavras e no modo de imprimir um ritmo particular ao filme através da repetição de certas frases duas ou três vezes. “Índio pensa? Índio come quem pensa”, “Índio pensa? Índio come quem pensa…”, extraindo novas ressonâncias a cada repetição.
89
90
Consuelo Lins
narrativas sensoriais
As narrativas de Leminski e de Cao Guimarães têm pontos
flora brasileiras in loco; viaja de canoa, de ônibus, de avião; visita
de contato e muitas diferenças – para além do fato mais eviden-
Recife e Brasília e termina seu périplo em uma praia nordesti-
te de uma ser narrativa textual e outra cinematográfica. Catatau
na, cheia de coqueiros. Se há nos jardins do palácio de Nassau,
é verborrágico, sem pausas ou tempos mortos, e praticamente
onde o Cartésio de Leminski reflete e delira, uma dimensão ale-
desprovido de acúmulo narrativo, a não ser a espera de Descartes
górica do Brasil e do Novo Mundo, como defendem alguns co-
pelo amigo polonês que chega somente nas últimas linhas do ro-
mentadores de Catatau, Cao Guimarães opta por um realismo
mance, bêbado e incapaz de ser seu interlocutor. Ex-isto é um fil-
documental para narrar a trajetória do personagem, assim como
me que preza o silêncio, os movimentos lentos, os tempos esten-
depura a narrativa dos aspectos paródicos presentes no romance
didos, de modo a expressar a peculiar intensidade da experiência
de Leminski.
sensível de Cartésio. Mesmo rarefeita, a narrativa registra um
Um outro deslocamento do livro para o filme ocorre na ma-
pequeno acúmulo que se traduz na metamorfose do personagem
neira pela qual Cao Guimarães nos permite apreender o perso-
na sua viagem pelo Brasil – viagem que acontece de fato, e não
nagem central. O leitor de Catatau a diretamente os estados
apenas em um espaço mental.
mentais de Cartésio, sem que jamais tenhamos um ponto de vista
No início de Catatau, René Descartes, Renatus Cartesius
exterior do personagem. Somos de certo modo submetidos a um
(nome latinizado, eventualmente adotado pelo próprio Descartes)
fluxo incessante de pensamentos feito de palavras inventadas,
ou simplesmente Renato Cartésio (Leminski usa os três nomes)
frases desconexas, sintaxe inédita, que engendra um monólogo
está nos jardins do parque que cercava o palácio de Vrijburg, onde
interior perturbado, alterado, distorcido, assombrado por várias
Nassau construiu um zoológico com animais nativos e um hor-
vozes, dialógico do início ao fim. Cartésio interage com seus vários
to botânico com plantas tropicais. Dali, de posse de uma luneta,
“eus”, com fantasmas, com o leitor, com Arciszewski e com algo
Cartésio contempla “o mar, as nuvens, os enigmas e os prodígios
que pensa dentro dele: “alguém pensou aqui e não fui eu”.11 O es-
de Brasília”. E das cercanias do palácio não sai, ao menos fisica-
pectador de Ex-isto também a à irrupção mental do persona-
mente, até o final da narrativa, a fumar uma erva nativa, a espe-
gem através de uma narração em off, mas apenas em momentos
rar o amigo polonês K. Arciszewski, matemático, poeta e militar,
precisos da narrativa. Há um trabalho minucioso de montagem
a descrever bichos variados (preguiças, tamanduás, jiboias, tatus,
de certos fragmentos da prosa experimental de Leminski em di-
antas, aranhas, etc.) e em confronto com Occam, um “monstro
ferentes momentos do trajeto existencial de Cartésio em Ex-isto,
textual”, “(…) um princípio de perturbação da ordem” que, ao
contribuindo para configurar sua metamorfose: inicialmente o
aparecer, faz o texto se voltar para ele mesmo.
personagem é um contemplador a distância, aos poucos começa
10
Ex-isto narra uma viagem efetiva do personagem por diver-
a interagir e experimentar o que encontra pelo caminho e, por
sas regiões do Brasil. Cartésio conhece espécimes da fauna e da
último, libera-se de todo limite e se mistura ao mundo.
10 LEMINSKI, 2011, p. 216.
11 Ibidem, p. 61.
91
92
Consuelo Lins
narrativas sensoriais
Um filme em três atos primeiro ato: cartésio pensador Nas primeiras imagens do filme, Descartes / Cartésio lê, em uma biblioteca, as primeiras páginas do seu Discurso do Método (1637) – texto onde expõe sua formação intelectual em modo autobiográfico e propõe um método para o homem conhecer o real evitando erros, a partir do modelo da matemática. Nesse fragmento de Discurso do Método selecionado pelo cineasta (e que não consta do texto de Leminski), Descartes faz as célebres considerações sobre o “bom senso ou razão” como “a coisa mais bem distribuída do mundo” e atribui a diversidade de opiniões corrente à maneira como conduzimos nosso pensamento, como orientamos térios seguros, visando elaborar um conhecimento verdadeiro e
nosso espírito, como conduzimos nossa razão.
definitivo sobre essa nova realidade natural.
(…) não recearei dizer que penso ter tido muita sorte por ter me en-
Em uma canoa, já em meio à mata tropical, atento ao que
contrado, desde a juventude, em certos caminhos que me conduziram
vê e aos ruídos desse mundo inédito, ele parece pensar. Sozinho
a considerações e máximas com as quais formei um método (…).
diante de tais estranhezas retira as botas e pisa com os pés des-
12
calços o fundo de madeira da canoa. Um primeiro sinal, ainda Descartes / Cartésio continua a leitura, diz que sente satis-
pequeno, de uma abertura para um outro modo de perceber o
fação pela atividade que abraçou e pelo progresso que já fez na
mundo. Nesse primeiro momento do filme, Cartésio perscruta a
procura da verdade, e nutre muitas esperanças para o futuro.
“realidade objetiva” com distância, reforçada pelos aparelhos óti-
De certo modo, o filme apresenta nessa sequência o personagem
cos que utiliza. Reflete sobre o método inequívoco de uma aranha
antes de se defrontar com a realidade dos trópicos – a biblioteca
tecer sua teia: “Caminha no ar, sustenta-se a éter, obra de nada:
onde está expressa o acúmulo do saber ocidental do qual ele é
não vacila, não duvida, não erra. (…) A aranha leva daqui ali o
herdeiro – e a sua crença no método que formulou, que guiará
tempo que levei para conseguir o teor de semelhantes teoremas.”
seu pensamento na sua viagem pelo Brasil. A partir daí, Descartes
Demora-se na observação de uma arara com uma lente de aumen-
/ Cartésio se verá diante um mundo desconhecido e podemos su-
to; acompanha os movimentos de animais de formas e contor-
por que ele tentará pôr a razão no bom caminho através de cri-
nos assombrosos, alguns repugnantes como uma lesma, outros curiosos como certos pássaros e formigas: “Comer esses animais
12 DESCARTES, R. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 7.
deve perturbar singularmente as coisas do pensar”. Cartésio man-
93
94
Consuelo Lins
narrativas sensoriais
tém, nesse momento, suas tentativas de conceituar uma natureza
toma sol no rosto, deambula por uma feira, aconchega uma abó-
cheia de esquisitices.
bora nos braços, degusta sementes, escuta música popular, aden-
Do alto de uma árvore, de posse de uma luneta, espreita a
tra um mercado, se detém aqui e ali, interage com nativos, explo-
paisagem e conclui: “Ver é uma fábula, ver é uma fábula, é para
ra o olho extraído de um peixe, ensaia dançar, se deixa capturar
não ver que estou vendo”. Ver é fabular, inventar parcialmente o
pelo ritmo de uma banda e dança com uma jovem.
que se vê. Por isso mesmo Descartes, o filósofo, desconfia da visão e das incertezas das faculdades cognitivas. Pouco a pouco, contu-
Aconteceu algo inacontecível. Minha situação é perigosa. Não te-
do, Cartésio, o personagem, se entregará à dimensão fabulatória
nho boas impressões das coisas: impressiono-me facilmente. (…)
da visão e dos outros sentidos. É também de cima de uma árvore,
Digo o que sei, e que sei é o que sinto, sinto muito (…) Deus só sabe
já sem parte de sua vestimenta, que assiste ao encontro das águas
o que é; mas eu sei o que não é, o que é mais. (…) Deus não morreu.
do mar com as do rio. Talvez o impacto desse fenômeno tenha
Perdeu os sentidos.
levado Cartésio a sonhar e delirar na rede em que repousa em seguida, envolto em véus. Sonha todos os tempos aqui agora, delira
Impressionar-se facilmente, sentir muito o mundo, saber o
sua vida inteira em um instante. Mergulha em um fluxo de cin-
que não é, e isso ser mais do que saber o que é: um turbilhão
tilâncias, movimentos, cores, fragmentos de pensamentos, sons
de sensações deixa Cartésio em situação temerária. Suspeita
em latim, imagens surreais. O tempo se dobra sobre ele mesmo e
que uma mudança insidiosa está em curso. Viaja de ônibus para
o Brasil do século XVII é o Brasil do século XXI, em planos tempo-
Brasília e, sob os efeitos de uma erva nativa, delira com as for-
rais múltiplos. Ao final dessa sequência, que sugere uma intensi-
mas geométricas da cidade. O fumo aproxima de vez Cartésio de
ficação das sensações de Cartésio, ouvimos as seguintes palavras:
uma experiência sensível com o mundo. Mergulha no fluxo da consciência e Brasília se transforma em uma sucessão de formas
(…) Não pense. Pensar é para os que têm, prometa começar a
geométricas esbranquiçadas. “Este mundo é o lugar do desvario,
pensar depois. Expimenta malaxaqueta, experimonta pressungo.
a justa razão aqui delira. (…) Tigre sabe que não erra. Fuma até
Monolonge, um monjolo de esponja bate espuma (…) A ninfa em
tudo ficar vermelho. Quero febre: Brasília não vai a Cartésio, vai
pleno orgasmo mas sempre comendo a laranja.
Cartésio até Brasília.” Sentado à beira do mar, vestido apenas de camisão, Cartésio reflete: “Só pensando não dá para chegar lá: tem que
segundo ato: cartésio experimentador
andar, olhar bem para os lados, atirando ao menor movimento,
Em Recife / Olinda / Vrijburg / Freiburg / Mauritzstadt, consoli-
o maior olhar.” Desafia quem o filma com uma espada.13 Em off:
dam-se as condições para que Cartésio entre em uma nova relação com o Brasil. Diante do bestiário e da flora tropical, o olhar contemplativo fraqueja. O personagem chega à cidade pelo rio,
13 Aqui o cineasta insere um elemento biográfico de Descartes, autor de um manual prático de esgrima.
95
96
Consuelo Lins
narrativas sensoriais
“Por quem me toma? Por paralítico? Por narcótico?” Trata-se de
“Quando verei meu pensar e meu entender voltarem das cinzas
Occam, o “cônscio”, único momento do filme em que esse per-
deste fio de ervas?”.
é evocado pela
O filme retoma nesse momento as frases finais do romance
narração de Cartésio. Mas é uma breve evocação, sem maiores
de Leminski, em que o monólogo interior de Cartésio narra a che-
efeitos sobre a narrativa de Cao Guimarães. Uma família de ne-
gada do amigo polonês embriagado, sem condições de atender às
gros a por Cartésio e ouvimos na trilha sonora batuques
suas expectativas: esperava que ele o ajudasse a dar uma direção
africanos. Despojado de seus últimos fardos impregnados de um
ao seu pensamento, agora sem bússola. No romance, trata-se de
tipo de civilização e de humanidade, Cartésio se estira na areia.
um desfecho aberto. O cineasta se apropria dessa abertura para
Seu corpo nu, branco e frágil se oferece à irradiação de todos os
avivar um dos devires possíveis da prosa de Leminski: Cartésio
elementos. Alucina estar sendo comido por formigas e levado
renasce solar, pelas graças de uma mãe negra, com nova sensi-
“em partículas para suas monarquias soterradas”. Sente “a exis-
bilidade, novo modo de apreender o mundo, nem bem homem
tência (…) no existente”, “a presença presente no presenciar”,
nem bem animal.
sonagem tão presente na prosa de Leminski
14
“a circunstância no circunstancial, a totalidade totalmente no total”. Desatina com o fedor de antas e araras, e se interroga:
Sinto em mim as forças e formas deste mundo, crescem-me hastes sobre os olhos, o pelo se multiplica, garras ganham a ponta dos dedos, dentes enchem-me a boca, tenho assomos de fera, Renato fui. Sinto em mim as forças e formas deste mundo, crescem-me hastes sobre os olhos, o pelo se multiplica, garras ganham a ponta dos dedos, dentes enchem-me a boca, tenho assomos de fera, Renato fui. Se papai me visse agora, se mamãe olhar para cá! aiaiaiaiai. Renato fui, Renato fui. Do nosso ponto de vista, a metamorfose de Renato Cartésio já foi vivenciada por alguns personagens dos filmes anteriores de Cao Guimarães e Ex-isto fabula de certo modo uma trajetória exemplar dessas transformações. Não sabemos quase nada da vida pregressa dos andarilhos ou do ermitão de A alma do osso – tampouco sabemos se, tal como Descartes, negavam as re-
14 Leminski afirma que Occam é o “primeiro personagem puramente semiótico, abstrato, da ficção brasileira”, “um princípio de incerteza e erro”, o “malin génie” do pensamento de René Descartes. Quando o monstro emerge no texto, ele se volta para si e há agens abruptas de um esboço de sentido para o nonsense. LEMINSKI, 2011, p. 212.
alidades corpóreas experimentadas por seus sentidos. Quando o cineasta os filma, eles já viveram mudanças que os fizeram viver a vida que levam, mas elas não são questão para o filme.
97
98
Consuelo Lins
narrativas sensoriais
Esses personagens não são definidos como tipos psicossociais,
mundo, em Ex-isto há uma radicalização na construção da figura
tampouco como indivíduos fabuladores do ado, e sim como
de Cartésio, que pouco age ao longo do filme, atento ao “tecido
“seres de sensação” que romperam com um modo de relação
sensível”15 do mundo e ao seu puro sentir. O personagem suspen-
sensoriomotora e intelectual com o mundo em favor de uma
de suas conexões ordinárias da vida e imerge em uma experiên-
interação pautada nos regimes sensoriais da relação mundana.
cia sensível, desfrutando de uma qualidade da experiência que se
O que o diretor explora são as formas através das quais eles
atinge “desde o momento que paramos de calcular, de querer e
se inscrevem em um universo sensível, os gestos cotidianos,
de buscar, desde que resolvemos a fazer nada.”16
as experiências ordinárias; o que ele investiga são microacon-
Uma atitude que ecoa a do próprio artista: no gesto de en-
tecimentos de vidas que há muito perderam uma vinculação
quadrar e de compor aquilo que vê – muitas vezes no que está ao
mais clássica.
seu lado, na esfera mais doméstica da sua vida – Cao Guimarães
Por isso apostamos em Renato Cartésio como figura estética
suspende suas inclinações automáticas diante do que o afeta e
emblemática da obra de Cao Guimarães, uma formulação criada
faz uma espécie de “parada” sobre uma cena, uma imagem, uma
por Deleuze e Guattari em O que é a filosofia? para identificar, no
temporalidade – embora não se trate de “parar” o tempo, e sim os
domínio da arte, àquilo que os autores definem como “persona-
movimentos automáticos do cotidiano. Uma suspensão que per-
gens conceptuais” no campo da criação filosófica, que são per-
mite explorações do que é muitas vezes imperceptível, através de
sonagens fictícios ou semi-fictícios, compostos de potências de
uma reorganização temporal e visual da realidade – cores, linhas,
conceitos que veiculam ideias. Se Ex-isto fosse filosofia, Cartésio
texturas, formas, ritmos, movimentos, durações. Trata-se de um
seria seu personagem conceitual. Como pertence ao campo da
procedimento artístico que favorece a extração de potências sen-
arte, é uma figura estética ou um bloco de sensações que faz com
síveis de seres e coisas aparentemente inexpressivas: crianças
que experimentemos forças invisíveis que povoam o mundo e
brincando na chuva (o curta Da janela do meu quarto), uma manhã
nos afetam, sem que ordinariamente percebamos. Deleuze e
nublada na cidade (a série de fotografias Paisagens reais: tributo à
Guattari usam uma noção da geologia para definir essa operação
Guignard), gambiarras espalhadas pelo cotidiano, um casal pes-
artística de criação dos blocos de sensação: “extração”. Os artistas extraem das percepções, afecções e sentimentos cotidianos, potências de sensações depuradas de toda utilidade, de todo interesse imediato – potências nomeadas pelos dois filósofos de “perceptos” e “afectos” – em favor de novos modos de ver e sentir o mundo. Se os documentários de Cao Guimarães em torno dos andarilhos e do ermitão articulam momentos de ação cotidiana com momentos de suspensão das relações sensoriomotoras com o
15 Trata-se de uma noção usada pelo filósofo francês Jacques Rancière em algumas de suas obras, entre as quais Malaise dans l’Esthétique (2004) e Aisthésis: scènes du régime esthétique de l’ art (2011). 16 J. Rancière aprofunda em Aisthesis (p. 67) sua definição de “regime estético das artes” e identifica uma “potência de subversão” em um “dolce far niente”, em um “estado sensível desinteressado”, cujas primeiras figuras surgem na literatura de Rousseau. Trata-se de uma elaboração que nos interessa, mas que desenvolveremos em um próximo artigo.
99
100
Consuelo Lins
narrativas sensoriais
cando (a videoinstalação Sem hora), uma aranha tecendo sua teia
LEMINSKI, Paulo. Descartes com Lentes. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1995.
(o longa Ex-isto).
LINS, Consuelo & MESQUITA, Claudia. Filmar o Real. Rio: Jorge Zahar, 2008.
Finalmente trata-se de uma atitude estética que os trabalhos do artista podem instigar na experiência do espectador. As ima-
NOVAIS, C. A. As trapaças de Occam: montagem, palavra-valise e alegoria no Catatau, de Paulo Leminski. BH: tese de doutorado, Faculdade de Letras, UFMG, 2008.
gens e sons de Cao Guimarães estetizam nossa relação com o
SALVINO, R. V. Catatau: as meditações da incerteza. São Paulo: EDUC, 2000.
mundo, nos sensibilizam para essa dimensão sensível, nos tirando da nossa inércia, da nossa atitude ordinária e utilitária diante da vida: nós, espectadores, começamos a ver paisagens, insetos, bolas de sabão, gambiarras, como se fossem imagens de Cao Guimarães; suas obras tornam visível um tecido sensível que até então não nos dávamos conta, que não conseguíamos ver. Não é propriamente a natureza do que ele vê que provoca essa conduta estética, é, sobretudo, sua inclinação em ver estes elementos do mundo que confere a tais cenas seu devido caráter estético ou, se quisermos, sua devida poesia. Ou melhor: essa atitude revela, a nós espectadores, o que há de virtualmente estético / poético nas formas de vida disseminadas pelo mundo, a nossa espera, mesmo nas menores e nas mais banais – e suas imagens e sons talvez nos sensibilizem para essa dimensão.
Referências bibliográficas DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Qu’est-ce que la wosophie? Paris: Minuit, 2005. DESCARTES, René. Discurso do Método (trad. Maria Ermentina de Almeida Galvão). São Paulo: Martins Fontes, 2009. GUIMARÃES, Cao. Cinema de Cozinha, In: Catálogo da Mostra Restrospectiva Cinema de Cozinha. São Paulo: SESC, 2008. GUIMARÃES, Cesar. A experiência estética e a vida ordinária. In: e-compós. 1 (2004). In: http: / / www.compos.org.br / e-compos. ada em 05 / 02 / 2013. LEMINSKI, Paulo. Catatau. São Paulo: Iluminuras, 2010.
RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’Esthétique. Paris: Galilée, 2004. RANCIÈRE, Jacques. Aisthésis: scènes du régime esthétique de l’ art. Paris: Galilée, 2011
101
103
Moving Movie – Por um cinema do performático e processual André Parente
Introdução
P
rovavelmente, se pararmos para pensar sobre a imagem que o senso comum possui do cinema, teríamos, como resultado, a descrição que segue: “o cinema é um espetáculo que se pas-
sa em uma sala escura, na qual é projetado um filme que conta uma história em aproximadamente uma hora e meia”. De fato, o cinema faz convergir estas três dimensões diferentes em seu dispositivo: a arquitetura da sala, herdada do teatro italiano, a tecnologia de captação / projeção da imagem e a chamada linguagem cinematográfica (responsável pela organização das relações temporais e espaciais sem as quais o espectador não compreende a história contada pelo filme). A invenção do cinema é atribuída aos irmãos Lumière, mas esquecemos que o cinema deles só continha as duas primeiras dimensões citadas acima: a sala e a tecnologia de captura e projeção de imagens. Apenas recentemente começamos a distinguir o cinema dos “primeiros tempos” (1896-1908) do cinema narrativo clássico, que emerge em torno de 1908. Retomar a história do
104
André Parente
narrativas sensoriais
cinema primitivo nos permite distinguir dois momentos abso-
“modelo-representativo-institucional” (M.R.I., termo empregado
lutamente diferentes: aquele da emergência de um dispositivo
por Noël Burch), “estética da transparência” (termo utilizado por
técnico, o cinema como dispositivo espetacular de produção de
Ismail Xavier).
fantasmagorias, e outro, fruto de um processo de instituciona-
Na verdade, o cinema existe desde que surgiram os pri-
lização sócio-cultural do dispositivo cinematográfico, o cinema
meiros dispositivos de criação da imagem em movimento, os
como instituição de uma forma particular de espetáculo, o cine-
chamados brinquedos óticos, a exemplo do Taumatrópio e do
1
ma enquanto formação discursiva.
Zoetrópio. O Kinetoscópio de Thomas Edison era cinema, ao
Segundo Foucault, um dispositivo possui três diferentes
mesmo título que o Cinematógrafo dos Lumière. Dizer que o
níveis ou três camadas. Em primeiro lugar, o dispositivo é um
Kinetoscópio não era cinema porque não era apresentado na sala
conjunto heterogêneo de discursos, formas arquitetônicas, pro-
de cinema é um grande mal entendido. O próprio Cinematógrafo
posições e estratégias de saber e de poder, disposições subjeti-
dos Lumières, como dissemos acima, não apresentava a dimen-
vas e inclinações culturais. Em segundo lugar está a natureza da
são discursa tal como viria a ser desenvolvida mais tarde pelo
conexão entre esses elementos heterogêneos. E, finalmente, em
cinema americano e russo, que estão na origem do cinema
terceiro lugar está a formação discursiva, ou a episteme, resultante
narrativo-representativo-comercial.
das conexões entre tais elementos. Sob essa perspectiva, pode-
Na verdade, a “Forma Cinema” é uma idealização: é preciso
mos dizer que a Forma Cinema articula as três dimensões de seu
lembrar que nem sempre há sala, e quando há, ela nem sempre
dispositivo – arquitetônica, tecnológica e discursiva – de forma
é escura ou silenciosa; o projetor nem sempre está atrás do es-
a criar no espectador uma estética da transparência. Cada uma
pectador ou é silencioso; o filme nem sempre conta uma história
destas dimensões do dispositivo supracitadas é, por si só, um con-
(eles podem inclusive ser abstratos ou experimentais); muitos fil-
junto de técnicas voltadas para a realização de um espetáculo que
mes, na verdade, a grande maioria, não duram o tempo de um
gera no espectador a ilusão de que ele está diante dos próprios
espetáculo cinematográfico. A historiografia do cinema recalca os
fatos e acontecimentos representados. Este fato é tão comum,
pequenos e grandes desvios produzidos neste modelo (A Forma
que às vezes desejamos ir ao cinema não para ver este ou aquele
Cinema), deixando de lado da história oficial do cinema todas as
filme em particular, mas para nos entregarmos a esta situação na
experiências que não se confundem com o cinema hegemônico,
qual, durante duas horas, esquecemos nossa vida lá fora. Trata-se
e que fazem a riqueza e variedade do cinema.
de um modelo de representação: “forma narrativa-representati-
A grande vantagem de se pensar a partir da noção de dispo-
va-industrial” (N.R.I., termo cunhado por Claudine Eizykman),
sitivo é que se escapa da naturalização do cinema como uma de
1 Trata-se de um modelo de representação: “forma narrativa-representativa-industrial” (N.R.I., termo cunhado por Claudine Eizykman), “modelo-representativo-institucional” (M.R.I., termo empregado por Noël Burch), “estética da transparência” (termo utilizado por Ismail Xavier).
suas formas, no caso a forma dominante. A noção de dispositivo nos permite repensar o cinema, evitando clivagens e determinismos tecnológicos, históricos e estéticos. O dispositivo é, por natureza, rizomático, o que, de certa forma, nos permite dissolver
105
106
André Parente
narrativas sensoriais
certas clivagens e oposições que, em muitas situações, não ape-
aproximação nos detalhes da imagem enquanto os outros dois
nas paralisam nossos pensamentos como criam falsas oposições.
botões permitem que o espectador ative vídeos e sons, ou ainda
Veremos que duas das experiências aqui analisadas criam os
produza transições entre as situações ou ambientes apresentados.
mesmos efeitos de variações em relação à Forma Cinema: 1) não
Existem dois ambientes ou universos principais, cada um
são realizadas em uma sala de cinema; 2) a imagem é espacializada,
deles contém várias mininarrativas, acompanhadas de um narra-
de forma que não está apenas diante do espectador; 3) apresentam
dor, que descrevem a presença de um leitor que se desloca entre
técnicas mistas de captura e projeção da imagem, que envolvem
o Real Gabinete Português de Leitura – uma biblioteca circular
fotografia, filmes e vídeos; 4) os espectadores são convocados a par-
que nos faz pensar em Jorge Luis Borges –, e a praia, ambiente
ticipar da experiência ativamente; 5) a experiência cria uma tensão
tipicamente carioca.
entre a performatividade do espectador e os outros espectadores
O terceiro ambiente é apenas uma estrutura de navegação,
que se encontram no espaço das instalações. A terceira, como vere-
envolvendo paisagens diversas, por meio da qual o espectador
mos, tenta criar uma reversão da Forma Cinema, dentro da própria
poderá visualizar as potencialidades do sistema do ponto de vista
sala de cinema, transformando o espectador em objeto do filme, e
dos deslocamentos espaciais e temporais.
criando um desocultamento do dispositivo da Forma Cinema.
O trabalho insere-se em um contexto de instalações contemporâneas de arte no qual o dispositivo torna-se uma estratégia de
Figuras na Paisagem (2010)
articulação entre a tecnologia, o espectador e um determinado regime de crenças, que tem por objetivo desencadear novas modalidades de experiência com as imagens.
Entre as dezenas de instalações desenvolvidas com o
Historicamente, as variações nos dispositivos audiovisuais
Visorama, Figuras na Paisagem (Oi Futuro, Rio de Janeiro, 2010) é
implicaram em variações no regime espectatorial de cada épo-
uma das mais instigantes. Figuras na Paisagem faz convergir a arte
ca, por vezes acentuando a crença no realismo da mimese e da
contemporânea, o cinema e as interfaces computacionais, trans-
verossimilhança, inserindo o observador na imagem; por outras
formando radicalmente as dimensões tradicionais do cinema: sua
promovendo o distanciamento, o estranhamento diante da repre-
arquitetura (a sala), sua tecnologia (câmera e projetor) e sua lin-
sentação. Hoje, a hibridização das imagens potencializada pelas
guagem (organização das relações espaço-temporais).
novas tecnologias vem colocando em questão nossa tradicional vi-
Figuras na paisagem é uma instalação em que o espectador utiliza um dispositivo imersivo que simula um binóculo, chamado
são da realidade e reinventando o papel do observador, mais uma vez, em decorrência das relações entre dispositivos e imagens.
Visorama, por meio do qual ele interage com ambientes virtuais e hí-
Em um diálogo com a história do cinema, Figuras na Paisagem
bridos formado por fotografias panorâmicas contendo vídeos e sons.
cria as condições para uma experiência que ao mesmo tempo
A observação da paisagem e de seus personagens é realizada
retoma e reinventa outros dispositivos audiovisuais. Desde os
por meio de três botões: o botão de zoom possibilita uma imensa
primeiros panoramas fotográficos aos primeiros cinemas, pas-
107
108
André Parente
narrativas sensoriais
sando pelo cinema clássico, pelos experimentalismos modernos
O binóculo, aparelho que permite a visão estereoscópica
e pela videoarte, o dispositivo e seu conteúdo (este muda a cada
das imagens fotográficas e videográficas presentes na obra, está
instalação, qual um filme em uma sala de cinema) dialogam
suspenso no centro da sala, sugerindo a realidade para além dos
com as tecnologias e com os regimes de arte e de observação de
limites oculares. A instalação torna-se um convite ao voyeurismo.
cada época. Ao o que retoma o funcionamento de um dispo-
Nesse estágio inicial, é preciso percorrer todo o panorama, de um
sitivo conhecido historicamente em um jogo de aproximação e
lado a outro, para encontrar as agens que levam às demais
distanciamento, Figuras na Paisagem escapa dos modelos pré-defi-
paisagens: a biblioteca e a praia.
nidos. Os modos de aparição e desaparição das imagens, a fragi-
Diante das paisagens construídas, o observador é convocado
lidade e a instabilidade da narrativa, sua apresentação como um
a iniciar uma trajetória pela imagem que o leva a percorrer vi-
fluxo e os diferentes papéis destinados aos observadores recon-
sualmente os panoramas através de escolhas que prescindem de
figuram o lugar das imagens técnicas na contemporaneidade.
seus próprios movimentos corporais. Ao performar uma dança
(CARVALHO, 2010)
“cega” com mãos e olhos firmes no binóculo, o observador cons-
Logo de início, a primeira imagem a ser observada é a própria sala de exposição, silenciosa, vazia, imóvel. O espectador tem a impressão de estar a ver o espaço real no qual se encontra como se estivesse utilizando um binóculo de verdade.
trói a sua própria narrativa audiovisual a partir do que escolhe ver e não ver, ouvir e não ouvir. O dispositivo aqui se confunde com a obra instalativa, propondo uma “obra-dispositivo” que transforma o observador em criador a partir de uma relação estabelecida com a obra. É através
Figuras na Paisagem (montagem Fundación Telefónica, Buenos Aires)
Ilustração 2: Figuras na Paisagem (montagem Fundación Telefónica, Buenos Aires)
109
110
André Parente
narrativas sensoriais
desta ação performática que o observador vai criar suas narra-
lida em silêncio aproxima-se do próprio pensamento. De modo
tivas únicas e conduzir as experiências individuais e coletivas.
paradoxal, a narração em voz alta do texto que disserta sobre o
Enquanto desempenha sua ação “performático-criativa”, o obser-
silêncio duplica a situação do observador, que vê o que não pode
vador é também objeto de observação de outros visitantes, que se
ser dito e ouve o que não pode ser visto.
mantêm na sala de exposição e acompanham toda a narrativa por
No outro percurso, agora na praia, o observador pode, en-
uma projeção na parede. Localizada à frente do binóculo, a proje-
tre outras opções, deparar-se com a imagem videográfica de um
ção permite a todos, ao público e ao operador do binóculo, verem
homem nadando, enquanto ouve a narração que descreve a cena
simultaneamente as mesmas imagens. A obra é então concebida
de um observador que acompanha visualmente um homem que
de modo que a experiência não seja privilégio daquele que opera
nada no mar. Deixando-se levar pela narração, o observador se
o aparelho, mas uma experiência compartilhada com o público,
sente como sendo em parte responsável pelo que observa.
que reage às imagens e às escolhas do operador.
Em Figuras na Paisagem, as narrativas são metáforas da con-
A tela é um convite não apenas à observação, mas também
dição mesma do observador. Há uma tensão constante entre o
à participação do público. A cada reação, de incentivo ou de re-
observador – colocado na situação de um voyeur olhando pelo
cusa, o público acaba por interferir nas escolhas do observador,
buraco da fechadura – e o público, que assiste à criação de uma
que não pode ignorar seus espectadores. A obra se constitui
“narrativa singular” por parte do observador que manipula
como uma rede de forças que produz experiências individuais e
o aparelho.
coletivas, em que os papéis dos observadores, do público e do artista se reinventam constantemente. As paisagens são construídas a partir da miscigenação de diversas imagens, fotográficas
Circuladô (2010)
e videográficas, e das narrações de textos que remetem à situação do leitor e do observador. Ao longo do percurso escolhido,
Uma das técnicas mais antigas e intensas de giro foi desen-
a obra oferece ao observador um diálogo entre as camadas de
volvida pelos dervixes, o giro sufi. As imagens dos giros sufis
imagem e de som, entre a imagem e a literatura e entre o visível
(que podem durar horas) me impressionaram por muito tempo.
e o dizível.
Os giros sufis são, como as mandalas (círculo mágico), uma for-
Em uma das opções, o observador pode entrar na sala de lei-
ma de conexão profunda do átomo nuclear da psique humana
tura da biblioteca, a princípio vazia, e ouvir a narração do texto
com o cosmos. Os poemas místicos cantados no Sama, junta-
A leitura silenciosa, escrito por Santo Agostinho no século V, em
mente com a música e o giro, criam no dervixe uma embriaguez
que o autor descreve a sua iração diante do ato da leitura
que gera uma sensação de esquecimento do eu e de imersão no
silenciosa do seu mestre, Santo Ambrósio, um maravilhoso espe-
divino. Os dervixes se deslocam no início com lentidão e fazem
táculo, símbolo da liberdade a ser alcançada pelo pensamento.
três vezes a volta na pista. Cada dervishe se volta para aquele
Ao associar a biblioteca a um espaço interior mental, a palavra
que está atrás dele e se inclina em uma saudação, antes de reto-
111
112
André Parente
narrativas sensoriais
mar suas circunvoluções. Depois da terceira volta, o mestre toma
ironia, o nome completo de Monk era: Thelonious Sphere Monk.
seu lugar no tapete e os dançarinos esperam. Então os cantores
É como se a experiência do giro, de anulação e de fragmentação
entoam seus cantos e, quando eles param, os dervixes, em um
esquizofrênico de Thelonious já estivesse, desde o início, inscrita
gesto grandioso, fazem cair seus mantos negros, desvelando suas
em seu próprio nome.
vestes brancas. Esse gesto simboliza a perda da ilusão, como se o
O Zoetrópio foi dos primeiros dispositivos de imagens em
envelope corporal desse lugar à ressurreição. De braços cruzados
movimento. Inventado em 1834 por William Horner, foi batizado
sobre o peito e mãos sobre os ombros, os dervixes começam a
“Daedalum” ou “roda do diabo”. Trata-se de um tambor contendo
girar lentamente em torno de seus eixos. Quando o giro atinge
ranhuras ou frestas que permitem ao espectador visualizar um
uma determinada velocidade, eles levantam os braços, a mão di-
conjunto de imagens em seu interior. Essas imagens formam uma
reita virada para o céu para recolher a graça divina, enquanto a
animação. Na época em que o Zoetrópio foi inventado as ima-
mão esquerda está voltada para a terra, de modo a fazer a graça
gens eram geralmente feitas a mão. Posteriormente, o Zoetrópio
divina descer sobre a terra. Ao o que eles giram em seus
se tornou um instrumento dos animadores, que podem utilizá-lo
próprios eixos, giram também ao redor da sala. Esse duplo giro
para testar o processo de intervalo-ação.
tem sua simbologia: o homem gira em torno de seu centro, seu
O projeto Circuladô (2004-2009) reúne imagens de arquivo de
coração, enquanto os astros giram em torno do sol. Esse simbo-
personagens que vivem situações limite: Thelonious Monk (Monk
lismo cósmico é o verdadeiro sentido do Sama: toda a criação
rodopia em torno de si mesmo, no palco, como se estivesse em
gira em torno de um centro. A dança não é apenas uma reza,
um surto psicótico); Édipo (no filme de Pasolini, Édipo rei, cada
ela é o símbolo do processo de superação de si em prol da união
vez que Édipo chega a uma encruzilhada, coloca a mão nos olhos,
suprema com o divino. Esse movimento intenso de “circumam-
gira e segue o caminho na direção em que ele parou, como uma
bulatio” está presente em outro momento jubilatório do islamis-
forma de não escolher o destino previsto pelo oráculo); Corisco
mo: o giro em torno da Meca.
(no filme de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do Sol, Corisco,
Foi quando, em 1989, assistimos ao documentário Thelonious
antes de cair morto, abre os braços e gira); Sufi (o giro sufi é uma
Monk, Straight no Chaser, que decidi realizar um trabalho com o
das técnicas mais antigas e vigorosas de giro e transe); Pomba Gira
Zoetrópio, tendo como tema principal o giro. As performances
(quando a Pomba Gira entra em transe, ela realiza seu giro). Cada
de Thelonious, com seu minimalismo errante, suas harmonias
Zoetrópio contém imagens de experiências limites (loucura, tran-
dissonantes e a indiscernibilidade entre melodia e harmonia, são
se, morte, destino) de personagens ao mesmo tempo singulares e
tão hipnóticas para quem as ouve com frequência quanto o giro
universais. Cada espectador poderá interagir com os Zoetrópios,
sufi. O que muitos não sabem é que Thelonious foi, pouco a pou-
imprimindo em cada um deles um ritmo para a imagem e o som.
co, mergulhando em um processo de esquizofrenia sem retorno.
A instalação tenciona fazer o espectador vivenciar uma imagem
Dos anos 1960 em diante, as crises de Thelonius se davam com
híbrida, entre o pré e o pós-cinema.
mais frequência, o que o levava a rodopiar como um pião. Por
113
114
André Parente
narrativas sensoriais
das imagens projetadas no espaço. O que me interessava, desde o começo, era criar um circulador no qual vemos personagens rodopiando, por meio do giro que os espectadores imprimem na manivela do dispositivo. As imagens e sons criariam ainda efeitos psicodélicos nas paredes da sala, de tal forma que o exterior dos aparelhos fosse complementado com um ambiente hipnótico. Enfim, trata-se de misturar, em um único trabalho, dispositivo e conceito, loops mentais e loops físicos, imagens de giro e dispositivos circulares, imagem em movimento e movimento do espectador. Ou seja, fazer desse trabalho uma ponte que conecta os dispositivos pré-cinematográficos aos dispositivos pós-cinematográficos, tendo como conteúdo e como forma a questão do giro e do corpo da imagem. Circuladô combina o pré e o pós-cinema, o cinema e a instalação, mídias novas e antigas, e sugere que os espectadores possam experimentar os poderes de hipnose e encantamento das imagens em movimento com seu corpo como um todo. Segundo Simone Osthoff, Existe uma certa atemporalidade nessas imagens de antigos ritos e tradições orais. Essas experiências extáticas são uma homenagem não só à história do cinema, mas também às experiências centradas no corpo do canibalismo, carnaval e fome Ilustração 3: Circuladô (montagem MIS, São Paulo, 2010)
que foram centrais aos movimentos brasileiros da Antropofagia, Neoconcretismo, Cinema Novo e Cinema Marginal. Em Circuladô, as manifestações do primal, do transitório e do efêmero estão
Circuladô, como a maior parte de meus projetos, uma vez
conectadas por meio da participação do espectador, radicalizada
conceituado, se atualiza em dispositivos imagéticos diferentes:
por Lygia Clark e Hélio Oititica na década de 1960. Oiticica certa
1) uma videoinstalação, em que vemos cinco telas com os perso-
vez adotou o êxtase do samba como um modo de transformar a
nagens e os sons correspondentes; 2) uma instalação com zoetró-
informação em conhecimento. Essas são algumas das experiên-
pios sonoros; 3) uma instalação interativa, em que o espectador,
cias circulares sugeridas por Circuladô, um título que adicional-
por meio de uma manivela, pode determinar a velocidade do giro
mente faz referência à cultura oral por meio da poesia de Haroldo
115
116
André Parente
narrativas sensoriais
de Campos e da música de Caetano Veloso, uma obra que é, em si
sica de Caetano Veloso, e os filmes citados na instalação, sintetiza
mesma, um tipo de giro cinemático, pois o compositor muitas ve-
as reverberações que o trabalho produz:
zes cria imagens em movimento com palavras, melodia e ritmo. (OSTHOFF, 2013)
Este tem sua identidade mais próxima com o movimento
Podemos dizer que o que liga as duas instalações em questão
de abandono do plano nas artes visuais e da agem ao gesto
é, por um lado, o fato de elas unirem o pré e o pós-cinema, ou
que, dimensão fundamental do trabalho de Hélio Oiticica, teve
seja, a lógica de dispositivos do século XIX que estão na origem
seu impulso traduzido, nos anos 1960-70, por um cinema de in-
do cinema, como o Zoetrópio (Circuladô) e o Panorama (Figuras na
venção cujo dispositivo – imagem em movimento projetada na
Paisagem), e por outro lado, interfaces digitais, que permitem a
tela – estabelecia os limites de seu experimentalismo, limites só
criação de um cinema interativo.
ultraados no espaço das instalações que inscrevem o corpo e
A arqueologia da percepção nos meus trabalhos, por conta
o gesto do espectador-usuário num dinamismo que compõe uma
de um retorno ao século XIX, importa para articular uma descon-
interação com as imagens que, indo além do olhar e da escuta, se
tinuidade do modo de ver da contemporaneidade em relação à
faz efetivamente tátil, sinestésico, campo de uma absorção que
visão moderna que se separou do corpo e fez ausentar o referente
não é de mesmo tipo que a vivida pelas figuras que vemos a rodar
para construir suas imagens abstratas. Nos tempos pós-modernos
na tela, mas pode gerar uma imersão que mostra a sua afinidade
o referente é considerado fundamental. Reconheço a importância
com as evoluções de um parangolé ou das viagens pelo espaço-
do corpo e do referente para a produção de minhas videoinsta-
tempo das Cosmococas. (XAVIER, 2013)
lações, mas não retorno à noção de visão como interioridade de um sujeito, submetido ao modelo da câmera obscura e suas pretensões à transparência e objetividade. A visão não verídica des-
Os Sonaciremas, um filme-dispositivo
tas instalações pertence a um corpo que interage com o espaço instalativo e se vê imerso na interioridade do tempo. Esse é um
Alguns cineastas pertencentes ao Situacionismo e ao
corpo não tem lugar fixo, como aquele da sala de cinema, mas
Letrismo radicalizaram certos aspectos relacionados ao disposi-
um corpo que se movendo pode relacionar-se com a imagem ex-
tivo, introduzidos pelo cinema estrutural (Holis Frampton, Paul
terna como sensações de seu corpo. Esse é um sujeito que começa
Sharits e Peter Kubelka) e pelas videoinstalações de circuito fe-
por interagir de maneira motora e termina descobrindo o tempo
chado (Bruce Nauman, Dan Graham e Peter Campus). Em vez de
virtual das imagens-tempo. (DA COSTA, 2010).
criar uma imagem puramente luminosa e gasosa – com efeitos
Em um belíssimo texto escrito para o catálogo da exposição
de flicagem muito rápidos que fazem a imagem cintilar até nos
Circuladô, Ismail Xavier, depois de comentar as múltiplas resso-
deixar num estado de transe sensorial –, eles criaram situações
nâncias que o trabalho estabelece entre os dispositivos de pré-
outras de frustração e / ou desocultamento do espetáculo cinema-
cinema e de transcinemas, a poesia de Haroldo de Campos, a mú-
tográfico. Em 1952, Guy Debord faz um filme chamado Hurlements
117
118
André Parente
narrativas sensoriais
en faveur, de Sade, em que vozes falam de forma monocórdica
Como num texto situacionista, em The ritual body among
enquanto vemos um filme sem imagens: a tela se ilumina apenas
Nacirema, Miner nos leva a repensar não apenas os limites entre
nos momentos em que há falas. Mas as falas são tão dispersas e
o “normal” e o “patológico”, mas, sobretudo, os próprios instru-
digressivas quanto as imagens. De Le film est déjà commencé? (1951)
mentos (dispositivos) utilizados para descrever os comportamen-
a Toujours à l’avant-garde de l’avant-garde jusqu’au paradis et au delá
tos culturais. Na verdade, o texto fala sobre a cultura ocidental
(1970), Maurice Lemaitre faz uma série de filmes e de sessões de
como se ela fosse uma cultura “primitiva”. É, sobretudo a obje-
cinema em que o espectador é solicitado a participar de várias
tividade da descrição dos nossos gestos do dia a dia que produz
formas, inclusive como parte do espaço em que é projetado o
a nossa cegueira quanto ao objeto do texto, como se ao olhar no
filme (ele pede que os espectadores vistam-se de branco). Todos
espetáculo especular desta “tribo de bárbaros que vieram do les-
estes projetos tinham em comum criar uma situação de desocul-
te” não nos reconhecêssemos.
tamento do dispositivo do cinema espetáculo. Neles, o cinema é, em grande parte, o próprio processo de experiência da obra.
O filme, um falso documentário, usa a tela de cinema para fazer “refletir”, literalmente, os espectadores, verdadeiros obje-
O filme Os Sonaciremas (1978), realizado por mim em 35mm,
tos do filme. Na verdade, o filme não possui imagens figurativas,
é um documentário experimental / conceitual sobre uma tribo
apenas pontas pretas e transparentes, além de transições realiza-
imaginária que se estende do Oiapoque ao Chuí. O som do filme
das por meio de fade-in e fade-out. Nele, não foram usadas câmara
é constituído por uma narração realizada por quatorze pessoas
nem moviola (mesa de montagem de cinema).
que leem o texto que descreve uma tribo obcecada pelos cuida-
O filme poderia ser comparado a uma tentativa de fazer uma
dos com o corpo. Este filme foi inspirado, sobretudo pelos vídeos
imagem que viesse a espelhar a condição do espectador, como se
conceituais dos pioneiros da videoarte, uma vez que neles, como
este apenas alucinasse da sua posição / condição no dispositivo
veremos mais adiante, a questão de um cinema do corpo é cru-
cinematográfico. Entretanto, o processo de ilusão que o cinema
cial. Mas também porque no momento em que fiz este filme eu
cria é tão forte, que o espectador não se reconhece nas imagens
desconhecia completamente o cinema dos letristas, dos situacio-
(sonoras) dele criadas.
nistas e do grupo Fluxus.
É assim que, para Jean-Louis Baudry, o dispositivo do cine-
O filme é baseado em The ritual body among Nacirema, texto do
ma – a projeção, a sala escura, a imobilidade do espectador – re-
antropólogo americano Horace Minner, publicado originalmente
encena a “Alegoria da caverna”, ao o que remete ao aparelho
em 1956 no American Anthropologist e que descreve uma tribo que
psíquico na medida em que, nele, o sujeito é uma ilusão produ-
vive na América do Norte e desenvolveu uma série de obsessões
zida a partir de um lugar. Por se encontrar no centro do mundo
em torno do corpo. Segundo Miner, as crenças e práticas mágicas
que é projetado, “o espectador se identifica menos com o que é
dos “Nacirema” (anagrama perfeito de “american”) apresentam as-
representado no espetáculo do que com o que produz o espetá-
pectos tão inusitados que descrevê-los pode nos permite discutir
culo: com o que não é visível, mas torna visível”. Trata-se, tanto
os extremos a que pode chegar o comportamento humano.
no cinema como na constituição do sujeito, de um sujeito trans-
119
120
André Parente
narrativas sensoriais
cendental, que se constitui por meio da ilusão de se encontrar no
constritivas levavam os espectadores a viver suas próprias presen-
centro e, estando no centro, se sentir como condição de possibi-
ças como sendo o ponto nodal da obra, uma experiência que de
lidade do que existe.
alguma forma confirmava a ideia, cara a Maurice Merleau-Ponty,
O filme Os Sonaciremas é ancorado na ideia de dispositivo, ou
de que “ver é ser visto”.
seja, de um cinema verdadeiramente estrutural. Como no dispo-
Os Sonaciremas – documentário experimental, um falso do-
sitivo de representação conhecido como campo / contracampo, o
cumentário, um filme sonoro processual – cria um processo de
dispositivo cinematográfico é, ao mesmo tempo, um conjunto de
frustração do espetáculo cinematográfico instituído, ao o que
relações no qual cada elemento se define por oposição aos outros
produz um desocultamento do dispositivo do cinema e do lugar
(presente / ausente), e no qual o espaço do ausente (imaginário) se
do espectador, colocando-se como uma instalação especular na
torna o lugar (é ele que torna visível) em que uma não presença
qual a experiência da obra é não apenas o centro, mas o especta-
se mistura, ou melhor, se sobrepõe a uma presença. O filme se dá
dor se torna espectador implicado que se vê como parte do filme.
como o canto das sereias, puramente virtual, a partir do qual o espectador, em contracampo, é convocado a imaginar o que seria essa cultura descrita, que é a sua própria, mas que ele, no entan-
Referências bibliográficas
to, não pode perceber porque ela está sempre a distância, como o
BELLOUR, Raymond. L’entre-images. Paris: Éd. de la Différence, 1990b.
lugar a ser percorrido.
BELLOUR, Raymond. L’entre-images 2. Paris: P.O.L., 2000.
Em uma versão mais recente do filme Os Sonaciremas, intitulado Cinema Movido, criamos um happening intitulado Cine-movido
DA COSTA, Luiz Claudio. Arqueologia da percepção. In: Parente, André e Maciel, Katia. Infinito Paysage. Buenos Aires: Fundacion Telefónica, 2010.
(happening-instalação realizado na Escola de Audiovisual de
DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
Fortaleza em 2007), envolvendo os espectadores. Enquanto o filme é projetado, há uma câmera de vídeo que capta a imagem dos espectadores vendo o filme, de costas. Essa imagem é projetada por um videoprojetor sobre a imagem do filme. Os espectadores levam um bom tempo para se dar conta de que a imagem projetada é a sua própria imagem captada em tempo real. A imagem resultante é uma imagem em espelho, infinita, uma vez que a imagem em vídeo é feita e projetada em tempo real, criando um jogo de espelho com planos infinitos. Esse tipo de situação nos faz pensar nos pioneiros da videoarte, como Peter Campus, Bruce Nauman e Dan Graham, que fizeram instalações nas quais o circuito fechado e as arquiteturas
DUGUET, Anne-Marie. Déjouer l’image. Créations électroniques et numériques. Nîmes: Éditions Jacqueline Chambon, 2002. CARVALHO, Victa. Figuras na Paisagem. In: Parente, André e Maciel, Katia. Infinito Paysage. Buenos Aires: Fundacion Telefónica, 2010. MINNER, Horace. Body ritual among Nacirema In: American Anthropologist, junho de 1956. OSTHOFF, Simone. Beside, beyond, inside out, and around: moving images as prepositions. In: Parente, André e Maciel, Katia. Dois. Rio de Janeiro: +2, 2013. PARENTE, André. Do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo. In: MACIEL, Kátia (Org). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007.
121
122
André Parente PARENTE, André. Cinema de vanguarda, cinema experimental, cinema do dispositivo. In: COCCHIARALE, Fernando. Filme de artista (1965-1980). Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008. PARENTE, André. Cinema em trânsito. Rio de Janeiro: Azougue, 2011. PARENTE, André. Cinemáticos. Rio de Janeiro: +2, 2013.
123
A questão da “forma-tela”: espaço, luz, narração, espectador. Philippe Dubois
XAVIER, Ismail. Corpos em rotação, o espírito lúdico-poético e suas reverberações. In: PARENTE, André. Circuladô. Rio de Janeiro: +2, 2013.
S
e a experiência da tela é, evidentemente, para todo espectador de cinema, um dos aspectos absolutamente centrais e essenciais da experiência cinematográfica, sobre a qual se escreveu
um número inacreditável de textos mais ou menos inspirados (a fascinação pelo tecido branco, a magia da aparição, o sagrado da imagem-luz, a hipnose psico-psíquica do dispositivo da projeção, a epifania do mistério da revelação do mundo através das telas, etc.), é conveniente também, considerar que esta última, a tela, ou mais exatamente o que chamarei, mais amplamente e mais conceitualmente, de “a forma-tela”, está longe, muito longe, de constituir a prerrogativa exclusiva do campo do cinema, mesmo que seja uma espécie de apoteose ou quintessência. Desde sempre, as telas existiram, qualquer coisa pode servir de tela, principalmente hoje com as ferramentas tecnológicas que nos circundam, elas proliferam sob diversas formas, às vezes mesmo fora do campo da projeção luminosa. A tela não é uma superfície, é antes, uma interface.
124
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
É essa questão ampliada da tela como forma de pensamento
(monocromático) como espaço. O espectador-visitante se encontra
que eu gostaria de explorar aqui, concentrando-me no trabalho de
diante (e dentro) dos espaços de luz-cor muito intensos, dos quais
artistas contemporâneos, sobretudo daqueles chamados “artistas
ele tem uma experiência perceptiva bastante física. Diante dele,
de instalação” que estabelecem relações mais ou menos afirma-
dentro das salas sempre isoladas, despojadas, limpas, onde ele
das com a tela do cinema como modelo de experiência original.
penetra, não há nada para “ver” a não ser a luz, muito sutilmente
Ao fazê-lo, o que me interessa precisamente são as maneiras (as
organizada, e especialmente um retângulo colorido, uma espécie
formas) pelas quais essa experiência sensorial da tela trabalha
de “tela de luz” sobre uma parede da sala onde ele é convida-
para deslocar nossa experiência do cinema para o campo da arte.
do a ficar. A palavra “ver” não convém realmente para descre-
Incluindo nossa experiência de narração de histórias.
ver a sensação fortíssima que causa esse sentimento de luz-cor. Existe uma dimensão háptica na relação do sujeito com a matéria
A sensação da tela: um espaço de luz
colorida que se recorta no espaço que ele “habita” (no sentido heideggeriano). Ademais, muito frequentemente o espectador é tentado a se aproximar, atraído pela luz que emana da tela, como
Para começar, e um pouco por provocação, por gosto pelo
uma borboleta noturna por uma lanterna, se aproximar porque
gesto radical, porque se trata de uma experiência sensível que
está intrigado, porque procura entender de que natureza é esse
é uma experiência da não-tela, ou da forma-tela como negati-
retângulo luminoso que irradia sobre a parede, esse azul mais
vidade, me reportarei, primeiramente, ao formidável trabalho
azul que aquele da sala em sua totalidade, esse vermelho mais in-
do artista plástico americano James Turrell, conhecido por seus
tenso que parece vir da tela para iluminar o espaço, o espectador
“skyspaces”. O trabalho de Turrell, sobretudo suas instalações
quer se aproximar porque, nesse mundo que não se sabe se é de
1
dos anos 2001-2006 (Gap, Spread, Wide Out, End Around, a série
luz ou de cor, ele é tomado por uma dúvida, e quer, então, tocar
Tiny Town, etc.),2 se apresenta para quem o descobre como uma
essa tela, tocá-la como São Tomás, para saber tanto quanto crer.
experiência mais contemplativa em torno da questão das cores
E a surpresa vem então lhe capturar: não existe tela diante dele,
1 A origem dos Skyspaces de Turrell vem da sua famosa experiência do Roden Crater em Arizona: ver, “do interior da cratera”, o céu como espaço de cor, de matéria luminosa enquadrada por um corte circular e se instalando diante dos nossos olhos e nosso espírito como uma sensação visual pura de luz-cor. Muitas outras obras serão em seguida construídas sobre cortes (naturais mas também arquitetônicos, em todo caso, sempre geométricos: circular, oval, quadrado, retangular), levando ao espaço do céu – lugar de emissão e reflexo de intensidades luminosas infinitamente variadas – tratado como matéria colorida. 2 Ver, entre outros, o livro de Georges DIDI-HUBERMAN, L’Homme qui marchait dans la couleur, Paris, Minuit, 2001.
nada de superfície material que brilha sobre a parede. Nada para tocar. Nada além de um vazio, um buraco na parede, como uma janela aberta. Essa tela que ele percebia como “física”, não é nada além de um retângulo sem matéria, feito unicamente de uma luminosidade intensa que vem de outra peça, situada do outro lado da parede e que ele não tinha percebido como uma segunda sala. Nada de parede, nada de tela, nada de palpável, somente um “vazio de luz” radiante, que enganou o olhar do sujeito. E, no entanto, a sensação de matéria luminosa é total, mais forte que
125
126
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
o conhecimento que temos do “vazio”. A percepção é bem física
Encontraremos, desta vez mais explicitamente, outro exem-
e o espectador não pode abandonar-se a ela. Tão logo realizada “a
plo de encenação da fascinação pura que a tela de cinema exerce
experiência do buraco” (ar a mão), o sujeito volta a se colocar
no belo trabalho fotográfico do japonês Hiroshi Sugimoto, conhe-
no centro da peça, a “boa” distância, aquela onde ele goza da sen-
cido pelo título genérico de Theaters. Podemos ver nas magníficas
sação de luz-cor, aquela onde o efeito da tela o fascina.
impressões, muito organizadas, grandes telas de cinema (telas
As experiências psíquico-perceptivas e fenomenológico-me-
no interior de suntuosas salas americanas dos anos 1930-1950,
tafísicas de Turrell jamais evocam explicitamente o dispositivo
frequentemente monumentais com suas decorações sofisticadas,
cinematográfico (não existe um objetivo analítico ou crítico em
e telas no exterior, nos drive ins ao ar livre, sobre um fundo de
seu trabalho). Mas me parece que elas são profundamente tra-
céu e de palmeiras). Todas essas telas (desta vez são verdadeiras
balhadas por esse tal “efeito cinema” (e não apenas como uma
telas de cinema e não metáforas conceituais) são inteiramente
metáfora). Parece-me que podemos dizer que para compreender
brancas, mas não por falta de imagem (porque nelas não teria
todo o “poder de sensação” das salas de Turrell, a referência à
sido projetado nada), mas ao contrário, brancas por um excesso
tela de cinema é quase necessária. Que outra “superfície pura” de
de imagens: elas não são simplesmente de cor branca, elas são “a
fato, exerce por ela-mesma (sem recorrer a uma imagem figurati-
luz branca”, um branco sólido, irradiante, muito branco. Elas são
va) uma tamanha força de atração sobre nossa percepção?
brancas porque foram, por assim dizer, branqueadas, queimadas pela luz do filme que foi projetado in extenso e que resultou em uma superexposição na imagem. A exposiçãode fotografias de Sugimoto, de fato, durou todo o tempo da projeção do filme na tela. O tempo de exposição fotográfica e a projeção do filme são deliberadamente associados, identificados, unidos em um gesto de pensamento que coloca em equivalênicia simbólica exposição e projeção. Em outras palavras, essas telas brancas “contêm” virtualmente todas as imagens do filme, acrescentadas, sobrepostas até que sejam apagadas, engolidas pela brancura brilhante do tempo de exposição esticado até o limite de duração de um filme inteiro. Todas as imagens acumuladas do filme resumem-se assim à falta de imagens visíveis na foto. E esses retratos invisíveis por excesso de imagens, essas telas deslumbrantes e vazias, tornam-se, em contrapartida, fontes de luz, e por reverberação, iluminam a sala, as filas de poltronas, a decoração ou iluminam
Hiroshi SUGIMOTO, série Theaters
os céus noturnos dos drive ins (a tela preta de nossas noites em
127
128
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
branco). Essas fotos, que se dão um tempo aberto, que apagam
(como se recebe um presente caído do céu, ou a extrema unção)
a figura fílmica em uma saturação de branco, que fazem da ex-
e que a “reflete” para o expectador na sala (a tela pensaria?) a
posição fotossensível um equivalente literal da projeção sobre
fim de fazê-la “aparecer” (ah! a magia, o êxtase da aparição…).
tela, que transformam as telas de recepção de imagem em uma
Cada um desses pontos, que nos parecem evidentes, pode ser,
fonte de luz para iluminar os lugares, essas fotos são puras figu-
na verdade, objeto de variações específicas. Podemos projetar
ras de tela como matéria luz. No prolongamento do trabalho de
sobre telas horizontais, sob o teto (como Pipilotti Rist, retomando
Anthony McCall sobre a projeção como “luz sólida”, as obras de
a tradição dos afrescos pintados sobre o teto da igreja San Stae
Turell e de Sugimoto desenvolvem bem a mesma ideia formal:
na Bienal de Veneza) ou, mais frequentemente, sobre o solo, o
o dispositivo da tela como espaço fenomenal da luz, ao mesmo
que dá um curioso efeito de achatamento e enquadramento (o
tempo irradiante e absorvente, que apaga tanto quanto faz sur-
filme Quad – i e II – de Samuel Beckett, por exemplo, deve ser
gir “a imagem”.
projetado no chão, e o grupo italiano Studio Azzurro se especia-
Para além desse trabalho quase fenomenológico sobre as te-
lizou neste tipo de projeção de imagem no chão). Podemos pro-
las de pura luz e sobre as sensações por assim dizer abstratas de
jetar sobre volumes, telas-objetos tridimensionais: sobre balões
toda figuração que daí decorrem, eu gostaria agora de me con-
brancos, bonecas, marionetes, manequins, como Tony Ourlser,
centrar mais sobre a “forma-tela”, enquanto objeto concreto e
sobre corpos vivos, nus ou vestidos, como se faz frequentemen-
material, de um lado (a física da tela) e enquanto objeto formatado
te em espetáculos de dança ou de teatro contemporâneos, sobre
e padronizado, de outro (os dispositivos da tela). Os artistas que
árvores, rochedos, fachadas, como Alain Fleischer, sobre a fu-
fizeram a esse respeito variações em torno ou com a figura da tela são extremamente numerosos e abriram possibilidades em todo tipo de direção, especialmente explorando as telas-objetos, as matérias e os formatos da tela.
A física da tela: objeto, matéria, formato. O que é de fato uma tela (“normal”, ou seja, de cinema)? Uma superfície (certamente), frequentemente de lona, opaca e branca (em princípio), de grande formato (pois toda projeção luminosa é uma amplificação, ela “gigantiza”), fixada verticalmente sobre uma parede (porque uma imagem de cinema deve ficar de pé, dizia Godard), que “recebe” a luz de um projetor
Anthony MC CALL, projection dans l’espace avec fumée
129
130
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
maça como Anthony McCall, sobre objetos de interior, livros,
gem ao mesmo tempo em que deixa ar outra, de tal forma
armários, camas, divãs, como Pipilotti Rist, sobre casas, prédios,
que quanto mais nos afastamos da fonte mais a imagem desva-
arquiteturas, ângulos, cantos e recantos, como os artistas de ma-
nece e cresce, até se dissolver perceptivelmente na última tela.
nifestos urbanos, etc. Entre a imagem projetada (a figuração) e o
E como existem duas projeções diametralmente inversas (um
objeto sobre o qual ela é projetada (o e que nem sempre
homem e uma mulher a cada vez, filmados de frente e andando
é “neutro” e pode por si só figurar algo), toda sorte de relações
em direção à câmera), o movimento de apagamento-expansão é
podem ser criadas. Em todo caso, tudo pode ser tela e podemos
compensado pelo seu inverso, um movimento de diminuição e
projetar sobre tudo, mesmo sobre nada (como Melick Ohanian
intensificação da outra imagem. Uma espécie de cross fading de
em Invisible Film). Ou sobre telas que não existem “plenamen-
telas pela projeção.
te”, como quando Alain Fleischer, na sua instalação E o vento
Isto tudo sem esquecer, evidentemente, o caso de telas que
levou, projeta uma imagem (um zoom no rosto de uma mulher
não refletiriam a luz (telas absorventes), ou que a refletiriam to-
filmada de frente) sobre as hélices de um ventilador girando
talmente (como espelhos). As projeções sobre espelho são quase
rapidamente: as hélices em si não formam uma tela completa,
um “gênero” em si. Um dos que trabalharam muito esta técnica
mas a velocidade de rotação e o efeito de persistência retiniana
é, uma vez mais, Alain Fleischer nas numerosas variações de dis-
dão em trompe l’œil a impressão de ver esse rosto integralmente
positivos reflexivos: Mar da China é uma tela-espelho colocada no
e continuamente, bem enquadrado, frontal e… com os cabelos
fundo de uma pequena bacia cheia de água (uma simples tigela
agitados pelo vento! Podemos naturalmente projetar também
usada na revelação de fotos) na qual evoluem peixes dourados.
sobre telas que são coloridas, amarelas, azuis, vermelhas, verdes
Um dispositivo, representando uma vista aérea fotográfica do
(todos os vjs sabem muito bem aproveitar essas cores nas oca-
mar, é projetado (obliquamente) exatamente sobre o recipiente,
siões musicais e festivas) e até mesmo pretas (podemos visuali-
logo, através da água (difração) e sobre o espelho do fundo, que
zar muito bem uma imagem projetada sobre uma tela preta).
reenvia essa imagem sobre a parede da frente. Nesse transporte
Podemos projetar sobre (e através) de telas transparentes (vitrais
de imagem, a imagem fixa do princípio se vê “acrescentada” dos
ou água, com as difrações ou as deformações ópticas que even-
movimentos reais da água através da qual ela a e da sombra
tualmente daí decorrem, como no trabalho sobre os fluidos do
dos peixes que vão e vêm na bacia, misturando para o especta-
artista coreano Kim Young-Jin). Ou ainda sobre telas translúcidas:
dor, na projeção-reflexão final, o gravado e o “ao vivo”, o móvel
por exemplo, a instalação de Bill Viola, The Veiling (1995), coloca
e o imóvel, o aéreo e o aquático, o acima e o abaixo, o pequeno
em jogo duas projeções de vídeo face a face e que são “filtradas”
e o grande, a cor e o preto e branco, a foto e o cinema, o verda-
por sete véus-telas intermediárias semitranslúcidas, suspensas
deiro e o falso, etc. Quebra gelo é outra instalação de Fleischer (em
paralelamente umas atrás das outras, de forma que a cada tela,
uma grande sala escura) com inúmeros fragmentos de espelhos
em cada lado (as duas faces – frente e verso – de cada tecido-tela
flutuantes, desta vez em uma bacia muito grande, sobre a qual
são tocadas pelas projeções opostas), retenha uma parte da ima-
são projetadas várias imagens de rostos ou de pinturas clássicas,
131
132
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
que não estão nunca visíveis por inteiro. Esses fragmentos de
a esse gigantismo.3 E mesmo se, com o tempo, as telas das salas
pintura ou de rostos são refletidos pelos espelhos sobre as pare-
de cinema encolheram bastante, como o público, essa grande-
des e o teto da sala e são animados pelos movimentos aleatórios
za da tela de cinema virou uma norma (relativa). O cinema não
dos espelhos flutuantes que reproduzem os movimentos de um
tem mais o monopólio da imagem projetada, então a questão do
navio (quebra-gelo, naturalmente) que flui em todas as direções
tamanho das telas onde podemos ver imagens em movimento
na bacia… etc.
se diversificou muito depois da televisão, especialmente nos mu-
Podemos ver com esses últimos exemplos, que os jogos de
seus ou em galerias de arte, mas também em nossas casas, no
tela são também, frequentemente, jogos de trompe l’oeil, jogos óp-
trabalho, nos escritórios, por todos os lados, nos cafés, restau-
ticos mais ou menos ilusionistas, armadilhas para a percepção,
rantes, aeroportos, aviões, carros, etc. Está claro hoje que, com
aos quais nós amamos nos abandonar, às vezes com todo conhe-
as novas tecnologias de tela, as obras de artistas contemporâne-
cimento de causa, pelo prazer de se saber enganado (o gozo está
os, com o uso mais geral, permanente e generalizado da imagem
na dissonância entre cognição e percepção). A tela é também uma
móvel, têm explorado os aspectos mais diferenciados destes jogos
superfície que esconde e mascara (não vemos o que está atrás),
de formato, do maior ao menor. Desde projeções sobre fachadas
um véu que “faz tela” (como na expressão “uma lembrança-te-
inteiras de prédios (como aquela, gigantesca, longamente filmada
la” em psicanálise). Pois essa superfície se interpôs em um fluxo
em Shangai, em um plano-sequência fixo, por Chantal Akerman
e porque ela interceptou um meio de transporte, ela tenta nos
em Tombée de nuit sur Shanghaï (2007) no filme coletivo L’Etat du
ultraar, nos fazer acreditar, por exemplo, que a superfície é
monde) até as telas miniaturizadas dos telefones celulares (na sua
profunda e a opacidade transparente (“uma janela aberta para o
exposição Voyage(s) en Utopie, Godard “mostrou” principalmente
mundo”), que o vazio está cheio, que a imobilidade é um movi-
filmes sobre telas de telefones celulares minúsculos pregados na
mento, que a imagem é real. Nunca esqueça que a tela, coração do dispositivo, esconde, corta, dissimula, desvia, retrai. Quanto aos formatos da tela, sabemos que o cinema habituou nosso imaginário perceptivo à fascinação hipnótica pelo “tamanho grande” de uma imagem na qual o espectador (mesmo se “a grandeza” em questão pode variar bastante) pode quase sempre, se instalar, habitar, imergir-se, afundar-se, perder-se, etc. Nada mais interessante do que o rosto em close de uma atriz sobre uma tela de 6 metros de altura e 12 metros de largura, que podemos observar de muito perto para perceber detalhes inacreditáveis – a famosa “fotogenia” de Epstein ou Delluc deve muito
3 Entre as numerosas citações possíveis de Jean Epstein sobre a fotogenia do close de rosto sobre a grande tela: “Bruscamente, a tela espalha um rosto e o drama, em um face a face, entra na minha intimidade e se infla de intensidades imprevistas. Hipnose. Agora a Tragédia é anatômica. O cenário do quinto ato é esse canto de bochecha que rasga seco o sorriso. A expectativa do resultado fibrilar para onde convergem 1000 metros de intriga me satisfaz mais do que o resto. O platisma prodromal corre sob a epiderme. As sombras se deslocam, tremem, hesitam. Algo se decide. Um vento de emoção ressalta a boca de nuvens. A orografia do rosto vacila. Abalos sísmicos. Rugas capilares procuram onde imputar a falha. Uma onda os leva. Crescendo. Um músculo se agita. O lábio é regado de tiques como uma cortina de teatro. Tudo é movimento, desequilíbrio, crise. A boca cede, como uma deiscência da fruta madura. Uma abertura lateral afunila no bisturi o órgão do sorriso. O close up é a alma do cinema…” (em Bonjour Cinéma, 1920, retomado no Ecrits sur le cinéma, tomo 1, Paris, ed.Séghers, 1974, p. 93.).
133
134
Philippe Dubois
parede) ando por todos os tamanhos intermediários possíveis (da “pequena” dos televisores e dos monitores de vídeo, bastante
narrativas sensoriais
A questão da multitela: em direção a uma lógica da “montagem espacializada”
variável, à retomada das projeções em vídeo nas ditas “telas grandes”, mas sempre menores que no cinema, apesar de Bill Viola,
Sabemos que o cinema é a tela única. Muito raras são as ex-
a lamentável corrida por centímetros das telas de plasma e LCD,
ceções a esta regra (a “tela tripla” de Abel Gance, e alguns outros
a miniaturalização relativa dos leitores de DVD e outras telas de
dispositivos experimentais). Desde mais de um século, todo o dis-
computadores portáteis, etc.). Podemos dizer que hoje não exis-
positivo clássico do cinema (a sala escura, o espectador sentado, a
te mais modelo dominante de formato de tela, que não somos
tela grande) é feito para isso – dar ao sujeito da experiência cinema-
mais “regulamentados” por referências estáveis no campo, que
tográfica a sensação do poder absoluto da imagem-única-que-bri-
amos alegremente, senão impunemente, de um formato a
lha-na-sua-caixa, qual um solitário. É o que Jean Epstein, desde os
outro – às vezes mesmo em uma mesma exposição (Voyages(s) en
anos 1920, tinha chamado de “efeito-funil” do cinema, definido
utopie, novamente, ou a manifestação La Nuit des images, coorde-
como “arte ciclópica”.4 Essa intensidade de concentração da tela,
nada por Alain Fleischer na abóboda de vidro do Grand Palais
própria do cinema, é uma realidade especificamente espacial do
em dezembro de 2008 e que reagrupava mais de 120 projeções
dispositivo. O que é preciso observar bem é que ela me parece
simultâneas de todos os meios e de todos os tamanhos de telas
não poder ser pensada sozinha, sem ser colocada em relação es-
combinados). A multiplicidade dos formatos e, mais geralmente
treita com a força e a complexidade do filme como imagem no
a multiplicação das telas, tornou-se por si só, uma nova norma, um
tempo. O poder da tela do cinema não é somente uma questão de
novo padrão, um “modelo” ao qual o espectador, ou o visitante
luz. Ela está acrescida do poder expressivo das formas temporais
de exposição (será necessário inventar um nome inédito para de-
da imagem. Pensar na força de uma (a imagem luminosa) não é
signar esse “personagem” novo da arte: o espectador-visitante) se
possível sem dar conta das forças da outra (a imagem temporal).
habituou muito rápido.
E a esse respeito, o cinema desenvolveu também, ao longo de sua
Esta nova norma, a “multitela”, merece ser analisada mais
história, um poder de invenção excepcional, da qual a montagem
seriamente. Ela é particularmente importante no sentido de que
(em todas as suas dimensões) é sem dúvida alguma a expressão
não diz respeito somente a um problema de tela (uma ou múl-
mais clara. A imagem de cinema é ao mesmo tempo única na
tiplas), mas que implica uma outra dimensão, mais complexa e mais profunda, da relação cinema / arte contemporânea, uma vez que nos encontramos dentro dos dispositivos de agenciamento (uma tópica, uma dinâmica, efeitos) e que isso toca no fundamental das trocas entre tempo e espaço. É a questão do espaço que é central e é por isso que me proponho a falar de “montagem espacializada”.
4 Jean EPSTEIN, “Não podemos fugir da íris. Ao redor, o negro; nada para prender a atenção. Arte ciclope. Arte monosentido. Retina iconóptica. Toda a vida e toda atenção estão no olho. O olho vê somente a tela. E sobre a tela existe somente um rosto, como um grande sol (…). Empacotados de negro, organizados nos alvéolos das cadeiras, dirigidos para a fonte da emoção pelo seu lado gelatina, as sensibilidades de toda a sala convergem, como em um funil, em direção ao filme. “Todo resto é barrado, excluído, vencido”. (in Bonjour Cinéma, 1920, retomado em Ecrits sur le cinéma, tomo 1, op. cit., p. 99).
135
136
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
sua presença espacial e também sempre múltipla na sua presença
do cinema tornou-se muito grande hoje e suas bases estruturam
temporal. É essa conjunção que faz sua força.
profundamente nossas formas de ver e de pensar “em imagens”,
Além disso, a videoinstalação e tudo que chamamos de “o
e às vezes, mesmo sem o nosso conhecimento. Damo-nos con-
cinema de exposição” cultivou pouco o princípio de unicidade
ta, por exemplo, de que ponto esse léxico construído sobre a in-
intensiva da imagem e, sabemos bem, desenvolveu preferencial-
tegração quase “natural” do saber das formas cinematográficas
mente o princípio da multiplicação das telas no espaço do museu:
contaminou até a “linguagem das exposições”? Ouvimos, com
várias imagens para se ver, ao mesmo tempo ou não, mais ou
frequência cada vez maior, curadores falarem da disposição das
menos na luz, sobre telas de tamanho mais ou menos reduzido,
obras não somente em termos de cenografia, de encenação e de
dispostas em um espaço segundo modalidades específicas, e o vi-
luz, mas também, de montagem, de construção, de sequência, de
sitante-espectador se desloca de uma para outra tela, segundo a
percurso narrativo, segundo uma lógica “linear”, ou “alternada”,
sua vontade e segundo os arranjos feitos pelo autor (e o curador
ou “paralela”, feita aqui de “close up” sobre tal artista ou quadro,
da exposição). A ideia de agenciamento espacial tomou a dian-
ali de um “campo / contracampo” entre dois autores, ou entre um
teira sobre a ideia de unicidade intensiva da imagem. A ques-
mestre e sua época, etc. – até mesmo o vocabulário do mundo da
tão geral, senão genérica, que me parece impor-se a partir daí
arte (clássica) é assim ocupado por um (involuntário) “efeito cine-
é: que relações podemos estabelecer entre essas duas formas de
ma”, frequentemente ligado à montagem.
dispositivos de apresentação de imagens (projeção / exposição)?
Agora, quando a gente se volta para certas obras de artistas
amos simplesmente do cinema de tela única na sala às insta-
contemporâneos, é impressionante ver até que ponto essas for-
lações multitelas dos museus? Ou existem modalidades mais su-
mas, regradas e estabelecidas nos nossos hábitos de percepção
tis, nos agenciamentos em particular (agenciamentos no tempo
e de compreensão dos filmes, puderam servir, de forma mais
vs. agenciamentos no espaço) que articulem os dois juntos? E o
consciente, de modelo de encenação para numerosas instala-
que está em jogo nessa agem?
ções de artistas no espaço do museu ou da galeria, inclusive para
Para abordar essa vasta problemática, podemos partir, por
a concepção mesmo de exposições contemporâneas onde pode-
exemplo, do cinema, ou desse tipo de dispositivo que chamamos
mos ver como a sua forma de aplicação está especificamente em
de as “formas fílmicas”, tal como aprendemos a nomeá-las no
dívida com esses procedimentos cinematográficos. Entretanto,
contexto de uma pretensa “linguagem cinematográfica”: o cam-
o que é importante perceber, é de que modo essas transferên-
po / contracampo, a elipse, a profundidade do campo, o raccord
cias de dispositivos formais tiveram que ser adaptadas para se-
de olhar e movimento, a montagem plástica ou rítmica, a monta-
rem eficazes. Quais são os parâmetros de adaptação? Sobre o
gem linear, alternada ou paralela, etc. Tudo que faz do filme esta
que exatamente a migração operou? O que isso revela da relação
“imagem temporal” da qual eu falava, que foi elaborada, traba-
cinema e arte contemporânea, entre dispositivo de projeção e
lhada, aperfeiçoada ao longo de toda história das formas cinema-
dispositivo de exposição? É aí que a questão da transição da ima-
tográficas. A sofisticação desta construção de imagem temporal
gem temporal única à multitela é particularmente interessante
137
138
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
e que a questão da montagem torna-se o fator de observação
mecânica, uma projeção simultânea sobre duas telas. Mas a dis-
mais pertinente.
posição de duas telas pode variar enormemente, como em um
Um dos princípios recorrentes nesse domínio é de fato a
exercício de estilo. É a colocação espacial das telas que se torna o
transposição das formas temporais do cinema (especialmente toda
operador de decisões de montagem e define a postura do especta-
dinâmica ligada à montagem) para a disposição espacial na exposi-
dor. Várias possibilidades são oferecidas ao montador espacial da
ção. Assim, podemos compreender a verdadeira fascinação dos
instalação. Ou (este é o díptico padrão) elas estão alinhadas lado a
artistas do pós-cinema pela figura da multitela como o lugar mes-
lado. Neste caso, o espectador pode ver integralmente todo o cam-
mo da operação da transferência do tempo para o espaço. A co-
po e todo o contracampo, juntos e simultaneamente, o que não
presença, segundo as disposições específicas de várias telas de
é possível no cinema (aqui, ou é um ou o outro). E, desde então, o
projeção na galeria, pode ser pensada como uma espécie de trans-
jogo díptico concentra-se muitas vezes na junção – mais ou menos
posição direta no espaço, das figuras de montagem (temporal) do
visível – entre as duas telas: ela representa o equivalente exato,
cinema. A multitela é assim muito frequentemente tratada como
no espaço, do raccord no filme (junção invisível ou marcada, espa-
uma forma de montagem espacializada. Os exemplos são inúmeros
çada ou mascarada, dissimulada como um trompe l’oeil, etc. – ver
e cultivam frequentemente a referência às formas e aos temas
Stan Douglas citado mais acima). Ou ambas as telas estão face a
cinematográficos típicos, constituindo, ao mesmo tempo, o to-
face. Neste caso, o espectador deve se virar para ar do campo
pos, os motivos de base e os padrões do cinema. O exemplo mais
ao contracampo, abandonando, portanto – mas dentro do espa-
simples, mais evidente e mais recorrente, é o do campo / contra-
ço – um dos dois campos: é o movimento do espectador que “faz o
campo. Numerosas são as instalações executando, por exemplo,
raccord”, mas é ele que escolhe o momento de mudar, não é o filme
cenas de refeições no restaurante, ou cenas do lar, ou momentos
que faz a escolha no seu lugar. Ou ainda, as duas telas estão costa a
de encontro, ou de declarações amorosas, ou de fuga, ou de luta,
costa. O campo e o contracampo funcionam então como a frente e
etc., entre dois protagonistas, que o hábito do cinema nos acostu-
o verso de uma mesma imagem “dupla face” e o espectador deve,
mou a ver através dos campos / contracampos, ou da montagem
aqui, “fazer a volta”, como se ele girasse em torno de um objeto
alternada, ou por edição de movimento, ou de encadeamento de
para ver o seu outro “lado” (o objeto sendo reduzido a uma super-
ângulos ou de gesto e mesmo cultivando as oscilações do eixo,
fície, como uma folha de papel). Michael Snow em sua peça Two
etc. Em Stan Douglas em particular (ver, por exemplo, sua insta-
Sides to Every Story (1974) soube jogar sutilmente com esse efeito
lação sobre duas telas Win, Place or Show de 1998), e também em
surpreendente, e também, de forma diferente, Bill Viola em The
Sam Taylor Wood, Steve Mc Queen, Doug Aitken, Pierre Huyghe,
Veiling (visto precedentemente). Ou ainda as telas são dispostas
Rainer Oldendorf, e muitos outros, (re)encontramos as telecenas
em ângulo reto, o ângulo entre elas reproduzindo então o ângulo
“cinematográficas”, porém instaladas espacialmente em disposi-
das tomadas de duas câmeras quando da filmagem da cena, para
tivos multitelas – com mais frequência, evidentemente, dípticos:
efeitos de posicionamento e de pontos de vista um pouco estra-
o campo / contracampo do cinema torna-se aí, de forma bastante
nhos, etc. Inútil detalhar demais. Diremos globalmente que o que
139
140
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
o filme distribui na sucessão de seus planos, a exposição coloca
Porque, é claro, não existem somente os dípticos. As insta-
em cena na simultaneidade espacial de suas telas, utilizando à
lações e os dispositivos multitelas do cinema de exposição va-
sua maneira todos os efeitos de “raccord”, quer dizer, montando
riaram os prazeres, quase ao infinito. Poderíamos nos divertir
no e pelo espaço em si (rimas visuais lado a lado, simetria face a
repertoriando todas as formas empregadas: existem os trípticos,
face, inversão lateral, costa a costa, frente e verso, reversão, etc.).
tão presentes quanto os dípticos que carregam com eles um mo-
Portanto, não é uma transição idêntica, termo a termo, mas uma
delo pictural cheio de sentido e de história (como a instalação de
reaproximação, ou melhor, uma (re)invenção da lógica da disposi-
Agnès Varda intitulada o Tríptico de Noirmoutier (2005) com suas
ção da montagem cinematográfica para a exposição e suas condi-
abas laterais resseláveis). Existem os quadrípticos como, por exem-
ções específicas de existência espacial das imagens.
plo, o da artista finlandesa Eija-Liisa Ahtila, com sua instalação
Isto sem esquecer que as imagens projetadas sobre disposi-
The Hour of Prayer (2005) cujos quatro painéis se distribuem em
tivos espaciais e multitelas das exposições contemporâneas não
quincôncio diante dos espectadores sentados (a quadriprojeção
deixam de ser, por isso, imagens temporais, e que elas não per-
dura 15 minutos), oferecendo uma vista em acordeom articulada
dem sua forma cinematográfica. Eu direi simplesmente que elas
como um biombo chinês favorecendo a leitura horizontal, tanto
são aumentadas de uma possibilidade de montagem suplementar
do espaço, como se os quatro painéis oferecessem uma imagem
no espaço da simultaneidade visual do multi-imagem. De certa
contínua muito larga (um panorama justamente, porém fragmen-
forma, estas imagens de instalação são obra de uma dupla mon-
tado), com imagens de paisagens, de florestas, de lagos, de monta-
tagem: uma montagem, que chamaremos primeira, de tipo cine-
nhas, de horizontes com neve (visão “unitária” das quatro telas,
matográfico clássico (jogando com a ordem temporal do filme)
mesmo que o espectador saiba que a imagem global é composta);
e uma montagem segunda, de tipo expositivo (jogando com a
quanto ao contrário, imagens explicitamente “montadas” como
ordem espacial da instalação multitela), as duas não se excluem
sequências de filmes, alternando planos de Nova York no inverno
em nada, mas podem (ao bel prazer das estratégias, às vezes, com-
filmados durante uma tempestade noturna na cidade com um
plexas, senão perversas, do artista) se combinar, se retomar, se
plano de uma jovem mulher loira na sua cama despertando de
modificar, se contradizer, cruzar e multiplicar a eficiência de seus
um pesadelo em seu hotel (lógica interior / exterior com efeito de
mecanismos. Isto não se dá sem pensar nas teorias da “montagem
simultaneidade), ou ainda, uma montagem mais rápida, sobre as
horizontal” (por oposição à “montagem vertical” normal do ci-
quatro telas, de planos diferentes mostrando de forma caleidoscó-
nema) invocadas por Abel Gance a respeito precisamente da sua
pica a agitação de uma cidade africana no Benin com o frenesi de
“polivisão” e de todos os mecanismos visuais que autorizavam aos seus olhos sua famosa tela tripla.5 5 “As fronteiras do tempo e do espaço desmoronam nas possibilidades de uma tela polimorfa que adiciona, divide ou multiplica as imagens…”, Abel GANCE, Départ vers la
polyvision, in Cahiers du cinéma, n°41, 1954. Ver também, para informações suplementares, o grande livro de referências de Roger ICART, Abel Gance ou le Prométhée foudroyé, Lausanne: L’Age d’homme, 1983. O estudo mais preciso é aquele de Jean-Jacques MEUSY, La polyvision, espoir oublié d’un cinéma nouveau, na revista 1895, n° 31, Abel Gance, nouveaux regards, sob a direção de Laurent VERAY, 2000, p. 153-211.
141
142
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
todos os meios de transporte, etc. O todo compõe uma espécie de narrativa (partindo de Nova York e de um pesadelo ligado a morte de um cachorro, seguimos a “heroína” nas suas atribulações, terminando em Benin, ando por paisagens da Finlândia, quase sempre acompanhada de uma voz off) porém em uma narração desestruturada ou aberta onde o espectador é convidado a recompor a sua própria montagem sem, portanto, se sentir perdido em um labirinto. As figuras combinadas do panorama (com suas variantes: o quincôncio, o biombo) e do caleidoscópio (a explosão, porém ordenada segundo as linhas de fuga) me parecem definir bem, formal e narrativamente, a montagem espacializada deste dispositivo sobre quatro telas. Aliás, com estas duas figuras (panorama, caleidoscópio), observamos um fenômeno interessante: a tentativa de repensar as formas de disposição e redinamizando as figuras espaciais de montagem bem conhecidas nos campos da história da arte, como por exemplo, as do quebra-cabeça, da colagem, do mosaico, do vitral, etc. (que têm cada uma sua lógica
Agnès Varda, Les veuves de Noirmoutier, 2005
específica que não se pode confundir). Seria interessante estudar as figuras e as formas da multitela neste sentido. Enfim, naturalmente, existem todos os tipos de polípticos que
que vão e vêm na praia de Noirmoutier. Em torno desta “praia”
se proliferaram (com 4, 5, 6, 10, 20 telas…) segundo disposições
central, 14 pequenas imagens dispostas regularmente como uma
“significantes” tão infinitamente variáveis quanto às possibilida-
moldura de telas que enquadram a grande. Sobre cada uma dessas
des combinatórias de suas montagens. Agnès Varda, desta vez em
14 pequenas telas, em close-up, cada uma das 14 viúvas é filmada
Les Veuves de Noirmoutier (2005), nos expõe uma espécie de retrato
em sua casa enquanto conta sua história (seu destino de viúva).
múltiplo de mulheres em um “quadro filmado” feito de 15 telas
Cada retrato dura alguns minutos. Diante da grande imagem, na
que exibe, multiplicando no espaço, esse retrato plural segundo
sala, Varda dispôs apenas 14 cadeiras, sobre as quais os espectado-
uma estratégia de implantação muito eficaz que leva em consi-
res são convidados a sentar. 14 fones de ouvidos estéreos são ins-
deração a temporalidade de cada “parte” do retrato e que dá con-
talados no encosto das 14 cadeiras. Cada um corresponde ao som
ta da escuta individual de cada espectador: no centro do quadro
de um dos retratos de viúvas contando sua história. Assim, cada
existe uma grande tela sobre a qual podemos ver um plano lar-
visitante da instalação pode escutar (solitariamente) a história de
go (e mudo) com as 14 viúvas de marinheiros, vestidas de preto,
uma mulher em particular. Mudando de cadeira, ele pode mudar
143
144
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
de história. As imagens são visíveis continuamente, todas juntas, mesmo se, segundo aquele que escuta, o olhar do espectador se fixa sobre aquela que ele ouve naquele momento. O dispositivo é astucioso e combina audiovisualmente, por um lado, uma construção de um conjunto de imagens, um “quadro plural”, articulado, feito de vinhetas separadas, mas que tem sua força de composição unitária (e que repousa sobre o fato de que podemos ver várias imagens ao mesmo tempo, mas não podemos escutar vários sons) e, por outro lado, a escuta individual contínua das entrevistas, que o espectador pode ligar e montar a seu critério. O todo oferece uma espécie de “retrato mosaico” de uma realidade humana que somente o dispositivo de exposição escolhido pode realizar. Exemplos como este de Varda são numerosos (podemos citar nesse mesmo “estilo” as instalações de cineastas, com encenações
Doug AITKEN, Altered Earth, installation Arles 2011
compostas de múltiplas telas de vídeo de Chantal Akerman feitas a partir de seus filmes Sud ou D’Est).6 Ao critério dos casos encontrados, as figuras espaciais recorrentes se desenharam pouco a
câmeras presentes no mesmo lugar e no mesmo momento, e é
pouco, em configurações simples ou complexas, mas reatualizan-
preciso “voltar”, às direções e aos lugares, todos muito diferentes,
do sempre as formas da montagem cinematográfica: disposições
sete minutos atrás em relação a este ponto do tempo para ter
em linha, horizontal ou vertical (como a bela instalação de Melick
as sete histórias que acompanhamos desde o começo sobre cada
Ohanian, Seven minutes before em 2008 que alinha impecavelmente
tela individualmente, sem desconfiar um só instante no come-
no escuro sete grandes telas umas ao lado das outras para uma
ço que elas estão em uma relação de sincronia – é uma variação
história poética singular construída sobre o princípio retroativo
espacial da montagem alternando narrativa com ponto de con-
de um evento único que serve de “ponto de sincronização” en-
vergência espaçotemporal final). Disposições frontais quadradas,
tre as telas, mas que descobrimos somente ao fim – o acidente
em círculo, em forma de quadro (acabamos de ver um exemplo
seguido de uma explosão entre uma camionete e uma moto em
com Varda). Disposições no espaço tridimensional, segundo orga-
uma estrada –; ele foi filmado sob um ângulo diferente pelas sete
nizações mais arquitetadas (ver as fascinantes e complexas instalações de Doug Aitken, por exemplo, como Electric Earth (1999),
6 Raymond BELLOUR se focou sobre as instalações de Chantal Akerman, especialmente em Sauver l’Image, in L’Entre-Images 2, Paris, P.O.L., 1999, pp. 70-73 (texto originalmente publicado na revista Trafic, n°17, inverno de 1996).
ou Interiors (2002), ou The Moment (2005)), e é claro, com seu monumental Sleepwalker no MoMA (2007), que todas efetuam, aqui também sob o nome de “sincronicidade”, tentativas de transposi-
145
146
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
ção espacial da lógica da montagem paralela, criando ligações abs-
campo das artes plásticas e mesmo da arte em geral, onde ela foi
tratas e formais entre personagens distintos, tomados, cada um,
frequentemente tida como secundária ou como parasita. Em todo
em suas “vidas reais”.
caso, como um “outro” (o outro da figuração, da imagem, do plás-
Todos os jogos são possíveis e a exploração da montagem
tico, do figural, etc.) Entretanto, desde os anos 1980 e a aparição
espacializada tornou-se rapidamente uma espécie de abismo ex-
do “efeito cinema” na arte contemporânea, esta questão da narra-
perimental onde se jogaram todos os artistas para quem “mostrar
tiva fez seu retorno claro e notável. Alguns artistas a colocaram de
é montar”, com o virtuosismo, a inteligência, a inventividade, e
forma frontal (Doug Aitken, por exemplo, ou Steve McQueen, ou
ainda mais interessante, porque eles se exercem a partir das for-
Mark Lewis, ou Pipilotti Rist, ou Eija-Liisa Ahtila, ou Janet Cardiff,
mas contínuas da montagem temporal do cinema, porém deslo-
e muitos outros ainda). Podemos, e como, contar uma história no
cados para dentro das novas modalidades da montagem espacial
(e pelo) espaço de uma instalação (até mesmo uma exposição in-
das quais (re)descobrimos virtudes específicas.
teira)? Sob que condições e formas a narração pode ser “exposta”? A multitela, que espacializa a sucessão de planos, pode ser um
A questão da narração e do percurso do espectador
ponto de partida, uma primeira resposta possível a esta questão, pois, organizando no espaço figuras de montagem, ela instala, ao menos potencialmente e quase sempre efetivamente, a narrativi-
Ao fim desta lógica se apresenta, naturalmente, a questão
dade no seu “desenvolvimento”… Mas não se trata simplesmente
da narração. A narratividade como termo, como horizonte da
de uma questão (local) de disposição de planos, ela está mais glo-
montagem espacializada. A narrativa é evidentemente uma das
balmente além da questão da montagem, é a questão do desenvolvi-
dimensões essenciais do cinema, que não parou de se posicionar
mento narrativo pela organização do conjunto do espaço.
em relação a ela e de (re) definir suas modalidades de funciona-
Portanto, o que se coloca aqui é a questão do espectador, a
mento. Questionamos (seriamente) se o cinema, mesmo o mais
eclosão e o cumprimento da história através dos seus desloca-
abstrato ou o mais formal, mesmo sem personagem, sem meio,
mentos. A narratividade espacial implica pensar a ação física do espec-
sem ação, poderia não ser “narrativo”, pelo simples fato de que
tador (seu percurso) como performance. Uma performance produtora
ele se desenvolva no tempo, de que ele tenha um começo e um
de significado narrativo. É o percurso do visitante que vai “contar
fim (toda consecução implica em uma consequência?), etc. Mesmo
a história”. Eis a nova imagem do sujeito destas instalações-ex-
minimamente, a narratividade parece indissociável do cinema.
posições: um espectador-montador transformado em um caminhan-
Em contrapartida, está longe de ser uma categoria tão central no
te-narrador, tudo em um só. A trajetória deste, indo de tela em
7
7 Por exemplo, quando Jean-François LYOTARD, em um artigo famoso, tenta definir um cinema experimental de puro gozo plástico, essa questão do “desligamento do narrativo” sobra um problema (L’acinéma, in Cinéma: théories, lectures, n° triple de la Revue d’Esthétique, Paris, Klincksieck, 1973, pp. 357-369)
tela, funcionaria como uma evolução plano a plano da história do filme. E isto tanto em relação à microestrutura (uma instalação, por exemplo) quanto à macroestrutura (a exposição em seu conjunto). Duas questões parecem surgir a partir daí: a questão
147
148
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
do percurso (quais são as figuras de percurso mais frequentes?) e
sociedade de consumo – um carrinho de supermercado abando-
a questão do andar em si (em que implica a ideia de andar como
nado em um estacionamento –, um universo desertificado, um
forma de contar? andar e olhar são compatíveis?).
homem, ele dança, olha, ocupa o plano, etc.). O espectador-ca-
Quais são as grandes formas de percurso que contam his-
minhante observa e “lê” as imagens, ele avança no espaço e tece
tórias? Podemos identificar modelos de trajetos organizados pe-
fios, constrói relações, pequenos pedaços, fragmentos de histó-
las instalações-exposições para inventar ou produzir a narração?
rias possíveis: um mundo moderno, o comércio urbano, dólar e
Eu diria que, de forma geral, os percursos se fazem à imagem das
coca cola, objetos medíocres, um corpo perdido, uma presença
narrações: da mesma forma que não encontramos mais narra-
viva, etc. Da sua compreensão progressiva, ele induz então uma
ções “simples”, os trajetos dos espectadores são raramente linea-
possível leitura crítica deste universo moderno e triste, desolador
res. Em geral, tratamos com formas claramente mais complexas,
tanto quanto desolado, de onde surge um corpo singular. A par-
frequentemente múltiplas ou fragmentadas, às vezes labirínticas.
tir desta trama que está longe de saturar todos os elementos de
Narrativa aberta, percurso aberto e vice versa. É o caso, para citar
percepção, cada visitante pode acrescentar ou incorporar dados
um primeiro exemplo ainda bem “simples”, da famosa instala-
mais singulares, propor suas próprias configurações a partir do
ção Electric Earth de Doug Aitken (1999): entramos ali (como em
que ele vê, inventar seus próprios ritmos em uma liberdade de
uma sala de cinema, ou um museu, ou um edifício) para imergir
movimento e de apreensão relativa, porém real. Avançamos nes-
em um universo de imagens (e de sons) projetadas, e seguir um
ta obra como em um ensaio moderno, a partir de balizas e de
percurso articulado em quatro espaços sucessivos no interior dos
uma rede de sinais que interpretamos. É a narratividade crítica,
quais estão dispostos oito grandes telas, que descobrimos paula-
aberta, moderna, reflexiva.
8
tinamente. Os encadeamentos de tela a tela se fazem “natural-
Abertas igualmente, porém de forma mais orientada, são as
mente”, quer dizer que depois de ter visto a primeira sequência,
instalações de Eija-Liisa Ahtila (Today / Tänään, 1996 ou Anne, Aki
somos “convidados” a ar para a segunda por ligações muito
& God, 1998) que mostra em várias telas justapostas (monitores
evidentes: uma pausa, um instante suspenso, uma diminuição do
e videoprojeções), às vezes integradas a ambientes simples (três
discurso, um olhar voltado para a sequência do percurso, uma
paredes, uma cama), as sequências com vários personagens ou
chamada da tela situada um pouco mais além, um corpo ou um
pessoas, sobre o status dos quais nos interrogamos (eles são reais
som que atrai, etc. Vemos nas telas imagens que fazem eco, que
ou fictícios?). Sua identidade diegética parece incerta (eles são pa-
entram em uma rede de sinais (a noite, a televisão, a cidade, a
rentes ou não, vários atores encarnam o mesmo personagem?). As vozes, muito presentes, são múltiplas, superpostas, e compre-
8 O “Mois de la Photo” de Montréal 2007, concebido e coordenado por Marie Fraser, foi inteiramente consagrado a esta questão e abordou de frente o problema a partir de exposições, de instalações e de obras de artistas muito variados. Ver o grande catálogo editado nesta ocasião: Marie FRASER (sob a direção de), Explorations narratives, Montréal, Mois de la photo, 2007.
endemos os diálogos multilíngues (e não traduzidos) somente de forma fragmentada. Os modos de narração são muito variados e mudam de formas (dialógicos, narrativos, voz off, cada um parece falar somente por si mesmo). As imagens dos personagens
149
150
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
(rostos, corpos) são combinadas com imagens de paisagens, de
radas para o espaço da exposição: entramos aqui neste tipo de
objetos, que parecem não ter uma relação imediata entre eles.
instalações não somente para ver (feitas de imagens projetadas
O todo parece se organizar em uma espécie de cadeia de sinais
sobre várias telas), mas para “morar” (no sentido heideggeriano
flutuantes, de significação enigmática, mesmo se pudermos apre-
da palavra: nós as habitamos tanto quanto elas nos habitam).
ender a temática geral (histórias de família, de luto, de drama,
Suburb Brain, por exemplo, (1999), representa, sob a forma de um
de melancolia, de sonho, de loucura) e se compreendermos bem
cenário “reduzido” (mas digno de um estúdio de cinema), uma
que, neste universo, são as emoções que predominam sobre a ar-
moradia de subúrbio comum, tal qual podemos ver justamente
ticulação narrativa. As instalações de Ahtila deixam o espectador
em muitos filmes. Este cenário recriado no espaço da galeria,
em situação de construir por ele mesmo os elementos interpreta-
onde o visitante-espectador pode ear livremente, como se o
tivos da sala. Trata-se de ficções experimentais onde as narrativas
espaço fosse real, funciona ao mesmo tempo como uma maque-
se cruzam e se misturam a serviço de sensações formais e temáti-
te de arquitetura, com todo um jogo de variação de tamanhos
cas em dispositivos topográficos de multiprojeções.
e de proporções, e como um espaço de projeção, com diversas
Da mesma forma, as instalações de Pipiloti Rist combinam
imagens de vídeos e de formatos muito variados (amplificando
múltiplas projeções em (e sobre) ambientes frequentemente
os efeitos de desproporção da maquete), projetadas um pouco
complexos, em particular de maquetes residenciais reconfigu-
por todo lado, sobre as paredes, sobre uma janela-tela, um trilho de cortina, ou compondo um luminoso, uma caixa fazendo ofício de compartimento, etc. Essas projeções múltiplas combinam imagens de paisagens, de formas abstratas, uma festa de família, de um texto escrito, o artista que se dirige à câmera, etc. A instalação no seu conjunto (maquete + projeções) oferece assim todo um mosaico de elementos que o espectador organiza à medida que ele deambula em um espaço ao mesmo tempo real e fictício, em uma espécie de caleidoscópio simultaneamente descritivo, intimista, narrativo e ideológico. As noções de absorção e de imersão por e dentro da imagem, ainda muito cinematográficas, na medida em que supõem o face a face, deslizam aqui em direção àquela da habitação total, dentro e pelo espaço: nós não estamos mais diante das imagens, evoluímos em um lugar, um cenário, uma maquete, uma galeria, um apartamento, uma casa, um museu, um jardim, uma cidade, uma paisagem,
Janet CARDIFF, Her Long Black Hair, audiowalk avec photos, 2004
um mundo onde as imagens estão lá, fazem parte dele, o ocu-
151
152
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
pam e o constituem ao mesmo tempo em que elas nos ocupam
humana ou animal em Marey ou Muybridge); do flâneur baude-
e nos constituem.
laire-benjaminiano, de agem, ao homem que andou na lua;
Várias outras instalações poderiam ser invocadas aqui
da travessia da Mancha (a nado) àquela do atlântico (em avião);
dentro da mesma perspectiva de uma reconfiguração da nar-
do funambulismo da arte ao “salto no vazio” de Yves Klein, etc., o
ração dentro e pelo espaço da exposição. Como diz muito bem
andar (e suas variantes) sempre foi ao mesmo tempo um gesto
Françoise Parfait,
de apropriação – do mundo (marcar seu território) e um gesto de exposição – de si, dos outros, do corpo, das máquinas, do Homem,
o modelo do percurso que o visitante realiza dentro da instala-
das imagens em si, da forma, do pensamento, da história – logo,
ção contemporânea é, atualmente, extremamente reconhecido
um gesto constitutivo, senão identitário. Eu ando logo sou. As declina-
como uma nova forma de construir narrativas, não importa quão
ções da figura são inúmeras e a maioria das obras “instauradoras”
delicadas ou quão maciças sejam elas, a imagem em movimento
está de uma maneira ou de outra ligada a essa questão do andar.
não condiciona mais a narrativa; as experiências propostas pelos
Poderíamos dizer que existem tantos andares possíveis (andar,
artistas integraram os objetivos cinematográficos no sentido “lar-
deambular, se apressar, errar, correr, desacelerar, saltar, cair,
go” do termo, e o espectador tornou-se o produtor destas novas
voar, nadar, galopar, rolar, escorrer, parar, descansar, etc.) quanto
representações imaginárias nas quais o cinema “se faz sozinho”,
tipos de narrativas (lentas, rápidas, curtas, longas, abertas, fecha-
não hesitando mais, ele mesmo, a convocar a história do cinema
das, cheia de acontecimentos, mais descritivas que dramáticas,
e suas figuras, “sua” história do cinema, suas lembranças e suas
se desenvolvendo em linha reta, em evolução cíclica, em abismo,
reminiscências, para alimentar o seu próprio script.
etc.). Que o andar seja associado, senão assimilado, à questão do
9
desenvolvimento de uma narrativa não é novidade em si. O léxico Resta então, se questionar sobre a própria ideia do andar, e
da narratividade em si nos induz a essa relação. Dizemos: seguir
sobre o ato que isto encobre que é bem físico e ver como podemos
uma história, percorrê-la ou atravessá-la, saltar uma agem,
correlacioná-lo com o ato (mais simbólico) de narrar. Podemos
mergulhar ou afundar em uma peripécia, sobrevoar um episódio,
ar assim de um para o outro? E em que se transforma o ato
e naturalmente “andar” quando somos envolvidos pela história
de observar propriamente dito (ver e escutar) nesta assimilação?
contada. A base dessa assimilação tão “natural” é que, no andar
O andar seria então o que articula a narração. Já conhecíamos a
como na narrativa, o tempo e o espaço “andam” juntos, levando
importância da figura do agrimensor, na história da invenção das
o sujeito.
artes (visuais) tanto quanto na história do pensamento: do “cami-
O que temos de novo com as experiências artísticas das quais
nho dos filósofos” (andar libera o espírito e faz pensar) às expe-
falamos é que este “andar” que invoca toda narrativa torna-se
riências fundadoras do cinema (ligadas ao registro da locomoção
efetivo, que ele não é mais um elemento de léxico, uma metáfora, mas uma ação concreta do espectador. O andar do espectador faz
9 Françoise PARFAIT, Video: un art contemporain, p.319.
às vezes, constitui a narrativa da qual ele é portador, quer dizer,
153
154
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
ele a executa fisicamente em um ato performático do qual seu
Estes são, de fato, os casos mais interessantes. O exemplo mais
corpo, seu olhar e seu espírito são o motor. Eu ando logo eu sou a
famoso a esse respeito encontramos no trabalho de Janet Cardiff
história (nos dois sentidos do verbo). No cinema, somente o ato de
(em colaboração com George Bures Miller),10 em todas as suas
percepção e cognição é constitutivo, o corpo está em hibernação
obras-ações efetuadas no contexto que ela chama de Audio- ou
(Christian Metz chamava isto de “estado de submotricidade e de
Video-Walks. São obras que implicam em uma verdadeira aborda-
sobrepercepção” do espectador). Na exposição, o corpo é ativado,
gem-ação do espectador, porque este, que deve realmente “an-
o espectador torna-se performer, um caminhante-narrador. Essa
dar”, às vezes para longe ou por muito tempo, se vê dotado, no
ação física é constitutiva e coloca à prova a dimensão simbólica
começo, de um equipamento de áudio e / ou vídeo (fones de ouvi-
da narração audiovisual. O ver e ouvir não podem ser totalmente
do com uma gravação sonora, um controle remoto, uma câmera
realizados senão através dos trajetos dos corpos que narram.
com uma tela de vídeo e som, eventualmente também material
Mas a relação entre essas duas dimensões, entre o ver-ouvir e
fotográfico, fotos impressas em papel). Munido deste equipamen-
o andar-narrar, não é sempre óbvia, e requer configurações, como
to gravado, ele se conecta com a informação disponível, escuta
em todo dispositivo, para ser eficaz. Assim, surge a questão: os
a trilha sonora, muito elaborada, recebe as mensagens e… se
trajetos do corpo ajudam ou ameaçam a qualidade e a intensida-
põe em rota seguindo as instruções. Sua trajetória está “escrita”,
de da visão e da escuta que o cinema sacralizou tanto? Em todo
ele deve realizá-la. Isto pode acontecer em todo tipo de lugares,
caso, entre o andar narrativo e a visão-audição, constatamos, apa-
tanto exteriores quanto interiores, cuidadosamente escolhidos e
rentemente, uma escansão, uma espécie de alternância entre os
“preparados” por Cardiff. Podem ser eios na cidade durante
momentos de avanços e paradas: o trajeto do caminhante-nar-
o dia, por exemplo, um trajeto dentro do Central Park em Nova
rador não é contínuo e sim feito de pausas, onde ele volta a ser
York em 2004, a procura de uma mulher enigmática de cabelos
espectador. Avançamos da primeira tela até a tela seguinte e ali
negros e longos. Você é guiado, acompanhado no seu caminho,
paramos para olhar, o tempo que quisermos, depois retomamos
ao mesmo tempo pela voz que você escuta nos fones de ouvido
nosso caminho até a etapa-imagem seguinte e assim por diante.
(não somente uma voz, todos os tipos de sons intervêm: barulhos
É o equivalente no espaço da intermitência na progressão do filme
ligados ao lugar, música gospel, canto, ópera, histórias que reme-
no cinema. O avanço do espectador, e logo da narrativa, é descon-
tem ao ado, imediato ou distante, histórico, etc.) e por uma
tínuo, se faz por etapas: quando olhamos, escutamos, não avança-
série de fotografias que lhe foram dadas, tiradas no parque, com
mos; quando andamos de um ponto a outro, não olhamos, não es-
a imagem, às vezes, da mulher de cabelos pretos vista sempre de
cutamos. A intermitência parece ser o dispositivo mais frequente.
costas. Cabe a você, durante os 46 minutos que duram a trilha
Ao menos em princípio. Porque existem casos que não
sonora que lhe acompanha em permanência, encontrar os luga-
respondem exatamente a esse dispositivo padrão, para quem o andar-narração e a visão-audição se fazem, devem se fazer, absolutamente ao mesmo tempo, porque elas são consubstanciais.
10 Encontraremos uma informação de primeira mão sobre Janet CARDIFF (completa e atualizada) em seu site: http: / / www.cardiffmiller.com / index.html
155
156
Philippe Dubois
narrativas sensoriais
res precisos onde as fotos foram tiradas, não se perder, deixar-se
deles como de um guia ao vivo (aliás, o jogo com os “audioguias”
levar pela narração, pelo ambiente, tentar entender, de achar a
do museu é um modelo importante para o trabalho de Cardiff).
pista, etc. (Her Long Black Hair, 2004 – audio-walk with photographs).
O jogo com o espaço e o jogo com o tempo (todos os dois ao mes-
Em outros casos, são eios em lugares fechados, espaços culturais, museus, bibliotecas. Por exemplo, a peça intitulada Ghost
mo tempo gravados e reais) e os efeitos muito elaborados de coincidência que se seguem são o coração do trabalho de Cardiff.
Machine (video-walk de 27 minutos realizado na Alemanha em 2005) se a no Teatro Hebbel em Berlim do qual Cardiff explora todos os espaços: não somente o palco e a sala, mas os bastidores, os
Referências bibliográficas
arcos, o subsolo, os corredores, as lojas, etc. O espectador é guiado
BELLOUR, Raymond. Sauver l’Image. In: L’Entre-Images 2, Paris, P.O.L., 1999
nas suas andanças e na geografia do teatro pela voz dos fones e
DIDI-HUBERMAN, Georges. L’Homme qui marchait dans la couleur, Paris, Minuit, 2001
pela pequena imagem de vídeo da tela da câmera que ele tem na mão, na qual reconhece os lugares (ele é então uma testemunha)
EPSTEIN, Jean. Bonjour Cinéma. 1920. In: Ecrits sur le cinéma, tomo 1, Paris, ed. Séghers, 1974, p. 93.
e na qual vê personagens representando uma ficção (nervosa e in-
FRASER, Marie (ed.). Explorations narratives, Montréal: Mois de la photo, 2007.
quietante, com suspense, agressão, desaparecimento, fantasmas, etc.) pela qual ele é levado, tornando-se ele mesmo, uma espécie de personagem da narrativa. Pois, obviamente, o jogo não é somente reconhecer os lugares (e os personagens) na imagem de vídeo, mas de se posicionar no lugar exato onde essas imagens de vídeo foram filmadas, para fazer coincidir o lugar visto e o lugar de onde o vemos, logo o presente (onde estamos fisicamente) e o ado (onde estava Cardiff quando ela gravou a imagem), e misturar, combinar os dois, especialmente em termos narrativos, brincando com os personagens do filme e os figurantes que intervêm no presente do espectador (jogo de aparição / desaparição, entre coisas que “colam” e outras que “não colam”, nós nos perdemos – e sempre a trilha sonora, muito rica, com efeitos de presença impressionantes, envolve o todo em uma tonalidade muito intensa). Enfim, com os audio- ou video-walks de Janett Cardiff, o andar do espectador-ator é literalmente constitutivo, performático da narratividade da obra. E as imagens e os sons não são etapas, pausas no trajeto porque o espectador os leva com ele e se serve
GANCE, Abel. Départ vers la polyvision. In: Cahiers du cinéma, n°41, 1954 ICART,Roger. Abel Gance ou le Prométhée foudroyé, Lausanne: L’Age d’homme, 1983 LYOTARD, Jean-François. L’acinéma. In: Cinéma: théories, lectures, n° triple de la Revue d’Esthétique, Paris, Klincksieck, 1973, pp. 357-369 MEUSY, Jean-Jacques. La polyvision, espoir oublié d’un cinéma nouveau. In: VERAY, Laurent. 1895, n° 31, Abel Gance, nouveaux regards, 2000, p. 153-211. PARFAIT, Françoise. Video: un art contemporain. s.l. : s.n., s.d.
157
158
Philippe Dubois
159
Suspense. Katia Maciel
I
ncerteza. Ansiedade. Suspensão. Estados possíveis do corpo quando sujeito a situações inesperadas. Suspense é também gênero cinematográfico.
Sinopse Mulher perdida no paraíso envia fotografias como pistas para a sua impossível localização. É um projeto que se modifica a cada exposição por incorporar, a cada vez, novos trabalhos. Como na origem do romance quando a cada dia uma parte da narrativa era revelada pelo autor, realizo um cinema em capítulos. A combinação entre as imagens implica no reconhecimento da máquina cinema, do fotograma à imagem em movimento, dos dispositivos do início do cinema às formas interativas contemporâneas. O espaço instalativo experimentado pelo espectador em seu percurso o conduz por momentos diferen-
160
Katia Maciel
narrativas sensoriais
ciados da história do cinema com suas diferentes estratégias de visualização. O olhar que encontra a palavra luz em movimento na caixa, não se confunde com o olhar especular da instalação Verso ou com aquele que assiste ao movimento pendular no vídeo Vulto. São situações que implicam o espectador de maneiras distintas nas imagens espacializadas. Há uma condição de suspensão, não apenas no corpo que vemos, mas também no corpo que participa. O corpo que vemos é feminino, mas anônimo, nunca vemos o rosto da personagem que acompanhamos no conjunto de trabalhos da exposição. A montagem da exposição Suspense relaciona a arte e o cinema em suas dimensões estéticas, conceituais e relacionais. A primeira exposição Suspense aconteceu na Galeria Zipper em São Paulo com os seguintes trabalhos:
1 cartazes
Os cartazes são divulgados progressivamente na internet e em revistas com o objetivo de gerar um estado de suspense em torno da exposição que investiga a questão do gênero cinematográfico como conceito deflagrador das obras em exposição. O processo de divulgação no circuito de arte integra e revela a estratégia da exposição.
161
162
Katia Maciel
narrativas sensoriais
2 vulto (videoinstalação)
Projeção de uma mulher pendurada em uma árvore em movimento pendular marcando a repetição do tempo. Estar de costas para o espectador é de alguma maneira estar de frente para a natureza. Estou atada por nós ao balanço do ar nas árvores que me sustentam. Em outros vídeos e instalações, como o Mareando, Ondas: Um dia de nuvens listradas vindas do mar ou Arvorar, ou a posição do espectador diante da imagem repete a mesma situação do vídeo, na minha presença ou ausência. A série de cartazes é fixada na exposição como uma narrati-
Implicar o espectador no que se vê é muitas vezes estrutural à
va visual em que cada cartaz estabelece uma relação precisa entre
obra, e isto não se deve apenas às circunstâncias que podem ser
o verso e a imagem.
interativas ou não, mas a própria construção da imagem e a sua disposição no espaço instalado. Sempre me senti observada pelas imagens fossem elas fixas ou em movimento, em pinturas,
163
164
Katia Maciel
narrativas sensoriais
fotografias ou filmes. Produzir imagens é retornar ao ver e ser visto, desviando e distorcendo esta operação sensível, simbólica e estética. Vulto é um modo de repetir o infinito no corpo. O vídeo em loop mostra o movimento pendular do meu próprio corpo suspenso, pendurado por um fio em uma árvore. A floresta e a névoa tornam a imagem mistério e suspense uma vez que não sabemos o que acontece; ao mesmo tempo em que esperamos que algo aconteça. Vulto é o acontecimento por vir, a imagem por vir. A condição da repetição na maioria dos meus trabalhos é de fazer o tempo resistir ao tempo, o loop nunca é uma figura anexa, mas a própria essência do trabalho poético que opera na imagem. Em Meio cheio, meio vazio entorno a água de uma jarra em um copo que permanece sempre pela metade. O instante é duração e o loop é, portanto, expressão, o que a e não a é fluxo. O paradoxo contido neste trabalho é o do tempo. Em Timeless mostro uma
3
ampulheta que verte a areia nas duas direções em um tempo que não a com o movimento. Variação e não variação na duração
verso (Instalação interativa)
e na repetição. Como duração a imagem se estende como um ins-
Um espelho colocado diante do jardim. A imagem do espe-
tante que permanece porque não a nunca, insiste. O registro
lho, capturada em tempo real, inclui o visitante que se vê com a
de uma ação em loop implica em ligar as bordas do tempo criando
imagem do jardim ao fundo. Esta imagem é projetada, também
um infinito presente. Mas a imagem não é puro efeito, ela é o
em tempo real, no verso do espelho que funciona como uma tela.
registro do que nela se pensa e o que se pensa é o que há na va-
Os espectadores assistem, do outro lado do espelho, à imagem do
riação que não varia, ou o que varia na não variação, no paradoxo
visitante enquanto ele se vê.
da ação e do sentido...
A experiência especular está na origem da invenção das imagens técnicas, do seu uso nas câmaras escuras as instalações de artistas como Dan Graham, muitos trabalhos operaram com seus efeitos. Nesta instalação há certo atravessamento da imagem, como se o que vemos fosse recuperado pelo próprio dispositivo da visão. Como em um filme de Suspense somos vistos, mas não vemos que somos vistos, não vemos a imagem que produzimos.
165
166
Katia Maciel
4
espreita e espera (duas fotografias) As duas fotos aludem a ações suspensas. Em Espreita a mulher está quase inteiramente atrás da árvore e forma uma figura orgânica com o tronco. Em Espera a mulher flutua fixa no ar. A presença das fotografias no conjunto da exposição Suspense remete ao uso das imagens fixas no processo cinematográfico, por um lado ao fotograma e por outro ao still. A relação entre as imagens no espaço contribuem para a ideia da fragmentação narrativa de um filme possível.
narrativas sensoriais
5
167
168
Katia Maciel
caixas de ver Dispositivos especulares no qual experimentamos dois poemas visuais. As duas caixas são objetos acionados pela participação do espectador. caixa de ar A caixa é de acrílico transparente e em seu interior vemos as letras A e R impressas em dois dados que se movimentam com o toque dos visitantes.
caixa de luz No interior de uma caixa espelhada suspensa vemos um dado com a palavra LUZ circular a partir do movimento criado pelo visitante ao deslocá-la. A situação especular dentro da caixa iluminada multiplica a palavra em um jogo ótico. Vemo-nos vendo no interior espelhado da caixa.
narrativas sensoriais
169
170
Katia Maciel
171
Duas ou três coisas que sei sobre ela
6
1
Eduardo de Jesus
suspense
Andei sem parar na névoa de árvores. Me perdi sem querer voltar. Segui meus os, Aos poucos, E de cima, Enxerguei um caminho. As folhas tremiam E o bater das asas me suspendeu uma vez mais. Preferi me fixar no balanço dos galhos, No movimento pendular Meu corpo expande os sentidos do tempo Perco o espaço. O que vejo e não vejo
N
ão é apenas pela beleza, que me refiro, no título desse ensaio, ao filme de Godard. Tampouco pela força e potência desse filme. Tomo o título para criar uma relação mais tê-
nue e sutil. Para Godard, “ela” era a personagem que se prosti-
Se apaga na ida e volta do meu peso.
tuía para dar conta de seus desejos frívolos, mas era também
Logo me solto do abrigo do tempo
a cidade de Paris e as intensas reconfigurações que sofreu em
Me encolho na terra
suas espacialidades na década de 1960. Para Godard o filme nos
Camuflando o que sinto.
mostra essa tensão:
O sol arrepia E sigo Longa e arredia Pelos vestígios do dia.
1 Esse texto é fruto dos meus atuais esforços de pesquisa e compila ideias, ainda iniciais, apresentadas em duas edições do SOCINE. Em 2012 no Seminário Temático Cinema e arte e vice-versa e em 2013 na mesa Cinema e animalidade: sobre as potências materiais e selvagens da imgem com coordenação de Erick Felinto. Nesse sentido, agradeço aos colegas do SOCINE que generosamente dialogaram comigo sobre esse tema. Sou grato a Antonio Fatorelli, Erick Felinto e Patrícia Moran que, mais diretamente, tornaram-se interlocutores e colaboradores das ideias sistematizadas nesse texto.
172
Eduardo de Jesus
(…) Porque Deux ou trois choses… é efetivamente a remodelagem
narrativas sensoriais
1. Sobre os aspectos históricos
da terra num dado momento. Era este o tema: a remodelagem da região parisiense num dado momento, que estava decidida, e no
Na história da arte mais recente, especialmente entre os anos
momento em se construía toda a infraestrutura das rodovias e das
1960 e os dias de hoje, é possível perceber vários hiatos – se pen-
entradas e saídas de Paris, como se fizera com Los Angeles há
sarmos nas múltiplas aproximações entre arte e imagem em mo-
quinze ou vinte anos. 2
vimento – no modo de associar fatos, obras e artistas. Pequenos intervalos que comprovam a eficiência de uma história oficial e
Desse traço revelado por Godard, aproveito a beleza sin-
totalizante, mostrando a assimetria de um jogo que atravessa a
gela do título do filme, que demonstra uma certa imprecisão e
vida social e os modos de percebermos a arte. Ironicamente esses
ambiguidade, para também falar do espaço, mas não da cidade
intervalos apontam, de alguma forma, para determinados desdo-
e sim dos modos como a produção audiovisual veio, aos pou-
bramentos que a produção artística acabou assumindo de modo
cos, territorializando e desterritorializando o espaço expositivo
central hoje em dia.
típico das artes plásticas. O gesto tem sido recorrente e objeto
É fácil perceber um intervalo bastante expressivo que fre-
de investigação, tanto na agem do cinema para a galeria
quentemente posiciona as vanguardas históricas como ponto de
quanto vice-versa, quando a galeria ou museu torna-se (ou abri-
partida e salta diretamente para a produção audiovisual contem-
ga) espaço de exibição das imagens em movimento. Além disso,
porânea. Quando vemos a imagem em movimento surgir de for-
pensar nessa situação como “duas ou três coisas que sei”, para
ma quase ubíqua no circuito da arte, especialmente a partir da
dar imprecisão, já que são muitos vetores, heranças históricas,
década de 1990, parece que o único ado ao qual ela remete,
sobreposições e linhas de força que configuram esse contexto,
para muitos, é o conjunto de filmes das vanguardas históricas.
que nos últimos tempos venho tateando. De um lado as imagens
É bastante comum que algumas práticas artísticas extremamente
em movimento habitando os espaços nas múltiplas e diversas
experimentais, ousadas e radicais das décadas de 1960 e 1970 que
expansões do cinema, e de outro, o ambiente da arte tomando
ocuparam galerias e museus – operadas tanto em torno do ci-
o cinema e as imagens em movimento, em toda sua comple-
nema quanto da imagem eletrônica – fiquem de fora de diver-
xidade, para tornar-se matéria prima para diversas obras. Não
sas abordagens históricas. Da mesma forma a produção artísti-
há certeza, são apenas “duas ou três coisas que eu sei” sobre
ca audiovisual, que se esgueirava pela margem do circuito mais
essa relação, ainda neste início de pesquisa, e que no futuro,
tradicional e visível, trazendo registros de performance, filmes
vão se expandir em uma reflexão mais densa, privilegiando a
de artistas, entre outras modalidades, seja desconhecida ou pior,
complexidade que domina essas agens entre o cinema e o
deslocada dos potentes efeitos e questões que disseminaram na
cubo branco.
produção artística contemporânea. Mesmo se pensarmos em circuitos absolutamente configura-
2 GODARD, 1990, pg. 243
dos e totalmente infiltrados na vida social, como o cinema, perce-
173
174
Eduardo de Jesus
narrativas sensoriais
bemos que ele frequentemente não é visto no campo arte como
imagens em movimento podemos ver que frequentemente elas
fundador de outras visualidades, de novas formas de relação da
assumem uma profusão de modos de ser, rompendo com catego-
imagem com a vida social e de imaginários que aram a cir-
rias e fronteiras, expandindo-se, muitas vezes de modo radical,
cular alterando a percepção, as formas de inserção no mundo e
pelo espaço expositivo. Quando olhamos para as obras de alguns
o encontro com outras temporalidades. Com isso afastam-se as
artistas elas nos remetem a uma nova dinâmica das imagens tan-
abordagens transversais que poderiam aproximar o cinema – e
to nos modos de fruição quanto nas formas de inserção no espaço
todas as novas formas visuais que ele inaugurou – da história da
expositivo rearticulando o circuito artístico e suas relações, até
arte. Ampliando essa ideia e tomando a televisão e seus múltiplos
então mais pacíficas,5 com a imagem em movimento. Tudo isso
circuitos (da tv propriamente dita, ao celular, internet e todos
nos conduz a novas questões e abordagens da arte que podem ser
os outros lugares onde é possível inserir uma pequena tela) os
importantes para refletirmos sobre a produção artística contem-
efeitos são igualmente intensos. As mídias do imediatismo, como
porânea, sob a luz de outros conceitos e noções.
afirma Fargier, inauguraram outras formas de relação com a arte.
Não se trata mais, como anteriormente, de um circuito de
Se observarmos, mais detidamente, é possível perceber que
imagens e algumas margens. Agora temos um processo muito
em muitos momentos, mesmo que de forma mais tímida e pontu-
dinâmico de intensa circulação simbólica em contextos sociais
al, a reflexão e a crítica de arte estabeleceram produtivos diálogos
altamente midiatizados. São diversos fluxos imagéticos que atra-
e encontros com a imagem em movimento, construindo um im-
vessam os diversos espaços que experimentamos hoje em dia.
portante conjunto de ideias que formam as bases sobre as quais
No contexto da arte as fronteiras distendem-se e tornam-se per-
construímos aproximações. Apesar da importância desse expres-
meáveis. Desterritorialização da imagem em movimento, terri-
sivo conjunto de reflexões e esforços, sabemos que os vazios na
torialização dos espaços expositivos com as mais diversas pro-
história permanecem e afetam fortemente a percepção das dinâ-
postas artísticas e seus blocos espaço-temporais. Trata-se de um
micas do circuito artístico atual. Pensando especificamente nas
conjunto de procedimentos e estratégias tomando as imagens,
3
4
3 Conferir FARGIER, Jean-Paul. Vídeo grátis. IN: Cadernos do Videobrasil / SESC SP – Associação cultural Videobrasil. Vol.3, n.3 (2007). São Paulo: Edições SESC SP. 4 Aqui podem constar os esforços de Aracy Amaral na Expoprojeção (1973), as produções de Frederico Morais no contexto dos “audiovisuais”, a produtiva inserção do vídeo no contexto das Bienais de SP (1981 e 1983) por Walter Zanini, assim como as profícuas reflexões de Arlindo Machado, em diversos livros. Podemos ainda nos lembrar de André Parente, com seus livros, especialmente Cinema em trânsito. Mais recentemente a presença de Phillipe Dubois no contexto brasileiro (com a curadoria da exposição O efeito cinema na arte contemporânea – CCBB, 2003, Rio de Janeiro), a exposição Cinema sim com curadoria de Roberto Moreira no Itaú Cultural em São Paulo (2008) com livro de textos organizado por Kátia Maciel, entre outros.
5 Enquanto estava confinada a áreas mais isoladas do espaço expositivo, ou como instalações (que operam seu próprio espaço-tempo), acreditamos que a imagem em movimento mantinha uma relação mais apaziguada com o circuito da arte. Parecia ainda operar de forma marginal, ainda não promovendo um rompimento mais profundo que só se dá quando as propostas extrapolam esse espaço definido e avançam para outras formas menos definidas de uso da imagem em movimento, provocando estranhamento e produtivas formas de aproximação. Nesse sentido uma peça fundamental é o Bloco de experiências – in Cosmococa (1973-1974) de Hélio Oiticica e Neville d´Almeida. Conferir CARNEIRO, Beatriz Scigliano. Cosmococa – Programa in Progress: Heterotopia de Guerra. In: BRAGA, Paula (org). Fios Soltos: a arte de Hélio Oiticica. São Paulo: editora Perspectiva, 2008.
175
176
Eduardo de Jesus
narrativas sensoriais
seus circuitos, desdobramentos, técnicas e referências históricas,
nos diversos filmes de Carlos Adriano e sua contemporânea ar-
entre outros, gerando uma nova constelação com outros arranjos
queologia visual (no sentido do arquivo, mas também da histó-
estéticos e novos modos de fruição, muitas vezes quase impossí-
ria do cinema) quanto na “escultura” Wilhelm Noack oHG (2009) de
veis de classificar.
Simon Starling, que nos mostra a própria engenhoca que nos exi-
A produção artística contemporânea é bastante instigante
be o filme, sendo fabricada. Surge o abandono de qualquer pos-
quando pensamos, por exemplo, nas formas de exibição das ima-
sível especificidade do e como em Coro Spezzato: The Future
gens em movimento que explicitam as tensões trazidas pela dura-
lasts one day (2009) de Rosa Barba que usa projetores de película
ção, uma contemplação distendida no tempo, como afirma Groys
que nos mostram textos ou mesmo Noites árabes (2005), o radi-
“o próprio ato de contemplação é colocado em loop” (GROYS, 2010,
cal filme perfurado de Rivane Neuenschwander. Valem ainda as
p. 127). Por caminhos menos óbvios, podem entrar nesse jogo des-
instalações e vídeos tomando quase literalmente a tv de Candice
de as mais tradicionais formas de exibição – do cinema ao single-
Breitz ou os documentários de Amar Kanwar, Fiona Tan ou Allora
channel – até outras construídas em torno do cubo branco ou preto.
& Calzadilla, apontando em outras direções para uma expansão
Apesar de parecer divertida a inversão entre cubo branco e preto,
complexa das imagens no espaço expositivo.
a agem também oferece um importante conjunto de questões. As formas de exibição atuais transcendem essas situações, mas ainda mantêm certo tensionamento histórico entre as exibições no
2. Um conjunto de obras, brevemente descritas
espaço expositivo e aquelas realizadas em circuitos cinematográficos6 ou televisivos. Talvez não apenas um jogo7 entre cubo branco
Ao apresentar um pequeno recorte de trabalhos a intenção
ou preto, mas uma profunda mudança nas formas de percepção e
é evidenciar a complexidade nos arranjos que artistas propõem
nos processos de subjetivação moldados nessas relações.
ao tomarem a imagem em movimento como matéria prima para
Não escapam desse jogo nem mesmo o cinema tradicional
suas obras. Tomamos três obras que, cada uma em sua singula-
que tanto pode tornar-se fonte para “re-produções”, quanto as-
ridade, possibilita esboçar, mesmo que em linhas ainda tênues,
sumir formas de inserção no circuito de exibição como no longa
modos de territorializar o espaço expositivo.
metragem Zidane: A 21st Century Portrait (2005) de Douglas Gordon
The Clock (2010) de Christian Marclay é um vertiginoso filme-
e Phillipe Parreno. Valem as inscrições da matéria fílmica tanto
colagem com duração de 24 horas produzido com trechos de centenas de filmes nos quais o tempo, na obtusa literalidade cronoló-
6 NASH, Mark. Entre o cinema e um lugar rígido: dilemas da imagem em movimento como pós-mídia. In: MACIEL, Kátia (org.). Cinema sim: narrativas e projeções: ensaios e reflexões. São Paulo: Itaú cultural, 2008. 7 Conferir: GROYS, Boris. On the Aesthetics of Video Installations. In: Stan Douglas: le Détroit (Basel: Kunsthalle Basel, 2001. GROYS, Boris. Politics of Installation. E-flux Journal, 01, 2009.
gica do relógio, é protagonista. Trata-se literalmente de fazer um relógio, como o título aponta, com cenas de filmes. Ao expor seu filme Marclay monta uma sala com confortáveis sofás dispostos de forma menos rigorosa que uma sala de cinema tradicional. Ten thousand waves de Isaac Julien (2010) assume o espaço expositivo,
177
178
Eduardo de Jesus
narrativas sensoriais
mas isolando-o e deixando-o escuro como a sala de cinema, mas
mo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte”.9
sem as cadeiras. Nesse espaço o artista nos mostra uma narrativa,
Com essa definição, a situação do espaço é tomada para criar um
que “entrelaça poeticamente histórias que ligam o presente ao
conceito bastante amplo que vem sendo empregado em diversos
ado milenar da China”, com imagens rigorosamente cons-
campos. Segundo Deleuze e Guattari, “todo agenciamento é, em
truídas dispostas em nove telas de modo a nos permitir caminhar
primeiro lugar, territorial. A primeira regra concreta dos agencia-
entre elas. Noites árabes (2008) de Rivane Neuenschwander são mil
mentos é descobrir a territorialidade que envolvem, pois sempre
e uma perfurações em um rolo de filme 16 mm. O filme é exibido,
há alguma”.10 Com essa definição, podemos perceber que a noção
frequentemente junto com outras obras, mostrando uma lua / luz
de território é mesmo ampla, já que os agenciamentos extrapo-
que oscila suavemente diante de nós. Não há imagem. Diante do
lam, e muito, o espaço físico, levando-nos a pensar que o con-
projetor 16 mm não nos sentamos e tampouco o espaço precisa estar
junto das relações sociais pode ser agenciado e, por conseguinte,
totalmente escuro. Tudo mais as claras, para tornar o espaço de exposição
pode também ser desterritorializado e reterritorializado, inclusi-
o território da duração, dando lugar a uma narrativa infinita como as mil
ve nossos modos de experimentar o mundo. Tomamos então es-
e uma noites da lenda de Sherazade, mas aqui se trata de maquinar ao
sas noções vindas da filosofia de Deleuze e Guattari para pensar-
extremo essa duração fazendo dela um loop.
mos como esses vetores de territorialização e desterritorialização
8
Esse pequeno conjunto de obras poderia ganhar mais corpo, já que são muitos os trabalhos que tomam a maleabilidade da
operam no espaço expositivo quando esse recebe as imagens em movimento. Como afirma Haesbaert:
imagem em movimento para desenvolver suas poéticas e formas de entrada no espaço expositivo. Vamos tomar as questões espa-
O conceito de território de Deleuze e Guattari ganha amplitude por-
ciais como eixo aglutinador das questões, dando um protagonis-
que ele diz respeito ao pensamento e ao desejo – desejo entendido
mo para as formas do lugar, para as agens, territorializações
sempre como uma força maquínica, ou seja, produtiva. Podemos
e desterritorializações ocorridas entre arte e cinema
nos territorializar em qualquer coisa, desde que este movimento de territorialização represente um conjunto integrado de agen-
3. Tentando definir o território, mesmo que de agem…
ciamentos maquínicos de corpos e agenciamentos coletivos de enunciação.11
Em suas reflexões, Gilles Deleuze e Félix Guattari afirmaram
Ora, o que vemos no espaço expositivo que se abre para rece-
que “não há território sem um vetor de saída do território, e não
ber as imagens em movimento é mesmo um forte agenciamento
há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mes9 DELEUZE apud HAESBAERT, 2004, p. 99 8 Conferir imagens e textos sobre o artista no site de sua exposição no Brasil em: http: / / www.videobrasil.org.br / isaacjulien /
10 DELEUZE e GUATTARI, 1987, p. 218 11 HAESBAERT, p. 127, 2004
179
180
Eduardo de Jesus
narrativas sensoriais
de corpos, que abandonam, de um modo geral, uma situação aco-
os pássaros, se bem que seja penetrada por um devir-pássaro. (…)
modada e estática, mais típica da tradicional sala de cinema, para
Há devires-animal na escrita, que não consistem em falar do seu cão
enfrentar o espaço e encontrar as imagens em situações outras
ou do seu gato. É antes um encontro entre dois reinos, um curto cir-
que convocam o corpo como um todo. Por outro lado, na mesma
cuito, uma captura de código em que cada um se desterritorializa.13
intensidade, os agenciamentos coletivos de enunciação operam no espaço, no modo de percebermos e nos ligarmos às imagens, como nos mostra Guatarri:
O que nos interessa na formulação do devir-animal é justamente esse entre, isso que não é “nem vespa e nem orquídea”14 no encontro entre dois reinos. Nas obras que mostramos aqui o que
o agenciamento coletivo de enunciação une os fluxos semióticos,
vemos é um território outro que não é nem só cinema e tampou-
os fluxos materiais e os fluxos sociais, muito aquém da retomada
co só arte, nem só o espaço expositivo e nem só o espaço-cinema
que pode fazer dele um corpus linguístico ou uma metalinguagem
ou o cinema de exposição. Territorializações e desterritorializa-
teórica.
ções que geram uma junção, uma forma intermediária. Sabendo
12
dos aspectos históricos da relação entre imagem em movimento O que vemos no espaço expositivo, para além da “contem-
e arte, podemos pensar em como essas obras articulam as forças
plação em loop” anunciada por Groys, é o surgimento de um ter-
do devir-animal que reconfigura ambos, tanto o domínio da arte
ritório que cria uma dinâmica nova provocando uma situação en-
de um lado, quando a imagem em movimento, vinda do cine-
tre territorialização e desterritorialização. Não seria tão simples
ma ou do vídeo, recriando potências e reconfigurando os espaços
pensarmos que o cinema se desterritorializa no cubo branco ou
e tempos.
que o cubo branco se territorializa com o cinema. Nada é tão di-
Julien com suas formas narrativas, num rigor quase griffithi-
reto ou óbvio assim, especialmente porque existe uma multiplici-
niano na decupagem e no uso das múltiplas telas, nos lança no
dade de modos de ser desses usos da imagem em movimento no
espaço para percorrermos, sem lugar, o espaço do filme. O espaço
espaço expositivo. Trata-se antes de mais nada de uma força do
torna-se em Ten Thousand waves uma situação de multiplicidade
devir-animal que gera um entre. Fazendo uma entrada nos concei-
narrativa instalada não mais no cubo branco, mas no escuro do
tos de Deleuze, vamos nos aproximar das noções desenvolvidas
cinema, do cubo preto para ali nos colocar de pé e a percorrer a
para o campo da literatura, comentando sobre a linguagem e a
narrativa, caminhando entre as telas. Sendo guiado por elas.
literatura – o ato de escrever. Para Deleuze:
The clock assume o tempo, elemento central do cinema, origem histórica por excelência da imagem cinematográfica, para
Há devires-animal na escrita, que não consistem em imitar o ani-
torná-lo signo operante de uma grande sala de estar, destituindo
mal, em “fazer de” animal, tal como a música de Mozart não imita 13 DELEUZE & PARNET, 2004, p. 59 12 GUATARRI, 1981, p. 178
14 Idem, p. 12
181
182
Eduardo de Jesus
narrativas sensoriais
a imagem em uma operação ousada e terrível, já que acaba por
do projetor de película 16 mm, mas não estamos em uma sala de
destruir o cinema para dali nos fazer pensar que as imagens são
cinema e sim em um espaço expositivo claro, com outras obras.
verdadeiros blocos de tempo, o relógio da sala de estar nos faz ver
Não nos sentamos ou tampouco nos colocamos diante da imagem
o tempo e não as imagens, mas em sua ausência, estamos sempre
em busca de seu fim. Aqui, a contemplação parece mesmo estar
nos lembrando delas, nos milhões de estilhaços de filmes, na esté-
em loop e o espaço torna-se um lugar da memória, da ausência de
tica “banco de dados”. Estamos confortavelmente sentados em so-
imagens, nos lembramos delas, mais uma vez, por não as vermos
fás, como numa grande sala de estar, olhando um grande relógio
mais. Somente a luz. Espaço que nos lembra o cinema, mas que
feito de fragmentos de filmes organizados na força do tempo cro-
dele traz apenas vestígios e fragmentos que nos colocam a pen-
nológico. Não é cinema, não é narrativo, mas apenas imagens que
sar: onde estão as imagens dessa lua? Já Issac Julien parece usar a
nos trazem o tempo, que observamos, de forma mais desatenta,
estrutura do cinema, na forma-imagem que assume, dando-nos a
como na sala de visitas. Se o espaço do cinema é totalmente cons-
multiplicidade da narrativa, mas agora totalmente disperso pelo
truído na força da atenção, nos retirando do mundo, para termos
espaço. O artista altera a estrutura do cinema, para que possamos
olhos somente para a grande tela que brilha diante de nós no es-
caminhar entre as diversas telas do espaço, dando novos sentidos
curo, em The Clock somente vemos as horas, de forma displicente
para as sequências narrativas.
15
e desatenta, como se estivéssemos na sala de estar de nossas casas
Cada uma das obras assume o espaço expositivo nesse entre,
e enquanto conversamos, percebemos de soslaio, o tempo ar.
território de agem e que se faz na força das dinâmicas de
Já Rivane Neuenschwander, ao perfurar o filme, sabota o dis-
territorialização e desterritorialização, espaço outro, heterotopia
positivo, com um gesto que se refere à literatura, são mil e um
por excelência que alavancada pelo devir-animal, cria esse outro
furos no filme para ganhar tempo. Uma lua sem imagem, e, sim,
território. Como diria Deleuze “o que é importante, não são as
a própria luz, a ausência da linguagem ou a reinvenção da lingua-
nuances, as filiações, mas as alianças ou as misturas; não são as
gem de dentro, como diria Deleuze, “ser bilíngue em sua própria
hereditariedades, as descendências, mas os contágios, as epide-
língua”, criar a gagueira. A ausência do que estruturaria o cine-
mias, os ventos”.16 Ora é aqui, entre territórios, que sopra o vento
ma, a imagem, nos é mostrado como luz. A mesma ausência, de
dessa agem entre os domínios do cinema e da arte, que surge
Marclay, reaparece aqui na obra de Rivane de forma ainda mais
essa territorialidade outra, que de uma só vez desterritorializa
radical. A luz vaza pela película, forma uma lua de pura luz, recor-
ambos os domínios.
te da película que forma esse buraco-imagem. O espaço que nos abriga explicita o dispositivo, já que vemos e ouvimos os ruídos Referências bibliográficas 15 Conferir: MUNSTERBERG, Hugo. A atenção. IN: XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983. CRARY, Jonathan. Techniques of the Observer: On Vision and Modernity in the 19th. Massachusetts: MIT Press, 1995
DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Diálogo. Lisboa: Relógio D´Água Editores, 2004.
16 DELEUZE & PARNET, 2004, p. 88
183
184
Eduardo de Jesus GODARD, Jean-Luc. Introdução a uma verdadeira história do cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1989. GROYS, Boris. Camaradas do tempo. In: Caderno SESC Videobrasil / SESC SP, Associação Cultural Videobrasil. São Paulo: Edições SESC SP: Associação Cultural Videobrasil, v. 6, n.6, 2010. GUATARI, Félix. Revolução molecular – pulsações políticas do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.
185
Imagem e mídia como forma de pensamento: narrativas múltiplas, cinema e banco de dados Priscila Arantes
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização – do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
A
o longo do século XX e XXI, com o início de uma nova etapa na história da cultura baseada na presença cada vez mais constante dos aparatos midiáticos e imagéticos, percebe-se o des-
pontar de uma série de pensadores que utilizam as mídias como ponto de partida para o desenvolvimento teórico. Para além de se pensar o dispositivo midiático como objeto técnico apenas, muito destes teóricos têm considerado as imagens midiáticas como conceitos articuladores de novas visões epistemológicas e ontológicas acerca do mundo.
O pensamento por montagens em Walter Benjamin Dentre os vários pensadores das mídias que despontaram no século ado, Walter Benjamin talvez tenha sido aquele cuja referência é inquestionável quando se discute as questões que peram a narrativa e o mundo das imagens.
186
Priscila Arantes
narrativas sensoriais
Diferentemente de Henri Bergson que incorpora a discussão
algo que parece não ter nem importância nem sentido, algo com
da imagem em movimento para desenvolver sua filosofia da du-
que a história oficial não sabe o que fazer. Ou ainda: o narrador e
ração, o filósofo frankfurtiano lança atenção para a montagem
o historiador devem transmitir o que a tradição, oficial ou domi-
cinematográfica como estratégia metodológica e conceito opera-
nante, justamente não quer recordar.
tivo para pensar nos novos formatos narrativos, diversos daqueles, lineares e hegemônicos, da história oficial.
Para Benjamin a teoria da memória descrita por Bergson em Matéria e Memória se dirige a um tipo de experiência que sofre
Especialmente dois ensaios são importantes, além do arti-
muitas mutações no decorrer do século XIX e XX. A experiência
go Sobre o conceito de história, para se entender estes novos forma-
deixa de ser a experiência autêntica da duração para se desenvol-
tos narrativos vislumbrados por Walter Benjamin: Experiência e
ver por meio de choques e interrupções. O choque é para a me-
pobreza, de 1933 e O narrador, escrito entre 1928 e 1935. Ambos
mória o que a reprodutibilidade é para a obra de arte: um agente
partem daquilo que Benjamin chama de perda ou de declínio da
transformador. Mas isto não quer dizer que Benjamin pregue o
experiência, isto é, da experiência no sentido forte e substancial
fim da memória e da história, mas que a pense sob outro ângulo:
do termo, que repousa sobre a possibilidade de uma tradição
a memória e a história não como duração, mas a memória e a
compartilhada por uma comunidade humana; tradição retomada
história em forma de choque.
e transformada, em cada geração, na continuidade (duração) de uma palavra transmitida de pai para filho.
É dentro deste contexto que Benjamin propõe a noção de montagem, tomando-a de empréstimo do cinema como método
A perda da experiência da duração acarreta outra perda:
estratégico para se pensar a escritura historiográfica, isto é, a
a das formas tradicionais de narrativa que têm sua fonte nesta
narrativa historiográfica. Dentro desta perspectiva história e mí-
memória comum e nesta transmissibilidade. Neste diagnós-
dia se confundem: a história é pensada como meio / mídia, como
tico, Benjamin reúne reflexões sobre a memória traumática,
uma espécie de colagem de tempos e memórias. Assim como o
sobre a experiência em forma de choque, conceitos-chave de
montador edita / corta / interrompe o continuum fílmico, o his-
sua análise sobre a lírica de Charles Baudelaire e das práti-
toriador re / escreve a história: implode o continuum da história da
cas surrealistas.
dominação e abre espaço para o tempo do agora e da revolução.
Em O narrador Benjamin formula outra exigência: além de
A historiografia para Benjamin deve, portanto, ser redesenhada
constatar o fim da narrativa tradicional, realizada por meio da
pelo trabalho da memória: fruto de uma re / escritura que produ-
transmissibilidade e da duração, esboça a ideia de outra narra-
ziria não a imitação / repetição de narrativas anteriores, mas a
ção: uma narração realizada a partir das ruínas da narrativa, uma
repetição diferente.
transmissão realizada por meio dos cacos de uma tradição em
O conceito de re / escritura surge em Benjamin, portanto, pela
migalhas. O narrador e o historiador, para Benjamin, não têm por
necessidade de resistir, de reatar possíveis laços com um ado
alvo recolher os grandes feitos. Devem muito mais apanhar tudo
arruinado pela violência e pela catástrofe. A historiografia é pen-
aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação,
sada como ensaio cinematográfico e a montagem é a base da his-
187
188
Priscila Arantes
toriografia benjaminiana; modelo para uma escritura e narrativa
narrativas sensoriais
Narrativa, cinema e banco de dados
descontínua da história. Importante sinalizar, dentro deste contexto e como apon-
Se o debate sobre a relação entre história, narrativa, ima-
tam alguns leitores de Walter Benjamin, que os procedimentos
gem e cinema é o ponto de partida de pensadores como Walter
de montagem sublinham o caráter de “obra aberta” da historio-
Benjamin, dentro do contexto do século XXI teóricos voltam sua
grafia e narrativa benjaminianas fazendo com que o leitor / nar-
atenção para os novos formatos narrativos advindos da relação
rador / historiador se torne coautor do texto, efetuando a monta-
com as mídias digitais.
gem por sua própria conta.
Em Teoria Narrada: projeção múltipla e narração múltipla (pas-
Não por acaso os filmes surrealistas são ótimos exemplos dos
sado e futuro), Peter Weibel (2005) discute as mudanças ocorri-
“novos” formatos narrativos vislumbrados por Benjamin; forma-
das no código cinematográfico a partir dos anos 1960, quando
tos que implodem, por meio da montagem em forma de choque
muitos cineastas começaram a realizar experimentos com a tela
e da utilização de antíteses, o continuum da narrativa / história.
explodindo-a e multiplicando-a. A utilização da projeção múl-
Lembremos das primeiras cenas de Um cão Andaluz – filme sur-
tipla – para além da projeção única predominante no cinema
realista realizado em 1928 com a colaboração de Luis Buñuel e
“tradicional” – representou, mais do que uma simples invasão
Salvador Dali – que faz um paralelo entre a imagem de uma lua
do espaço pela imagem visual, uma nova abordagem em relação
sendo atravessada por uma nuvem e um olho cortado por uma
à narrativa:
navalha. Nesta sequência fica evidente a ideia do “salto do tigre”, como diria Walter Benjamin, entre um plano e outro como recur-
Desde o início, a extensão da tela simples para muitas telas, da pro-
so da montagem em forma de choque. Dentro desta perspectiva
jeção única para projeções múltiplas não representou apenas uma
podemos lembrar ainda da sincronia temporal proposta na cena
expansão de horizontes visuais e uma intensificação avassaladora
que faz um paralelo entre a imagem da protagonista do filme e
da experiência visual. Ela sempre foi empregada a serviço de uma
a imagem do quadro A Rendeira (século XVII) do pintor holandês
nova abordagem da narração. Pela primeira vez, a resposta subje-
Johannes Vermeer. Ou ainda, da utilização, na cena do persona-
tiva ao mundo não era forçada em um estilo construído, falsamente
gem que anda de bicicleta, do recurso de sobreposição de ima-
objetivo, mas apresentada na mesma maneira difusa e fragmentá-
gens. Todas estas cenas são, de certa forma, estratégias operativas
ria em que foi experimentada1
que parecem romper com a ideia de narrativa linear, tradicional e homogênea.
Se os experimentos com projeções múltiplas são emprega-
A história e a narrativa benjaminiana não têm como concep-
dos em diálogo com uma nova abordagem da narrativa, podemos
ção, neste sentido, a ideia de um tempo homogêneo e linear, mas de
dizer o mesmo em relação ao cinema interativo em que a parti-
um tempo saturado de agoras, onde cada presente se comunica com os diferentes ados devido às suas similaridades “imagéticas”.
1 WIBEL apud LEÃO, 2005, p. 336
189
190
Priscila Arantes
narrativas sensoriais
cipação do observador modifica a narrativa fílmica. O observador
Nas ciências da computação, o banco de dados é definido como
realiza o “corte” de uma narrativa para outra; ao invés da narrati-
um conjunto estruturado de informações. Os dados armazenados
va única e linear, vários usuários têm a possibilidade de criar nar-
em um banco de dados são organizados para permitir uma busca
rativas múltiplas em tempo real. Não por acaso, Weibel relaciona
rápida e uma recuperação pelo computador e, portanto, é qualquer
este tipo de narrativa, múltipla, com o hipertexto:
coisa, menos uma simples coleção de itens. Seguindo a análise do historiador de arte Erwin Panofsky sobre a perspectiva linear
A linearidade e a cronologia como parâmetros clássicos da nar-
como uma ‘forma simbólica’ da era moderna, podemos dizer que
rativa caem vítimas de uma perspectiva múltipla projetada em
o banco de dados é a nova forma simbólica da era do computador
telas múltiplas. Abordagens assincrônicas, não-lineares, não cro-
(ou, como o filósofo Jean François Lyotard chamou em seu famoso
nológicas, aparentemente ilógicas, paralelas, narrativas múltiplas
livro A Condição Pós-moderna, de ‘sociedade informatizada’, uma
a partir de perspectivas múltiplas, são as metas. Esses proces-
nova forma de estruturar a experiência sobre nós mesmos e sobre
sos narrativos que compreendem um “enredo multiforme” foram
o mundo. De fato, se, após a morte de Deus (Nietzsche), o fim das
desenvolvidos em conexão com e orientados para as estruturas
grandes narrativas do Iluminismo (Lyotard), e com a chegada da
comunicativas rizomáticas como o hipertexto (…) A definição de
web (Tim Berners-Lee), o mundo nos aparece como uma coleção
Gilles Deleuze do rizoma como uma rede na qual todo ponto pode
interminável e não estruturada de imagens, textos e outros regis-
ser ligado a qualquer outro ponto é uma descrição precisa da co-
tros de dados.3
municação no ambiente de múltiplos usuários da rede mundial e os sistemas de imagem e texto alusivos e abertos derivados dela. Esses sistemas narrativos têm certo caráter algorítmico.
2
Onde o banco de dados se manifesta de forma mais proeminente é na internet. Uma página da web, estruturada originariamente em linguagem HTML, por exemplo, é formada por uma
Seria importante lembrar, dentro deste contexto, do pensa-
lista de elementos armazenados separadamente: textos, imagens
mento de Lev Manovich que sinaliza para a ideia de que a forma cultural predominante na contemporaneidade não é a narrativa, mas o banco de dados. Para Manovich, o cinema privilegia a narrativa como uma chave para a compreensão de uma forma cultural que expressa a modernidade; já o banco de dados seria a chave e forma cultural para o entendimento da contemporaneidade e da era informacional. Diz o autor:
2 Idem, p. 347
3 MANOVICH, 2001, p. 219. Tradução nossa. “In computer science, database is defined as a structured collection of data. The data stored in a database is organized for fast search and retrieval by a computer and therefore it is anything but a simple collection of items. (…) Following art historian Ervin Panofsky´s analysis of linear perspective as a ‘symbolic form’ of the modern age, we may even call database a new symbolic form of the computer age (or, as philosopher Jean François Lyotard called it in his famous book The Postmodern Condition, ‘computerized society’, a new way to structure our experience of ourselves and of the world. Indeed, if, after the death of God (Nietzsche), the end of grand Narratives of Enlightenment (Lyotard), and the arrival of the web (Tim BernersLee), the world appears to us as an endless and unstructured collection of images, texts, and other data records”.
191
192
Priscila Arantes
narrativas sensoriais
e links interligados para outras páginas de o. Por outro
por exemplo, no fato de que um banco de dados pode ser uma re-
lado, a natureza aberta da web – o fato de que as suas páginas
gião de construção de alternativas histórias.5
são “arquivos” que podem ser editados infinitamente por seus usuários – significa que os sites nunca estão “finalizados”: novas
Para Cristiane Paul o banco de dados – normalmente enten-
páginas ou links são sempre acrescentados aos que já existiam.
dido como um sistema de armazenamento de informação com-
Estas características, sinaliza Manovich, contribuem para a na-
putacional – é uma coleção de dados estruturados que mantém,
tureza antinarrativa que caracteriza a web: “Se novos elementos
de certa forma, a tradição dos “armazenadores” de dados como o
são adicionados ao longo do tempo, o resultado é uma coleção de
livro, a biblioteca ou o arquivo. O que distingue o banco de dados
dados, não uma história”.
computacional de seus predecessores é a possibilidade para a re-
4
A relação entre arquivo, banco de dados e narrativa é tam-
cuperação e filtragem dos dados de múltiplas formas. Por outro
bém o ponto de partida da coletânea Database Aesthetics: art in the
lado, e talvez mais importante, o banco de dados não é somente o
age ofinformation overflow organizada por Victoria Vesna (2007).
conjunto de materiais armazenados, mas também o sistema que
Dois artigos desta coletânea, especialmente Ocean, database, recut
guarda as informações de uma determinada forma:
de GrahameWeinbren e The database as system as a cultural form: anatomies of cultural narratives de Christiane Paul apontam para vi-
Entretanto, o banco de dados não se constitui somente como um
sões menos radicais daquelas desenvolvidas por Lev Manovich.
recipiente de dados. Um banco de dados é essencialmente um
Contrariamente a uma suposta incompatibilidade formal en-
sistema que compreende o hardware que armazena os dados, o
tre narrativa e banco de dados, os autores realizam o exercício
software que permite o alojamento dos dados no seu respectivo
de pensar em formatos narrativos realizados a partir do banco
recipiente para recuperar, filtrar, e alterá-los, assim como o usuário
de dados:
que adiciona um nível extra ao entendimento dos dados enquanto informação.6
Minha sugestão é a de que narrativa e banco de dados estão em categorias diferentes, portanto não caem na oposição binária à qual
A narrativa e o banco de dados não são, portanto, formas
Manovich afirma (…). Manovich atribui significado para O Homem
excludentes. Este é o caso dos jogos de computador, como bem
com uma Câmera discutindo o banco de dados, ou pelo menos, o reconhecimento deste no filme. Minha tese é que o banco de dados é repleto de possibilidades expressivas, ainda pouco exploradas –
4 Idem, p.221. Tradução minha. “If new elements are being added over time, the result is a collection, not a story”.
5 WEINBREN In VESNA, 2007, p.69. Tradução minha. “My suggestion is that narrative and database are in different categories, so they do not fall in to the binary opposition that Manovich asserts (…). Manovich attributes meaning to Man with a Movie Camera’s underlying database, or at least to the film’s acknowledgment of it. My thesis is that the database form abounds with such expressive possibilities, largely unexplored – for example, in the very fact that a database can be a region of alternative story constructs”. 6 PAUL In VESNA, 2007, p.96
193
194
Priscila Arantes
narrativas sensoriais
sinaliza Cristiane Paul, que são narrativas em que os seus compo-
MACHADO, Arlindo. Pré-Cinemas @ Pós-Cinemas. Campinas-SP: Papirus, 1997.
nentes estão organizados em um banco de dados. Uma narrativa
MANOVICH, Lev. The language of new media. MIT Press, 2001.
interativa pode ser entendida, dentro desta perspectiva, como a “somatória” das trajetórias possíveis presentes em um banco de dados. Assim como estes autores, acredito que nos parece menos interessante considerar a narrativa e o banco de dados como estratégias incompatíveis. O banco de dados nos permite repensar a narrativa única e linear, já que ele pode ser visto como um dispositivo que nos oferece a possibilidade de construirmos múltiplas narrativas.
Referências bibliográficas ARANTES, Priscila. Reescrituras da arte contemporânea: história, arquivo e mídia. Porto Alegre: Sulina, (prelo). _____. Arte e Mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo: Editora Senac, 2005. _____. Diálogos entre Vilém Flusser e Fred Forest. Disponível em: http: / / www.flusserstudies.net / pag / 08 / arantes-gestos-sociedade.pdf _____. (org.)Crossing [Travessias]. São Paulo: Imesp, 2010. _____. (org.) Livro / Acervo. São Paulo, Imesp, 2010. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. In: Obras escolhidas. ROUANET, Sérgio Paulo (trad.). vol.1, 6ª ed., São Paulo:Brasiliense, 1993. BERGSON, H. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999. _____. A Evolução Criadora.São Paulo: Martins Fontes, 2005. DELEUZE, G. Diferença e Repetição. São Paulo: Graal, 2005. _____. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990. FLUSSER, V. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. CARDOSO, Rafael (org). São Paulo: Cosac Naify, 2007. _____. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Hucitec, 1985.
VESNA, Victoria (org). Database Aesthetics. Minessota: University of Minessota Press, 2007. WEIBEL, Peter. The world as interface: toward the construction of contexto controlled event worls. In: DRUCKREY, Timothy. Electronix Culture: technology and visual representation. New York: Aperture, 1996. _____. Teoria Narrada: projeção múltipla e narração múltipla (ado e futuro). In: LEÃO, Lúcia. O Chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Editora Senac, 2005.
195
197
A repetição da diferença Jogos entre sons e imagens Patricia Moran
Introdução
E
ste artigo dá continuidade à leitura da repetição em performances audiovisuais ao vivo iniciada com Ana Carvalho, pesquisadora, performer e professora no Porto, Portugal.
Problematizamos a repetição de clipes e loops, como unidades discretas de continuidades e / ou rupturas de significados, velocidades, formas, ritmos e direções do movimento da imagem. Do inglês, o substantivo loop é laço, o verbo é enrolar. Pequenos clipes unidos formam loops, cujo início pode ser visível ou não. A repetição é recorrente na música, no cinema, no vídeo, tv e na poesia. Evidencia o tempo, explicita processos mnemônicos. A escuta e visão repetidas de imagens em movimento, movimentos de dança, frases e sonoridades em poemas e peças musicais suscita comparações entre os trechos vistos e ouvidos. A repetição das unidades sequenciadas no tempo, ou entremeadas por outras de natureza distinta, propicia a construção de novas relações. Pesquisas estéticas no campo da música, teorias literárias e de montagem cinematográfica levantam naturezas possíveis da repetição. A re-
198
Patricia Moran
narrativas sensoriais
petição material de trechos sonoros e visuais pode redundar na
A poesia, a dança e o teatro também se dão no tempo. A po-
diferença. As ondas sonoras espacializam o desenvolvimento de
esia, ao ser lida, revela, nas rimas e sonoridades, escalas de inten-
harmonias e melodias que continuam a reverberar mesmo após a
sidades e frequências. A dança encarnada nos corpos renova-se a
introdução de novo acorde. O novo acorde se sobrepõe ao anterior,
cada apresentação. No teatro, um ator pode se esquecer de uma
logo, é a ele diferente, pois tem mais uma camada sonora. Outros
fala. Na dança, um bailarino tropeçar, mas em mídias baseadas
instrumentos acrescidos ao acorde também contribuem para a
no tempo, como nomeado no inglês time-based media, o tempo ne-
constituição do mesmo diferente. Já na montagem cinematográ-
las impresso é materialidade. As formas e substâncias expressivas
fica, os intervalos e a reiteração de sentidos modificam sentidos.
são as mesmas sempre, mudamos nós que as vemos. A música
O tic tac do relógio é tempo, é marcação do fluxo temporal.
visual é exemplo máximo da marca temporal da imagem e som e
O tic tac em sua dimensão sonora: tic / tac; tic / tac; tic / tac, é cor-
de suas relações. Sem objeto, com baixo grau de indexicalidade,
po sonoro da repetição, na continuidade e ruptura espaço tem-
retorna a imagem ao que “ela realmente é, o movimento tempo-
poral. Tac ruptura de tic, tic de tac. Tic / tac unidade do mesmo a
ral de um ato de percepção, reencenado em situações clubber não
se repetir, o tempo a. Acontecimentos podem possibilitar a
apenas com os olhos, mas com o corpo todo” para Mathias Weib.
erupção do diferente, mas a ele o tempo é indiferente. Continua
Aproxima-se da música ao dar-se no tempo, ao expressar em sua
idêntico enquanto som, mas será o mesmo para quem ouve? A es-
extensão o tempo e simultaneamente criar temporalidades.
cuta do desenrolar mecânico do tempo ecoa no espaço, ouve-se o tempo no relógio analógico.
A inquietação criativa em torno da música e som remonta a experiências do Renascimento, quando cientistas-artistas já
As artes visuais como a pintura e a fotografia, imprimem
desenvolviam pesquisas sobre a teoria da cor, fonte de inovação
o tempo em superfícies que podem ser percorridas em distintas
artística radical na época.1 A pesquisa sobre música da cor (color
direções a cada nova mirada. Cada encontro com a tela pode reve-
music), ou seja, a busca de tradução material do som em cor é an-
lar texturas, combinações de cores, formas e movimentos, enfim,
terior ao cinema como projeção e aos es de fixação de ima-
relações antes não vistas. Determinadas situações ou cenas ga-
gens fixas ou em movimento. O cientista filósofo Isaac Newton
nham prevalência em relação a outras. O tempo instaura-se pelo
(1643-1727) supunha uma analogia entre o espectro da cor e a es-
olhar, espaço visual apreendido e controlado. O observador pode
cala musical. No século XVIII o matemático e padre jesuíta Louis
se deter no trabalho por mais ou menos tempo, permanece ob-
Bertrand Castell (1666-1757) inventou e construiu o instrumento
servando segundo sua necessidade, reinventa caminhos a serem
conhecido historicamente como o primeiro órgão de cores, ou
percorridos. Ao contrário, uma música ou formas audiovisuais,
como ele também denominou cravo ocular (clavecin oculaire).2
mesmo suscitando novas leituras a cada encontro, tem sua duração previamente definida pelo e no qual estão impressos, como o tic / tac escorrem, desenvolvem-se fora do controle do
1 BROUCHER, 2005, p. 70
observador, am.
2 Ibidem
199
200
Patricia Moran
narrativas sensoriais
Hoje encontramos uma profusão de experiências sonoro-
presentativo de performances pautadas no contato físico como
visuais plurais nas formas e relacionadas a tradições históricas
apelo. Radical, expõe o público a pulsantes triângulos, quadra-
e estéticas diversas. As plataformas digitais têm propiciado uma
dos, círculos, enfim, a figuras geométricas simples. Cintilantes,
profusão de experiências voltadas à criação simultânea de ima-
impedem a fixação pelo olhar, o que provoca desconforto, e como
gens e sons em diálogo ou contraponto. O crescimento da respos-
uma doença, ao lembrar pela dor de órgãos nem imaginados,
ta dos processadores viabiliza uma gama de experimentos antes
transforma o olhar. Olhos ouvindo, conectados ao estômago, são
apenas imaginados ou projetados no papel. Festivais de música
atingidos. O corpo atingido pela massa sonora e visual intermi-
visual, performances audiovisuais, live cinema e as festas com VJs,
tente reage sentindo-se desconfortável. O toque duro aproxima-
que despertam defesas e críticas apaixonadas, exploram relações
se do soco. Um espetáculo sobre o “ouver”. Contemporâneo na
sonorovisuais inventando tempos e espaços. Em comum nestas
afecção sem necessidade de dispositivo digital.
experiências, o papel secundário atribuído à figuração e à narratividade. Mesmo quando há iconografia indexical, ou seja, a captação de imagem por câmeras ou apropriação de imagens figurati-
O híbrido, do híbrido, do híbrido ad infinitum
vas, enredos são pano de fundo, se desenrolam por contiguidade e não a partir do desenvolvimento de ganchos narrativos ou de
Em reunião do grupo de pesquisa Meio do Caminho, pro-
personagens. O título eventualmente torna-se guia de tênue ca-
blematizava-se como recortar o campo de pesquisa em comum.
minho temático a ser perseguido, cabe ao público desenvolver,
Marcus Bastos lançou a hipótese da hibridização dos meios e
ou não, potenciais sentidos a serem extraídos não apenas das
poéticas, constituir híbridos dos híbridos, guardando particula-
imagens em si, mas de sua relação e dos movimentos e ritmos
ridades e recorrências poéticas. A imagem do rizoma que sem
nelas impressos pela performance ao vivo.
começo ou fim cresce horizontalmente gerando novos núcleos
Experiências contemporâneas valorizam o sensível, meta
é análoga ao híbrido do híbrido pensado por Bastos, pois o rizo-
expressões – e não digo narrativas, pois muitas vezes elas nem
ma “não se deixa reduzir nem ao uno nem ao múltiplo (…) não
chegam a se constituir. Destas valorizações de experiências mul-
tem começo nem fim, mas meio sempre, um meio pelo qual ele
tissensoriais e da afetação física, seja ela ocular, auditiva, olfativa,
cresce e transborda”.3 Os novos núcleos precisam ser enfrentados
tátil ou de propriocepção surgem novos problemas e experimen-
conceitualmente com ferramentas conceituais heterogêneas; e
tos. Da relação imageticosonora das performances audiovisuais
atravessando imagens e sons, uma investigação sobre a repetição
o lugar do espectador muda, o espaço e convívio com os demais
pode ser melhor trabalhada entre a música e o audiovisual.
presentes ao evento assume a primazia da proposta. Em uma épo-
A montagem não visa garantir um continuum espaço-tem-
ca de encontros a distância, a presença, o contato pela obra e
poral tendo em vista apagar o dispositivo cinematográfico pela
pelo público se inscreve nos trabalhos. Bruce MacClure mesmo utilizando projetores de cinema como matéria de projeção é re-
3 DELEUZE & GUATARRI, 1997, p. 31
201
202
Patricia Moran
narrativas sensoriais
transparência, modelo habilmente analisado por Ismail Xavier.
zados para gerar diferenças ou continuidade. Se a expressão “no-
Tampouco ferramentas do vídeo como coloca Philipe Dubois ao
vas mídias” está gasta e não representa o repertório audiovisual
analisar a sintaxe audiovisual e a montagem, que se dá pela relação
contemporâneo, responde ainda pela produção audiovisual em
das imagens numa mesma janela, propondo diferentes formas de
videogames, animações, machinimas, e nas performances audio-
espacialização, como a mixagem, a sobreimpressão e a incrusta-
visuais. Módulos como unidades a repetir o tic / tac. Não se trata
ção. A leitura de Dubois avança em relação à narrativa actancial ao
de diferença ou repetição, mas de pensar na estrutura do todo, na
contemplar outra articulação das imagens, mas pouco valoriza sua
qual a diferença se impõe à repetição, como nos games e pedaci-
temporalização. Na música visual criada a partir de plataformas
nhos de movimentos e ações apagando a repetição.
visuais, as agens entre fundo e forma e a emulação do eixo da perspectiva é fluído, todos os frames visualizados sem saltos. Há efetivamente movimento de criação espacial e afetação física, semelhante – como lembra Arlindo Machado – à primeira vídeo
Da descontinuidade e continuidade entre sonoro-visual experimentos de repetição
arte, a primeira imagem que sintetize “algo assim como padrões de estimulação retiniana muito semelhantes aos padrões rítmi-
A repetição, provocando continuidade e descontinuidade foi
cos da música, o que as aproxima fortemente daquela iconografia
escolhida como estratégia de análise numa tentativa de qualifi-
pulsante que Nam June Paik transformou em arte e expressão de
car as performances audiovisuais. Pela música, a adição de frases
uma nova sensibilidade contemporânea”. Arlindo Machado utili-
e notações ou a repetição de elementos produz novas leituras,
za a imagem da estimulação retiniana para qualificar como o vi-
como no loop através dos clipes que lhe compõe, ou seja, um
deoclipe nos afeta, novamente as relações entre imagem e som
loop traz em si a repetição do clipe. O potencial inventivo de qual-
convocando o corpo. Podemos inferir tratar-se de imagem ritmos,
quer clipe está na força geradora de diferença pela sua utilização
malgrado toda imagem se constituir de ritmos e constituir ritmos,
contínua. Esta força de gerar o novo resulta da possibilidade de
nestas experiências é sua proposta central, o ritmo não está a rebo-
contínua repetição e da combinação entre vários clipes. O loop é
que de qualquer outro imperativo, a não ser a própria evolução no
a repetição do clipe numa sequência de tempo linear. O loop é a
tempo, a criação de intensidades mais ou menos dilatadas.
unidade a partir da qual se estrutura a continuidade e diferença
4
Lev Manovich, e seu pioneiro e ainda instigante The language
através da repetição. Um loop pode ser percebido pela diferença
of New Media, ao destacar a modularidade como característica do
entre o início e o fim do clipe. Exemplo disso será uma melodia
que se chamava em 2000 novas mídias, deixa entrever a repe-
que se quebra, como arranhada em vinil riscado que repete o
tição material nos meios, estrutura as máquinas informáticas e
mesmo trecho. Mas também pode ser chamado de infinito, quan-
seus conteúdos organizados em pequenos blocos a serem utili-
do o início e fim se unem infinitamente em frente do espectador. As unidades se combinam evoluindo na repetição de pelo me-
4 MACHADO, s / d, p. 179
nos três estratégias: a continuidade, a ruptura e o erro. Analisaremos
203
204
Patricia Moran
narrativas sensoriais
a continuidade como produção da diferença, pois entendemos que
de ondas que se movimentam criando ruídos espelhados. Enquanto
a agem ou intervalo entre um clipe e outro, como o tic / tac
o loop acontece num movimento aparentemente circular e o pa-
renova sentidos e a experiência do ver-ouvir, fazendo do intervalo
drão está ligado ao plano, o descreve uma direção bilate-
agem ou momento de atenção para algo que virá, seja o outro,
ral de um movimento de vai-e-vem entre dois pontos, resultado de
o diferente, ou o mesmo. Mesmo modificado, o clipe repetido en-
um atraso entre emissão e recepção. O é repetição, mas,
contrar-se-á com expectativa potencialmente projetada, ao aconte-
tal como o eterno retorno em Nietzsche, não é o retorno ao mesmo.
cer irá se deparar e dialogar com imagens mentais. Se a imagem e
A origem altera-se constantemente para que se renove o ,
som são os mesmos a espera deles modifica quem vê pela espera
caso contrário entra em estado de saturação e se acaba.
e pela relação do mesmo estabelecida anteriormente. A sucessão
A segunda estratégia da repetição é a ruptura. Poderá ser
corrói a inocência visual de uma primeira vista. Já as notas musi-
uma quebra na continuidade, mas acontece também sem que a
cais se sobrepõem ao serem ouvidas, trazem em si a diferença, pois
continuidade seja quebrada, somente alterando-a. A ruptura pode
ainda carregam o final do como anterior. Projetadas no espaço
ser um momento de pausa ou de tensão, de mudança na sele-
se incorporam à imagem, não idêntica a si agora.
ção de arquivos imposta pela aceleração, desaceleração ou pela
As ocorrências da continuidade encontram-se no sentido, no
ausência. Relaciona-se à alteração de parâmetros de velocidade
movimento e na composição, seja em um destes aspectos ou em
da imagem, sendo a ruptura o intervalo entre dois momentos
todos. Um exemplo é quando o sentido se mantém na mudança
com potencialidade para gerar o novo na imagem e som, mas
da origem da repetição do mesmo elemento visual. Associada ao
também, como temos dito, pode dar-se também unicamente na
todo, a continuidade é constituída pelos padrões de velocidade,
percepção do espectador.
direção, forma e composição, cor e movimento. Há ainda conti-
A variação de intensidades é outro recurso a produzir na re-
nuidade no e na contínua ruptura. O padrão cria um
petição. Opera tanto como produtora de continuidade quanto de
ambiente ou paisagem alterada, geralmente abstrato e em mo-
ruptura. Pela diferença e na diferença, ou melhor, na heteroge-
vimento. Visualmente, a repetição do mesmo padrão tem a sua
neidade dos elementos utilizados, resulta repetição. A intensidade
forma mais usual no espelho – a imagem e o seu reflexo – como
relaciona-se ao “o nível de energia expressa ou modelada por um
caleidoscópio ao infinito. Através do padrão, a imagem assim que
sistema”5 sua finalidade é impregnar de expressão a composição
é reconhecida se dissolve em cor e formas, encontra-se aí um dos
da performance audiovisual. Na música, podemos apontar Edgar
paradoxos da repetição, a tendência de ser outra em algum aspec-
Varèse e John Cage como os primeiros exemplos de compositores
to gerando a diferença.
que utilizaram a intensidade nos seus trabalhos de composição
O é uma característica da tecnologia utilizada na
musical. Neste sentido, a imagem procura na música um ponto
composição do som e imagem. O é um erro que se repe-
de associação pela duplicação da intensidade. Um dos realizadores
te, uma disfunção utilizada como componente da criação estética. Correlato na música a microfonia, é resultado do circuito fechado
5 BUCKSBARG, 2008
205
206
Patricia Moran
narrativas sensoriais
brasileiros a explorar a intensidade de maneira mais sistemática
dos pelo padrão anterior, a repetição como redundância se esvai.
é Luiz Duva. Em Concerto para Laptop faz da intensidade o desen-
A repetição do padrão em si, mesmo quando notas atravessam as
volvimento da apresentação através de ataques de movimentos
imagens e se sobrepõem a novos sons, existe materialmente, mas
incompletos e violentos pela velocidade, se sobrepondo. Quadros
é na produção de relações em presença que se instaura a diferen-
brancos entre as unidades incompletas e sobre o movimento au-
ça e não a redundância.
mentam o choque visual, em consequência a intensidade. o a
O Festival VJ Torna é exemplar do desafio de habilidade técnica
o uma figura masculina, mal delineada visualmente, se esfa-
de produção de continuum visual a partir de estratos de imagens
cela na lama. O som a acompanha duplicando a intensidade.
descontínuas, da criação da diferença a partir do mesmo. É um
Até então priorizamos experiências nas quais a produção
desafio entre VJs pautado na maestria de unir clipes, para se criar
de sentido era secundária. Mas o olhar renovado através da ên-
ritmos e fazer da imagem um movimento em evolução visual.
fase na repetição pode gerar a produção de sentidos paralelos e
Extrapola as manifestações sociais correntes de festivais, é uma
agregar aos choques visuais e auditivos o do sentido. Como na
competição onde o melhor será eleito ao responder a desafios co-
poesia, se desloca sem lugar, indaga sobre origens e definições
locados pelo júri em presença, inventando e reinventando regras,
consolidadas no senso comum ou os valores da mídia. VJ Spetto
definindo clipes a serem utilizados no momento da apresentação.
ao utilizar ícones da cultura da informação, como personagens da
Haveria como se definir o melhor vj a partir destes parâmetros?
política retirados de programas televisivos e de fotos de notícias,
Dialogando com a música, a riqueza do desenvolvimento visual
dialoga reflexivamente com a nossa cultura, com o nosso tempo,
como acompanhamento ou contraponto em relação ao áudio en-
recontextualizando a informação e modificando-a pela repetição.
contra a potência e diferencial das apresentações. A produção de
Já não se trata de repetição do mesmo, mas da repetição como
formas e a espacialização da imagem não é o mais relevante, na
comentário da cena anterior. Há ainda a repetição como comen-
cadência, na produção rítmica pela repetição de pequenos loops, o
tário sobre o contexto original, à semelhança dos trabalhos de
andamento e a velocidade do como se instauram como jogos
Paik com televisões sobre a própria televisão.
de intensidade entre imagens e sons. Espécie de epifania, a ima-
Edward T. Cone ao analisar Polonesa de Chopin expõe a repe-
gem é vertida em ritmo, imagem como performance, como desen-
tição de AABABA, e de ABA como paradigmas da impossibilidade da
rolar de formas repetidas ou não, afirmando a diferença no desen-
repetição na música. O primeiro exemplo é precedido de silêncio
volvimento de relações no som, na imagem, entre som e imagem.
e seguido de sua repetição, o segundo é precedido do primeiro e seguido por B, e o terceiro é agora procedido e seguido por B. Sua colocação é que cada uma das declarações é impregnada por sua
Referências bibliográficas
posição, ou seja, pela notação precedente e posterior. No encon-
BROUCHER, Kerry; STRICK, Jeremy; WISEMAN, Ari; ZILCZER, Judith (orgs). Visual Music. Synaesthesia in Art and Music since 1900. Los Angeles: Thames & Hudson, 2005.
tro da repetição como estrutura em continuidade pausada por intervalos, como retorno de cenas, sons e movimentos modifica-
207
208
Patricia Moran BUCSBARG, Andrew. VJing and Live A / V Practices. In: VJTheory.net, 2008. http: / / www.vjtheory.net / web_texts / text_bucksbarg.htm. ado em 20 mai 2011. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 2ª ed. São Paulo: Graal, 2006. _____ & Guatarri, Félix. Mil Platôs. São Paulo: Ed. 34, 1997. DUBOIS, Philippe. Godard, Cinema, Vídeo. São Paulo: CosacNaify, 2004. EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1990. EPSTEIN, Jean. La inteligência de una máquina. Buenos Aires: Ediciones Nueva Vision, 1960. KIVY, Peter. The Fine Art of Repetition. Essays in the Philosophy of Music. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. LUND, Cornelia & Holger (ed). Audio.Visual – On Visual Music and Related Media. Sttutgart: Arnoldsche Art Publishers, 2009. MACHADO, Arlindo. Reinvenção do videoclipe, p.173 / 196. In: A televisão Levada a sério. SP: editora Senac. MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Cambridge, Massachusetts: MIT press, 2001. _____. Spatial Montage, Spatial Imaging, and the Archelogy of Windows. A Responce to Marc Lafia, 2002. Distribuído na lista www.rhizome.org em set 2013. WIEB, Mattias. Images of performances. Images as performances. In: LUND, Cornelia & Holger (ed). Audio.Visual – On Visual Music and Related Media. Sttutgart: Arnoldsche Art Publishers, 2009.
209
A imagem-excesso, a imagem-fóssil, a imagem-dissenso: três propostas cinematográficas para a experiência da Ditadura no Brasil Andréa França e Patricia Machado “Elena, sonhei com você essa noite. Você era suave, andava pelas ruas de Nova York com uma blusa de seda. Procuro chegar perto (…). Mas, quando vejo, você está em cima de um muro, enroscada num emaranhado de fios elétricos. Olho de novo e vejo que sou eu que estou em cima do muro. Mexo nos fios buscando tomar um choque. E caio. E morro.”
Petra Costa, Elena, 2013.
U
ma cineasta retoma delicadamente os fios que costuram sua interioridade. Ela vaga pelas ruas de Nova York, por suas praças e pela própria alma, a procura de si. Seus os se
mesclam à cidade noturna, com sua intensa luminosidade e movimento frenético, cores vivas e personagens. Além das ruas da cidade americana, dos outdoors, das vitrines e da riqueza de vidros que aumentam os espaços, multiplicam os reflexos e dificultam a orientação, há ainda os recantos da casa da infância, os móveis, os tecidos, os lençóis, os bichinhos de pelúcia. Há as imagens da babá, do pai, da mãe e da irmã mais velha, Elena, que matou-se aos vinte anos. Esse é o filme que Petra Costa narra, Elena, para dissolver o encanto que imobiliza e deixar a dor flutuar para longe pela correnteza do rio.
210
Andréa França e Patricia Machado
narrativas sensoriais
Assim como Elena (Petra Costa, 2013), em Os dias com ele (Maria
Situações, afetos, intensidades, marcas e traumas do ado são
Clara Escobar, 2013) e Diário de uma Busca (Flávia Castro, 2010), as
teatralizados de modo a permitir que as imagens sejam experi-
viagens pelas estradas do Brasil e do mundo surgem como pretex-
mentadas não de um modo único, como revelação de uma evi-
to para a evocação de uma difícil jornada do documentarista pelo
dência, mas como um processo lacunar onde elas só adquirem
espaço da cena e pelo tempo impuro da memória. Não se trata de
realidade na relação com o espaço da cena, ou seja, através de
revelar nada, nenhuma verdade histórica, mas mostrar um corpo
uma concepção topográfica dos espaços da filmagem2 que reco-
em situação e uma câmera atenta às sensações nele inscritas e que
nhece em toda representação a geografia móvel de uma cena
dão sentido à sua atuação; mostrar a possibilidade de que esse
para uma sala, um ator para um espectador, personagens para
corpo possa se sustentar no espaço vazio da falta – de um ente
sujeitos singulares.
querido, de memória, de imagens, de documentos sobre a histó-
A câmera a a atentar para as sensações inscritas no cor-
ria recente do país; mostrar as sobrevivências e os espectros que
po daqueles que encarnam a dor (do exílio, da morte, da ausên-
rondam e afetam cada gesto, cada movimento, cada palavra.
cia, da tortura política), transformando o espaço da cena não em
Se os modos de conhecimento, de si e do mundo, só podem
uma janela aberta para a história do país, mas num teatro visível,
ser obtidos através de uma experiência que se acumula, que se
explícito, através da recomposição mimética de gestos, falas e ex-
prolonga, que se desdobra, como numa longa viagem, esses fil-
periências adas que duplicam a cena e explicitam a difícil
mes exploram poeticamente o elo que vincula tais cineastas a um
dinâmica das relações entre memória e história, imagens domés-
ado mutilado – seccionado de diferentes modos pelo espectro
ticas e imagens públicas. É que entre o interstício frágil da carne,
da Ditadura Civil-Militar – e a tudo que pertence a esse tempo en-
da fala e das imagens de arquivo do ado, habitam redes de
quanto potência de vibração – uma cor, uma imagem, um baru-
afeto, dizem esses filmes recentes, redes que jogam o espectador
lho, um odor – capaz de fazer emergir diante do espectador não a
dentro de um universo familiar (de filhos, pais, irmãos) e estra-
imagem-atestação do que foi, mas a imagem-sensação do que poderia
nhamente opaco.
ter sido, do que poderá ser. Tais filmes investigam a linguagem
Se a experiência é uma tessitura objetiva e subjetiva que se
das sensações que permite ao espectador entrar nas palavras, nas
revigora apenas quando pode ser narrada, compartilhada, trazida
cores, nos sons ou nas pedras.
ao plano do presente,3 esses filmes mostram que narrar e curar se
1
O cinema documental brasileiro contemporâneo vem pro-
cruzam e se tocam no entroncamento do corpo que performa, da
pondo um diálogo profícuo com a falta de documentos testemu-
imagem que teatraliza e da montagem como interrupção das te-
nhais (visuais, impressos, audiovisuais) da época da Ditadura no
leologias da história; mostram que narrar favorece a cura, afaga e
Brasil. Os filmes citados acima apostam em atos performativos, em narrativas poéticas e sensoriais, para lidar com esse vazio. 2 FRANÇA, 2009 1 DELEUZE & GUATTARI, 1993, p. 228.
3 BENJAMIN, 1987; DIDI-HUBERMAN, 2003
211
212
Andréa França e Patricia Machado
narrativas sensoriais
não só elucida o ado, por vezes monumental, como também
York, andar por suas ruas e esquinas, assim como entrar no curso
rompe com aquilo que nele aprisiona e adoece.
de teatro e querer ser atriz eram desejos de Elena e da mãe, que Petra retoma para si, repetindo e reencenando situações, vivências, estados de espírito. Revisitar “suas” paisagens de infância é
Memória dos espaços vividos, encenando Elenas
perceber que tais lugares são na verdade palimpsestos continuamente redesenhados e reescritos.
A voz over que acompanha a narração de Elena é da própria
Não se trata, portanto, de elaborar a memória através de
Petra Costa, tentando escavar essa presença-ausência da irmã
lembranças e de percepções antigas. Para Elena, a memória é um
mais velha nas imagens de vídeo da década de 1980, nas fotogra-
bloco de sensações porque age, fabula, encena e reencena, crian-
fias, nas cartas sonoras enviadas, em fitas cassetes, por Elena do
do imagens e sons como jamais foram vividos, como não são e
tempo que viveu em Nova York. O filme fala daquela presença fu-
nem serão vividos5. Extrair do próprio presente as marcas das
gidia e espectral dos mortos, que se faz notar em velhas fotos, em
percepções e dos afetos que com o tempo foram se colando no
filmes, nas casas que habitaram, nas roupas que não lhes servem
corpo, na carne, é permitir que a memória congelada e inerte de
mais e, ainda, nas lembranças que deixaram. O filme embarca
um ado sombrio possa se derreter e se reconfigurar.
numa jornada interior e exterior de Petra em busca de Elena, sua
Ainda que o filme seja farto em material de arquivo da irmã
irmã que pôs fim à própria vida em dezembro de 1990, quando a
adolescente (pequenos filmes que Elena realizou, imagens em
diretora tinha apenas sete anos.
que aparece dançando, girando, brincando com Petra bebê, no
Elena se concentra numa construção visual, plástica e sonora
grupo teatral Boi Voador), não há praticamente imagens de Elena
que explora os fluxos da memória no presente da cena, memórias
pequena. A nítida fotografia dela ainda criança, presa num porta
não só de Petra, mas da mãe de ambas, daqueles que conviveram
-retratos, lentamente se esvai numa torrente de imagens fluidas
com Elena e que foram entrevistados para o filme,4 assim como
e espectrais: traços de rostos femininos, de paisagens desfocadas,
dos espaços vividos pela família, sobretudo, no período de per-
borradas, que se mesclam e se sobrepõem formando camadas
manência nos EUA. As imagens distorcidas da cidade, filmadas
de memórias fugidias e indistintas. A imagem do porta-retratos
em Super-8 por Petra, com as bordas desfocadas e sem contorno,
evoca brevemente a infância de Elena para favorecer a pergunta
trazem um forte cunho sensorial e subjetivo para o documen-
crucial feita por Petra ao modo de uma carta imaginária endere-
tário, acentuando o jogo de espelhos e simulacros existenciais
çada à irmã: “como será que esse tempo [da infância] ficou na sua
entre Elena, Petra e a mãe de ambas. Refazer a viagem para Nova
memória, no seu corpo?”
4 Nos vídeos e entrevistas que constam no site do filme (http: / / www.elenafilme.com / ), há informações de que várias entrevistas com amigos e parentes de Elena não foram inseridas no corte final do filme, de modo que Elena vai se transformando, no decorrer da montagem, num relato mais pessoal e autorreferente.
Petra Costa se refere ao tempo da Ditadura civil-militar no Brasil, ao período que seus pais viveram com a irmã escondidos, 5 DELEUZE & GUATTARI, 1992, p.218
213
214
Andréa França e Patricia Machado
narrativas sensoriais
na clandestinidade. A mãe, em plena juventude, troca o (mesmo)
de relações no espaço privado. São os anos de abertura política,
sonho de ser atriz de cinema pela paixão por um jovem politizado,
do início da redemocratização do país e de mudanças de cunho
militante, engajado. Juntos, participam de eatas e entram na
social, político e econômico, e essas imagens caseiras, na sua apa-
militância política, se tornam integrantes do Partido Comunista
rente harmonia feliz, evocam a recente finalização da Ditadura
do Brasil (PCdoB), em Belo Horizonte, e são presos. Grávida de
civil-militar (1985), o momento da primeira eleição presidencial
Elena, a mãe é impedida pelos companheiros de participar da
direta após a abertura política.
Guerrilha do Araguaia, de onde poucos militantes saíram vivos.
A Ditadura e a experiência da clandestinidade não são mais
Antes mesmo de nascer, portanto, caberia à Elena assumir o seu
evocadas ao longo do filme, mas se mantêm vivas, presentes,
destino heróico e mítico, o de ser responsável pela sobrevivência
como um fantasma que flana por entre as imagens, os corpos, as
da família e viver o incômodo de uma infância em segredo, clan-
falas, as memórias e a história daquela família. Se todo o arquivo
destina, sem imagens; uma infância marcada pelo medo, pela vi-
é feito de lacunas7, se ele é cinza não apenas por conta do tem-
gilância e pela impossibilidade de estabelecer laços afetivos com
po que a, mas das cinzas de tudo aquilo que o rodeia e que
outras crianças como ela.
ardeu, a imagem fugidia de Elena no porta-retratos revela não
Há raras fotografias desse período, não há vídeos caseiros,
só a memória do fogo em cada documento dos anos da Ditadura
não há relatos de infância, não há lembranças. Trata-se de uma la-
que não ardeu, mas a memória da água em cada documento
cuna no tempo da memória, de um não-lugar no espaço da cena.
da Ditadura que não diluiu, como sugere o filme, inspirado em
Para a pergunta feita por Petra, endereçada à irmã, o filme não
Gaston Bachelard: “a terra tem seu pó, o fogo sua fumaça (…)
traz respostas. Os anos da Ditadura insistem e persistem na for-
a água sua dissolução”.8 A foto de Elena criança arde e se dilui.
ma da “falta”: falta de imagens, falta de documentos, falta de me-
Arde pelo desejo cinematográfico que a anima, pela urgência que
mória. Para o militante que sofreu a tortura e / ou aquele que teve
manifesta. Arde pela dor da qual provém. Arde mesmo quando
que fugir de seu país e viver na clandestinidade, o esquecimento
só é matéria feita de pedra e de sombra. Arde em meio à corren-
se torna uma estratégia de sobrevivência, “um gesto forçado de
te de água límpida que faz escoar as memórias, diluir os gritos,
apagar e de ignorar, de fazer como se não houvesse havido tal
duplicar os reflexos ao infinito, explicitando a vocação de todo
crime, tal dor, tal trauma, tal ferida do ado”.
documento para a sobrevivência, apesar de tudo.
6
Na década de 1980, diferentemente, Elena ganha uma câme-
E o elemento água é recorrente. Aparece no corpo molhado
ra VHS e com ela filma a irmã pequena, filma os espelhos, filma a
de Elena enrolado em uma corda, aos dezessete anos, em ima-
babá, filma a lua dançando. Do mesmo modo, é filmada pela mãe,
gens de arquivo de uma encenação teatral do grupo paulista Boi
contracena com a irmã, dança sozinha, dança com o pai, com
Voador; aparece na concha que Petra ganha de presente da irmã;
a irmã. A câmera dispara situações e funciona como mediadora 7 FOUCAULT, 1986 6 GAGNEBIN, 2010, p.170
8 BACHELARD, 1997, p.94-95
215
216
Andréa França e Patricia Machado
narrativas sensoriais
na história da pequena sereia, personagem predileta da infância
no grupo de teatro do qual participou aos dezessete anos, mesma
da diretora, “que aceita ar pela dor de uma faca atravessando
idade em que descobriu o diário da irmã e percebeu sentimentos
seu corpo, sangrando, para ganhar pernas e assim dançar”; apa-
semelhantes entre as duas.10 Se a morte é o ponto cinza, malsão,
rece na narração que diz “estou adoecida de amor. Se me toca,
a afirmação banal da ausência de sentido da vida, em Elena, ela
eu viro água”, numa alusão à personagem de Guimarães Rosa,
é também um exercício de iração11 em meio ao qual a imagem
Doralda, interpretada por Elena, como parte da montagem de
cede aos excessos plásticos, estetizantes, teatrais e, ainda, à lógica
Corpo de Baile realizada pelo grupo teatral paulista; e, ainda, em
das forças econômicas para melhor usufruir dos benefícios ca-
frases como “me afogo em você, em Ofélias”.
tárticos da narração memorialista.12 Assim, “representar a morte
Numa alusão à personagem de Ofélia, Bachelard sugere que
não é apenas vivê-la em imagens, em nossos sonhos, obsessões,
a água, elemento capaz de transbordar sentimentos e sensações,
para desejá-la ou temê-la; é também materializá-la em frases, for-
é o elemento da “morte jovem e bela, da morte florida, e nos
mas, cores, sentidos”.13
dramas da vida (…) é o elemento da morte sem orgulho nem vin-
Repetir. Reencenar. Duplicar. Procedimentos estéticos que
gança, do suicídio masoquista”.9 Ofélia, de William Shakespeare,
são capazes de ativar, no cinema, muitos outros significados quan-
é uma jovem que não a a dor de ser rejeitada por aquele
do não pretendem reconstituir meramente o que ocorreu, mas
que ama e se suicida mergulhando no rio. Também em Elena, a
estimular e adicionar sentidos que não foram atribuídos ao acon-
mãe, Petra, Elena, Elektra, são mulheres que se espelham perversamente multiplicando a sensação de um “emaranhado de fios no peito e na garganta que não deixa respirar”. São as imagens que se repetem da mão no peito, da mão na garganta, das mãos na cabeça. Angústia, vazio, doença, tormento. Mulheres que se duplicam de modo indistinto, fazendo de Elena não apenas um relato íntimo ou um filme narcísico, formalista e sem falhas, mas uma história agônica de tantos casos encerrados em tantas casas, entre quatro paredes, de inúmeras jovens. Como Elena, a mãe de Petra conta que pensou em se matar aos treze anos. Como Elena, a mãe e Petra viajam para Nova York, voltam ao apartamento onde Elena se matou, reencenam o trágico momento. Como Elena, Petra encenou a peça Hamlet mais de uma vez, em experiências de trabalhos na faculdade e 9 Idem, p.85
10 Essa informação é dada por Petra, em debate realizado no Espaço no Itaú Cultural, que se encontra no site do filme, ver: http: / / vimeo.com / 66931777 11 CIORAN, 2011 12 O filme foi divulgado na internet através de vários vídeos com depoimentos – que criam expectativa e suspense a respeito de quem teria sido Elena – de atores conhecidos como Wagner Moura, Alexandre Borges, Júlia Lemertz entre outros. Tais vídeos foram compartilhados nas redes sociais, de modo que muitas críticas foram feitas a essa forma de disponibilizar e mercantilizar uma história de vida dolorosa, transformando-a num “capital pessoal” a ser istrado e comercializado. Em entrevistas disponibilizadas no site do filme, Petra conta que a maioria desses atores trabalhou e conviveu com Elena no grupo teatral Boi Voador e que a ideia dessas chamadas para o filme surgiu a partir do material das próprias entrevistas com os atores, material esse que seria inicialmente incorporado ao documentário em uma de suas primeiras versões. Estes vídeos de divulgação pretendem funcionar como um ingrediente “ativador” de interesse e curiosidade pelo filme: Elena-enigma, Elena-intriga, Elena-mistério, Elena-segredo, dimensões caras ao gênero literário do romance com suas tramas e subtramas. 13 THOMAS, 1983, p.186
217
218
Andréa França e Patricia Machado
narrativas sensoriais
madora e disruptiva do cinema. Para além de um sentido mimético do termo representar, encenar seria abrir a possibilidade de fazer aparecer algo novo na cena. Para a historiadora e pesquisadora de cinema Sylvie Rollet, é na reencenação de gestos do ado que nasce a imagem-testemunho capaz de fazer testemunhar não só aquele que estava presente no momento do acontecimento, mas também o espectador imerso no fluxo do filme.15 Em suas pesquisas, Rollet investiga as estratégias expressivas que o cinema encontrou para evocar catástrofes que não possuem imagens (os genocídios durante a Segunda Guerra, na Argélia, no Camboja) e analisa o que há de intransmissível no procedimento da performance dos corpos, da repetição de gestos daqueles que viveram um evento brutal e que estão impossibilitados de comtecido. Em Elena, reencena-se a morte, a dor, a culpa como forma
partilhar suas experiências pela fala. A imagem-testemunho, des-
de purgação. No campo da arte contemporânea, o gesto de repetir
se modo, não repete o que foi, mas favorece a expansão dos senti-
ganhou uma grande exposição History Will Repeat Itself: Strategies of
dos, das percepções, da memória. Reencenar um acontecimento
Re-enactment, realizada em Berlim, em 2007 / 2008, com artistas
seria, portanto, colocar em xeque a crença de que a imagem nos
de diferentes nacionalidades que exploraram o campo da história
distancia de uma relação com o mundo; ao contrário, ao reence-
como um campo de sentidos midiáticos em disputa. No catálogo
nar, exalta-se a possibilidade de olhar a história de novo, trazer
da Exposição, um dos textos enfatiza o valor epistemológico da
posicionamentos variados e considerar seus efeitos no presente.16
reencenação, dizendo que o gesto mantém uma relação com o co-
Em Elena, tudo agoniza e rodopia – as três mulheres, a casa,
nhecimento ao criar uma espécie de palimpsesto que acumula to-
o palco, a cidade, as árvores do sítio, a lua – no eixo vertiginoso
dos os significados criados desde então, incluindo a própria ideia
da morte. Ao mesmo tempo em que o filme se filia ao gênero me-
de cópia. É toda uma explanação artística, intelectual, a favor des-
morialista do retrato, agregando ao tempo que se esvai e à morte
te gesto, na medida em que repetir / reencenar a história seria
de Elena uma dimensão terapêutica, saturante e monumental, há
exaltar a possibilidade de “olhá-la mais de uma vez”, de trazer
também uma sensibilidade romântica que dá extrema relevância
posicionamentos os mais variados e considerar os seus efeitos.
à trajetória individual das personagens, buscando galvanizar vi-
14
É na possibilidade de reencenar a morte trágica da irmã, de
das humanas em meio ao fluxo do tempo. A memória dos espa-
se aproximar e reviver a dor, que Petra encontra a força transfor15 ROLLET, 2011, p.41 14 BANGMA, 2005
16 FRANÇA, 2013, p. 46
219
220
Andréa França e Patricia Machado
narrativas sensoriais
ços vividos da infância ressurge então vertiginosa e reiterativa,
lembranças de uma convivência familiar sob constantes mudan-
trazendo à tona os incômodos excessos de uma imagem que faz
ças de endereço, de uma infância de poucos amigos. Flávia, ora
tanto da morte como da vida um elixir. A imagem-excesso solicita
acompanhada da mãe, ora acompanhada dos irmãos Joca e Maria,
do espectador uma afetação intensa.
percorre cidades, ruas, casas, no Chile, na Argentina, na França, no Brasil, procurando identificar lugares esquecidos e encontrar
Memória de espaços desertos, em busca da infância perdida
vestígios de uma infância vivida na clandestinidade. Nessa jornada, leva consigo as raras fotografias daquele tempo em uma tentativa de reter algo que se esvai, que a irreversivelmente. As cores intensas das frutas apodrecendo no chão, os lençóis
“Não podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez
brancos pendurados no varal, os parques despovoados e tristes,
seja bom assim. O choque do ado seria tão destrutivo que, no
os brinquedos congelados pelo tempo ganham todos uma dimen-
exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa
são afetiva, como se cada um fosse depositário de uma história
saudade.” Infância em Berlim, Walter Benjamin.
íntima, portador de rastros de uma infância perdida. Há uma primeira infância colorida e cheia de aromas.
Em Diário de uma busca, Flávia Castro segue o caminho das
Há também uma segunda, cinza e triste. Da primeira, no Brasil
cartas deixadas pelo pai, dos espaços vividos em países diversos,
ainda antes do AI5, surge a imagem da paisagem bucólica, da
das lembranças de parentes e companheiros de militância polí-
árvore carregada de flores vermelhas, da casa alegre dos avós,
tica de seus pais, de fotografias da família e arquivos de jornais.
sempre cheia de amigos, risadas e sonhos. Da segunda, surge a
A diretora escava cartas, documentos, fichas criminais, reporta-
infância clandestina e escura. Em 1971, Flávia com então cinco
gens da imprensa, relatos de jornalistas e policiais à procura de
anos segue com o irmão rumo ao Chile, aonde os pais, militan-
indícios que ocupem o vazio deixado pela versão oficial da morte
tes do Partido Operário Comunista, se refugiam para escapar da
do pai, Celso Castro. Jornalista, ex-militante político, guerrilheiro
prisão no Brasil. Os anos seguintes traduzem-se em constantes fu-
que lutou e foi perseguido pela Ditadura Civil-Militar, o pai teria
gas, vida instável e perguntas não respondidas. “Por que alguém
se suicidado após uma tentativa de assalto frustrada na noite que
[o pai] tem que viajar justamente no seu aniversário?”; “Por que
entrou armado na casa de um cidadão alemão (supostamente, ex
ela [Flávia] não pode falar o nome do pai, só o codinome?”; “Por
-oficial nazista), na cidade de Porto Alegre, pouco depois da decre-
que ela e o irmão não podem ir à escola como outras crianças?”;
tação da anistia.
“Por que, dentro da escola, não podem responder à pergunta da
Retomar essa investigação encerrada, com desfecho e elucidação duvidosos, constitui apenas um dos fios narrativos da trama do filme que envolve memórias, afetos e ambivalentes sentimentos familiares. A morte violenta do pai havia apagado as
professora sobre a profissão dos pais?”.
221
222
Andréa França e Patricia Machado
narrativas sensoriais
Retornar aos lugares de memória é aqui retornar à casa do não-sentido, “percorrer objetos que faltam em seu lugar”,17 sentir uma ausência presente porque é em função desses objetos que tudo a, que tudo se a, que não se fica imune e que não se é mais o mesmo. O filme solicita que Flávia retorne à casa vazia, à casa dos parques e dos brinquedos sem anima. Ao colocar o próprio corpo em cena e em busca (da verdade sobre a morte do pai? Da verdade sobre a vida? Da verdade sobre o ponto cego da infância?), a cineasta só pode vaguear, anotar lembranças, perscrutar fotografias, descrever lugares, reler antigas cartas do pai, procurar em cada criança filmada o rosto, os movimentos e o corpo que um dia foi o seu. São os brinquedos sem anima, anômalos, que pontuam o filme como um refrão. Dessemelhantes a si, deslocados de si mesmos, o escorrega no parque, a cadeira de balanço colorida, a
nha um desejo permanente de desaparecer para renascer como
bicicleta, a mesa de totó, os soldadinhos de plástico, ocupam na
criança qualquer, criança que brinca de casinha, que pode ir à
imagem um lugar sem ocupante, um lugar onde eles (os brinque-
escola normalmente, que não precisa ficar sempre atenta ao en-
dos) não estão nunca onde os procuramos e, inversamente, nunca
torno. No entanto, descobre Flávia, essa criança que ela e o irmão
os encontramos onde estão. Como se tais imagens retirassem do
foram um dia não ava de um “estorvo” para seus pais, como
brinquedo seus afetos e memórias para devolver ao espectador a
revela sua mãe, anos depois, para a filha-cineasta.
18
artificialidade crua de sua materialidade.
Todo um processo de esfacelamento da experiência do brin-
O ferro do escorrega no parque em um dia chuvoso é sim-
car, de ser criança, que pode ser também experimentada nos
plesmente o ferro, metal duro e resistente, e não material de um
planos fixos e de longa duração dos parques despovoados, dos
objeto de interação, de criação, de invenção de mundos. É como
jardins inertes, dos galhos de árvores retesadas. É justamente a
se o escorrega no parque – lugar de imaginários, ficções, crenças e
montagem que vai possibilitar a abertura de um relato pessoal da
linguagens lúdicas – só pudesse gerar não-sentido, arrancado que
infância para uma experiência coletiva, para a reescrita de uma
foi, bruscamente, do mundo da fantasia e do faz-de-conta. Essa
história vivida pela geração de filhos de militantes políticos que
criança que se escondia para chorar, rememora Flávia Castro, ti-
enfrentaram diretamente a repressão. É na montagem que as cartas escritas pelo pai para a família, e lidas pela filha Flávia ou pelo
17 DELEUZE, 1988, p.43
filho Joca, transformam-se em palavras espectrais que vagueiam
18 Idem.
errantes por entre cidades, ruas e tempos.
223
224
Andréa França e Patricia Machado
narrativas sensoriais
Se a montagem nos oferece uma outra imagem do tempo,
evoca memórias coletivas. São objetos-imagens que condensam
ou “consciência do tempo” para Michel Poivert, fazendo explo-
o tempo e que, desvendados, permitem que o espectador possa
dir a narrativa da história e a disposição das coisas, no filme de
expandi-los no tempo; objetos-imagens cujos ados incomen-
Flávia Castro, a montagem explode com a história quando faz dos
suráveis são o produto não apenas de uma história pessoal, mas
brinquedos vazios, das árvores do quintal, dos muros das casas,
também de desterritorialização cultural. Marks, fundamentada
das roupas no varal e das cartas do pai, imagens-vestígios do exílio e
em Walter Benjamin e Gilles Deleuze, analisa filmes que tomam
de espaços da infância que não puderam ser explorados, vividos.
as coisas por suas imagens, apresentando-as “em toda a sua es-
São os corpos da cineasta, da sua mãe e dos irmãos que, como
tranheza tipo-fóssil”,22 de modo que reconectá-las com seu a-
imagens-vestígios, entram em cena para “performar o ado”
do pode eventualmente neutralizar seu poder perturbador. Tais
de pedra, enrijecido, duro.
imagens de objetos juntam histórias e memórias que estão per-
19
20
O filme evidencia assim o caráter lacunar e transformador
didas ou encobertas no movimento desterritorializante do exílio.
da memória que narra não o que viveu, mas histórias, sobrevi-
Assim é que certos filmes teriam a potência de escavar nos obje-
vências e sensações de uma época. A partir de uma jornada pes-
tos as camadas discursivas que tomam forma material neles, “os
soal, Diário de uma busca produz imagens raras de uma história
traumas mal-resolvidos que neles estão incrustados e a história
silenciada e esquecida, das dores e das faltas experimentadas
de interações materiais que eles codificam”.23
por brasileiros que foram obrigados a viver exilados, longe de
As árvores, com seus galhos e folhas secas, assim como as
pessoas amadas, proibidos de estabelecer laços de afetos com
formigas nas pedras, as frutas no jardim, o escorrega no par-
quem estava ao redor. São memórias impedidas, de tantas in-
que, a mesa de totó, os soldadinhos de plástico são, no filme
fâncias, que ganham desse modo imagens, cores e formas. Se o
de Castro, brinquedos-fósseis que ganham sentido e luminosida-
filme nos faz ver o quão carregado e prenhe é o esquecimento,
de, na medida mesma em que o ado traumático do exílio
talvez seja porque permite que se experimente “o vestígio de
que representam não acabou. Objetos tipo-pedra, eles aparecem
hábitos perdidos”, ou ainda, porque faz ver na “mistura com a
como testemunhas mudas da história, carregando consigo rela-
poeira de nossas moradas demolidas o segredo que o faz [o esque-
ções sociais, desterritorializações forçadas e histórias esqueci-
cimento] sobreviver”.
das. Objetos tipo-fóssil, suas imagens são vestígios do que falta,
21
Em um belo artigo, a pesquisadora Laura U. Marks analisa
do que foi enterrado, do que uma vez existiu e que se tornou
filmes e vídeos que desvendam memórias de objetos. Trata-se de
pedra. Ainda assim, são capazes de destravar toneladas de me-
imagens que mostram um objeto irredutivelmente material que
mórias silenciadas.
19 POIVERT, 2007, s / n 20 Idem.
22 MARKS, 2010, p.310
21 BENJAMIN, 1987, p.105, grifo nosso
23 Ibidem, p. 313
225
226
Andréa França e Patricia Machado
Memórias dos espaços vazios, os dias com ele e os anos sem ele
narrativas sensoriais
documentarista) e as falas interiores ao quadro (do pai), entre a intimidade de uma família e a história política do país. Tais
A câmera silenciosa eia por uma pequena casa em
embates – sobre o que deve ou não ser perguntado, comentado,
Portugal, por alguns de seus cômodos apertados, por suas pare-
partilhado, silenciado – constituem a própria cena de dissenso do
des descascadas, pelas frestas das janelas, pelo quintal de concre-
filme, cena forjada por desacordos que fendem seu interior de
to, pelos muros coloridos pelo musgo. Nesse ambiente, muitos
modo a redispor objetos, situações, imagens e coordenadas de
livros, papéis, poucas fotografias e alguns gatos, de verdade e de
um mundo comum.24 Quando o pai sugere despudoradamente
porcelana, que ocupam os cantos, vagam silenciosos e observam
à filha como deveria ser a abertura do documentário (“já que se
os dias arem. Essa é a casa onde vive há doze anos o dra-
trata de um filme pessoal”), implícito aqui está não um conflito
maturgo, filósofo e intelectual Carlos Henrique Escobar. É tam-
de interesses ou de aspirações, mas uma diferença no sensível,
bém o espaço onde ele e a filha Maria Clara se encontram por
um desacordo sobre os próprios dados da situação, ou seja, do
alguns dias para realizar um filme sobre o encontro dos dois,
encontro dos dois.
sobre as memórias de um ex-guerrilheiro preso e torturado pela
Há uma espécie de refrão (“peraí, pai”, “não fala ainda”, “es-
Ditadura brasileira, sobre as memórias de uma filha cujo pai ela
pera”) estratégico para o funcionamento do filme. Como se tais
mal conhece.
solicitações fomentassem uma lacuna na imagem e nos sons que
O testemunho de Carlos Henrique Escobar para a documen-
favorece a emergência da difícil relação em toda a sua comple-
tarista é marcado por palavras que evocam uma vida de ausên-
xidade. Se Maria Clara parece ceder em alguns momentos aos
cias: dos pais durante a infância, do irmão que morreu jovem,
desejos do pai na direção e concepção dos planos, as imagens,
dos amigos que foram assassinados pelo DOI-CODI durante a
contudo, são friccionadas violentamente pelas vozes e sons do
Ditadura Civil-Militar. Nas perguntas colocadas a ele por Maria
fora-de-campo que subjugam e tensionam as cenas. Mais do que
Clara, é a falta do pai que se explicita e que é de algum modo
isso, quando o dramaturgo lê o trecho de uma de suas peças,
lamentada – a falta de afeto paterno, de lembranças de uma in-
Matei minha mulher. A paixão do marxismo: Louis Althusser (1983), em
fância com ele, de memórias e de imagens. Para demonstrar esse
que descreve a tortura física e mental sofrida pelo personagem,
vazio irreparável, Maria Clara usa filmes domésticos alheios, em
sua voz é substituída gradualmente pela voz da filha que abando-
que homens quaisquer brincam com seus filhos pequenos e sor-
na a imagem paterna em prol de imagens caseiras, em Super-8,
riem felizes para a câmera. Para cada uma dessas imagens, ouvi-
onde se vê uma criança anônima na beira de um lago bucólico
mos a frase “Este não é o meu pai”, repetida de modo desafetado,
com sua mãe. A dureza do texto dramático é então tensionada
imparcial, desinteressado.
pela leveza de uma memória que falta, a memória da infância de
Tal vazio também é ressaltado pelos constantes duelos entre
Maria Clara com o pai.
os dois. São os confrontos entre a cena e os bastidores, entre o que está na frente e por trás da câmera, entre as falas em off (da
24 RANCIÈRE, 2008, p.55
227
228
Andréa França e Patricia Machado
narrativas sensoriais
É em um desses embates, e depois de alguma insistência,
Por trás da câmera, a documentarista insiste que seu pai leia um
que a filha arranca do pai o testemunho sobre a tortura que so-
documento do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS)
freu quando preso no Brasil, em 1973, por conta de seu envolvi-
autorizando sua prisão. Ele se recusa veementemente, diz que
mento com o pensamento comunista. O trauma, incomunicável,
não vai fazer “papel de bobo”, que milhares de prisões políticas
é evocado pelas lembranças do cheiro do capuz colocado pelos
foram feitas nessa época, que solicitar dele tal leitura é uma to-
policiais no momento da prisão, do grito da amiga e do sangue na
lice. O pai e a filha discutem e se confrontam verbalmente fora
sua roupa branca, da mão que segura a sua, ferida, e pede tran-
do campo visual, enquanto vemos o assento vazio no qual o pai
quilidade; do som enlouquecedor da sirene, dos choques elétri-
deveria sentar-se para ler o texto. O espaço da cena se constrói en-
cos pelo corpo molhado e nu. O enquadramento é fixo e o relato
tão nesse duelo sonoro, onde a cadeira expõe o desconforto desse
surpreende pelo que possui não só de inesperado, mas porque
lugar (do filme, do reencontro dos dois em Portugal), onde Carlos
explicita que todo testemunho não apenas conta histórias; antes,
Henrique parece não querer estar, recusando-se em se adequar
é um gesto magnânimo que reafirma sua crença no presente ao
tanto às expectativas da filha como às da diretora.
oferecer seu corpo e sua vida ao outro, à imagem, ao cinema.
Vencida pela autoridade intelectual e paterna, Maria Clara senta-se no lugar que seria dele para realizar a tarefa. Invadir o plano é expor a luta da diretora na sua relação com o espaço da cena; é expurgar o silêncio e as lacunas em torno da memória da Ditadura, teatralizando no seu próprio corpo situações e afetos; é disputar o acontecimento da Ditadura, tomar posição no campo das imagens, fazer escolhas. Como se a falta (de documentos e de imagens da época) se revelasse na entrada em cena de Maria Clara, em um aqui-agora que reitera memórias do que foi e / ou do que poderia ter sido. Se o conteúdo do documento lido por ela é decepcionante, visto que não dá (e nem poderia dar) conta da amplitude do acontecimento histórico, por outro, é a sua entrada no plano seguida da leitura do documento que reitera a cena do filme como campo de contendas – do sensível, do visível, da memória, da história.
Contudo, é justamente em uma nova tentativa da diretora
O dissenso, segundo Jacques Rancière, fala de um embate
de que o pai retome de novo as memórias da Ditadura que o fil-
acerca dos horizontes de percepção que distinguem o audível do
me dá forma material aos vazios, traduzindo em imagem e sons
inaudível, o compreensível do incompreensível, o visível do in-
as sensações e os conflitos em jogo desde o início. Trata-se da
visível. Quando diz que a instauração do dissenso se dá a partir
imagem da cadeira que solicita a entrada de Maria Clara na cena.
de um uso da linguagem que não é voltado inicialmente para a
229
230
Andréa França e Patricia Machado
narrativas sensoriais
busca do entendimento, Rancière se refere à percepção sensível
está registrando nesses momentos de espera? Será que realmen-
dos sujeitos, a uma percepção de que algo está errado, de que a
te não escuta as perguntas da filha? É provável que esse lugar
pretensa igualdade que deveria existir entre indivíduos não está
anterior também seja desde sempre parte da cena. A imagem da
dada. O filósofo argumenta que a linguagem poética ajudaria a
cadeira vazia é o único momento onde o entrevistado, depois da
perceber esses desacordos entre os sujeitos e seus mundos. A arte
discussão em off, se retira, recusando-se a performar e exigindo
e os objetos artísticos, nesse sentido, nos ajudariam a perceber as
com isso a entrada de Maria Clara. O embate – intelectual, afeti-
divisões subjetivas, sociais, políticas de outra forma, deslocando
vo, existencial – que se dá antes de sua retirada reforça a ceno-
mais radicalmente os modos de percepção das coisas. “Cenas de
grafia teatral assim como induz a uma reflexão a respeito da mes-
dissenso são suscetíveis de surgir em qualquer lugar, em qual-
ma. O que se representa aqui, o que se teatraliza? Que escolhas
quer época. (…) Porque toda situação é suscetível de ser fendida
formais são feitas para a apresentação desse desentendimento?
no seu interior, reconfigurada sob um outro regime de percepção
Como situá-lo espacial e temporalmente? Diante da câmera, não
e de significação”.
podemos esquecer, há entre outras coisas um dramaturgo, um
25
A cadeira vazia e os desacordos entre pai e filha reconfigu-
homem do teatro.
ram sem cessar as cenas de dissenso do filme. O que Maria Clara
Os dias com ele mostra que a imagem-dissenso não se constitui
espera desse encontro com o pai? O que busca de um ado
por conflito de interesses. Não se trata disso. O que ela institui
para o qual não há imagens (domésticas, sobretudo)? Se sua res-
e interroga é o que pode ser um interesse, quem pode ser visto
posta parece clara – reconstruir, através do cinema, uma história
como capaz de lidar com interesses sociais, subjetivos e estéticos
pessoal apagada pela falta de convivência com o pai e cruzá-la
e quem supostamente não pode, mas que, mesmo assim, irrompe
com a história política do Brasil (a militância de esquerda paterna
a cena e provoca rupturas na unidade daquilo que até então era
e a experiência da tortura) –, as tensões entre o político e o pri-
dado como “natural”.
vado permanecem e se dão sobretudo no espaço sonoro da cena,
Filmes como Uma longa viagem (Lucia Murat, 2011), Memória
quando o pai está em campo e sistematicamente questiona o pro-
Para Uso Diário (Beth Formaggini, 2007), Utopia e barbárie (Silvio
jeto da filha, no contracampo, “sem saber” que a câmera o está
Tendler, 2009), Cidadão Boilesen (Chaim Litewski, 2009), O dia
gravando. É na relação entre o campo e o contracampo, jamais
que durou 21 anos (Camilo Tavares, 2012), Em busca de Iara (Flavio
visto, que o espaço da cena se monta, cena cindida, desconfortá-
Frederico, 2013), além dos documentários analisados nesse en-
vel, em desacordo. É a cena de dissenso.
saio, são reveladores do momento atual do Brasil onde se engen-
Por outro lado, em expressões como “peraí, pai”, “não fala
dra, lentamente, a reivindicação pela memória dos vinte e um
ainda”, o que está em jogo é o lugar anterior à constituição da
anos de Ditadura Civil-Militar, com a punição de crimes e de tor-
cena. Mas, até que ponto o dramaturgo não sabe que a câmera o
turadores, com a abertura de arquivos secretos, com a restituição da verdade em torno dos desaparecidos e dos assassinados pela
25 Ibidem, 2008, p.55
repressão política.
231
232
Andréa França e Patricia Machado
A imagem-excesso, a imagem-fóssil e a imagem-dissenso são tipos de imagem-sensação que dão corpo e vida à falta de imagens, de documentos e de memória dos anos da Ditadura. Se com a instalação da Comissão Nacional da Verdade, em maio de 2012, o debate sobre o significado desta memória “revelada” ganhou um impulso inédito, esse cinema vem para catalisar
narrativas sensoriais GAGNEBIN, Jean M. O preço de uma reconciliação extorquida. In et al. O que resta da Ditadura (orgs. TELLES, E. e SAFATLE, V). São Paulo: Boitempo, 2010. MARKS, Laura U. A memória das coisas. In et al. Cinema, globalização e interculturalidade (orgs. FRANÇA, A e LOPES, D.). Chapecó: ed. Argos, 2010. POIVERT, M. L’Événement comme expérience: les images comme acteurs de l’histoire. Paris: Hazan, Jeu de Paume, 2007.
os espaços entre a interrupção do que se pode saber (as lacunas do
RANCIÈRE, Jacques. Le spectateur émancipé. Paris: La Fabrique, 2008.
tempo) e a interrupção do ado espectral (a imagem performada
ROLLET, S. Une ethique du regard- Le cinema face à la Catastrophe d’Alain Resnais à Rithy Panh. Paris, Hermann Editions, 2011.
dessas lacunas).
THOMAS, Louis-Vincent. Antropologia de la muerte. México: Fondo de Cultura Econômica, 1983. Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Imagens do pensamento, in: Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987. BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos: Ensaio sobre a imaginação da matéria. 1ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BANGMA, Anke. Experience, Memory and Re-enactment. Berlin: Revolver Publishing, 2005. CIORAN, Emil. Exercícios de iração: ensaios e perfis. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: ed. Perspectiva, 1988. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. DIDI-HUBERMAN, George. Devant les temps. Paris: Les Editions de Minuit, 2003. FRANÇA, Andréa. Documentary Cinema and the Returnof What Was. In et al. New Argentine and Brazilian Cinema – Reality Effects (edited by ANDERMANN, J. and BRAVO, A.). New York: Palgrave Macmillan, 2013. FRANÇA, Andréa. É possível Conhecer a Estória Toda? Variações do documental e do tribunal nas imagens contemporâneas. In et al. Imagem Contemporânea vol. II (org. Beatriz Furtado). São Paulo: Hedra, 2009. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: ed. Forense-universitária, 1986.
233
235
Ensaio na revolução: o documentarista e o acontecimento Cezar Migliorin
1
O
documentarista está no Egito ( )رصمem 2011 e a praça Tahrir
( )ريرحتلاé o centro do mundo. O que pode este homem que tem o cinema como instrumento de trabalho e é inte-
ressado por política, pelas lógicas do poder, pelos modos dos processos subjetivos serem modulados e moduladores no capitalismo contemporâneo? O que pode esse documentarista diante de um grande evento? – de um evento que se apresenta como um divisor de águas da política mundial e paradigma do que pode contaminar praças e países, jovens e vidas; um verdadeiro acontecimento. Antes de avançarmos nos caminhos do documentarista, “digamos que um acontecimento é um entrecruzamento inesperado de uma variedade de processos. Processos econômicos, históricos, culturais e subjetivos, em um determinado momento, motivados por elementos mínimos, produzem uma faísca que opera como um grande desvio em cada um deles. “Atenção, a menor
236
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
linha de fuga pode fazer explodir tudo”.1 O acontecimento seria
2
assim uma fagulha desviante, um shifter que não propõe ainda uma nova ordem.2 Em um comentário de Gilles Deleuze e Féliz Guattari sobre Maio de 68, eles escrevem o seguinte:
O interesse do documentarista pela política é amplo, tanto em seu sentido institucional – nas formas de organização dos estados, suas disputas pelo poder e pelos territórios – uma política molar,
O acontecimento é irredutível às determinações sociais e às sé-
poderíamos dizer – quanto à política entendida em seu aspecto mi-
ries causais. Os historiadores não gostam muito desse aspecto e
cropolítico, mais ligada aos modos de vida, ao cotidiano nos bares
refazem as causalidades. Mas o acontecimento é uma separação,
regados por copos de chá ( )ياشe às formas dos poderes afetarem o
uma ruptura com as causalidades: é uma bifurcação, um desvio em
dia-a-dia e as possibilidades sensíveis de sujeitos comuns; algo que se
relação às leis, um estado instável em que se abre um novo campo
apresentaria nos limites de uma dimensão estética da biopolítica.4
de possibilidades.
Em um ir e vir entre formas institucionais e variações sensíveis que modelam e modulam formas de vida, para o documenta-
Maurízio Lazzarato desdobrará essa noção de não-causalida-
rista, atravessa o cotidiano de jovens cosmopolitas. Esses jovens
de dos acontecimentos escrevendo que “o acontecimento é o que
parecem se afirmar como senhores de um destino que não encon-
surge da história e volta à história, mas sem ser, ele mesmo histó-
tra nas fronteiras nacionais seus limites sensíveis e seus recortes
rico. O acontecimento é imanente à história econômica, social e
de comunicação. Ao mesmo tempo, novas formas de capitalismo
política, sem que ele possa ser reduzido a ela”.
estão presentes naquele país também. Alguns novos operadores
3
Nem bom nem ruim, o acontecimento funciona como um
do capital parecem desinteressados nos controles que as ditadu-
refrator de raios. Como se houvesse um curso para todos os
ras podiam fazer das necessárias disciplinas que mantinham o
processos que constituem uma comunidade andando em comu-
capitalismo industrial animado. Junto a isso, o documentarista
nhão – econômicos, sociais, políticos, subjetivos – mesmo que
encontra no Egito uma rede plena de tensões internas entre gru-
pleno de problemas, e, de repente, esse facho de luz encontra
pos seculares, religiosos e militares.
um prisma, um cristal que inviabiliza as continuidades homo-
Assim como a própria praça Tahrir, o documentarista não tem
gêneas. A revolução atua assim como um nó de onde as conti-
um ponto de entrada óbvio. Muitas são as portas que o levam ao
nuidades se mantêm incertas e é nesse nó que o documentarista
evento, muitas são as formas de estar com um evento que se exprime
se encontra.
nas expressões faciais, nos tempos que os olhos dos habitantes locais levam diante de um espaço ou de uma praça que o documentarista
1 GUATTARI, 1980, p. 56 2 MIGLIORIN & BRUNO, 2013, p.7 3 LAZZARATO, 2009, p. 89
4 Para uma aprofundamento nos problemas de uma estética da biopolítica, ver: FELDMAN, MIGLIORIN, MECCHI, Brasil. Estéticas da Biopolítica – Dossiê temático da Revista Cinética http://www.revistacinetica.com.br/cep/ Última consulta 02 de setembro de 2013.
237
238
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
pouco entende, marcada por risos, alegrias e feridas nos olhos dos
Esses aspectos culturais, tão fortemente marcados para um
manifestantes atingidos pelas balas de borracha dos macropoderes
olhar estrangeiro, não estavam, entretanto, nem prontos nem
ligados às elites locais e às megacorporações internacionais.
isolados para serem documentados pelo cineasta. Estar ali evidenciava a facilidade com que o senso comum aborda o mundo muçulmano como uma unidade, como um mundo sem tempo. Em uma mesma cidade, ser muçulmano trazia diferenças, marcas e modos de vida absolutamente distintos, ou como dizia Ahmed ( )دمحاjovem tradutor que com seus conhecimentos de espanhol acompanhou o documentarista em alguns encontros: “há muito mais em comum entre um muçulmano de Casablanca e um espanhol de Sevilla do que entre o marroquino e um muçulmano de Riade ()ضايرلا, na Arábia Saudita.”
4 No presente da cidade, o documentarista procura seu ritmo; normalmente mais rápido que o antropólogo, quase sempre mais lento que o jornalista, certamente mais estético que o sociólo-
3
go, com frequência menos estatístico que o economista. Clichês à parte, o documentarista se espanta com sua própria pretensão:
Por um lado, o documentarista pouco ou nada conhece das
como criar um conhecimento e uma forma sensivelmente poten-
disputas institucionais, dos contextos macropolíticos da região.
te sobre esse lugar e sobre a revolução com os instrumentos que
Ou melhor, não conhece melhor que o básico do que está nos jor-
tem? Como se aproximar do evento com tão pouco conhecimen-
nais ou em alguns clássicos, mas ele se prepara: frequenta semi-
to, mas com os meios do cinema?
nários, entrevista pessoas, assiste filmes, aprende algumas pala-
“Para se entender o que estava acontecendo no evento é
vras de árabe. مالسلا مكيلعpara começar. Mas o documentarista
preciso ampliar a contextualização, incluindo diferentes campos
também não fala a língua, não é muçulmano, nem sabe qual a
e escalas”,5 explica a antropóloga brasileira Manuela Carneiro
firmeza adequada da mão quando se cumprimenta um homem
da Cunha sobre sua maneira de se aproximar de um evento.
na rua, ao mesmo tempo em que se surpreende ao ser olhado pelas mulheres em sua primeira caminhada no Cairo ()ةرهاقلا.
5 CARNEIRO DA CUNHA, 2010, p. 316
239
240
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
Poderíamos dizer que Manuela Carneiro da Cunha e o documen-
produtor de um saber, é porque elas já são um recorte, já pos-
tarista estão interessados no contexto, em um sentido antropoló-
suem uma distância em relação ao mundo que nos demanda.
gico, produzido por essa malha que, nas palavras de Roy Wagner,
O documentarista resiste à hiperequivalência entre todas as ima-
antropólogo americano: “um contexto é uma parte da experiên-
gens, como nos clips de cortes rápidos. Nem as imagens são todas
cia, – e também algo que nossa experiência constrói; é um am-
equivalentes, nem a montagem garante todo conhecimento. Se o
biente no interior do qual elementos simbólicos se relacionam
cinema e a arte podem resistir a certos poderes, a certas lógicas
entre si, e é formado pelo ato de relacioná-los.” Ampliar o seu
de apreensão da vida, é antes de tudo porque as próprias imagens
contexto é fazer de sua experiência com o cinema uma relação
resistem ao que desejamos impor a elas.
6
entre sons, cenas, memórias e imagens em que seja possível participar de sua invenção. O documentarista não pode, assim, abandonar a heterogeneidade do contexto que ele recebe e inventa.
5
Como escreveu Gabriel Tarde: “a heterogeneidade: eis a eterna pedra no caminho da utilidade, da finalidade, da harmonia!”7
No quarto de um hotel barato com vista para o Nilo ()لينلا,
Um contexto é uma montagem e disso o documentarista
o documentarista recapitula: ele sabe que o evento possui uma
acredita entender; como escreveu Deleuze, “há sempre um fio
textura – das peles, dos muros, das ruas. Possui um ritmo que se
para ligar o copo de água açucarada ao sistema solar, e qualquer
expressa no tempo em que um sujeito qualquer olha a rua, a pra-
conjunto a um conjunto mais vasto.” Com a montagem o docu-
ça ou o campo de onde saiu. Possui uma sonoridade, nem sempre
mentarista se permite abrir portas sem precisar percorrer todo o
traduzível e frequentemente não organizável em um discurso.
caminho, andar aos pulos em velocidades variadas, não porque
Possui uma velocidade de montagem que permite um flanar en-
tenha pressa, mas porque precisa ensaiar possíveis conexões sem
tre elementos heterogêneos.
8
necessariamente desenvolvê-las, precisa associar espaços sem
Talvez a noção tão cara a Jacques Rancière, a ideia de uma
obrigatoriamente conhecê-los em sua totalidade, o que é muito
partilha – partage em francês – ajude o documentarista nessa sua
diferente de ser superficial.
busca do evento. Partilhar possui dois sentidos: 1) Partilhar é fa-
Mas a montagem está em tudo, no jornalismo que frequen-
zer de algo um comum. É possível partilhar ou – compartilhar,
temente criticamos, nas gôndolas dos supermercados, nas sequ-
melhor seria – a rua, sons, cores, gestos. É possível tentar andar
ências musicadas, na equivalência infinita entre imagens a que
no ritmo do outro, como diz o cineasta brasileiro Andréa Tonacci,
somos expostos. Se as imagens nos demandam um olhar que é
para falar de seu esforço em filmar os índios; ambular na matéria,
6 WAGNER, 2010, p. 78
como diria Deleuze sobre o trabalho do artesão.9 Uma partilha é algo que não tem pertencimento exclusivo e que permite que
7 TARDE, 2007, p. 152 8 DELEUZE, 1985, p. 24
9 DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 92
241
242
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
manifestantes ses se digam argelinos na época da Guerra da
ao British Film Institut – ao lado das imagens do acampamento que
Argélia e que militantes brasileiros incorporem a denominação
ocupa a praça. Com o filme montado, lhe resta ainda a possibilida-
Guarani Kaiowá em suas identidades nas redes sociais. 2) Mas, os
de de aumentar o contraste entre o rosto do manifestante e o céu.
os compartilhados não são isolados de uma divisão, uma par-
Cercado de instrumentos e possibilidades sensíveis e discur-
tilha, uma separação. Aquilo que chamamos de mundo é pleno de
sivas, o documentarista sabe que não está sozinho, mas que, de
partilhas, recortes de quem tem ou não direito a certas experiên-
alguma maneira, é um mediador, um articulador de elementos
cias – da comida à arte, do espaço à fruição sensível. Compartilhar
sociais, poéticos e técnicos. No limite, quando decide pela a câ-
e dividir. Fazer junto e separar. “Estar com” e marcar a distância.
mera ligada na saída do metrô, pela câmera no tripé na altura
Eis a riqueza de uma noção plena de instabilidades que o docu-
dos olhos ou pelo microfone direcional em busca de uma fala,
mentarista identifica como algo que o ajudará a mediar seu esfor-
eliminando o entorno, a questão que lhe atravessa é: “quando
ço e desejo em estar com o outro, com o jovem que acorda cedo e
um documentarista age, quem age comigo?” Eis uma pergunta
vai encontrá-lo para irem juntos à Praça Tahrir. Na revolução, são
que o leva de volta a toda a mediação social e técnica em que está
justamente as linhas que dividem e separam que parecem pertur-
engajado. O documentarista no limite é um ser catalisador de po-
badas, assim como a emergência de novos espaços e desejos com-
tências humanas e não-humanas.
partilháveis parece ser o que estimula e encanta tantos egípcios
Acompanhado de uma história do cinema e com todos seus
naquele momento. “Nunca tive real orgulho de dizer, sou egíp-
instrumentos, o documentarista, talvez à diferença de um diretor
cia”, lhe dizia uma funcionária da TV local, “agora isso mudou”.
de ficção, não instaura uma cena, não parte de um cubo branco
O documentarista encontra no metrô o jovem que lhe
em que cada elemento pode ser organizado no espaço. O docu-
apresentará alguns grupos de manifestantes, o jovem lhe es-
mentarista parte de uma cena que o antecede. Seu poder catali-
tende a mão e o documentarista já sabe a pressão esperada nes-
sador opera articulando cena sobre cena, dobrando a cena. Tal ló-
se comprimento.
gica parece evidente quando o documentarista, com sua equipe, entra na casa que não conhece, acompanha o cotidiano de uma
6
escola ou entrevista pessoas. Mas, no centro do Cairo, cercado de manifestantes, feridos e câmeras, que sentido pode haver para uma certeza que sempre o acompanhou? A certeza de que a sua
O movimento em direção ao outro está impregnado de uma
presença em um lugar já diz muito sobre a comunidade a do-
necessidade de criação com os elementos que o documentarista
cumentar. A praça é a cena, certo, mas talvez sua singularidade
possui, seu corpo vestido com jeans, sua câmera Canon com ima-
resida em sua intensidade. Uma intensidade, escreveram Deleuze
gem em full HD, seu microfone Senheiser, seu conhecimento de
e Guattari, “não é composta por grandezas adicionais e deslocá-
inglês, sua possibilidade de sentar em uma ilha de edição Mac e
veis, uma temperatura não é a soma das temperaturas menores.
colocar uma foto da construção da Praça Tahrir – adquirida junto
Mas cada intensidade, sendo ela mesma uma diferença, se divide
243
244
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
segundo uma ordem na qual cada termo da divisão se distingue
pensar a modernidade, seja ela onde for, não se pode partir de
do outro por natureza”. Tahrir é cena de múltiplas cenas, palco
uma recusa da tradição. Ele falava do Cairo, pensa o documen-
de múltiplas intensidades e o documentarista ali é apenas mais
tarista: não há como romper com o ado, o que não significa
uma delas, talvez a mais gasta.
recusar a modernidade, “mas antes em elevar nossa maneira de
10
assumir a nossa relação com a tradição no nível que chamamos de ‘contemporaneidade’”. Uma contemporaneidade que, como
7
lembra Al Jabri, no mundo árabe “o renascimento, o iluminismo e a modernidade não representam etapas que se superam umas
Ao deixar a praça com os acelerados, depois de um gru-
às outras, mas, pelo contrário, estão entrelaçadas e coexistem no
po iniciar uma correria que não parecia ter um sentido exato, o
próprio interior da etapa contemporânea”.11 Tal coexistência de
documentarista coloca-se de costas para a Tahrir e percebe que as
tempos e sobreposições entre formas de interpretar e conhecer
ruas permanecem pouco alteradas, não muito diferentes dos dias
o mundo não é absolutamente nova para o documentarista que
normais. Seus ouvidos, entretanto, não se fecham e o barulho da
conhece o Brasil razoavelmente bem.
praça permanece, mesmo que seus olhos estejam voltados para uma loja de doces de onde uma senhora com um belo hijab ()باجح azul sai sem nem mesmo virar o rosto para o lado da praça. Para
8
aquela senhora, a cena que trouxe o documentarista até o Cairo não vale nem uma olhadela. Na ausência do olhar da senhora,
O documentarista já realizou outros filmes e para estar no
tudo se complexifica. Se ao olhar para a praça o documentaris-
Egito, para acompanhar a senhora dos doces ou para estar na
ta não podia abandonar os grandes conglomerados econômicos,
intensidade da praça, ele precisa de condições mínimas, alguns
no momento em que se vê impedido de cruzar seus olhos com
contatos e um pouco de dinheiro. Mais tarde, para finalizar o fil-
os olhos da senhora, o documentarista percebe que também não
me e reaver seus gastos, ele escreve um projeto e encontra um pa-
pode abandonar os que não olham para a praça, os que organi-
trocinador que lhe oferece a possibilidade de um pitching. Diante
zam os sentidos sem a grande movimentação que mobiliza a mí-
de uma banca, o documentarista tem 7 minutos para expor sua
dia de todo o mundo.
ideia e falar sobre a realidade que lhe interessa, suas ideias, mo-
Em Tahrir, repleta de mulheres com seus cabelos cobertos com tecidos coloridos, o documentarista se lembra das primei-
tivações e possibilidades econômicas. Neste primeiro momento, todo um sistema de traduções12 e transportes entra em ação.
ras leituras que fez antes de chegar ao Egito. Em uma delas, o filósofo marroquino Mouhammed Abed Al-Jabri lembra que para
11 AL-JABRI, 1999
10 DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 168
12 Podemos aproximar aqui essa tradução da Teoria do Ator-Rede e da Leitura que Fernanda Bruno faz dos escritos de Latour: “Agir, segundo a Teoria do Ator-Rede, é pro-
245
246
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
O olhar da senhora dos doces é pouco espetacular, mas o
com técnicos que o ajudaram a pensar o evento sonoramente e
calor da praça e as possíveis imagens inéditas podem mobili-
já introduziu instrumentos que o levaram a organizar o evento
zar os financiadores. Simultaneamente, o documentarista envia
oticamente. Como escreveu Ricoeur, “compreender é traduzir”.14
um projeto para um edital em que há uma definição de como
Em cada um dos momentos da pré-produção, a realidade, que
ele deve filmar e quais imagens deve usar. O edital é claro:
ainda não foi documentada efetivamente, não parou de produzir
“OBRA CINEMATOGRÁFICA é a obra que tenha como matriz origi-
e ser produzida na rede, entre técnicas, discursos que são repeti-
nal de captação: película cinematográfica Super 16mm ou 35 mm
dos, enunciados reiterados, tecnologias naturalizadas, impossibi-
ou es digitais de alta definição – HD, com resolução 1.080 x
litando qualquer o direto ao evento.
1.920 pixels, 1.080 x 1.440 pixels ou 720 x 1.280 pixels; por exemplo: 4K, 2K, HDCAM SR, HDCAM, XDCAM, XDCAM EX, DVRO HD e HDV.”13 As ideias iniciais de eventualmente utilizar imagens postadas nas
9
redes pelos manifestantes, precisa ser revista. As imagens ditas amadoras, as imagens da multidão equipada não se adéquam ao sis-
No sistema de tradução, com alguma verba na mão, o docu-
tema de tradução, não se adéquam ao modo de fazer a agem
mentarista coloca o corpo em ação: abandona o lugar de origem
das vidas ao filme que o edital exige.
para conviver, entrevistar, observar o que está distante, escon-
Transportar, das vidas aos filmes, é o gesto que faz o docu-
dido, pouco visto. Em outro momento, é na montagem que o
mentarista criando agens entre esses lugares institucionais,
tempo se junta ao espaço e as viagens empreendidas no corpo
tecnológicos, econômicos, cada um deles, operando transforma-
ganham uma segunda camada, aquela das elipses, das aproxima-
ções, acréscimos e traições ao evento. Essa tradução produz re-
ções entre tempos e espaços que não fazem parte de nenhuma
duções em relação ao ponto de partida na realidade, mas traz
unidade espaço-temporal. A produção de conhecimento que se
ganhos também. Para chegar no pitching, o cineasta já produziu
faz possível com o documentarista está ligada a esse lugar de via-
um projeto de filme, já escreveu sobre o tema e sobre a sua ideia
jante. Mas, seu viajar nada tem a ver com o turista, uma vez que
cinematográfica, já traduziu o filme em valores, já trabalhou
cabe ao documentarista resolver problemas de tradução. Como traduzir, interpretar, dar a sentir ao espectador, àquele que não
duzir uma diferença, um desvio, um deslocamento qualquer no curso dos acontecimentos e das associações. Mediação e tradução são termos que buscam definir esta ação que é transformação, ‘traição’. Os dois termos implicam deslocamentos de objetivos, interesses, dispositivos, entidades, tempos, lugares. Implicam desvios de percurso, criação de elos até então inexistentes e, que de algum modo, transformam os elementos imbricados.” (BRUNO, 2012, p. 694) 13 EDITAL Nº. 02, DE 21 DE DEZEMBRO DE 2011 – Secretaria do Audiovisual Ministério da Cultura, Brasil.
teve seu corpo envolvido com o calor, com o cheiro, com o tédio de um outro lugar ou com o risco de ser estrangeiro? Em outros termos, como fazer uma agem de uma experiência que é de uma equipe – e consequentemente de experiências pessoais – para uma experiência que se faz comum, sem a centralidade de 14 RICOEUR, 2011, p. 33
247
248
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
um sujeito. Como ar do indivíduo ao filme, que já é de todos.
E o documentarista convive com esse dilema na tradução.
Eis a mais radical dimensão poético-narrativa de qualquer expe-
Tem em mãos instrumentos para narrar e fazer sentir um mundo
riência. No centro de um sistema de traduções, o documentaris-
que pode descolar-se de um problema de tradução e ganhar plena
ta sabe que estará presente em tudo que filmar ou narrar, mas
independência. Estar na tradução não permite tal descolamento,
não pode deixar de tentar essa saída de si, intensificando o recuo.
mas metamorfoses constantes que se fazem da realidade ao filme
Como todo documentarista moderno, ele sabe que está sempre
sem que o mundo a traduzir deixe de ser estrangeiro a todos,
de saída, sem, entretanto, poder totalmente abandonar seu lugar;
inclusive aos seus próprios moradores.
um lugar que tende à centralidade, que tende a tê-lo como medida de tudo que acontece.
O documentarista se aproxima da senhora dos doces, procura seu ritmo e tira três fotos. Com toda discrição a acompanha por duas quadras. Sua cabeça levemente baixa não a impede de fazer
10
pequenos gestos para alguns comerciantes que, parados na porta de seus estabelecimentos, acompanham os movimentos da praça. Depois do segundo quarteirão, a praça parece não existir e a se-
A tradução, a que se depara o documentarista, é sedutora em si. Seus meios podem, no limite, ganhar autonomia em detrimen-
nhora entra em um prédio com as paredes marcadas pelo tempo – uma mistura de fumaça, borracha e poeira vinda do deserto.
to daquilo que há a traduzir, eis todo o risco da estetização do
Acompanhar aquela senhora e a possibilidade de colocar o
cinema – fazer uma “bela” imagem do outro não é documentar.
som da praça em off, ou um narrador, lhe a pela cabeça, mas
Mas, para o cineasta esse não é um problema novo. A tradução
o documentarista sabe do desastre iminente de todo filme: este
não é um gesto independente, ele não pode abandonar o objeto,
acontece quando não há mais nada a ser traduzido e o filme se
a praça, isso o documentarista já experimentou diversas vezes e,
faz na autonomia da tradução sem objeto. Esse risco é parte de
quando desejou que o cinema tomasse a frente ou quando per-
seu trabalho, e o documentarista sabe disso, sabe que não pode
cebeu que o cinema ia longe demais, abandonando a praça, lem-
parar o objeto, como leu em Comolli. O mundo não para para o
brou-se de um artigo de Maurice Blanchot – “Traduzir de…” sobre
cinema. O paradoxo parece inevitável. Como estar no que varia,
a obra de Joêl Bousquet, Traduzido do silêncio. Sobre esse título,
produzir uma imagem do que é variação, guardando a potência
Branchot escreve:
de variação na imagem que tende à estabilização.
o desejo de toda uma literatura que gostaria de permanecer uma tradução em estado puro, uma tradução aliviada de algo a tradu-
11
zir, um esforço para reter da linguagem a única distância que a linguagem procura guardar em relação a ela mesma e que no limite
Duas formulações simples do historiador da arte George
deve resultar em seu desaparecimento. (BLANCHOT, 1997, p. 173)
Didi-Huberman organizam para o documentarista um mundo de
249
250
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
possibilidades da imagem. A primeira se apresenta assim: “para
12
saber é preciso imaginar”. E, no caso do evento que o documen15
tarista deseja, as imagens serão absolutamente necessárias para
Não há o irrepresentável. O documentarista parte desta pre-
que se constitua com o espectador essa relação entre saber e ima-
missa sabendo que filmar é também criar uma visibilidade para o
ginar. Se o problema fosse apenas representar o evento, poderí-
evento, imaginar com ele. No final daquela tarde, tudo estava cal-
amos mesmo dizer que certos eventos são irrepresentáveis, que
mo no Cairo. A calma era um estado de espírito em uma cidade
ficamos sempre aquém de sua complexidade ou impomos repre-
agitada, jamais calma, barulhenta. Depois de uma longa conversa
sentação demais para um determinado evento, sobredeterminan-
com um membro da Irmandade Muçulmana, principal grupo is-
do-o, codificando possíveis experiências sensíveis.
lâmico do Egito que depois da revolução assumiria o poder com
16
É nesse sentido que se formulou toda uma reflexão sobre
o presidente Morsi, o documentarista sai para uma caminhada
a impossibilidade de representação do Holocausto – paradigma
por um dos lugares que mais imaginou estar antes de chegar ao
para tantos pensadores que refletiram sobre o poder e o impoder
Cairo; a ponte Qasr al-Nil ()رصق لينلا. A ponte conecta o leste e o
das imagens.17 Se a representação é uma redução, pensa o docu-
oeste do Cairo, e logo depois do dia 25 de janeiro, data que ficou
mentarista, o evento menos alguma coisa, todos que se coloca-
inscrita como marco inicial da revolução, a ponte foi palco de
vam contra a representação do Holocausto entendem a imagem
grandes batalhas entre manifestantes e a polícia que tentava os
utopicamente, como se ela fosse capaz de ar a totalidade
impedir de chegarem à Tahrir. Correram o mundo cenas fortís-
ou a essência do evento. Mas, pelo contrário, se é a imaginação
simas em que polícia de Mubarak, depois de jogar os caminhões
que é a demanda, a imagem torna-se decisiva para que possamos
contra os manifestantes, é dominada e obrigada a recuar permi-
saber sobre o evento e participar do conhecimento que o docu-
tindo a chegada dos manifestantes à praça.
mentarista se propõe a produzir sobre o que vê. É com imagens
Apesar das fortes imagens das batalhas na ponte, não eram
que imprimem um saber e um não-saber sobre a revolução em
apenas essas as imagens que o documentarista possui de Qasr
processo que o evento pode ser pensado. A revolução só existirá
al-Nil. Para o documentarista, filmar um lugar é fazer as novas
se ela for efetivamente construída e fabricada, com o cinema in-
imagens encontrarem as antigas, assim, uma imagem é sempre
clusive. Mas, obviamente, a contingência da revolução não faz o
uma relação entre imagens; frequentemente entre tempos. Como
sofrimento das ruas e dos hospitais menos real.
bem entendemos com Guy Debord, se o tempo não atravessa a imagem, há apenas espetáculo.18 O documentarista trazia para a
15 DIDI-HUBERMAN, 2003 16 RANCIÈRE, Jacques. S’il y a de l’irreprésentable, in Le Destin des images. Paris: La Fabrique, 2003. 17 Jean Luc Godard, Jacques Rivette, Giorgio Agamben, George Didi-Huberman, Theodor Adorno.
ponte as marcantes descrições que Tarik Sabry fizera em seu livro Cultural Encounters in the Arab World. Estudando a cultura jovem no mundo árabe, Sabry observa que a ponte é um espaço de suspen18 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, [1967] 1997, p. 103.
251
252
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
são da rigidez de normas sociais e é na ponte que jovens namorados andam de mãos dadas e até mesmo se beijam em público. O documentarista encontra na ponte mais do que esperava. Mais do que demonstrações de afeto, ao colocar a câmera na ponte o documentarista filma duas jovens que com seus coloridos hijabs seguram o parapeito e jogam seus corpos para trás, deixando o corpo marcar a vestimenta com uma liberdade que até então o documentarista não havia visto. Ele percebe que algo acontece ali e que aquele gesto estava em total sintonia com os militantes da praça e com os jovens que andavam de capacete ao lado do Ministério do Interior, para se protegerem das pedras e balas de borracha da polícia. O hijab, mais uma vez não demarcava apenas um conservadorismo, mas um orgulho feminino que também permitia movimentos e gestos livres. Havia uma pista ali que conectava o documentarista com os escritos de Guattari sobre Maio de 68: “não há revolução social sem revolução do de-
dem muito pouco. Eis então a segunda agem marcante no
sejo.” Aquele gesto das meninas, já filmado, ajudava o documen-
diálogo com Didi-Huberman: “Trata-se de colocar o múltiplo em
tarista a entender um dos seus papéis ali; se não havia o evento
movimento, de nada isolar, de fazer surgir os hiatos e as analo-
todo a ser representado, imaginar com as imagens era também
gias, as indeterminações e as sobredeterminações à obra”.19 Pela
a possibilidade de traçar linhas de continuidade entre gestos que
montagem o cinema se torna uma forma que pensa.
pareciam distintos: a liberdade do corpo na ponte, as noites dormidas na praça e as pedras contra o Ministério. Montar para conhecer, assim era demandada a imaginação
13
do documentarista, uma imaginação que com a montagem não se confundia com um homem isolado que ao pé de uma figuei-
A fragilidade do documentarista é evidente. Suas imagens
ra imagina um mundo, sonha com uma realidade. A imaginação
deveriam poder estar entre as armas dos militares e olhos dos
aqui é de outra espécie. Montar para conhecer é uma operação
revolucionários atingidos pelas balas. Imagem-escudo, imagem
mesmo com o real e com os elementos que o mundo apresen-
-barreira. Manter a salvo os olhos daqueles que ele filma. Mas isso
ta. Imaginação que não permite nem o isolamento daquele que
não é possível. Ele filma a polícia de um lado da praça, filma os
monta, uma vez que para conhecer é preciso produzir encontro, nem o isolamento das imagens, uma vez que sozinhas elas po-
19 DIDI-HUBERMAN, 2003, p.151
253
254
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
manifestantes do outro, mas suas imagens jamais conseguem es-
normalidade espetacular com que uma boa parte da mídia trata a
tar entre, parando as balas. As imagens, por mais que estivessem
revolução? Qual é imagem-raio, imagem-corte que, fugazmente,
no evento, eram frágeis e naquele momento apenas filmavam os
interrompe essa normalidade? O que resta depois da revolução,
olhos dos revolucionários sendo roubados. Um roubo que levava,
dos grandes eventos, das euforias ou depois de todos os desastres
na mesma violência, os olhos e a possibilidade das imagens da
é a banalidade, a vida ordinária. O documentarista vive o cotidia-
revolução existirem para aqueles olhos. A dor do documentarista
no e a banalidade de uma cidade que derruba uma ditadura, mas
era parte da morte que as balas de borracha impunham também
a vida ordinária está em cada canto. As imagens que restam, as
ao seu trabalho, ao roubarem os olhos daqueles que ele filma.
imagens e montagens possíveis não podem abandonar o trivial de
Quando os feridos iam para o cotidiano, a normalidade pa-
uma ida ao mercado ao lado da revolução, mas devem durar no
recia o mais duro dos eventos naquele lugar. Depois dos olhos
tempo, devem inventar formas sensíveis que possibilitem uma
feridos, dos mortos recolhidos da praça, tudo parecia novamen-
existência do que aqui acontece, apesar da banalidade cotidiana,
te estável. Se as imagens não podiam ser escudos, como inven-
apesar do espetáculo midiático.
tar alguma duração para o que acontecia, para o movimento do
O documentarista sabe que o evento não carece de visibili-
país que era também um movimento de tantas pessoas, desejos
dade e está sendo visto por milhares de câmeras com centenas de
e relações com a história. Como dar consistência sensível, nas
vozes e microfones. Depois dos jornalistas da Al Jazeera ()ةريزجلا
imagens, àquilo que tende à normalidade? Ou como estranhar a
e da CNN, ele marca uma entrevista com um Muhammad Badï (عيدب )دمحم, líder da Irmandade Muçulmana. A Irmandade foi explicitamente utilizada durante os anos Mubarak como uma ameaça ao ocidente. “Se vocês não me apoiarem, eles – os muçulmanos radicais – assumem”, esse era um forte argumento do ex-ditador para ter o apoio dos poderes ocidentais durante os 30 anos em que esteve no poder. O documentarista liga para um conhecido, organizador de um festival de cinema no Cairo e ele o coloca em contato com um jornalista local e é o jornalista que o leva até Badï. Por telefone, com a ajuda de um intérprete, marca um encontro com Badï e é recebido gentilmente por 3 homens que o levam até o escritório de um dos mais influentes muçulmanos do mundo. Ahmed o acompanha e traduz a conversa. Depois de um aperto de mãos, Badï leva o documentarista, o técnico de som e Ahmed até uma sala com alguns livros e decoração barata. Badï se senta em uma cadeira com os livros atrás e diz para o documenta-
255
256
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
rista: “esse é o melhor lugar para a entrevista”. O documentarista
tração estava voltada para aquele homem de palavras fortes e enér-
sorri e diz que na verdade não deseja fazer uma entrevista. Como
gicas, dedo em riste e que insistia na necessidade de um governo
assim? O documentarista explica que não é jornalista e que gos-
de coalização, de respeito às eleições e aos valores democráticos.
taria de, por alguns dias, acompanhar os trabalhos e encontros
Ao mesmo tempo, preocupado com as ações americanas, acostu-
de Badï nesse momento tão importante da história do Egito, as-
madas a apoiar ditaduras violentas como as de Mubarak, diz ele.
sim como Robert Drew fez com John Kennedy, no filme Primárias (1960) e João Salles com Lula, no filme Entreatos (2004). Sentado em sua poltrona, depois de ouvir a proposta do documentarista, Badï pega o telefone, troca três palavras com uma pessoa e diz para o documentarista que vai ter que sair. O docu-
Ao chegar à frente da mesquita de Al-Azhar ()رهزألا, o motorista para o carro, Badï desce e o documentarista pergunta se pode acompanhá-lo. – Foi um prazer a nossa conversa. All the best to our friends in Brazil! Aperta a mão do documentarista e entra na mesquita.
mentarista percebe estar deixando escapar um encontro fundamental. Desde que a revolução começara havia uma evidência de que se Mubarak caísse e eleições fossem realizadas, só duas
16
forças estavam efetivamente organizadas no país, o exército e a Irmandade. Isso colocava Badï no centro das disputas de poder.
Ao chegar ao hotel, o documentarista se põe a revisar o ma-
Badï ensaia se despedir do grupo, uma vez que o documentarista
terial gravado naquela tarde. Tudo que Badï dissera não trazia
havia dito que não queria uma entrevista, quando Ahmed tem a
novidade alguma, eram variações de falas presentes em entrevis-
presença de espírito de perguntar se a equipe podia lhe acompa-
tas conhecidas. Diante de falas redundantes, o documentarista se
nhar. Uma pessoa pode, diz Badï. Ahmed, o técnico de som e o do-
pergunta sobre a importância mesmo de sua presença ali. Seu tra-
cumentarista se olham. Com a agilidade o técnico de som pluga
balho não poderia se resumir a uma edição reflexiva sobre tudo
um microfone direcional à Câmera Canon que o documentarista
que já foi escrito, filmado e dito sobre a revolução? As entrevistas
leva. Três minutos depois o documentarista e Badï estão no banco
com Badï e com tantos outros personagens da política do Egito
de trás de um Mercedes dos anos 1980, conversando em inglês.
estão na internet, assim como as imagens de Tahrir e da ponte de Qasr al-Nil. Até que ponto a sua presença no Egito serviria
15
apenas como garantia de autoridade para poder editar um material que independia da sua experiência. Quando você chegou? Quanto tempo ficou? Quem encontrou? Essas eram perguntas
A cidade parecia completamente diferente. O documentarista
que certamente aparecerão quando o documentarista apresentar
não precisava mais ficar atento ao caminho a fazer e às pessoas que
seu filme. Mas era apenas para satisfazer o gosto do público pela
ocupavam as ruas, até a constância da buzinas parecia se arrefecer.
legitimidade indiciática que o documentarista estava no Cairo?
O carro era conduzido pelo motorista de Badï e toda a sua concen-
Ou, ao contrário, havia naquela aposta na experiência a possibili-
257
258
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
dade de uma sensibilidade individual – a do documentarista – ser
silêncio e congela a imagem, como se um instante singular da-
afetada pelo evento e tudo que o cerca e, com essa afecção, criar
quele longo encontro com o líder fosse capaz de dar a gravidade
imagens, sons e montagens que pudessem exprimir o evento de
do que se ava no Cairo. Ali a informação eclipsava-se e um
forma singular, voltando a ele para renová-lo.
dos homens que mais parecia ter uma posição sobre a revolução
Se as falas de Badï haviam se mantido como um discurso
aparecia em um instante de espera e suspensão. Aquilo não era
que antecedia o encontro com o documentarista, uma imagem,
uma metáfora. Mas o que é esse instante? Pergunta-se o documen-
entretanto, o mobilizava: Badï estava no carro e de dedo em riste
tarista. Duas opções, pensa o documentarista com a imagem de
falava da responsabilidade da Irmandade com o seu povo, com
Badï congelada na tela do computador. Duas possibilidades não
os mais necessitados. Por um momento parou e manteve um
excludentes: a primeira é que o instante é um fragmento de um
minuto de silêncio, como se uma imagem intempestiva, ou um
tempo maior. Uma pequena parte de um tempo que flui. Em um
pensamento ainda não articulado em palavras tivesse cruzado
tempo infinitamente divisível em segundos, décimos, etc. O ins-
seu caminho. Mouhammed Badï olhou pela janela os pedestres
tante é um mínimo ponto dessas subdivisões. No caso do cinema,
que achavam seus caminhos em meio ao labirinto de carros e
em que o tempo pode ser divisível em quadros, o instante seria
assim ficou outro minuto. A frase sobre os Estados Unidos havia
1/24 do segundo. Nesses casos, o instante é um fragmento de um
ficado suspensa dois minutos atrás. E, em um tom de voz mais
tempo divisível. Entretanto, o que estava diante do documentaris-
baixo, ainda olhando pela janela, Badï citou o verso três da Sura
ta não era apenas uma subdivisão do segundo, até porque ao con-
al Ankaboot (توبكنعلا
)ةروسdo Corão: “Alá certamente tornará
gelar a imagem de Badï o tempo não parava. A cada segundo de
evidente os que mentem e os que dizem a verdade” saindo do
imagem congelada havia 24 imagens iguais de Badï com o Cairo
inglês e fazendo a citação em árabe. O que não podia ser dito,
ao fundo. O que se congelava diante do documentarista não era o
o que ficara suspenso nas palavras de Badï, apareceu sem tradu-
tempo, não era a mudança que o tempo traz para as coisas, para
ção e enigmaticamente demandando uma justiça divina. A me-
o mundo, mas apenas o espaço. A aposta do documentarista ao
mória que atravessou o líder não podia mais aparecer em forma
aceitar aquela imagem para o filme era de que naquele congela-
de informação. Importava na imagem o silêncio com o Cairo no
mento do espaço, o tempo – aquilo que muda – traz a variação, e,
segundo plano, pela janela do carro. Aquele momento em que a
porque não, a revolução com mais intensidade. O instante assim
língua árabe interrompe o fluxo de informações, parecia dizer
não era um instante privilegiado, como se ele condensasse um
muito sobre a gravidade do que acontecia no Egito. As palavras de
sentido oculto da revolução, mas um instante que, separado da
Badï repetidas para as várias emissoras pouco significavam diante
continuidade homogênea do tempo dividido em 24 quadros por
desse momento em que as palavras faltaram e o Corão vinha a
segundo, intensificava a percepção da mudança, do inacabamen-
salvá-lo, dando-lhe um novo chão.
to do pensamento em relação ao mundo.
Revendo as imagens em seu quarto de hotel com o Nilo ao
O documentarista aperta o play e a imagem volta a sua velo-
fundo, o documentarista faz idas e vindas na imagem de Badï em
cidade normal. Para a edição do filme, fica a dúvida: seria neces-
259
260
Cezar Migliorin
sário interromper o fluxo das imagens congelando a imagem de Badï para armos esse instante que intensifica a mudança, ou
narrativas sensoriais BRUNO, Fernanda. Rastros digitais: o que eles se tornam quando vistos sob a perspectiva da teoria ator-rede. XXI Encontro Anual da COMPÓS (2012).
é o próprio Badï que, interrompendo sua fala roteirizada, man-
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com Aspas. São Paulo: CosacNaify, 2010.
tendo um silêncio de um minuto, abandonando o inglês e indo
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, [1967] 1997.
para o árabe, age como cineasta e faz um corte seco entre dois
DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Les Édtions de Minuit, 2003.
ritmos, duas línguas, duas formas de expressão?
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2010. DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
17 Há filme, se disse o documentarista naquela noite depois do
DELEUZE, G & GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DELEUZE, G & GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 5. São Paulo, 34, 1997.
encontro com o Badï. Nessa mesma noite o documentarista ligou
GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo:
para seu produtor no Brasil. Há filme, disse ele entusiasmado por
Editora Brasiliense, 1980.
ter chegado a imagens que não se confundiam com a informação, como as buscadas pela maior parte do jornalismo, nem imagens
LATOUR, Bruno. Redes que a razão desconhece: laboratórios, bibliotecas, coleções. In: PARENTE, André (org.) Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004.
subjetivas, vindas de seu olhar privilegiado de cineasta. Se era
LAZZARATO, Maurizio. Expérimentations politiques. Paris: Editions Amsterdam, 2009.
possível falar em objetividade, ela era fruto dessa imagem que
MIGLORIN, Cezar & BRUNO, Fernanda. Junho de 2013, Brasil: Como pensar um acontecimento In. Revista Atual, Ed. Azougue, # 1 – set 2013.
aparecia formada por toda uma conjunção de fatores sociais, éticos e políticos e atores humanos e tecnológicos em que o documentarista era apenas um elemento. Há filme, poderia dizer o
RANCIÈRE, Jacques. Et tant pis pour les gens fatigués: entretiens. Paris: Amsterdam, 2009.
documentarista: eu estou desaparecendo! O acontecimento que
_____. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.
busca o documentarista não é o outro da imagem, mas, como um
RICOEUR, Paul. Sobre a tradução. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
nó da madeira, é parte do fluxo das coisas, a pelo interior dos indivíduos e pela constituição da imagem. Como já sabia Bergson há muito, “o olho está nas coisas”.
Referências bibliográficas AL-JABRI, Mouhammed Adeb. Introdução à Crítica da Razão Árabe. São Paulo: Editora Unesp, 1999. BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997.
SABRY, Tarik. Cultural Encounters in the Arab World. London: I.B. Tauris ans Co., 2010. TARDE, Gabriel. Monadologia e Sociologia. São Paulo: Cosac Naify, 2007. WAGNER, Roy. A invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
261
263
biografias
André Parente é
artista e teórico do cinema e das novas mí-
dias. Em 1987 obtém o doutorado na Universidade de Paris 8 sob a orientação de Gilles Deleuze. Em 1991 funda o Núcleo de Tecnologia da Imagem (N-Imagem) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre 1977 e 2007, realiza inúmeros vídeos, filmes e instalações nos quais predominam a dimensão experimental e a conceitual. Seus trabalhos foram apresentados no Brasil e no exterior (Alemanha, França, Espanha, Suécia, México, Canadá, Argentina, Colômbia, China, entre muitos outros). É autor de vários livros: Imagem-máquina. A era das tecnologias do virtual (1993), Sobre o cinema do simulacro (1998), O virtual e o hipertextual (1999), Narrativa e modernidade (2000), Tramas da rede (2004), Cinéma et narrativité (L’Harmattan, 2005), Preparações e tarefas (2007), Cinema em trânsito (2012), Cinema/Deleuze (2013), Cinemáticos (2013), entre outros. Nos últimos anos obteve vários prêmios: Prêmio Transmídia do Itaú Cultural, Prêmio Petrobrás de Novas Mídias, Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia,
264
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
Prêmio Petrobrás de Memória das artes, Prêmio Oi Cultural,
Cezar Migliorin é pesquisador, professor e ensaísta. Membro do
Prêmio da Caixa Cultural Brasília, Prêmio Funarte 2013, en-
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF e Chefe do
tre outros.
Departamento de Cinema e Vídeo. Coordenador do Laboratório Kumã de pesquisa e experimentação em imagem e som. Organizador
Andréa França é Professora do Programa de Pós-Graduação em
do livro Ensaios no Real: o documentário brasileiro hoje. (Ed. Azougue,
Comunicação Social da PUC-Rio. Doutora em Comunicação pela
2010). Coordenador da 8ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos da
Escola de Comunicação da UFRJ. Pesquisadora do CNPq e Líder
América do Sul. Doutor em Comunicação e Cinema pela UFRJ e
do Grupo de Pesquisa O documentário dentro e fora da tv bra-
Paris 3 (Sorbonne Nouvelle).
sileira, os anos 1970/80”. Coordenadora do Curso de Cinema da PUC-Rio. Ex-coordenadora do GT da COMPÓS, Estudos de
Consuelo Lins é professora da Escola de Comunicação da Universi-
Cinema, fotografia e audiovisual nos anos de 2011 e 2012. Tem ar-
dade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do CNPQ. Formada
tigos e livros publicados na área de Comunicação, com ênfase
em Comunicação pela PUC/RJ, com mestrado na ECO/UFRJ, e ain-
em cinema contemporâneo, documentário e audiovisual, en-
da mestrado, doutorado (1989/1994) e pós-doutorado (2005) em
tre eles: Cinema em azul, branco e vermelho – a trilogia de Kieslowski
Cinema e Audiovisual pela Universidade de Paris 3 (Sorbonne
(Sette Letras, Faperj), Terras e fronteiras no cinema político con-
Nouvelle). É autora de O documentário de Eduardo Coutinho; televisão,
temporâneo (Faperj, 7 Letras, 2004), organizadora da coletânea
cinema e vídeo (Jorge Zahar editor – 2004/2012) e, em parceria com
Cinema, globalização e interculturalidade (ed. Argos, 2010), colabo-
Cláudia Mesquita, Filmar o real, sobre o documentário brasileiro contem-
radora de Ensaios no real (ed. Azougue, 2010) e New Argentine and
porâneo (Jorge Zahar editor – 2008/2011). Ensaísta e crítica, escre-
Brazilian Cinema: Reality Effects (ed. Palgrave Macmillan, 2013),
ve regularmente sobre a produção audiovisual contemporânea.
entre outros.
É também diretora de Lectures (2005), Leituras Cariocas (2009), Babás
Beatriz Furtado é professora do Instituto de Cultura e Arte (ICA),
(2010), entre outros, exibidos e premiados em vários festivais.
da Universidade Federal do Ceará, do curso de graduação em
Cristian Borges é Professor do Departamento de Cinema, Rádio e
Cinema e Audiovisual e dos programas de pós-graduação em
Televisão e do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos
Artes e em Comunicação. É autora de Imagens Eletrônicas e Paisagem
Audiovisuais da Universidade de São Paulo. Doutor em Cinema e
Urbana – Intervenções Espaço-temporais no Mundo da Vida Cotidiana
Audiovisual pela Universidade de Paris 3 (Sorbonne Nouvelle) e
(Relime-Dumará); Cidade Anônima (Hedra); Imagens que Resistem
mestre em Cinema pela Universidade de Bristol, especializou-se
(Intermeios). Organizou os dois volumes de Imagem Contemporânea
em questões ligadas à construção fílmica. Como cineasta, reali-
I e II (Hedra) e, junto com Daniel Lins, Fazendo Rizoma (Hedra).
zou sete curtas metragens exibidos em diversos festivais no Brasil
Coordena, desde 2006, o Laboratório de Estudos e Experimentais
e no exterior, além de ter sido um dos fundadores do Festival
em Audiovisual (LEEA).
Brasileiro de Cinema Universitário. Atualmente, desenvolve pes-
265
266
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
quisa de pós-doutorado com bolsa FAPESP na Universidade de
ganizador de O Cinema dos Anos 90 (Chapecó, Argos, 2005). No mo-
Nova York, é um dos editores da Revista Laika e vice-coordena-
mento, conclui a pesquisa Encenações do Comum, num diálogo
dor do Laboratório de Investigação e Crítica Audiovisual (LAICA)
entre cinema, teatro e artes visuais, e prepara projeto para se
da USP.
iniciar, em 2014, chamado Afetos, Relações e Encontros, que pro-
Denilson Lopes (
[email protected])
cura dialogar o conceito sobre a sensação, os afectos e os percepé professor associado
tos de Deleuze e Guattari com os estudos de gênero/teoria queer
da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
a fim de analisar, de forma comparativa, filmes brasileiros feitos
Janeiro, bolsista de produtividade científica do Conselho Nacional
nos últimos anos. Este projeto está inserido dentro do grupo de
de Pesquisa (CNPq). Foi professor da Faculdade de Comunicação
estudos Afeto, Gênero e Encenação que coordena.
da Universidade de Brasília, de 1997 a 2007, onde coordenou o Programa de Pós-Graduação. Foi presidente da Associação
Eduardo de Jesus é
Brasileira de Estudos de Homocultura (ABEH), Presidente da
PUC Minas, Mestre em Comunicação pela UFMG e doutor em
Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE)
Artes pela ECA/USP. É professor do programa de pós-graduação
e Superintendente de Difusão Cultural do Fórum de Ciência e
da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas. Integra a
Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi pesquisador
Associação Cultural Videobrasil. Coordenou e atuou como cura-
visitante na City University of New York, na New York University
dor dos projetos Circuito Mineiro de Audiovisual e Imagem-pensamento.
e na Universidade de Montreal. Também ocupou a Cátedra Rui
Atuou como curador na exposição Dense Local no contexto do fes-
Barbosa de Estudos Brasileiros na Universidade de Leiden na
tival Transitio-MX (Cidade do México, 2009) e Esses espaços (Belo
Holanda. Tem dado palestras e cursos em várias universidades
Horizonte, 2010).
dentro e fora do Brasil. Tem experiência na área de Comunicação,
graduado em Comunicação *Social pela
com ênfase em Estética da Comunicação, atuando principalmen-
Katia Maciel é artista, poeta, pesquisadora do CNPq e professora
te nos seguintes temas: estética da comunicação, cinema contem-
da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
porâneo, estudos de gênero (estudos gays e transgêneros), crítica
Janeiro. Publicou, entre outros, os livros Poesia e videoarte (com
de cultura e arte contemporâneas, estudos culturais, literatura
Renato Rezende, 2013), Instruções para filmes (com Lívia Flores,
comparada. Autor de No Coração do Mundo: Paisagens Transculturais
2013), ZUN (2012), Transcinemas (2009), Cinema Sim (2008), Brasil ex-
(Rio de Janeiro, Rocco, 2012), A Delicadeza: Estética, Experiência e
perimental, de Guy Brett (org. 2005), Redes sensoriais (com André
Paisagens (Brasília, EdUnB, 2007), O Homem que Amava Rapazes e
Parente, 2003), O pensamento de cinema no Brasil (2000) e A Arte da
Outros Ensaios (RJ, Aeroplano, 2002) e Nós os Mortos: Melancolia e Neo-
Desaparição, de Jean Baudrillard (org. 1997). Seus filmes, vídeos
Barroco (RJ, 7Letras, 1999), co-organizador de Imagem e Diversidade
e instalações foram expostos no Brasil e em vários países, e pre-
Sexual (SP, Nojosa, 2004), em conjunto com Andrea França; de
miados pela Caixa Cultural Brasília (2011), Funarte de Estímulo
Cinema, Globalização e Interculturalidade (Chapecó, Argos, 2010) e or-
à Criação Artística em Artes Visuais (2010), Rumos Itaú Cultural
267
268
Cezar Migliorin
narrativas sensoriais
(2009), Sérgio Motta (2005), Petrobrás Mídias Digitais (2003),
(responsável por sua política internacional), ele é, desde 2012 e até
Transmídia Itaú Cultural (2002), Artes Visuais Rioarte (2000).
2017, membro sênior do Instituto Universitário da (IUF), onde lidera um projeto de pesquisa sobre “Pós-cinema”. Publicou
Patricia Machado é
Doutoranda em Comunicação pela ECO-
uma dezena de livros e mais de uma centena de artigos sobre a
UFRJ (co-orientadora Andréa França / orientadora Consuelo Lins).
fotografia, o cinema e o video, incluindo O Ato Fotográfico, seu
Mestre em Comunicação Social pela PUC-Rio. Pesquisa questões
primeiro livro em 1983 (traduzido em muitas línguas, incluin-
relacionadas ao audiovisual, documentário, memória e arqui-
do o português - Edições Papirus) e seu último livro La Question
vos cinematográficos.
vidéo. Entre cinéma et art contemporain (éd. Yellow Now, 2012 – tra-
Patrícia Moran é
duzido também para o português pela Cosac e Naify sob o título Doutora em Comunicação e Semiótica pela
Cinema, Video, Godard). Foi crítico (foto, cinema e vídeo), editor
PUC de São Paulo. Professora da Escola de Comunicações e Artes
da Revista Belga de Cinema. Tem colaborado com a Cinemateca
da USP. Pesquisadora do LAICA, Laboratório de Investigação e
Real da Bélgica e criou com ela o programa europeu Arquimídia.
Crítica Audiovisual vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Também é editor (co)responsável por várias coleções (“Artes e
Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP. Pesquisa a produção
Cinema” da Deboeck, “Cinéthésis” da Fórum) e revistas (Filme
audiovisual tendo em vista o impacto das novas tecnologias na
& CIE). Suas áreas de especialidade, ainda em uma abordagem
cultura contemporânea e na poética audiovisual. Diretora de
multidisciplinar, são a teoria das formas visuais, a estética das
cinema e vídeo participou de importantes festivais internacio-
imagens, arte contemporânea, metodologia e análise fílmica.
nais como o Festival de Berlim e foi premiada em festivais na-
Entre seus interesses, além da foto e do vídeo, há Godard, Marker,
cionais e internacionais com seus ensaios audiovisuais. Premiada
Fritz Lang, Albert Lewin, Un Chien Andalou, o cinema mudo, ex-
com bolsa da Fundação Vittae de Artes. A experimentação com
perimental. E, claro, todas as relações entre cinema e arte con-
formatos e gêneros é uma das marcas de trabalhos como o en-
temporânea, em que publicou ao longo dos últimos cinco anos,
saio documental Clandestinos e a ficção Plano-Sequência que emu-
nove livros coletivos.
la recursos televisivos. Lançou em 2012 seu filme experimental de longa-metragem Ponto Org. Em fase nova, prepara projetos e
Priscila Arantes é
filmagens. Editora e autora do livro sobre Machinima editado
ra cultural. É diretora e curadora do Paço das Artes (Secretaria
pelo CINUSP. Tem diversos textos publicados.
de Estado da Cultura) desde 2007 e docente da Pontifícia
pesquisadora, curadora, professora e gesto-
Universidade Católica (PUC/SP) no curso de Arte: história, crítica
Philippe Dubois (nascido em 1952) é professor no Departamento
e curadoria (graduação e pós graduação). É pós-doutora junto à
de Cinema e Audiovisual da Universidade Sorbonne Nouvelle –
Penn State University (USA) e integra o grupo de pesquisa cadastra-
Paris 3 onde é titular da cadeira de “Teoria das formas visuais”.
do no CNPq Arte: história, crítica e curadoria. Foi diretora de pro-
Além disso, depois de 6 anos como vice-presidente da Universidade
gramação do Museu da Imagem e Som (2007-2011) e membro do
269
270
Cezar Migliorin
Conselho Editorial da Revista do Polo de Arte Contemporânea da Bienal Internacional de São Paulo (2010). É parecerista da CAPES/ MEC na área de artes e membro do Comitê de História, Teoria e Crítica de Arte da ANPAP. É autora de Arte @ Mídia (Ed.Senac/ FAPESP), finalista do 48 prêmio jabuti; Estéticas Tecnológicas (Educ), Crossing [Travessias] (EDUSP) e Re/escrituras da Arte Contemporânea: história, arquivo e mídia (prelo). Entre suas curadorias destacam-se Assim é, se lhe parece (2011) e o Projeto 5X5 (2012), ambas realizadas no Paço das Artes.
Fontes Swift
e Knockout
Gráfica Walprint