Dedico este livro ao meu filho, único e muito amado, para quem nunca deixarei de olhar.
Índice
Prefácio Introdução
Como desenhar a tua própria vida/a tua estratégia [A história de Francisco] Mudança de paradigma Construir a sua própria marca pessoal Sê um entrepreneur de ti próprio O que nos realiza enquanto seres humanos? O que nos motiva? [A história de Carminho] Qual é o teu dom? [A história de César e de Mafalda] O que é um dom? E um talento? Seguir o caminho previsto ou arriscar? [A história de Vanda] Persistência e paixão [A história de Cristina]
O que é ser persistente? O que é ter paixão? Inteligência Emocional: uma ferramenta muito útil [A história de Vasco] Exponenciar-se a si próprio. Viver para um futuro abundante [A história de Deepak] A escolha é sempre de cada um de nós. O tempo como valor fundamental [A história de Marin, Artur, Raul e Isabel] O que é o tempo? Falhar é um processo natural de aprender e crescer [A história de Miguel] Ser único, novas formas de viver e desempenhar um lugar socioprofissional [A história de Sofia]
Conclusão Agradecimentos Livros inspiradores durante a escrita desta obra
Prefácio
Maria da Glória desafiou-me para prefaciar este seu segundo livro – Pessoas com Talento (como nós) – em pleno período de quarentena motivado pela COVID-19. É, na verdade, inquestionável que só alguém que tenha dedicado com sucesso a sua vida em torno do Executive Search poderia desenhar tão modelarmente um conjunto de ideias-chave à volta de histórias, que acabam por ilustrar cada desafio da reflexão que nos deseja lançar. O livro interpela-nos num momento em que sentimos que esta crise, que imobilizou milhões de pessoas nos vários cantos do planeta, traça uma verdadeira fronteira entre dois mundos bem diversos. Como bem disse Arundhati Roy, podemos escolher atravessar essa fronteira, «carregando tudo o que caracteriza o nosso quotidiano ou despojarmo-nos prontos para imaginarmos um outro mundo e prontos a lutar por ele». De certa forma, e não ignorando o quanto a condição humana é avessa a revisitar modelos pré-estabelecidos e fórmulas cristalizadas, a autora interpela o leitor, sem recurso a exercícios teóricos ou construções doutrinárias (sempre de eficácia duvidosa), a reflectir na construção de estratégias pessoais onde paradigmas devem ser questionados com o objectivo da caracterização de uma imagem e de uma reputação pessoais que nos projectam, não só reflectindo a nossa própria essência, mas comunicando as mesmas de forma visível, atractiva e diferenciada, indagando a cada momento qual a imagem que transmitimos e como ela evidencia a nossa diferenciação. Mas o livro atravessa questões estruturantes no contexto da nossa progressão e realização pessoais. Guiada sempre com lastro em casos ilustrativos, a narrativa evidencia o relevo da motivação como força propulsora de um desempenho superlativo, estando baseado numa combinação virtuosa entre criatividade, autonomia e objectivos claros.
Mais que o clássico binómio «recompensa/sucesso», a sublimação do mesmo numa equação que conjuga os ingredientes da motivação, eis a chave que Maria da Glória relembra como redentora de uma nova forma de olhar o nosso percurso de vida. Logo após, somos levados a viajar na dialéctica, não fácil, entre os dons e os talentos e o repto de saber desenvolvê-los, reconhecendo que tal exige autoanálise, determinação e muito trabalho fecundado pela autoconfiança e pela coragem. Tendo sido confrontado há quarenta e três anos entre um percurso algo definido (num contexto conturbado/pós-Abril), mas previsível e relativamente seguro na terra de origem, e uma aventura numa nova geografia com imensas incógnitas, sei bem o que a autora tenta ilustrar com a história de Vanda – seguir o caminho ou arriscar radicalmente. São escolhas e só posso dizer que não teria feito o meu percurso pessoal e profissional se não tivesse optado pela segunda. Quando Maria da Glória nos leva a reflectir na persistência e paixão, não resisto a citar Tolstoi com a máxima que me tem guiado e que sempre tentei ar aos meus filhos e colaboradores. Podemos nem sempre fazer o que gostamos, mas temos sempre que gostar do que fazemos, e ao fazê-lo apaixonarmo-nos por uma missão que nos realiza e entusiasma. A trajectória de Cristina tal ilustra. O livro ainda nos interpela sobre o empreendedorismo, a inteligência emocional e a inteligência artificial. Vale a citação de David Goleman e a declinação das cinco habilidades (intrapessoais e interpessoais) que constituem uma chave inquestionável para o nosso sucesso. Cativaram-me, em particular, os três últimos capítulos porque mais prospectivos – por um lado viver o tempo de cada um, não como fatalidade inexorável ou algo exterior, mas sim uma variável que nos compete tentar balancear e controlar, e por outro aceitar mudanças, etapas e novos desafios, sempre logrando traçar a bissectriz do ângulo entre a realidade e a felicidade. Aí sim, aprender com os desaires e insucessos e tentar estar atentos às oportunidades, buscando sonhar porque, como dizia Shakespeare, «o sonho define a personagem». O sonho tem de reflectir a nossa esperança e desejo de alcançá-lo, com a preocupação de compreender que cada um de nós é um projecto único, e que
nos cabe a tentativa permanente de buscar a realização e a felicidade na fidelidade a esse projecto que vamos traçando com os que amamos, saboreando a mística de cada instante. Para todos os que buscam um roteiro de ideias para reflexão (em particular numa fase tão difícil como a que atravessamos), este livro deixa o leitor com muitas pistas e o sorriso de perceber que a vida e a beleza nos pertencem. Se o vírus nos fez lembrar algumas realidades bem prosaicas, essa é uma delas! Obrigado, Maria da Glória.
Pedro Rebelo de Sousa Lisboa, Abril de 2020
Introdução
Este livro foi escrito como resultado de um desafio, uma espécie de proposta que mais uma vez me foi lançada. E eu aceitei, na tentativa de partilhar um pouco mais da minha experiência profissional, do que aprendi nos diferentes processos em que me envolvi, do apoio que dou às diferentes organizações empresariais com que trabalho na contratação e optimização dos seus quadros, com as pessoas de vários campos profissionais que conheci e com quem me cruzei ao longo deste meu caminho como consultora de Executive Search. No meu livro anterior, Eu Sou o Meu Maior Projecto, o que parece que os leitores mais gostaram terão sido as histórias reais que contei para sustentar como exemplos os vários aspectos do «EU» socioprofissional, então abordados de forma mais ou menos teórica. Neste livro parto daí. Começo com histórias que me marcaram ao longo deste meu percurso profissional, salvaguardando claro a identidade dos seus protagonistas, para falar-vos de dez temas que me parecem fundamentais quando falamos de carreira e de construção de um percurso profissional. A saber: a construção de uma estratégia própria e de uma marca pessoal, a motivação, o risco, a importância da inteligência emocional, o tempo e a escolha, o talento, a persistência e a paixão, a capacidade de nos exponenciarmos, o que significa falhar e o ser-se único neste mundo, tentando-nos diferenciar dos demais. Temas que percorrem um leque muito variado de perspectivas, tanto se as situarmos na época incisiva do seu debate como na forma como são abordadas. Por exemplo, escrevo desde o muito visitado tema da motivação intrínseca e estrutural aos conceitos futuristas da vida exponencial e abundante que defendem em Silicon Valley e na Singularity University. Apresento casos em que a pessoa descrita aproveita e expande todo o seu talento original, conseguindo atingir objectivos notáveis para si própria e para os que a rodeiam. Mas também conto a história de outros que não quiseram chegar lá, ficando-se pela serenidade da agem dos dias e deixando que a vida os leve como o vento leva uma pena. Ao longo do meu percurso profissional, tenho assistido à forma como alguns
destes pilares influenciam a vida das pessoas. Como os seus actos, os seus processos de decisão e a visão que tinham de si e do mundo influenciaram as suas tomadas de decisão e o seu projecto profissional. Ao contar as suas histórias e falar desses pilares, espero de alguma forma ajudar quem me lê a construir um percurso profissional único e coerente, que o torne num ser motivado e realizado. Agora, nesta altura em que termino esta escrita, estou num processo de intensa e violenta aprendizagem sobre as atitudes missionárias, moralistas e desesperadas de uns e outros sobre a guerra viral que vivemos graças à COVID-19. Parece-me que são os mais ignorantes quem mais vaticina sobre o que está certo e o que é errado. Só um ou outro sábio comenta que nada sabe para além das interpretações possíveis dos boletins médicos e da leitura que a abordagem dos modelos matemáticos nos dá. Eu pertenço ao pequeno grupo que tem consciência de que nada sabe, mas tento melhorar os conhecimentos e sei que cada um de nós deve fazer o que considera mais adequado, sendo alguma coisa de útil e não entrando em estado de «hibernação». Ao longo da minha vida busco constantemente a aprendizagem, o conhecimento e a formação. Quando me predispus a escrever este livro, foram estes princípios que me nortearam: partilhar através de histórias reais a inspiração para a mudança e a optimização de cada um, valendo sempre a pena repensarmos e tentar melhorar. Porque sei com toda a certeza que: O FUTURO COMEÇA HOJE.
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COMO DESENHAR A TUA PRÓPRIA VIDA/ /A TUA ESTRATÉGIA
[A HISTÓRIA DE FRANCISCO]
O Francisco nasceu numa cidade do Interior. Cresceu numa família que era notável na região. O bisavô era herdeiro de várias gerações de pessoas influentes e muito respeitadas. Foi o primeiro a conduzir um carro pela província adentro para além de 100 quilómetros de distância de Lisboa. Tinha importado um Fiat no princípio do século xx . Anos mais tarde, o Francisco emocionou-se quando viu esse automóvel no Museu do Caramulo e leu o nome do seu anteado como pioneiro do interesse e importação automóvel em Portugal. Na sua cidade havia um jardim com o seu nome e não havia quem não o mencionasse como uma referência e orgulho para a região. Tinha sido sempre um homem preocupado com o desenvolvimento da zona. Conseguiu levar para a cidade o Ensino Politécnico de Produção Animal, o curso de Gestão Agro-Industrial, a Escola de Educação, entre outras valências. Também conseguiu ter influência no poder central e desenvolveu um centro de saúde que veio a ser mais tarde um hospital, construiu um centro de terceira idade e um cineteatro onde as películas, teatros e outros espectáculos em digressão sempre avam. Como era um viajante e permanentemente assíduo das melhores casas de cultura na Europa, compreendia a importância do ensino cultural. Criou um centro de ensino de música e ballet com o seu nome que, ainda hoje, forma jovens artistas com projecção internacional. Era uma referência na região e deixou um legado que se transformou numa pesada herança… A avó do Francisco licenciou-se em Farmácia em Coimbra. Foi uma das primeiras senhoras licenciadas em Ciências nesta universidade, gozando de grande prestígio na cidade. Tinha um porte marcadamente aristocrata e era obcecada pela etiqueta e boas maneiras, dizia sempre que só se tem a ganhar com o trato correcto e delicado. O pai quase não falava do avô. Parece que este gostava demasiado do jogo, da caça e de eternos convívios com os amigos. De tão intensamente viver, morreu de ataque cardíaco muito novo; porém, ainda teve tempo de conseguir desbaratar uma pequena indústria de tecelagem em seda da herança da avó e vender apreciável área agrícola. O pai do Francisco foi para Lisboa para a faculdade nos anos 1960. Vivia-se
uma época de mudança e descoberta. As solicitações eram muitas e os estímulos sociais eram poderosos, atacando os comportamentos como tempestades tropicais. Perdeu dois anos na universidade. Em um deles quase não frequentou as aulas. Conseguiu ir à boleia até Borgonha onde ficou numa quinta, enamorando-se por uma e por outra até que a mãe deste lhe impôs o regresso através do corte de mesada. Tempo perdido na universidade significava, na altura, ida obrigatória para o serviço militar. Depois deste tipo de experiência, da vivência hiperagressiva da guerra e de todas as privações delas resultantes, era difícil, aquando do regresso, continuar como imberbe estudante… Não se licenciou nem se preparou para nada em específico. Nem sequer sabia organizar as ideias e decidir o que queria fazer. Lá arranjou um lugar na istração local, tendo em conta o nome da sua família e foi vivendo mais dedicado à sua extraordinária colecção de música e à rádio local do que a outra coisa que lhe desse sustento. Era assim como um antigo conde na miséria: tinha herdado nome, linhagem e até prestígio no imaginário da região, mas não tinha onde «cair morto». A mãe de Francisco fora uma lindíssima menina, filha da costureira da avó. Como quase sempre acontece, o pai olhou para essa menina e resolveu fazer tudo para a ter. Entretanto, o pai e a mãe lá foram sendo mais ou menos felizes na pequenez envolvente daquele meio. Nem um nem outro revelaram qualquer insatisfação relacionada com a sua pacata vida. Tudo parecia estar de acordo. A ausência de rasgo e capacidade para ir mais longe dava-lhes uma percepção de lenta rotina, de aceitação acinzentada do correr dos anos, sem qualquer vontade de virem a ter qualquer outro tipo de existência. O pai tinha uma forma de sublimar tudo o que deixara por empreender: coleccionava música, vinil e não só, tudo o que eram novas tendências lá chegava aos ouvidos do Francisco por intermédio das permanentes actualizações que o pai fazia. Tinha muita sensibilidade e «ouvido». Tudo fixava e reproduzia sem qualquer dificuldade. E foi assim que o Francisco seguiu com distinção o Ensino Clássico de Música na Academia fundada pelo bisavô. É claro que não pagava propinas, isto porque era um descendente do fundador da escola e porque não havia memória de aluno tão intuitivo e sensível ao som, ao ritmo e à articulação musical. Crescendo neste ambiente, o Francisco foi-se capacitando da posição que
representava naquela cidade de província. Sentia-se como um «ex qualquer coisa», mais figurativo que representativo, gozando de uma lânguida existência a que nada era obrigado, mas com um sentimento amargo de uma espécie de dever incumprido perante aquela sociedade. Poderia muito bem ficar nessa pasmaceira vida. Poderia até ser uma voz reivindicativa de qualquer desigualdade ligada à interioridade ou a qualquer outra circunstância. Porém, o Francisco encheu-se de determinação e arrancou para uma outra vida, para uma outra existência.
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Mudança de paradigma
A mudança na maioria das vezes não é fácil. Dá muito trabalho, custa e faz-nos correr muitos riscos. Deixamos o paradigma a que nos habituamos e saltamos para um terreno novo que não dominamos. Saímos da chamada zona de conforto, de que tanto ouvimos falar, e da rotina conhecida em que tudo é previsível, em que tudo é controlável e confortável. Para mudarmos e encontrarmos a direcção que pretendemos para a nossa carreira, temos de ser capazes de fazer uma auto-análise e de ter uma visão crítica de nós mesmos. Precisamos de lucidez mental para nos olharmos no espelho, de identificarmos o nosso perfil, de nos conhecermos, com as nossas mais-valias e defeitos, e perceber o que precisamos de fazer, que competências precisamos de aprender e de empreender para melhorar e moldar o nosso Eu à pessoa que queremos ser no futuro, para encontrarmos a tal direcção tão procurada por todos. Por vezes, parece-nos a percepção da necessidade de mudança, mas é num turbilhão de emoções que tudo é sentido. Para se ser capaz de encontrar a lucidez necessária à mudança certa, temos de fazer uma reflexão necessariamente
honesta com nós mesmos. Temos de equacionar de forma lúcida e racional quais as razões desta mudança e todas as variáveis que irão influenciar o melhor sucesso a este movimento. Essas variáveis serão tão disruptivas e fracturantes quanto maior ou menos for a mudança proposta. Podem ir desde a adaptação a uma nova cultura, isto quando se muda de país por exemplo, até à mudança para um clima social antagónico, quando se a de uma indústria tradicional para um epicentro de inovação e tecnologia. O que é fundamental é termos um pensamento interior rico e honesto com nós próprios, que nos permita ganhar as competências necessárias para desenhar um novo caminho, um novo rumo, uma nova direcção. Muitas vezes, a mudança é feita sem ter esta direcção definida, provocando que fiquemos «presos» a uma carreira que não nos motiva, mas como não temos um mapa traçado não sabemos para onde queremos ir. Temos de ter a sabedoria para tomar a decisão certa sobre como mudar. É fundamental desenvolver uma vida interior profunda, isto é, praticar o pensamento introspectivo e a capacidade de meditar e reflectir individualmente sobre os temas da nossa vida e optimizar e treinar a capacidade de discernimento necessária às mudanças certas. Não tenhamos dúvidas, as decisões, o sítio onde estamos actualmente e onde vamos chegar decorrem do nosso pensamento interior. Não há uma lista padronizada de «dos» e «don’ts», de «forças e fraquezas», a que possamos recorrer para esta análise, esta avaliação interior é única e requer tempo e maturação. Claro que reflectir individualmente não significa não ouvir os conselhos sábios dos que nos rodeiam. É fundamental procurarmos conhecimento para tomarmos decisões acertadas. E esse conhecimento procura-se na educação, nas leituras, mas também nestes sábios de que vos falo. E que sábios são estes? Sábios, normalmente, são os experientes, os que já percorreram alguns quilómetros nas mesmas estradas e que assim poderão ser o nosso co-piloto nesta mudança. Mas também são sábios aqueles que sabem observar, reflectir, pensar e capacitaremse de uma abordagem empática, isto é, centrada no outro. Porém, apesar de ouvirmos estas pessoas sábias de referência e desta consulta ao exterior para adquirir sabedoria para tomar as nossas decisões, no final temos de ser capazes de pensar por nós próprios, segundo a nossa própria maneira de ser.
É fundamental termos consciência de que o agente da mudança é cada um de nós, somos nós próprios que temos a decisão de gerir a nossa própria existência e de agir. Porque sem acção a decisão perde a sua utilidade. Perceber a dinâmica das mudanças pressupõe a necessidade e a capacidade de compreender e de assumir o desejo de transformação. Idealiza-se a mudança e faz-se a mudança acontecer. Tomemos acção.
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Da herança do Francisco sobrava muito de imaterial. Tinha uma linhagem familiar e um nome, é verdade, mas nada mais. Não tinha nenhumas posses que lhe permitissem sequer estar numa grande cidade a estudar alternativas de vida e de futuro. Porém, decidiu contar consigo mesmo e empreender numa aventura, isto é, numa mudança. O Francisco foi para Lisboa para se impor a si próprio. Queria capacitar-se do que lhe poderia oferecer a vida. Tinha de provar a si mesmo que talvez poderia ser capaz de moldar a sua própria existência, criar o seu futuro e influenciar o seu destino. Ficou a morar num quarto de uma senhora sua conterrânea e quase «súbdita da sua família» nos subúrbios, lá para os lados de Sacavém. Era como trocar todas as mordomias da terra pela situação inversa. ou para pensionista de uma pessoa que, na origem, teria sido sua empregada. Nada disto foi equacionado como um entrave pelo Francisco. Aproveitou ao máximo esta oportunidade para poder chegar ao seu objectivo: aproximarse do melhor e mais vanguardista mundo musical. Foi muito difícil ser recebido por alguém de interesse, quanto mais ter possibilidade de ter alguma audição e ser ouvido. Este mundo, talvez como outros, tem os seus «rituais de iniciação». Tem de se estar ligado a determinadas escolas e ambientes profissionalizantes para se ser principiante e então, se tudo correr bem, ar a ser notado, reparado e objecto de atenção por parte de quem importa e influencia a aparição
e reconhecimento de novos talentos. Alguém vindo da província, como o Francisco, era visto como mais um pacóvio que andava às apalpadelas a ver se o deixavam estar nos sítios certos, só como uma figura decorativa. A nível pessoal, também tudo se modificou e houve necessariamente um esforço de adaptação à mudança. Apesar da sua condição de «novo pobre» na sua cidade, tinha tudo o que queria para ter uma existência confortável. Tinha uma casa de família na praça principal, tinha quem lhe tratasse de tudo, era bem alimentado por uma antiga empregada a troco de um tecto e quase nada mais. Enfim, era como um antigo conde a quem lhe tinha desaparecido o condado, mas mesmo assim era muito considerado e não tinha com que se preocupar. Agora, além do quartinho na casa da dona Lucília em Sacavém, com partilha de casa de banho com a dita, também teve de aprender a trocar o bife de vitela com batatas fritas em azeite por o que calhasse: hambúrguer fast food, sushi ao quilo e muita piza… Mas o Francisco aguentou. Foi tão persistente, resiliente e com uma atitude tão disponível e humilde que conseguiu marcar a diferença. Finalmente, um músico afamado reparou nele e convidou-o para ser seu assistente. Era um «rapaz de confiança», diziam no meio mais erudito. É um «gajo porreiro», dizia toda a gente. Cumpria com os compromissos, alinhava nos devaneios, ajudava um e outro e estava sempre onde precisavam dele. O Francisco tinha formação musical clássica. Tinha começado pelo solfejo e, mais tarde, tocou flauta, violino e piano. Tudo lhe agradara no ensino musical, mas não tinha nenhum instrumento que o preenchesse completamente. Parecia que lhe faltava ter um outro tipo de experiência. Ainda cedo sentiu o efeito brutal no turbilhão dos sentidos da música chamada «popular» que o pai coleccionava, sobretudo de algum rock. Tornou-se pouco a pouco um erudito «democrático». Gostava das tendências contemporâneas em que a sua formação clássica servia como um forte alicerce à interpretação e à atitude crítica. Tudo isto lhe permitiu ser diferente e especial nas suas tarefas como assistente e consolidar o seu lugar. Porém, um par de anos chegou para que o Francisco tivesse consciência de que não podia ficar por aí. Poderia ter tido mais uma vez uma existência
pardacenta, desta vez de uma forma citadina e até mesmo cosmopolita. Conheceu e fez amizades com gente de todas as proveniências que, o a o, ficaram por lá a viver. Mas o Francisco pressentia que tinha de empreender. Apesar de ter melhorado a sua vida, estar numa casa partilhada no Alto de Santa Catarina, ter a sua cozinha e a capacidade de se alimentar como queria, sabia que podia e devia fazer mais. Tinha criado fortes amizades e alguns amores, mas mesmo assim sentia-se impelido a fazer algo mais. Ainda não tinha chegado ao ponto onde poderia sentir-se bem consigo próprio e realizado. A necessidade de mudança voltou a bater-lhe à porta. Com as suas parcas poupanças e sobretudo com algum apoio familiar muito mitigado, lá arranjou capacidade para partir «ao Deus dará» para os Estados Unidos da América. Dubspot foi a sua formação formal em Nova Iorque. Porém, independentemente de todas as agruras pelo qual se a quando se emigra, no caso do Francisco, havia o foco determinado no seu objectivo: ser capaz de produzir música com qualidade e inovação que lhe permitisse partilhar com todos os sons que fervilhavam na sua cabeça desde há muito, e de tão fortes que eram quase que o ensurdeciam. Era uma missão muito difícil. Exigia talento, está claro, mas também muito trabalho, obrigava-o a ser capaz de aguentar muitos infortúnios e dificuldades. Decidiu avançar, sempre com determinação e esforço no seu trabalho, até conseguir o reconhecimento. No caminho pela procura do «som» certo foi para Seattle, sempre com ligações à Europa, sobretudo com Bristol. Andou por todo o mundo que fervilha novidade até se sentir individual e uníssono. Trabalhou em grupo, em bandas e sozinho, um pouco a experimentar-se a si próprio, e um pouco a experimentar o efeito e o do seu som, isto é, da música que criava. Mas também sentiu necessidade de andar «ao Deus dará» pelos caminhos da vida. Meditou, experimentou, conheceu este e aquele até se conseguir encontrar
a si mesmo. Depois de viver diferentes experiências sentiu-se capaz de avançar com o seu próprio projecto.
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Construir a própria marca pessoal
O Francisco compreendeu que tinha de «se criar a si próprio», ou seja, criar uma imagem que correspondesse ao produto que queria ser. Teve de fazer um exercício de autoconhecimento profundo, honesto para consigo próprio para que, a partir da sua auto-imagem, pudesse desenvolver e criar a sua persona, a sua imagem como «produto», a sua marca pessoal. É um processo que começa com a auto-análise através do conhecimento de si próprio, exigindo posteriormente a capacidade de definição estratégica sobre onde queremos chegar, ajudados ou alavancados na marca criada para o atingimento desse objectivo. Este objectivo é definido em cada caso. O objectivo do Francisco era ser produtor da sua própria música. Tinha de criar a sua própria imagem e elevá-la a um patamar reputacional. Os conceitos de imagem e reputação poderão consagrar todo e qualquer indivíduo que souber utilizá-los a seu favor. A imagem e a reputação podem ser compreendidas como o marketing pessoal. A marca pessoal tem como objectivo posicionar-nos na mente dos outros como desejamos. Desenvolver a marca pessoal consiste em identificar e comunicar as características que nos fazem sobressair e ser relevantes, visíveis, atractivos e únicos. Para isso, mais uma vez e sempre, é preciso proceder à tal reflexão e auto-análise de que já vos falei. Só assim poderemos identificar aquilo que nos diferencia. A marca é o reflexo daquilo que somos verdadeiramente. A marca pessoal
diferencia-nos dos outros e torna-nos distintivos naquilo que fazemos. Dá-nos valor acrescido no mercado de trabalho. Reflicta: O que o distingue dos demais? Quais são as suas mais-valias? Quais as características que o fazem ser diferente? Que valor pretende comunicar?
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O Francisco criou a sua própria marca pessoal: DJ X. Então foi como se tivesse começado a sua carreira musical. Actuou com nomes de referência mundial e criou músicas que ficaram no ouvido de todos os que seguem as novidades da música. Depois de tocar com sucesso nos palcos mais exigentes, chegou a número um do Club Chart da revista Billboard. Daí em diante, o DJ X viu uma série de portas de clubes internacionais começarem a abrir-se e hoje em dia conta no seu currículo com carimbos de clubes de todo o mundo. A rádio primeiro e as editoras depois foram duas actividades paralelas ao djing que a seu tempo entraram na vida do DJ X. Edita os seus discos, aposta em novos valores no panorama musical e divulga as remisturas que faz para nomes reconhecidos em todo o mundo musical. Mercados discográficos como os Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha divulgam a edição dos seus discos. Com mais de 15 mil cópias vendidas, atingiu a fasquia do ouro. E como não há duas sem três, a MTV convidou-o para se juntar ao cartaz de festivais considerados os melhores do mundo. Está num lugar destacado na lista dos 100 melhores DJ.
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Sê um entrepreneur de ti próprio
«Entrepreneurship is the persistent progression towards an innovative solution to a key problem. It’s the constant hunger for making things better and the idea that you are never satisfied with how things are.» Debbie Roxarzade, fundadora e CEO da cadeia de restaurantes Rachel’s Kitchen
Esta definição do que é ser-se empreendedor ou entrepreneur parece-me inspiradora para compreendermos o processo de autocriação e desenvolvimento do Francisco. Muito se tem ouvido falar de empreendedorismo nos últimos anos. Na minha perspectiva, o empreendedorismo é o processo pessoal, individual ou colectivo de projectar, lançar e gerir um novo negócio ou, como neste caso, a sua própria imagem. O empreendedorismo tem sido descrito como a «capacidade e disposição para desenvolver, organizar e gerir um empreendimento de mudança pessoal ou organizacional». Para isso, tem de haver grande dose de coragem, determinação e capacidade de correr riscos. Estes são, aquilo que podemos chamar, os principais ingredientes para se ser empreendedor.
«Coragem é a resistência ao medo, o domínio do medo, e não a ausência de medo.» Mark Twain
Embora as definições de empreendedorismo se concentrem tipicamente no lançamento e na gestão de empresas, devido aos elevados riscos envolvidos no
arranque de uma startup, pode com propriedade ser usado como o termo que concentra as características pessoais necessárias à capacidade de uma pessoa, como o Francisco, se lançar na empreitada pessoal de criação e desenvolvimento de si mesmo, como uma «marca» e, por conseguinte, um produto e uma forma de vida profissional diferenciada e autónoma. Por isso, para se ser empreendedor, é necessário estar preparado e com vontade de correr riscos, desenvolver e gerir uma inovação ou mudança, ser-se determinado e corajoso. O empreendedor é capaz de reconhecer o potencial da sua invenção. Esta invenção significa gerir uma ideia, um conceito ou uma solução onde nada existe. É descobrir algo novo, absolutamente original e diferenciador. Mas depois é preciso organizar os recursos físicos e financeiros, talento e outros que transformam uma invenção em uma inovação viável. Ou seja, inovação significa tornar o novo viável, isto é, criar os meios para que a invenção sirva um objectivo concreto. Nesse sentido, o termo «empreendedorismo» também capta a actividade inovadora e única no sentido de autonomia e propriedade do agente empreendedor. O Francisco conseguiu definir-se, autonomizar-se e autodesenvolver-se em torno da marca DJ X e das opções que nortearam o seu percurso.
O que nos realiza enquanto seres humanos?
Daniel Pink, uma referência no mundo da gestão e do comportamento, tem surpreendido académicos e todos aqueles que se interessam pelo funcionamento do comportamento humano com as teorias expressas nos seus livros, todos eles bestsellers do New York Times. O que nos motiva verdadeiramente? O que nos dá energia e força anímica para trabalhar por um objectivo? E, finalmente, o que nos realiza enquanto seres humanos?
Vamos abordar este tema na sociedade em que vivemos, na Europa e no século xxi. Se recuássemos no tempo 40 ou 50 anos ou saíssemos da estrutura ocidental de organização social, outras premissas teriam de ser consideradas. Daniel Pink, percebendo que as teorias da motivação, satisfação no trabalho e realização pessoal tradicionais não explicavam fenómenos de criação e desenvolvimento de empreitadas não obrigatoriamente remuneradas exponencialmente, dedicou-se ao estudo e observação socioprofissional de grupos de indivíduos muito empenhados, comparando-os com outros grupos de desinteressados pelo que fazem, e chegou assim à conclusão de que é necessário aumentar a satisfação das pessoas ao realizar as suas tarefas profissionais. Dessa forma, elas próprias am a querer realizar as suas actividades com o propósito de conseguirem ter realização pessoal nas mesmas, sendo a principal recompensa a própria realização dessas actividades, ao invés do dinheiro ou outras recompensas exteriores. Ter conseguido atingir o objectivo a que se propunha é a base e o motor da motivação, considera Pink. Mas como todos nós sabemos, falar é fácil, mas fazê-lo não. Então, afinal, como conseguir esta motivação nas pessoas? Pink apresenta várias respostas e dá várias ideias para conseguir aumentar o prazer das pessoas a realizar as suas actividades e propósitos profissionais, tudo andando à volta da capacidade de nos automotivarmos e de nos superarmos, quando encontramos a profissão que verdadeiramente nos motiva. Veremos um pouco mais desta teoria no capítulo seguinte.
O Francisco encontrou o seu caminho. Partiu de uma situação confortável e segura para o desconhecido. Foi assim que «se descobriu». Esta descoberta de si próprio foi o que o levou a compreender por onde teria de ir para encontrar o seu destino. O destino de vida pessoal e o seu papel social, isto é, a sua profissão. Tudo valeu a pena. O Francisco é hoje o que desejou ser: cria a sua própria música, está sempre a par das tendências, viaja pelos sítios que interessam na sua área e pode considerar-se realizado profissionalmente. Atingiu os objectivos necessários à sua realização, desenhando a sua própria vida.
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O QUE NOS MOTIVA?
[A HISTÓRIA DE CARMINHO]
Todos já ouviram falar de teorias da motivação. A motivação é um tema complexo, abordado por diversos pesquisadores que elaboraram várias teorias, visando explicar o fenómeno motivacional e a sua influência sobre o comportamento humano. É normal e razoável que qualquer um de nós se interesse por conhecer melhor o que nos motiva, o que nos retira da inércia, o que nos faz sair da inacção e nos dá força e vontade para «vencer» as dificuldades do dia-a-dia, sem baixarmos os braços e simplesmente nada fazermos. Há muitos estudos de investigação sobre o tema das motivações, há muitas teorias e diferentes abordagens para a melhor compreensão de como se compõe, de como nasce a «energia» que nos move. Escolho neste livro visitarmos brevemente quatro autores para esta reflexão: Abraham Maslow, Frederick Herzberg, Douglas McGregor e, o superactual e autor bestseller de que já falámos no capítulo anterior, Daniel Pink. De forma sucinta e até simplificada, a teoria da motivação de Maslow, baseada na Pirâmide de Necessidades, relaciona a motivação das pessoas a um conjunto de necessidades. Com o objectivo de analisar o grau de não satisfação e a questão motivacional das pessoas para as necessidades fisiológicas, de segurança, sociais, de estima e de auto-realização verifica-se que a não satisfação das necessidades básicas condiciona a motivação para o atingimento das necessidades superiores na hierarquia do bem-estar e da autorealização. Quando as necessidades básicas, isto é, fisiológicas, não estão satisfeitas, como a alimentação, segurança ou saúde, as outras necessidades, dispostas em outros níveis da pirâmide de Maslow, como as de amor, auto-estima e realização pessoal, não serão completamente conseguidas e, portanto, resultam na insatisfação pela ausência de estímulos motivacionais.
«Um músico deve compor, um artista deve pintar, um poeta deve escrever, caso pretendam deixar o seu coração em paz. O que um homem pode ser, deve fazer por ser. A essa necessidade podemos dar o nome de auto-realização.» Abraham Maslow
(1908-1970)
Abraham Maslow foi o primeiro investigador de comportamento humano a criar uma teoria das motivações e a apresentá-la com muito sucesso, nasceu no início do século xx. Ainda hoje muitas vezes pensamos na sua teoria para compreendermos as diferenças de comportamento e a alocação de energia a um objectivo conforme as necessidades básicas estão ou não satisfeitas. Actualmente, perante a necessidade de isolamento provocada pela pandemia, é muito diferente aquele que fica confinado na sua casa com jardim e piscina e sem qualquer constrangimento económico do outro que tem uma profissão liberal, sem garantia de sustento, com empréstimos para a habitação e outros, não vendo qualquer forma de alimentar os seus descendentes caso a quarentena se mantenha. No primeiro caso, as necessidades básicas estão completamente satisfeitas, estando só privado de um conjunto de divertimentos e espectáculos culturais. Deixou de viajar e a temporada de ópera e ballet foi cancelada, por exemplo. Para o segundo caso, viajar e ir à Gulbenkian não é prioritário. O que o preocupa é o facto de não poder alimentar-se e aos seus de forma adequada e ao ter de entregar a casa que tanto gostava e de ar para um nível de pobreza que nunca tinha sentido, com restrições de uso de água e de energia. Este fica, no mínimo, temporariamente vinculado às necessidades básicas. Também a «Teoria dos Dois Factores», de Herzberg, aborda a situação da motivação e satisfação das pessoas. Nesta teoria, Herzberg afirma que a satisfação é atingida em função do conteúdo ou actividades desafiadoras e estimulantes das tarefas ou funções que exercemos. São os chamados «factores motivadores», já a insatisfação acontece quando há desacordo ou desalinhamento dos valores e necessidades pessoais com o ambiente, a supervisão ou estilo de liderança, a tipologia dos colegas e do contexto geral da função em termos de responsabilidades e outros aspectos, os chamados «factores higiénicos». Herzberg verificou e evidenciou através de muitos estudos práticos a presença destes dois factores distintos que devem ser considerados na satisfação de qualquer função: os factores higiénicos e os motivacionais. Vamos ver cada um deles em mais pormenor.
Os factores higiénicos são aqueles que se referem às condições que nos rodeiam enquanto trabalhamos, englobando as condições físicas e ambientais de trabalho, o salário, os benefícios sociais, as políticas da empresa, o tipo de supervisão recebido, o clima das relações, o estilo de liderança, os regulamentos internos, as oportunidades existentes, etc. Estes correspondem à perspectiva ambiental, constituindo os factores tradicionalmente utilizados pelas organizações para obter motivação dos funcionários. Herzberg, contudo, considera esses factores higiénicos muito limitados na sua capacidade de influenciar poderosamente o comportamento das pessoas, escolhendo a expressão «higiene» exactamente para reflectir o seu carácter preventivo e profiláctico, e para mostrar que se destinam simplesmente a evitar fontes de insatisfação do meio ambiente ou ameaças potenciais ao seu equilíbrio. Quando esses factores são óptimos, simplesmente evitam a insatisfação, uma vez que a sua influência sobre o comportamento não consegue elevar substancial e duradouramente a satisfação. Porém, quando são precários, provocam insatisfação. Os factores motivacionais são aqueles que se referem ao conteúdo das funções, às tarefas e ao propósito relacionado com a função em si. São os que produzem algum efeito duradouro de satisfação e de aumento de produtividade em níveis de excelência, isto é, acima dos níveis normais. O termo motivação, para Herzberg, envolve sentimentos de realização, de crescimento e de reconhecimento profissional, manifestados por meio do exercício das tarefas e actividades que oferecem um suficiente desafio e significado para qualquer um de nós. Quando os factores motivacionais são óptimos, elevam substancialmente a satisfação; quando são precários, provocam ausência de satisfação. Resumindo, a teoria dos dois factores sobre a satisfação profissional afirma que: a satisfação existe em função do conteúdo ou actividades desafiadoras e estimulantes da nossa profissão, os chamados factores motivacionais. A satisfação também requer «encaixe» no ambiente, estilo de liderança, valores dos colegas e do contexto geral organizacional, os chamados factores higiénicos. emos agora à teoria de McGregor, que é na verdade um conjunto de dois extremos opostos de suposições. Estes conjuntos foram denominados «X» e «Y». Por esse motivo, também é conhecido pelo nome de «Teoria X» e «Teoria Y». Para McGregor, se aceitarmos a teoria «X» e nos comportarmos em conformidade com ela, as pessoas mostram-se desmotivadas. Já se aceitarmos
a teoria «Y», as pessoas com quem interagimos irão mostrar-se motivadas.
Teoria X O ser humano não gosta do trabalho e tenta evitar trabalhar, por isso precisa de ser forçado, controlado e dirigido; as pessoas preferem ser dirigidas e em regra têm pouca ambição, buscam apenas a segurança.
Teoria Y O dispêndio de esforço no trabalho é algo natural; o controlo externo e a ameaça não são meios adequados para se obter melhores resultados; o ser humano exercerá autocontrolo e autodirecção, se as suas necessidades forem satisfeitas; as pessoas normalmente procuram ter responsabilidade pelo que fazem; qualquer pessoa exercerá e usará a sua mestria, quando lhe derem autodirecção e autocontrolo. – As recompensas do século xx, que pensávamos ser parte natural dos negócios, funcionam somente numa faixa surpreendentemente estreita de circunstâncias. – Esse tipo de recompensa frequentemente destrói a criatividade. – O segredo da alta performance não é a recompensa e a punição, mas aquele desejo invisível intrínseco de fazer as coisas que importam com autonomia.
Frederick Hertzberg e Douglas McGregor viveram durante o século xx e as suas teorias foram muito inspiradoras nessa época. Estes autores abordam com muita perspicácia algo mais elaborado e organizacional. Como descrito acima, o que constatámos é que para aqueles que lideram pessoas e comandam organizações é fundamental compreenderem o que urge capacitar as pessoas com os factores higiénicos satisfatórios, mas que só haverá motivação se estas forem autónomas e empenhadas num objectivo. Na prática, temos de ter boas condições de trabalho, compensação, ambiente arquitectónico, estético e, hoje em dia, até lúdico, mas é inevitável que possamos sentir-nos parte de um «corpo» com um
objectivo comum.
Daniel Pink escreve e investiga agora. É um nosso contemporâneo. Explica como podemos tirar partido da nossa criatividade e capacidade disruptiva, colocando-nos dentro do propósito das organizações. No seu livro Drive, obriganos a meditar sobre fenómenos globais de trabalho e partilha de conhecimento, como por exemplo é a Wikipédia sem qualquer interesse remunerativo. Sublinha fortemente o quão importante é termos autonomia, empowerment ou domínio e propósito para ganharmos energia infindável de concretização, colocando-nos no caminho da auto-realização. O autor explica-nos que o diferencial entre o que a ciência sabe e o que o mundo das organizações pratica pode ser reduzido, a partir de novos estudos sobre a verdadeira motivação – a motivação intrínseca que nos faz realizar, gostar do que fazemos e poder contribuir para um objectivo de forma interessante. Há dois tipos de motivações, as exteriores e as intrínsecas, estas últimas são as que nos interessam em pleno século xxi onde o trabalho deixou de ser mecanizado e se baseia em processos criativos. Segundo Pink, se a motivação externa funcionava nas tarefas mecânicas – baseada na recompensa ou punição, a imagem da cenoura e do pau –, nas tarefas cognitivas as experiências revelam que quanto maior a recompensa pior o desempenho. A recompensa anula a criatividade. Com isto não quer dizer que o dinheiro não importa, claro que importa, mas uma vez bem pagos, o que cria a motivação não é uma maior recompensa. Somos motivados porque aquilo que fazemos interessa, porque gostamos do que fazemos, porque contribui para um bem maior. Esta teoria da motivação intrínseca de Daniel Pink é fundamentada em três pilares: autonomia, domínio (ou aprimoramento) e propósito. – Autonomia: o desejo de controlar as nossas próprias vidas. – Domínio: o desejo de melhorar cada vez mais, fazendo algo que importa. – Propósito: o desejo de que o que fizermos sirva a algo maior que nós mesmos.
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A Carminho tinha acabado o curso de Pintura na Escola de Belas Artes. Gostava de várias «expressões» de arte, mas sabe-se lá porquê, começou a sentir uma grande vontade de se tornar mais especializada em design de roupa, de moda. Foi para Londres com o apoio dos pais e complementou o orçamento necessário para lá viver algum tempo trabalhando. Arranjou emprego em regime de part-time como assistente de vendas nos armazéns Harrods. Simultaneamente, começou a cursar na Cambridge School of Visual and Performing Arts o Bachelor of Arts (BA) em Fashion com a duração de três anos. Ainda mal tinha começado o BA e já explodia de energia criativa. Inspirava-se fundamentalmente em tudo o que via à sua volta e pelo que ava visualmente na rua. Pousava o olhar durante minutos intermináveis no movimento hirto da arquitectura do Tate Modern e da Millennium Bridge, entre outros espaços, causando pasmo e interrogada desconfiança em quem a via. Ficava também tempos infinitos sentada num banco aqui e ali a olhar para as pessoas que avam, a ver como se movimentavam, a tentar interpretar a razão de se vestirem desta ou daquela maneira, a querer complementar algum detalhe da persona que cada um assume quando se traja de uma maneira ou de outra. Enquanto estudava e tentava compreender o fenómeno do traje, da moda e do que é fashion, desenhando muito. Desenhava em papel, em CAD 2D e 3D, enchendo tudo, físico e virtual de ideias criativas e sempre disruptivas. Os amigos e colegas de curso, que espreitavam os seus esboços, tinham uma primeira reacção de espanto e incredulidade. Só alguns, ado algum tempo, compreendiam o vanguardismo da Carminho. Os professores também nem sempre compreendiam o seu trabalho. Tanto tinha aproveitamento superior, quando se deparava com um professor não convencional; como ava de forma medíocre, mesmo no limite mínimo, quando apanhava professores mais convencionais, normalmente exigentes a nível do seguidismo e com tendência para valorizarem o previsível.
«Mas isto que desenhas, veste-se?», perguntavam os que têm o olhar formatado. Parecia às vezes que não queria vestir as pessoas de facto. Por vezes, o trabalho que apresentava mais se assemelhava a um projecto de arquitectura, por ser tão rectilíneo e rígido. Dizia e mostrava sempre grandes cálculos e muitas fórmulas para completar qualquer processo criativo. Como tinha sido muito boa aluna a Geometria Descritiva, chegava a comentar que lhe era muito útil tudo o que sabia sobre equações, números e até projecto, pois de outra forma não conseguiria materializar o seu trabalho, para além do que lhe ia na imaginação e que lhe turbilhava os sonhos. Os melhores procuram os melhores como é hábito. A casa de um famoso designer de Antuérpia ia a Cambridge School of Visual and Performing Arts procurar talento de tempos a tempos. O trabalho da Carminho foi visto. O responsável por identificar um júnior ficou imediatamente tocado pelo seu traço e convidou-a a reflectir sobre a hipótese de ir para a Antuérpia trabalhar. As condições eram irrecusáveis. Receberia um salário muito acima da média, acrescido de prémios por cada colecção em que particie, para além de casa, viagens a Portugal a cada três meses e um pacote de seguros. As condições de trabalho também eram óptimas: localização espectacular, óptimo ambiente e todas as ferramentas digitais à sua disposição. A direcção de Cambridge ficou orgulhosa e beneficiada na sua imagem como universidade de artes de elite por ter mais um aluno com uma proposta de trabalho tão interessante. É uma universidade que consegue atrair alunos muito talentosos e sabe potenciar as suas capacidades. Os amigos ficaram muito contentes e não paravam de lhe dar os parabéns. Os pais da Carminho também se encheram de brio e vaidade por verem a filha tão reconhecida e encaminhada profissionalmente, apesar das saudades e de a terem longe de casa. Em Antuérpia, ou-se uma colecção, e outra, e mais outra, e a Carminho começou a sentir que definhava. O sonho da Carminho ia mais além. Queria
interpretar o traje desde o seu conteúdo. Queria compreender porque esta peça colocada assim ou de outra forma podia marcar e até etiquetar uma pessoa. Onde estava o traço divergente e até contestatário de uma determinada forma de vestir, ou os aspectos aspiracionais da toilette de outra? Ou ainda, porque é que uns se preparam tanto (mesmo quando não o querem fazer parecer) e para outros a sua imagem não parece ter qualquer importância? Será que estes se afirmam anti-sociais ou algo semelhante? Onde está o equilibro, o chamado bom gosto, a forma elegante de vestir? Apesar da estética divergente e do ambiente disruptivo do meio fashion de Antuérpia, as criações tinham de invariavelmente ter sucesso comercial. Tinham de ser criativas, mas seguindo tendências que, por vezes, contrariavam a disrupção criativa, o imaginário que compõe o processo criativo, enfim a substância dos conteúdos. A casa do famoso designer para o qual trabalhava tinha de continuar com sustentabilidade económica e financeira. Carminho compreendeu que não podia ser o que queria ser como criadora. Tinha de compreender o negócio e adaptar-se. Tudo o que lhe dava um prazer imenso e explosivo no acto de criar desapareceu simplesmente. Começou a ficar triste e com dificuldades em seguir o encaminhamento dos dias. Pensou amadurecidamente sobre o que queria, do que precisava e o que a tornaria feliz. Entretanto, resolveu comunicar que se viria embora logo que pudesse ser substituída. Foi então que regressou a Lisboa, deixando para trás um trabalho muito bem pago e uma hipótese brilhante de ter uma carreira de sucesso. Em Lisboa, a Carminho tirou partido do melhor que se vivia na época. Entrou num círculo de amigos divergentes, ligados às artes, às startups e ao mundo digital. Apoiou como curadora movimentos de «gentrification», segundo o Cambridge Dictionary, o processo pelo qual um lugar, especialmente parte de uma cidade, sofre alterações ao transformar-se de uma área pobre para uma rica onde as pessoas de classes sociais altas vivem. Esteve ligada à movimentação da cidade para junto das zonas ribeirinhas,
tradicionalmente pouco tocadas pelo mundo erudito das artes e das intelectualidades. Foi nomeada júri de prémios ligados a movimentos criativos e disruptivos. Sentiu-se bem de regresso a Portugal, sentiu-se a reviver e a renascer com tudo o que se a de bom por cá. As suas economias, porém, estavam no limite. Viveu quase um ano em Lisboa com uma actividade intensa, mas praticamente não remunerada. O excelente salário que teve em Antuérpia ajudou-a a criar um «pé-demeia» que, entretanto, estava já nos mínimos. Arriscou mais uma vez tudo como quando decidiu ir para Londres. Reorganizou as ideias e encheu-se de coragem e empreendedorismo. Por um lado, conseguiu algum apoio familiar; por outro, reconectou-se com um dos seus amigos, que conhecia o seu dom criativo e inovador, e fundou uma marca de moda. Não será justo nem correcto chamar marca de moda. É sem dúvida mais adequado dizer casa de tendências. Para dar corpo ao projecto e ter um espaço de comunicação com os seus seguidores e clientes, a Carminho abriu uma loja. Mais uma vez é injusto chamar àquele espaço simplesmente uma loja. O que a Carminho abriu foi um espaço, uma galeria de arte. Foi para um bairro antigo e residencial e conseguiu criar uma tendência de fama e cultura trendy ao bairro, que hoje ainda se vive. ado uma década de ter aberto a sua galeria, a sossegada e monótona zona está repleta de bares, restaurantes e sobretudo galerias e mostras de arte: pintura, intervenção, escultura e tudo o que nos inspira, motiva e nos dá a força anímica e a energia que a arte nos proporciona. A Carminho foi um sucesso e deixa um legado na definição de tendências. Começou a ser visitada por pessoas de todo o lado e tornou-se uma referência. Como sempre acontece quando se tem sucesso, teve convites para trabalhar como criadora nas marcas mais famosas mundiais, mas resistiu a essas ofertas tão tentadoras. Sabia que iria sentir o mesmo que sentiu em Antuérpia uns anos antes. Ficaria refém de outros interesses e perderia a sua liberdade. Liberdade que lhe alimentava a alma e oxigenava o seu espírito criativo. Ficou na sua «galeria». Conseguiu o que muitos desejam: transformar a sua motivação numa actividade que se ama e corporizá-la como forma de vida.
Tem uma rentabilidade que lhe permite ter uma vida desafogada e sustentar-se a si e a movimentos filantrópicos que impulsionam a sua generosidade. Está sempre em constantes viagens. As viagens são um prazer e uma necessidade de se sentir a par do «mundo». Podemos encontrar a Carminho a ar uma tarde na esplanada do Lip em Paris enquanto desenha em CAD sabe-se lá o quê. Quando se lhe pergunta o que está a fazer, diz que está a trabalhar. «A trabalhar?», «Sim, vejo como se movimentam as pessoas, como se vestem, como se entrecruzam e desenho coisas que então me vêm à cabeça», responde. A Carminho faz como fazem as crianças quando brincam: empreendem grandes ideias alicerçadas em sonhos. Nesta história podemos encontrar uma inspiração real sobre o que foi motivador para a Carminho e como ela foi sábia em não deixar-se cair na tentação da fortuna e da fama, destruindo o seu próprio propósito. Pelo contrário, conseguiu uma forma sustentável de vida de acordo com ela própria.
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QUAL É O TEU DOM?
[A HISTÓRIA DE CÉSAR E DE MAFALDA]
Quási
Um pouco mais de sol – eu era brasa, Um pouco mais de azul – eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe d’asa… Se ao menos eu permanecesse àquem…
Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído Num baixo mar enganador de espuma; E o grande sonho despertado em bruma, O grande sonho – ó dôr! – quási vivido…
Quási o amor, quási o triunfo e a chama, Quási o princípio e o fim – quási a expansão… Mas na minh’alma tudo se derrama… Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo… e tudo errou… – Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim… – Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou…
Momentos d’alma que desbaratei… Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar… Ansias que foram mas que não fixei… Se me vagueio, encontro só indícios… Ogivas para o sol – vejo-as cerradas; E mãos de herói, sem fé, acobardadas, Pam grades sôbre os precipícios… Num impeto difuso de quebranto, Tudo encetei e nada possuí… Hoje, de mim, só resta o desencanto Das coisas que beijei mas não vivi… Um pouco mais de sol – e fôra brasa, Um pouco mais de azul – e fôra além. Para atingir, faltou-me um golpe de aza… Se ao menos eu permanecesse àquem…
Mário de Sá-Carneiro, Dispersão
Um dos poetas mais conceituados na nossa literatura, Mário de Sá-Carneiro, poderá com este fantástico poema ajudar-nos a compreender o que pode ser considerado um dom, isto é, uma habilidade que revelamos ter de forma quase inata, quase congénita. Não vou debruçar-me sobre teorias de genética de Piaget ou outros investigadores mais recentes que investigam sobre as características e habilidades inatas, ou seja, com que nascemos. Vou tentar explicar somente o postulado de um conjunto de habilidades que de forma natural e fácil conseguimos exibir comparativamente àquelas que requerem perseverança, empenho, motivação, esforço e resiliência para se transformarem em talento.
O que é um dom? E um talento?
Nascemos ou não com determinado dom. Sermos sensíveis ao ritmo, ao som e à música, por exemplo, é ter nascido com o dom e a sensibilidade para uma área que nos irá dar vantagens nestas matérias. Pode alguém, com este tipo de dom, ter vantagens competitivas no mundo da música? Com certeza que sim, a priori. Porém, tudo irá depender de múltiplos estímulos, circunstâncias e factores que irão influenciar a construção da pessoa em causa, da sua personalidade e do seu perfil. Se esta hipotética pessoa que nasceu com este dom o trabalhar, o desenvolver e o potenciar, transformá-lo-á em talento. Não se dirá mais que nasceu com o dom do ouvido, mas sim que é um talentoso músico. Os estímulos e circunstâncias que enquadram a formação da nossa personalidade ou maneira de ser são muitos e muito díspares. Porém, compete a cada um de nós fazer a auto-análise e a reflexão interior que permita ter o autoconhecimento e autodomínio para potenciar, alargar e transformar todas as nossas habilidades e dons em talento. No poema «Quási» parece que o autor identifica a sua potencialidade, o seu dom
e a sua genialidade, mas considera que não conseguiu chegar ao patamar desejado. É claro que falamos de linguagem poética com traços de obsessão pelo reconhecimento que hoje está alargadamente provado e é meritoriamente reconhecido. A conotação de talento como habilidade humana tem a sua origem numa escritura bíblica. Segundo a parábola, algumas pessoas receberam valores diferentes, e sem que soubessem que isso iria acontecer, foram chamadas a prestar contas algum tempo depois. As que receberam quantidades maiores de talentos trabalharam com eles, gerando lucro. A que recebeu apenas um talento, com medo, preferiu enterrá-lo para o entregar tal e qual lhe foi confiado, sendo severamente repreendida no dia do juízo final. Segundo a parábola, mesmo os que recebem poucos talentos têm o dever de fazê-los prosperar e fazer produzir outros. Estudiosos actuais afirmam que mesmo as habilidades consideradas inatas podem ser desenvolvidas caso haja motivação e com a aplicação de técnicas apropriadas. Assim, qualquer pessoa está, por exemplo, potencialmente apta a aprender música, desde que tenha vontade e use as técnicas apropriadas ao estudo de música. Uma breve referência a esta questão do medo. O medo de cometer erros, de falhar, de nos expormos perante os outros, de expormos a nossa ignorância, de nos humilharmos até dificulta a acção, impede-nos de alcançar o nosso propósito, seja ele a mudança de emprego ou de empreender um novo negócio. Tolda-nos os sentidos e esvazia-nos de energia e coragem.
«A arte não é só talento, mas sobretudo coragem». Glauber Rocha
Usei esta introdução para nos ajudar a ter consciência do quanto seremos capazes. Deixo-lhe aqui algumas ideias-chave para que reflicta sobre cada uma delas: – Utilize os talentos que sabe que possui.
– É preciso coragem para ter talento. – Enfrente com determinação, espírito de trabalho e sacrifício o empreendimento de se desenvolver. – São sempre aqueles que enfrentam com coragem as dificuldades que sistematicamente conseguem os objectivos. – Tente, dê a si próprio a oportunidade. – Acredite nas suas próprias capacidades. – Atreva-se. Aja.
«O homem deve inventar-se todos os dias», diz-nos o escritor francês Jean-Paul Sartre. Há uma correlação, quase sempre directa, entre talento e capacidade de concretização de determinada tarefa ou empreendimento. Sendo o talento um dom (uma habilidade) para alguma actividade intelectual, artística, física ou sensorial, é com certeza também objecto de possibilidade de desenvolvimento. Se desenvolvido de forma adequada na correlação da dificuldade que nos propomos atingir, então estaremos muito mais preparados para atingir um determinado resultado. Podemos concluir que podemos sempre enfrentar o desafio de melhorar o nosso talento. Se as nossas habilidades forem desenvolvidas, estaremos mais preparados para resolver as dificuldades, sendo muito maior a probabilidade de atingir os resultados. Vale por isso a pena enfrentar a tarefa de nos documentarmos, treinarmos, aprendermos, enfim, melhorarmos os nossos talentos de forma a influenciarmos positivamente o resultado, ao desenvolvermos o talento poderemos atingir com sucesso muito provavelmente os nossos próprios objectivos. Estaremos assim a influenciar a nossa própria vida, preparando-nos para enfrentar os desafios do futuro.
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O César era um miúdo talentoso. Nasceu com o dom da música. Desde o jardim-de-infância com apenas um ano, que manifestava uma ligação natural à música. «Tinha ouvido», diziam. Mal um som pairava no ar, lá estava o pequenino César a abanar a cabecinha e os braços ao ritmo certo. Os pais, e outros adultos que com ele privavam, eram unânimes neste reconhecimento. «Vai ser músico», vaticinavam constantemente. Por esta razão, o César teve logo de pequeno uma atenção cuidada à educação musical. Foi sempre acompanhado para poder potenciar este dom e transformá-lo em talento. Andou no Conservatório Nacional e ninguém duvidava que tinha capacidades óptimas para se desenvolver como músico. Era sempre o escolhido para qualquer recital ou participação como aluno do Conservatório. Esteve presente em eventos destinados a jovens intérpretes. Fez parte da Orquestra Sinfónica Juvenil durante mais de três anos. Esteve no São Carlos a interpretar músicas de Natal, foi à Casa da Música com o grupo Sons de Futuro, actuou na Gulbenkian e no CCB, enfim, foi vencendo com sucesso todas as etapas que lhe garantiam o trampolim para o sucesso na vida adulta. Tudo parecia correr como previsto até o César chegar à adolescência. Foi para ele uma altura difícil como quase sempre acontece. A descoberta de si próprio e do que poderia querer para si tornou-o fechado, soturno, distante e sempre insatisfeito. Vivia de forma intranquila. Tudo o que lhe era proporcionado para viver, para continuar a progressão e sucesso na sua carreira musical tornou-se para ele quase repelente. Começou a sentir que os que mais amava estavam também eles a ficar desnorteados com o seu comportamento muitas vezes inusitado e impróprio até. Tinha consciência que provocava sofrimento à sua volta, mas não tinha capacidades para reagir de outra forma. Sobretudo a mãe, que lhe era muito próxima e com quem cresceu, desenvolvendo uma relação de grande intimidade e cumplicidade, tentava comunicar com ele, mas o César não sabia o que tinha, a não ser que se sentia quase a explodir e até da sua muito amada mãe fugia.
E foi neste contexto que a música se tornou algo estranho, por vezes até repulsivo e abjecto, quando todos o esperavam ouvir. Tinha de fazer algo, algo diferente e fora dali, daquele ambiente previsível e com um caminho já traçado. «Não, não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios os», leu por acaso no poema de José Régio e foi esta ideia que povoou a sua mente durante meses. O desinteresse do César também prejudicou os estudos e foi com dificuldade que conseguiu fazer o 11.o ano. ou de aluno dotado e talentoso para aquele que «por espírito santo de orelha» lá vai fazendo e atingindo a mediania. Alguns dos seus professores só o aram de ano porque o viam ainda com a imagem do César de outros tempos. Convenceu os pais a deixarem-no ir de comboio até à Polónia, numa espécie de inter-rail dos tempos actuais. Apesar de ir com outros amigos e conhecidos, sabia que não era a viagem em si que o motivava e lhe dava alento para se organizar nos preparativos, era sim a percepção que algo lhe aconteceria e que com esta viagem se evadia, saía talvez desta nuvem cinzenta, densa e pesada que lhe travava toda a vontade e força anímica no seu quotidiano. O César não regressou com os amigos. Comunicou aos pais que queria ter outro tipo de vida durante algum tempo e que queria experimentar ficar temporariamente por uma cidade e outra. «Anda a vaguear», diziam os pais. Vivia da música, claro. Tocou nas Ramblas em Barcelona, animou vindimas na Borgonha, foi até à Bretanha, Normandia e por aí fora, tocando nas ruas e em espectáculos eventuais, sem qualquer preocupação de qualidade nem empenho pessoal. Seduziu e deixou-se enlevar por prazeres imediatos. Aos pais ia deixando mensagens curtas e secas só como prova de vida… Em Cracóvia ficou mais tempo. Arranjou um compromisso com um restaurante onde fazia um pouco de tudo. Tocava às horas das refeições, fazia trabalho de cozinha na fase de preparação das refeições e até por vezes ajudava na limpeza. Perdeu, ou talvez tenha ganhado, três anos nestas experiências. Entretanto,
depois de ar um rigoroso Inverno na Polónia, começou a compreender melhor o que queria. Não iria seguir música, isso era certo. Queria ter uma vida simples e incógnita, sem palcos nem estrelatos. Queria alguma coisa que não tinha encontrado ainda, mas que não ava pelo seu «dom» de ouvido. Sentia que, sem alento, tinha desaparecido a sua talentosa habilidade musical. Sentia alguma ansiedade quando pensava que poderia ter continuado a progredir com sucesso na música, mas por outro lado parecia que estava aliviado dessa responsabilidade. O César deixou de alimentar o seu dom e por isso deixou-o apagar-se, deixou-o como que em hibernação. Ficou desatento, no mínimo, ao som. Voltou a Lisboa já adulto. Os pais receberam-no com alegria, mas sem dissimular o seu desencanto e preocupação. A mãe, que lhe tinha sido tão próxima, ainda o questionou se não queria acabar o Conservatório e o seu curso de Música. Mas o César decidiu acabar definitivamente com o projecto musical. Ficou-se com o seu dom, mas não o potenciou para se confirmar como talento. Retomou o secundário e teve de repetir o 10.o e 11.o e fazer o 12.o ano desta vez em Ciências. Pensava em tirar Farmácia, mas naquele ano não lhe foram favoráveis os «numerus clausus» e só conseguiu entrar em Biologia. Não gostou. Não gostou do ambiente, do propósito da maioria dos colegas, da maior parte das matérias e sobretudo da falta de paixão que povoava grande parte dos alunos e até mesmo dos professores. Não via aquilo que tinha visto e sentido em tempos quando cursava música: a paixão pela aprendizagem, o esforço compensado pelo atingimento das etapas propostas, o propósito. Nada disto acontecia ali. Um ou outro bom aluno lá iam parecendo genuinamente interessados na ciência biológica, mas regra geral ali andava o César, como a maioria dos colegas, a estudar para acabar o curso sem motivação a não ser a de se preparar para uma vida adulta independente através de um emprego. Começou a desinteressar-se e a olhar para outros interesses. Tinha uns amigos da família que viviam no Ribatejo com negócios ligados à agricultura. O César foi-se interessando por este tipo de vida. Gostava do campo, ele que tinha sido sempre educado em Lisboa. Fazia-lhe lembrar Borgonha, quando lá andou a entreter os trabalhadores das vindimas com a sua música. Falou com esses amigos e propôs-lhes ficar na região
a trabalhar para eles como empregado. Compreendeu a dureza do trabalho. Começar muito cedo, de madrugada, resistir às intempéries, aguentar as geadas de Inverno e o calor infernal no Verão, andar de tractor sempre que um tractorista era insuficiente para tudo o que havia para fazer, aguentando as dores lombares. Foi tudo árduo, novo, agressivo e difícil. Mas sentiu-se muito mais realizado e calmo. Vinha a Lisboa aos fins-de-semana, mantendo o com os amigos da música. Sabia que quase fora capaz de se afirmar com talento, mas tinha decidido ser um comum cidadão sem palco ou visibilidade. Hoje é proprietário de um olival, vive no Ribatejo durante a semana e interessa-se pela continuação da sua vida como agricultor. Sente-se bem mesmo sabendo que abdicou do seu dom e de vir a ter uma vida de palco, fama, reconhecimento e estrelato talentoso.
A Mafalda, pelo contrário, conseguiu transformar o seu dom em talento. O jeito para o desenho era evidente. A Mafalda tinha esse dom. Começou a desenhar mais cedo do que os outros meninos, logo no jardim-de-infância, conseguindo ter um traço seguro e preciso desde tão nova. Mas era a sua criatividade o que deixava os professores irados. Com cinco anos fez o desenho da família, incluindo os avós e alguns tios, onde cada um dos elementos era caricaturado e até humorizado em função do papel que representava na família. O pai era desenhado como um grande cozinheiro, o avô a rezingar com as notícias que ouvia na televisão, a mãe a arrumar tudo, a avó a brincar com ela e os tios também cada um com uma caricatura definida. Já no 1.o ano criou um boneco desenhado que a Mafalda animava com expressões diferentes conforme o que queria transmitir. Mais tarde, esse boneco foi cem vezes replicado e tornou-se na mascote do colégio. Quando entrou para o 5.o ano, fez um trabalho de desenho tão bom que a primeira coisa que o professor de Educação Visual lhe disse foi: «Tu vais para Artes, de certeza». E assim continuou até ao 9.o ano, altura em que começam a surgir as grandes dúvidas e ansiedades a propósito do que se vai escolher como modalidade no secundário.
Ao mesmo tempo vive-se o período da adolescência, momento em que o adolescente vive o seu mundo interior com evidente complexidade, ao mostrar muitas vezes apatia porque o seu foco e preocupação repousam na procura de referências que o ajudem a ir ao reencontro com o seu próprio eu e assim à formação da sua personalidade adulta. Para percorrer este caminho muitas vezes compara-se e, ainda mais, ampara-se nos outros, nos que pertencem ao seu grupo, à sua agregação. Desenvolvem ideias em conformidade com o colectivo onde pertencem ou querem vir a incorporar. É por isso que para quem está de fora, como espectador, há a surpresa sobre decisões inesperadas e inoportunas que os adolescentes tomam. Todos os amigos chegados da Mafalda foram para a área de Socioeconómicas. À excepção de dois amigos que hesitavam entre Medicina ou outra área de Ciências, todos diziam que queriam fazer Gestão quando chegassem à universidade. A Mafalda viu-se num grande dilema e não houve orientador escolar que a ajudasse. Por um lado, sentia a sua natural queda para as Artes. Sabia com plena consciência da sua mais-valia nesta área. Mas, por outro lado, não se via a desviar-se dos seus amigos tão essenciais à sua verticalização e crescimento harmonioso. Para Artes só pareciam querer ir os «exóticos» da escola onde andava. Foi então que começou a construir uma história, uma justificação para si própria, sobretudo que asse a sua escolha extemporânea de ir para Socioeconómicas e abandonar as Artes. Também gostava de Matemática, de Português e de História, pelo que não encontraria nenhum projecto escolar que reunisse tudo o que gostava. Assim iria fazer Gestão que, como todos diziam, era uma garantia quase certa de emprego quando acabasse a Licenciatura. Estava-se no período pré-Bolonha com inerente pouca flexibilidade de complementaridade de diferentes valências durante o percurso universitário. A Mafalda lá fez Gestão numa boa universidade, tendo a consciência que deveria ser o marketing a área que mais lhe interessava, à medida que o curso evoluía. Quando terminou, tinha uma proposta para entrar numa importante agência de publicidade. Com a formação que tinha e a sua notada perspicácia e acuidade das perguntas e comentários, que fez logo durante as entrevistas, entrou como trainee na Direcção de Estratégia. Fez um trajecto interessante, revelando sempre o seu espírito criativo, crítico e interventivo. Teve um papel muito importante no posicionamento e crescimento de marcas muito importantes no mercado. Foi notada e foi-
lhe proposta a hipótese de continuar a sua carreira a nível global. Isto significava que na prática tinha de estar a maior parte do tempo na sede europeia da agência. Tinha, entretanto, um filho pequeno e uma relação intercalar, por assim dizer, com o pai dele que, por sua vez, era cliente da agência, uma vez que trabalhava no marketing de uma grande empresa de bens de consumo. Juntou-se o útil ao agradável. Ele foi convidado para um interessante lugar justamente na mesma cidade metrópole onde a Mafalda aria a maior parte do tempo. Decidiram ir juntos e assim educarem os dois o filho. Foi neste ambiente aberto, metropolitano, efervescente e criativo que a Mafalda sentiu saltar-lhe a tampa. Compreendeu que queria mudar para a área criativa da agência. Queria criar, desenhar, interpretar e comunicar através do desenho e da caricatura. «Mas é um trabalho muito menos estratégico», disseram-lhe de várias filiais e em línguas diferentes. A Mafalda sabia que não tinha apagado o seu dom. Sabia como poderia ser feliz e ter sucesso a criar através do desenho e da caricatura, e assim aconteceu. Não poderia ter mais sucesso. Criou caricaturas e desenhos para várias marcas e serviços. Compreendeu o poder da comunicação através da imagem e quão barulhenta e ensurdecedora pode ser. Foi notada e tornou-se notável. A agência já não a conseguia conter e encaixá-la nos seus negócios. Hoje, a Mafalda é uma importante cartunista de reconhecimento global. Ganhou vários prémios de criatividade e é uma referência no cartoon. Tem vários livros publicados e é uma inevitável opção para todos os movimentos de animação humorística. Transformou finalmente o seu dom, desenvolvendo-o e aperfeiçoando-o, tornando-o em talento.
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SEGUIR O CAMINHO PREVISTO OU ARRISCAR?
[A HISTÓRIA DE VANDA]
A Vanda é de Aveiro. É a mais nova de uma família de três filhos. Foi uma criança muito atenta a tudo, o que, com o convívio e as brincadeiras com os irmãos mais velhos, a tornou numa criança precoce. Sempre se interessou por quase tudo. Era conhecida por fazer perguntas inteligentes. Na fase dos «porquês» nunca maçava os mais velhos porque parecia pensar e meditar antes de perguntar. «Que esperta é a miúda», ouvia-se em comentários recorrentes. Abordava assuntos variados e eram muitas as suas curiosidades e interesses. Tinha um olhar profundo e quase enigmático. Era difícil por vezes pousar os olhos no seu olhar. Parecia que se entrava na galáxia dos seus sonhos e das suas fantasias. Quando o adulto recuperava do efeito quase delirante do encontro com o seu olhar, parecia que havia uma necessidade de se defender e abordava o tamanho dos seus olhos desproporcional à pequenez do seu corpo esguio e muito magro. «Só tem olhos», ainda hoje se lembra a Vanda de ouvir em sinal de crítica e reparo negativo. Dava-se quase sempre com toda a gente. Não era conflituosa, mas revelava ter uma vontade férrea, sendo determinada e não se deixando influenciar por qualquer um. Diziam-lhe que era rebelde. De facto o que acontecia era resistir peremptoriamente, quando a «norma» lhe era adversa por lhe parecer injusta ou incoerente. Foi sempre muito boa aluna, ava sempre com cinco a quase tudo. Em casa diziam que nasceu para ser alguém. A mãe era professora do secundário e criava um ambiente propício à valorização do estudo. Apesar de ensinar Matemática, foi o pensamento abstracto e semântico que viu desenvolver de forma extraordinária na Vanda, ela tinha um óptimo factor verbal. Com três anos já conversava usando um discurso coerente e sempre com o vocabulário certo e muito sofisticado para uma criança tão pequena. Iria para Letras? Perguntavam quando viam a Vanda nos seus discursos elaborados. Os adultos adoravam-na. Em qualquer festa ou encontro de amigos, não era preciso muito tempo para que alguém reparasse na pequena Vanda. «Esta menina não se cala, e que eloquente que ela é!» Era o que se ouvia quando davam por ela. Os professores adoravamna, como sempre acontece com os alunos sossegados, interessados e com bom aproveitamento.
Quando chegou ao 9.o ano, teve apoio de Orientação Escolar e Profissional. O nível do desempenho nas áreas analíticas era praticamente 100%. O psicólogo vocacional que a seguia trabalhou aprofundadamente com a Vanda até despistar qualquer interesse motivacional pelas Ciências, uma vez que era tão elevado o seu nível de pensamento dedutivo-indutivo. Como esperado, a Vanda teve médias altíssimas e podia escolher qualquer universidade e qualquer curso da sua área de estudo no ensino secundário. Escolheu tirar Direito em Coimbra. Tudo corria como previsto. Adaptou-se bem a essa condição de adulta e de autonomia, que a vida fora de casa dos pais obriga. Organizava-se bem com a alimentação e com a gestão partilhada com mais dois rapazes de uma casa. Um deles era um daqueles amigos de infância com quem se está como se fosse um irmão. Partilhava comida, farra e estudos com ele. Nunca se preocupava com os detalhes domésticos e focava-se no essencial. Foi sempre muito boa aluna e na maior parte das cadeiras conseguiu mesmo destacar-se e atingir um aproveitamento nunca visto. Foi uma das melhores alunas que ou por aquela antiga e prestigiada universidade. Teve tempo de «vadiar» pelo mundo estudantil, mas sempre muito focada no essencial que era o seu papel de aluna e estudante. Mais uma vez poderia escolher o que quisesse quando acabou a Mestrado. Ficar na universidade era aquilo que a esperava como mais certo tendo em conta a sua altíssima média. Um dos professores convidou-a a tirar o Doutoramento, mantendo-se na faculdade como Assistente. Mas a Vanda não tinha a certeza de ser isso que ela queria. Concorreu ao Centro de Estudos Jurídicos (CEJ) e pensou seguir magistratura. Simultaneamente, uma prestigiada sociedade de advogados convidou-a para uma entrevista, como acontece com os alunos que se destacam. Tinha de optar: mudar-se para Lisboa, fazer o CEJ e seguir magistratura ou aceitar o lugar de estagiária na sociedade de advogados. A experiência de vida em Lisboa durante os dias em que recorriam as entrevistas e candidaturas foi confusa e antagónica. Por um lado, compreendeu o fascínio que a cidade exerce com a sua majestosa luz e o turbilhão de gentes diferentes, mas por outro sentiuse insegura e desprotegida. Sentiu claramente que seria essa diversidade de gentes que lhe iria preencher o futuro, mas parecia-lhe uma decisão ainda prematura na sua vida.
A Vanda seguiu como previsto, como seria de esperar, sem correr riscos nem sair da sua zona de conforto. Escolheu ficar como Professora Auxiliar Convidada de Direito Europeu. Seria uma pena desperdiçar as suas credenciais académicas, diziam os colegas e sobretudo os professores mais chegados. Mas a Vanda tinha a certeza de que algo iria fazê-la mudar no futuro. Sentia interiormente que só estava a dar mais tempo a si própria para partir para o desconhecido e arriscar. Tirou Doutoramento em Direito Internacional, matéria que tanto gostava e sentia-se bem com a sua investigação e aprofundamento dos conhecimentos nesta área global. Fazia investigação de qualidade e era muitas vezes convidada para intercâmbios universitários em diferentes países. Um dia, um dos catedráticos perguntou-lhe se poderia dar o seu nome para membro auxiliar do Governo que então se formava. Tinham ocorrido eleições e estavam na semana de preparação do executivo. A Vanda ficou perplexa com o convite. É sabido quão normal é pessoas de Direito estarem em percentagem elevada nos cargos governamentais, mas a Vanda não tinha ligações à política de forma partidária e tinha-lhe ado a atracção que Lisboa lhe provocara. Tinha arrumado essa memória num cantinho qualquer da sua mente conjuntamente com muitas outras recordações, de forma a que não viesse mais esse pensamento tirarlhe o equilíbrio tão perfeito e previsível que vivia. Já estava acomodada à sua vida académica, à sua Coimbra, à sua querida universidade e aos finsde-semana em Aveiro onde continuava a ir semanalmente como que mantendo o cordão umbilical com os seus pais, os amigos de sempre e o seu quarto com todas as recordações da sua vida. ou as 24 horas mais ansiosas de que se lembrava. Sabia que a vida lhe estava a bater à porta, que tinha de dar o o para o desconhecido e para outra existência, por fim sentiu que tinha chegado o momento. Percebeu que o Governo e a vida política e partidária não seriam o seu futuro, somente um veículo do caminho para o resto da sua vida. Viu esta etapa do seu percurso como uma escala de uma viagem que vai continuar com brevidade. Quando disse que sim ao convite, fê-lo sem excitação, mas com o entusiasmo discreto de quem tem muitos outros pensamentos em simultâneo a povoar a sua mente. Foi convidada para Assessora do Gabinete do Ministro dos
Negócios Estrangeiros e inevitavelmente mudou-se de rompante para Lisboa. Foi então que viveu uma vida nova de experiências e descobertas. Gostou da diversidade que experimentou por todo o lado. No Governo convivia com pessoas muito diferentes dela, em formação, estilo de vida, propósito, enfim, em quase tudo. Foi conhecendo pessoas diferentes, amigos de amigos que se iam cruzando e encontrando e a Vanda percebeu em pouco tempo que Aveiro e Coimbra estariam cada vez mais longe da sua vida. Por outro lado, começou a interessar-se pela Europa e não só, as causas sociais a nível global ocupavam sempre a prioridade nas suas investigações. Quando esta aventura governamental acabou, não se via a regressar à sua vida universitária. Concorreu para um lugar na ONU. Como não tinha uma escolha específica em termos de área de interesse, preocupou-se muito em ter a certeza que o seu processo de candidatura correria bem e que isso lhe daria a possibilidade de continuar a «abrir os horizontes», mudar-se para Nova Iorque e ligar-se ao mundo global através do seu dia-a-dia profissional. «Que loucura… a Vanda avariou», era o comentário dos colegas professorais. «Vai agora para essa aventura da ONU, num lugar que nem lhe é apropriado para quem já fez o que a Vanda fez e tem aquele ilustríssimo currículo». Mas a Vanda arriscou. A decisão de não jogar pelo seguro nem seguir o previsto estava tomada. No fundo, lá no mais íntimo e profundo pensamento interior, a Vanda sabia que um dia sairia da norma e saltaria do caminho previsto para arriscar. Sentia que tinha chegado o momento, a fracção de segundo que antecede o salto do pára-quedista, era agora que tinha de arriscar. Entrou como jurista auxiliar para o Conselho Económico e Social. Durante as entrevistas, foi-lhe sugerido usar as suas credencias académicas e candidatar-se ao Tribunal Internacional de Justiça. Mas a Vanda tinha vontade de arriscar e tentar desenvolver-se e aprender outras áreas menos previsíveis para ela. Entrou como uma normal licenciada/mestre e deixou que todas as experiências e estímulos a influenciassem e preenchessem o seu dia-a-dia. Foram tempos de descoberta, de aventura, de vida boémia. Viajou por todo o mundo, experimentou variadíssimos hobbies. Profissionalmente, na ONU, como excedia sempre o esperado para a sua função, foi-lhe proposto um cargo de coordenação como é normal acontecer. Mais uns dias de ansiedade e a Vanda declinou o convite.
Compreendeu que queria voltar a Portugal e fazer o estágio para ser advogada. «Já não estás nessa fase», disseram-lhe os colegas amigos. «As tuas credencias curriculares são superiores», continuavam, mas a Vanda sabia que necessitaria desta aprendizagem e grau profissional para ter ferramentas de liberdade. Sim, de liberdade para avançar para vivências novas, usando o Direito como fonte de vida e de propósito útil aos outros e à sociedade. Foi bater à porta da sociedade de advogados que há mais de uma dezena de anos a tinha convidado para aí fazer o estágio. Foi com iração que os sócios seniores falaram com a Vanda e perceberam a sua intenção. Foi aceite com o aviso que teria de ar pelas etapas normais de integração e carreira como advogada, uma vez que era essa a sua intenção. Vanda começou na empresa logo que se instalou em Lisboa. Sentiu a discriminação etária. Os outros estagiários começaram por ter uma atitude de rejeição quando a viram, mais velha e com um desenvolvimento intelectual, humano e social muito mais consolidado. Foi assim também com os advogados da sua geração universitária. Estava fora da norma. Era sénior, com o pensamento complexo muito desenvolvido e com níveis de capacidade de resolução de problemas absolutamente superiores. Demorou tempo até estar na lista dos jantares e das saídas com os colegas. Teve de provar que ser mais velha não lhe limitava a capacidade de ver o mundo e a vida como eles, e que a diversidade só os poderia enriquecer com toda a partilha de conhecimentos e de experiências diferentes dos próprios. Fez o período de adaptação com uma perna às costas. Para além da sociedade onde trabalhava, choveram os de outros para se juntar a eles. A Vanda ficou a exercer Direito Internacional na empresa que a tinha acolhido sempre com muito sucesso. Porém, ado um par de anos, mais uma vez sentiu aquela sensação de estar a construir uma carreira como «manda a norma, como previsto». Mais uma vez mudou tudo e quis arriscar. Escolheu entrar num Programa de Advogados de Apoio aos Países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. E assim andou a Vanda como quis, arriscando permanentemente, não consolidando nenhum traço tradicional de segurança a não ser o que mais prezava: «O conhecimento jurídico ao serviço dos outros.»
ou por diferentes países, deixando sempre nas pessoas a sensação de que era uma pena perdê-la, vê-la partir e verificar o perfil de risco que a acompanhava. Hoje vive em Timor. Exerce Direito Internacional e não só. Continua a ser inspiradora no que faz. Constituiu família e tem cinco filhos, por enquanto, só um é biológico. Vai-se apaixonando por crianças carentes em processo de adopção e candidata-se a mãe. Tem uma alma gémea na figura de «pai» daquelas crianças. Alguém que a aceita na sua rebelde maneira de ser ao questionar tudo e subverter a norma. Arrisca constantemente tudo, desde que com essas novas experiências consiga enriquecer-se como pessoa. Ah! e é chamada de «A advogada de todos».
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Seguir o caminho previsto tem muitas vantagens. É antes de mais seguro. Quando seguimos o previsto não corremos grandes riscos a priori. É como seguirmos numa auto-estrada à velocidade legal, sem pressa ou pressão de horário. Podemos aproveitar para ouvir um podcast em pipeline e chegaremos ao destino sem sobressaltos muito provavelmente. A segurança imprime um ritmo de vida como num crescendo aritmético, como quando apanhamos um comboio, a velocidade vai crescendo lentamente e nunca sentimos nenhum sobressalto em circunstâncias normais. Proporciona uma vida previsível, lentamente ritmada com as evoluções inevitáveis fruto do ar do tempo. Nada disto é mau e pode ser muitas vezes a decisão de muitos para o seu plano de existência. Outros, porém, querem viver com a adrenalina elevada que o risco proporciona. Querem ter a sensação do inseguro e de tanto
o experienciarem dominá-lo, tornando-o a sua forma de vida. Não temos de ser assim ou de outra forma. Temos de saber o que é melhor para nós próprios em cada etapa da nossa vida. Podemos, entretanto, mudar. Temos de nos permitir a isso. A Vanda mudou. Mudou da promissora carreira académica para a ilustre sociedade de advogados, mantendo uma certa sequência de evolução. A certa altura decidiu tudo mudar, tudo arriscar e dar-se ao luxo de ter uma vida ímpar.
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PERSISTÊNCIA E PAIXÃO
[A HISTÓRIA DE CRISTINA]
Estava em casa da avó quando reparou no que estava a dar na televisão. Reparou não, sentiu. O que aconteceu, de facto, é que sentiu uma sensação arrebatadora. Foi mais importante, excitante e intensa do que o que costumava sentir quando ouvia o toque do recreio no jardim-de-infância onde andava. Quando aquele som metálico e estridente se ouvia, ela quase que explodia de enérgica vontade de correr sem parar pelo campo de jogos até não poder mais. Porém, o que sentiu desta vez foi mais forte, mais violento e teve um efeito muito mais arrebatador. Perguntou então: «Mama Grande [como costumava chamar à avó], o que é isto?», a sua avó respondeu: «Isto é ballet , Cristina, gostas?» e ouviu-se um enorme: «Sim.» É esta a recordação mais antiga que a Cristina tem sobre a sua ligação à dança. Lembra-se de ter ficado sentada aos pés da avó com os olhos presos no ecrã da televisão e que se sentiu enlevada, quase em estado hipnótico. Foi a primeira notícia dada aos pais no dia seguinte quando a vieram buscar. A Cristina gostava de ver ballet. E muito. «Bom, já sabemos como a vamos entreter», disseram despreocupadamente e sem dar grande importância ao assunto. Os pais eram atentos à educação dos filhos. Para alem da natação, que a Cristina e os seus dois irmãos treinavam no clube desde o primeiro ano de vida, foi aos quatro anos que a Cristina começou o ballet no colégio, depois de ter manifestado de forma segura e determinada que era isso que queria. Quando se dava a transição do jardim-de-infância para a préprimária, no colégio onde andavam, escolhia-se uma actividade de desporto para que as crianças começassem a prática continuada da actividade física. O irmão mais velho escolheu futebol, sabia tudo sobre as regras futebolísticas, os melhores e mais famosos jogadores e sobre a vida dos clubes, acompanhava o que se ava no campeonato português, mas também debitava conhecimento sobre as ligas italiana, inglesa, espanhola e alemã. Era um fervoroso apoiante da Selecção Nacional, podendo discutir jogadas e a prestação dos jogadores em Campeonatos da Europa ou do Mundo de épocas anteriores ao seu nascimento. Também sabia de cor os golos famosos do Ronaldo e tinha cromos e fotografias dele no quarto, que aliás coleccionava com obsessão. O irmão do meio era mais dado às artes marciais. Andava no judo, mas
estava sempre a falar noutras modalidades para onde queria também ir. «Tens que aprofundar melhor uma arte para depois poderes mudar. Além disso, é judo que há no colégio», diziam os pais. Porém, a motivação levavao a querer ter outras vivências. Mais tarde veio a experimentar um pouco de tudo em práticas de combate e desenvolveu-se muito bem em taekwondo, chegando a cinturão negro. Quando chegou a vez de a Cristina escolher, nem os pais nem ninguém tinha dúvidas do que escolheria. Já tinha ido com a tia e com a avó ao São Carlos por altura do Bailado de Natal da Companhia Nacional de Bailado e também a um par de matinés no Teatro Camões. «Que bom, agora tenho quem me faça companhia», repetia a avó, quando chegavam à sala de espectáculos. «Ela fica paralisada a ver o bailado, é impressionante», dizia à filha. Cristina adorava. Adorava aquelas músicas, os sons, o movimento e tudo o que estes espectáculos lhe produziam a nível sensorial e emocional. Ficava por um lado muito excitada e empolgada, e por outro serena, completa, com uma sensação de plenitude que se prolongava pelas horas que se seguiam aos espectáculos. «Que bom, vem muito sossegadinha», diziam os pais. Quando as aulas de ballet começaram, não poderiam correr melhor. Os pais verificavam o impacto que o ballet tinha na estruturação equilibrada e completa no desenvolvimento da Cristina. O que sabiam sobre a influência desta prática no desenvolvimento psicomotor, afectivo, social e até cognitivo confirmava-se. Viam o ballet como uma disciplina formativa da filha, mas não como uma hipótese de vida profissional para a Cristina. Foi neste ambiente que a Cristina fez a pré-primária, a primária e ou para o 5.o e o 6.o ano. Tudo corria bem. Tinha bom aproveitamento, destacando-se na Matemática e no Português em simultâneo, o que, segundo o colégio, era muito interessante, curioso e pouco usual. Porém, quando lhe perguntavam qual era a disciplina que preferia entre as duas, a resposta era invariavelmente «o ballet». «Sim, já sabemos, mas entre Matemática e Português?». «Ah, dessas gosto de forma igual», respondia a Cristina. Foi como uma tempestade devastadora e intensa que um dia, antes de se sentarem à mesa para jantar, souberam que tudo o que tinham como certo estava comprometido.
A vida da família iria mudar drasticamente. Os pais, ambos engenheiros, tinham desenvolvido com sucesso um negócio ligado à climatização e AVAC (aquecimento, ventilação e ar condicionado). Como qualquer startup tudo tinha sido desenvolvido com alguma falta de organização nos primeiros tempos. Porém, com o correr dos anos, tinham tido sucesso e conseguiram ter crescimento e lucros muito interessantes. Um dos tios da Cristina era consultor e várias vezes falava aos pais como deveriam ter uma organização mais profissionalizada de forma a garantir sustentabilidade. Mas tudo o que requer mudança e investimento cria resistência. Nunca foi intenção dos pais nada fazerem para melhor preparar o futuro, mas o que é certo é que nada fizeram. Tinham todo o back office nas mãos de um familiar de confiança, supunham. Quando se confrontaram, sem aviso nem suspeita, com as comunicações oficiais sobre incumprimentos era já tarde de mais. O familiar tinha sido incompetente e incumpridor, aparecia no primeiro alerta. Porém, o problema era mais grave. Todos viam como ele e a sua família viviam de forma muito desafogada, mas atribuíam esse bem-estar económico à rentabilidade da mulher que era médica. «Se ela trabalha num hospital público a tempo inteiro como é que consegue ganhar para tudo isto?», sussurraram os pais em tempos. O dia-a-dia de trabalho e compromissos não lhes deixou tempo para reflectir sobre tudo e nada fizeram. Quando quiseram ter controlo na empresa e reverter a situação, já era tarde de mais. Tiveram de hipotecar o seu próprio armazém e mudar os escritórios para uma zona onde não quereriam que cliente ou parceiro algum os visitasse. Hipotecaram também a casa onde viviam e venderam a casa do Baleal de que tanto gostavam. Ainda aguentaram alguns meses, mas a história do familiar não estava só ligada à incompetência. Usando os poderes para até determinados montantes, tinha, com a cumplicidade de um bancário, feito fraude e comprometido os activos da empresa, não deixando alternativas de recuperação. Mesmo com apoio e após o estudo de vários cenários de engenharia financeira, os pais não viam forma de se aguentarem. Para além desta grave situação, havia o mercado a reagir negativamente aos rumores de provável insolvência. Foi neste clima de sofrimento, desestruturação e vergonha que os pais
resolveram emigrar para África e tentar começar uma vida de novo. O irmão mais velho ficou em Lisboa com a avó, uma vez que tinha entrado para a faculdade. Ainda hoje a Cristina sofre quando se lembra da forma como se despediram. Dos olhos húmidos e inchados do irmão e da voz falhada da avó a prometer que em breve haveriam de voltar, recuperar a vida anterior e tudo ficaria resolvido. Quando finalmente chegaram à pequena cidade onde ficariam a viver, a Cristina percebeu que nada seria como antes. Ficaram a viver numa casinha térrea numa ruela atrás do edifício da Câmara Municipal. Era metade da dimensão do apartamento de Lisboa. Os pais tentavam andar sempre ocupados e não mostrar desânimo, mas sentia-se uma tristeza permanente no ar. Ela e o irmão começaram a frequentar a escola pública, o único estabelecimento de ensino na cidade. Rapidamente foram notados pelos níveis de conhecimento mais sólidos que a maioria das outras crianças. O irmão deixou de ter interesse. «Tens de terminar o secundário rapidamente para te juntares ao teu irmão em Lisboa», repetiam os pais sem sucesso. Desistiu de tudo, de todos e de si próprio. Logo que chegou à idade adulta, deambulou sem rumo nem propósito, vagueando sem destino por todo o lado. Finalmente encontrou alguém a quem se ligar. Hoje vive na Escandinávia e ocupa a sua vida como empregado num grupo pesqueiro. Ainda hoje parece mal resolvido. Quando embarca e começa mais uma jornada do seu trabalho, é como que se sentisse a ir para onde calhar, sem apego nem sossego, sem esperança ou vontade de regressar, ou de se perder ou mesmo de coisa nenhuma. A Cristina começava a adolescência quando os pais se mudaram. Teve de se adaptar a uma vida muito diferente. Deixou de ter o amor omnipresente da avó, ou da «mamã grande» como continuava a chamar-lhe. Não tinha os eios a Belém e os lanchinhos nas esplanadas com ela. Não tinha a ida às matinés no Teatro Camões e no CCB, e sobretudo teve de viver sem continuar o seu sonho de ser bailarina. Não havia naquela cidade qualquer actividade ligada à dança clássica e formativa. Para a Cristina foi um grande choque. Foi mais sobreviver aquele tempo que ou durante a adolescência do que propriamente viver. Nunca se sentia completa. Cumpria com os deveres escolares como se estivesse a cumprir uma rotina. Os pais recearam que este desânimo, pressentido constantemente, pudesse levar a Cristina a entrar numa espiral de desmotivação por si e por tudo, como tinha acontecido com o irmão. Ainda tentaram que ela voltasse para
Lisboa na altura da agem para o 10.o ano. Porém, as dificuldades de transferência foram de tal ordem que só arranjaram vaga para uma escola a mais de três horas de distância diária da casa da avó, o que comprometeu completamente esse projecto. Restou à Cristina resignar-se e tentar encontrar ânimo na vida que tinha, esforçando-se constantemente por não se encontrar com as suas próprias tristezas. ou esses três anos de forma contida como se fosse a única forma de manter o equilíbrio. Sentia que se se implicasse em algo, nalgum sentimento ou interesse poderia simplesmente desmoronar-se. Apesar deste estado de espírito teve sucesso escolar e conseguiu entrar na Faculdade de Ciências em Lisboa.
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O que é ser persistente?
Persistência é a qualidade de quem não desiste, que persiste no seu objectivo ou tarefa, independentemente dos obstáculos que aparecem no caminho. É persistente aquele que actua e empreende com empenho e perseverança. Revela também tenacidade e determinação. É aquele que tem coragem para enfrentar os seus medos, as dúvidas e resistências de empreender. O persistente aceita as suas fraquezas e não receia mostrar as suas fragilidades e ignorâncias perante os que o rodeiam. Sente-se suficientemente «completo» e revela integração humana, o que lhe permite aceitar o insucesso perante si mesmo e os outros. Nunca desiste, não baixa os braços sem ter esgotado todas as possibilidades de alcançar aquilo a que se propõe. A persistência mostra a capacidade de insistir das pessoas que têm tenacidade e força de vontade. Isto é, têm as ideias muito claras sobre os seus objectivos, são focadas e lutam para conseguir aquilo a que se propõem porque são conscientes de que quem vence de verdade nesta vida é aquele que se levanta todas as vezes que cai. A verdadeira chave do sucesso pessoal e profissional está muitas vezes baseada na persistência de lutar por um objectivo final, ultraando as dificuldades e conseguindo chegar para além dos obstáculos e contratempos que encontra.
O que é ter paixão?
Paixão é um termo que designa um sentimento muito forte de atracção por algo, por uma pessoa, por um objecto ou por um tema ou objectivo. A paixão é sempre intensa, envolvente e empresta a quem a vive um entusiasmo ou um desejo forte para que alguma coisa se concretize ou se alcance. Designa um vívido interesse ou iração por um ideal, causa ou actividade. Em suma, é um sentimento intenso e, por vezes, arrebatador. Hoje fala-se muito de «propósito» e de espírito de missão para classificar a atitude positiva e emocional que alguns transportam perante um objectivo, uma tarefa ou um empreendimento. O propósito é a razão da existência de cada um de nós. É a força interna e a motivação de cada ser humano para prosseguir numa caminhada pessoal e profissional. É o «propósito» ou a paixão o que dá sentido ao nosso quotidiano e à construção da nossa vida. Enriqueça a sua vida interior, permita-se à auto-análise e encontre o seu próprio caminho, o seu propósito. Aquilo que sente no mais profundo do seu ser que é o mais correcto a fazer. Deixo aqui as palavras mágicas do poeta brasileiro Augusto Branco a quem peço emprestado estes inspiradores versos do seu poema «Vida»: «Bom mesmo é ir à luta com determinação, abraçar a vida com paixão, perder com classe e vencer com ousadia, porque o mundo pertence a quem se atreve e a vida é muito para ser insignificante.»
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Quando regressou a Lisboa, a Cristina sentia-se vinda de outro mundo, de um mundo onde o tempo era diferente, onde o espaço tinha outra dimensão e onde a Terra parecia um planeta que, por algum motivo
cósmico, tinha parado. Por cá sentiu tudo novo e irreconhecível. A cidade estava demasiado rápida, demasiado intensa. Por vezes sentia-se desenraizada ou desestruturada, mas tentava sempre superar as dificuldades e lá se foi readaptando aos poucos. Deu-se bem na faculdade, mas as matérias não lhe despertavam paixão. Conheceu pessoas novas e conviveu com facilidade, adaptando-se sem grandes problemas a este novo mundo que agora descobria. À medida que a rotina espreitava no seu quotidiano, na relação directa com a adaptação, como sempre acontece, a Cristina viu aparecer no seu espírito uma intranquilidade doce, mas embrenhada de inquietude e foi então percebendo que algo lhe faltava, que queria mais corpo, mais espaço, mais movimento e mais música na sua vida. Foi ao encontro ou ao reencontro da dança. Como tinha saído do ensino profissionalizante há mais tempo do que aqueles anos em que tinha praticado ballet, não conseguiu nada melhor do que ter uma inscrição numa normal academia de dança para adultos. Rapidamente reparou que havia uma aula nocturna frequentada por adolescentes do conservatório. Era como que uma aula de aperfeiçoamento para futuros bailarinos. Por razões comerciais de rentabilidade da academia, a direcção da mesma abria a possibilidade desta aula ser frequentada por adultos. Foi a grande oportunidade para a Cristina. Sofreu a exclusão da professora que a tratou como uma outsider, mais uma adulta/velha que só interessava à academia por pagar a mensalidade, ajudando assim ao equilíbrio das contas. Durante as primeiras semanas a professora nem para ela olhava, tal como acontecia para com os outros adultos. Sentiu-se quase a fraquejar de desânimo, mas como sempre fez com tudo empenhou-se e conseguiu ser notada. A professora viu-lhe a graça, a capacidade interpretativa e a paixão. Mesmo sem técnica e com erros de postura, atavios de flexibilidade e falta de força muscular, conseguia ir fazendo os exercícios e conquistar o privilégio de ser corrigida pela mestra. Um dia, já lá iam dez semanas de aulas, apareceu com sapatilhas de pontas como as alunas do conservatório. A primeira aula foi um desastre de sofrimento e retrocesso e a mestra voltou a ignorá-la, recolocando-a ao nível das curiosas e patéticas adultas, adivinhando-se o seu pensamento: «é preciso ter paciência para acompanhar estas adultas!» Mas como diz Fernando Pessoa: «Quem quer ar além do Bojador / Tem que ar além da dor.» A Cristina trabalhou muito, esforçou-se imenso e deixou de sentir a dor nos pés, nas articulações e nos músculos em geral. ou a sentir só a alegria e o êxtase de conseguir recuperar o que nunca
tinha sequer experimentado, para além do mundo dos seus sonhos e do seu desejo. Chegou a um bom nível de execução e interpretação. Começou a poder ir a pequenas audições e de começar a ser chamada para alguns trabalhos pontuais. E foi assim que se aram os anos da Licenciatura em Química em simultâneo com a evolução na Dança Clássica. Contudo, a Cristina queria mais, queria ter o seu lugar numa importante companhia, queria o que sempre quis: ser bailarina. Ainda estava a tempo de poder concorrer a uma audição internacional. Caso conseguisse ser aceite, teria consequentemente formação numa grande companhia. Assim fez. Com a inspiração e aconselhamento da sua tutora e mestra de dança concorreu a uma audição na Performing Arts Research and Training Studios (P.A.R.T.S.). As audições em Lisboa não podiam ter corrido melhor. Quase que lhe saltou o coração do peito, quando recebeu o convite para ir ar uma semana em Bruxelas na primavera do ano seguinte. A P.A.R.T.S. convida os candidatos que am na primeira audição para uma semana de treino e pequenas audições que garantem ou não a issão no famoso curso de três anos. Sabia que se tinha de preparar intensamente tanto a nível físico como balético, mas por outro lado não queria continuar a ser um fardo para os seus pais, pelo que em simultâneo propôs-se como assistente de um professor de Farmácia que procurava apoio numa investigação documental. ou esse trimestre com a alma cheia de luz e fervor, mas também sentiu pânico e momentos de forte ansiedade perante tamanho empreendimento e provação que iria ar. A viagem para a audição foi um tormento. Será que iria conseguir? A sua mestra que, entretanto, nutria por ela uma iração imensurável, foi quem a acompanhou. Tentou dar-lhe ânimo e segurança por um lado, mas também a tentou preparar para aceitar a sua vida de outra forma caso não fosse seleccionada. Estava no limite etário, o que não lhe daria margem para, caso falhasse, poder ainda fazer audições noutras companhias do mesmo nível de sofisticação e qualidade. Foi com uma enorme ansiedade que ou a semana que preenche as audições desta companhia. Teve alternadamente momentos de enorme entusiasmo e autodomínio, com horas de frustração e tristeza por lhe parecer que não tinha conseguido atingir o nível desejado e que iria falhar
no seu desígnio de vida. A Cristina foi aceite. Sentiu-se outra pessoa. Reencontrou o equilíbrio interior que há tanto tempo lhe faltava. Sentiu-se completa, inteira, concretizada. A carreira da Cristina continua proeminente e em ascensão. Hoje é uma coreógrafa reconhecida a nível global, para além de mestra e curadora de muitas intervenções de artes performativas.
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INTELIGÊNCIA EMOCIONAL: UMA FERRAMENTA MUITO ÚTIL
[A HISTÓRIA DE VASCO]
O psicólogo Daniel Goleman definiu inteligência emocional como: «… a capacidade de identificar os nossos próprios sentimentos e os dos outros, de nos motivarmos e de gerir bem as emoções dentro de nós e nos nossos relacionamentos.» (Goleman, D., Working with Emotional Intelligence , Nova Iorque: Bantam Books, 1998.) Para o autor, a inteligência emocional é a maior responsável pelo sucesso ou insucesso dos indivíduos, como exemplo recorda que a maioria das situações socioprofissionais são envolvidas por relacionamentos entre as pessoas e, desse modo, pessoas com qualidades de relacionamento humano, como empatia, tolerância e generosidade, têm mais hipóteses de obter o sucesso. Segundo Goleman, a inteligência emocional pode ser categorizada em cinco habilidades:
– Autoconhecimento emocional: avaliar as próprias emoções e sentimentos e perceber porque é que os estamos a sentir; – Controlo emocional: lidar com os próprios sentimentos como o stresse, adequando-os a cada situação para que não se tornem obstáculos; – Automotivação: dirigir as emoções de acordo com um objectivo ou realização pessoal; – Reconhecimento das emoções: identificar emoções no outro e ter empatia de sentimentos alheios; – Habilidade em relacionamentos interpessoais: interagir com outros indivíduos utilizando competências sociais.
As três primeiras são habilidades intrapessoais e as duas últimas interpessoais. As primeiras são essenciais ao autoconhecimento; as últimas são importantes na:
– Organização de grupos: habilidade essencial da liderança que envolve iniciativa e coordenação de esforços de um grupo, bem como a habilidade
de obter do grupo o reconhecimento da liderança e uma cooperação espontânea; – Negociação de soluções: característica do mediador, prevenindo e resolvendo conflitos; – Empatia: capacidade de reagir, ao identificar e compreender os desejos e sentimentos dos indivíduos, adequadamente de forma a canalizá-los ao interesse comum; – Sensibilidade social: competência para detectar e identificar sentimentos e motivações dos grupos.
Sabemos hoje em dia que algumas das nossas competências funcionais mais técnicas podem ser e serão com certeza substituídas pela Inteligência Artificial (IA), num futuro que está cada vez mais próximo. Sabemos também que a aprendizagem pela IA das competências emocionais, as chamadas soft skills, vai sendo também incorporada no processo de machine learning de forma exponencial; porém, nós, os humanos, teremos essas facilidades como motores de aceleração de conhecimento e inteligência. Seremos cada vez mais poderosos na nossa capacidade de raciocínio e indução, mas nunca poderemos ser substituídos nas competências humanas, como trabalhar em equipa, gerir comportamentos, lidar com as complexidades sociais, ter capacidade de liderar, competências que são hoje em dia críticas para as empresas, aquelas que nos surpreendem, que têm bases intuitivas e que os computadores não poderão alcançar ao mesmo nível de consistência. Estas vão ser as mais-valias de cada um de nós, a mais-valia dos humanos e super-humanos do futuro. Vamos conhecer a história do Vasco e constatar como a ausência de inteligência emocional lhe bloqueou a carreira. Só quando o Vasco ou por um caminho tormentoso e de autodesaproveitamento é que compreendeu a necessidade de mudar. Mudar no caso do Vasco significou encontrar um paradigma interior em que foi possível tornar-se generoso, empático e igualitário na aceitação da diferença.
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O Vasco teve 770 no GMAT (Graduate Management ission Test), o exame de issão exigido pela maioria das escolas de negócios nos Estados Unidos da América e na Europa, sendo a nota máxima 800. O Vasco foi sempre muito rápido no pensamento linear e analítico. A satisfação que teve e criou à sua volta, com o nível que atingiu no GMAT, não surpreendeu verdadeiramente. Os que o conheciam sabiam das suas habilidades de aprendizagem e da capacidade de responder de forma assertiva aos desafios escolares. O Vasco tinha sistematicamente bons resultados. Não era só a capacidade intelectual que o favorecia, era também o método de estudo que aprendeu a desenvolver. De facto, nunca tinha genuína vontade de aprender determinado assunto. Enfrentava a aprendizagem sem qualquer interesse específico ou qualquer emoção. Tinha de fazer com sucesso a escolaridade e, portanto, organizava uma metodologia de estudo focada sobretudo em saber responder ao que o examinador quereria do examinado. A maioria dos professores que tinha tido não o reteve por muito tempo na memória; porém, enquanto o tinham como aluno gostavam dele. Não arranjava problemas, alinhava com as ideias ensinadas e aprendia da forma como eles, professores, gostariam de ver a matéria em causa tratada. Foi, pois, fácil para o Vasco entrar numa consultora tecnológica quando acabou o Mestrado. Teve um desempenho médio. Se por um lado conseguia desenvolver tecnicamente o seu trabalho de developer sem problemas, por outro tinha enormes dificuldades em estar com as equipas dos clientes ou mesmo com equipas da sua própria empresa com quem ainda não tivesse tido conhecimento anterior. Quase não conseguia falar em frente a alguém que ainda não conhecesse, não enfrentando sequer o seu interlocutor num olhar directo, diziam: «O Vasco é um bicho-do-mato.» O Vasco só olhava nos olhos daqueles com quem se sentia à-vontade e isso era sempre a excepção. Foi assim, num ambiente sem emoção nem paixão, que o Vasco ou os seus primeiros seis anos de vida profissional. Era claro para ele que não haveria nada de novo nem de progressivo na sua vida profissional a curto prazo e que dificilmente aria para o patamar evolutivo de consultor ou manager de equipa. Em consultoria evoluem aqueles que conseguem transformar os seus conhecimentos em serviço,
os que são capazes de compreender as necessidades dos clientes para quem trabalham e apresentar propostas criativas e capazes de acrescentar valor. Para manager de equipas de desenvolvimento eram escolhidos os bons chefes, aqueles que poderiam ser inspiradores, generosos, capazes de apoiar os outros e serem seguidos pelo grupo. O Vasco não aceitava ninguém que não lhe pudesse ser útil no imediato. Não era generoso, pelo contrário era sempre intolerante ao erro, mostrando-se sempre interpretativo e mordaz. Sempre que o nome dele surgia nas avaliações repetia-se a mesma discussão: nem evoluía nem era posta em causa a sua continuidade na firma. Os seus chefes directos, que dependiam do trabalho executivo do Vasco, queriam que ele se mantivesse como estava, apesar de saberem que era uma situação insustentável uma vez que não tinha progresso nem qualquer evolução. Numa consultora há como que uma máquina, um processo de crescimento profissional, quando não há evolução, a pessoa é avaliada como estagnada e sem capacidade de acompanhar o crescimento dos grupos em que está inserido. Por isso o Vasco era um caso incómodo em todas as reuniões de avaliação e desempenho, desempenhava bem, mas não estava inserido na máquina evolutiva das pessoas na consultora. Finalmente foi o Vasco que despertou para a necessidade de mudança. Pensou que a melhor forma de conseguir mudar o marasmo da sua vida seria através de uma formação impactante, que o ajudasse como ferramenta de trampolim e de elevador para a entrada noutro mundo de referências e de circunstâncias. Pesquisou várias alternativas que lhe pareciam combinar consigo. Decidiu concorrer a um Mestrado em International Business. Imaginou que noutro ambiente social, cultural e profissional se conseguiria libertar de tudo aquilo que o afectava e que o prejudicava sistematicamente na relação com as pessoas em geral. Escolheu concorrer a três das melhores escolas de negócios a nível global. O processo é muito exigente, porém o Vasco tinha um excelente GMAT e a experiência na sua firma, uma consultora tão prestigiada globalmente, não o deixariam ficar mal, pensou. Mas pensou mal. Candidatou-se à Stanford Graduate School of Business por ser uma das melhores no mundo, e porque sempre teve curiosidade de poder conhecer e viver na Califórnia e estar no ecossistema de Silicon Valley onde tudo é novo,
inovador e disruptivo. Porém, aconteceu o pior. O Vasco, mesmo com a sua comprovada capacidade analítica e a experiência internacionalmente reconhecida como consultor, não foi aceite. Logo na primeira entrevista com um alumnus de Stanford não foi recomendado. Foi evidente e notória a sua incapacidade de estabelecer relações com os outros de forma natural, autêntica e generosa. O Vasco ficou muito frustrado, mas não desistiu. Fez logo a sua candidatura à Columbia Business School que sempre foi a sua segunda escolha. Não era em Silicon Valley, mas era no coração de Nova Iorque com todas as panóplias de experiências que poderia explorar e vivenciar na «Big Apple». Entretanto, para não deixar ar os prazos de candidaturas e porque não queria mais surpresas negativas, não fosse o diabo tecê-las, fez logo e de uma assentada a candidatura à Harvard Business School. Também lhe agradava a ideia de Boston e de viver daquela maneira quase semieuropeia das pessoas de Massachusetts. Tudo se repetiu. O Vasco não revelava ter inteligência emocional. Não interagia com qualidade com o entrevistador. Em vez de responder de forma directa, franca e transparente, colocava-se à defesa. Tentava interpretar tudo o que lhe era sugerido comentar. Não desenvolvia qualquer ideia que apresentasse complexidade conceptual. Respondia por monossílabos e quase de forma mecânica e robótica. Estava sempre à defesa numa atitude profundamente negativa, sem confiança, sem alegria e sem esperança. Claro está que não olhava para os entrevistadores e deixava-lhes a sensação que os detestava e que não lhes atribuía qualquer valor. Respondia simplesmente focado em poder mostrar grande facilidade e rapidez de raciocínio analítico e espírito crítico. «Porque eu sou muito analítico», repetia sempre para si mesmo e para o seu reduzidíssimo grupo de relações, a saber a sua irmã e alguns dois ou três primos. O Vasco ficou tão perturbado com este insucesso que não foi capaz de aguentar. Ficou como que paralisado no tempo. Como é que ele, tão sólido intelectualmente, tinha falhado este objectivo. Claro está que não soube detectar o que tinha falhado na sua prestação. Na sua cabeça tinha sido responsabilidade dos respectivos alumni das três escolas que não souberam dar-lhe o seu incalculável valor. E assim ficou neste registo um
par de semanas. Foi então que começou a ter um nível de ansiedade e até de angústia que não o deixava dormir, nem alimentar-se correctamente. Começou a ter palpitações que lhe aceleravam o ritmo cardíaco e ganhou peso desmesurado. Tornou-se quase obeso. Não saía de casa para nada. Não tratava da sua própria higiene e não mostrava interesse por fazer o que quer que fosse. Foi a irmã que conseguiu dar-lhe apoio. Através de um colega da sociedade de advogados onde trabalhava, tinha conhecido uma psicóloga clínica e sabia da eficácia das suas intervenções terapêuticas. A primeira reacção do Vasco foi de rejeição. Como é que alguém sem as credenciais que ele considerava apropriadas em termos de acreditação analítica, poderia ter capacidade de o interpretar e eventualmente ajudar? No entanto, a situação adensou-se de tal ordem e o seu mal-estar chegou a um ponto tal que lá aceitou fazer uma primeira consulta cheio de cepticismo e até displicência. Logo após a primeira hora, o Vasco compreendeu que poderia estar errado. O psicólogo é como um organizador do estado interior da pessoa. É alguém que entra na nossa psique e nos ajuda a melhorar a organização mental e autoconsciência, compreendendo as maiores dificuldades da pessoa ao auxiliar a minorá-las e a potenciar as suas qualidades de forma mais equilibrada. Sozinhos muitas vezes não conseguimos ver as situações com clareza, nem nos apercebemos da quantidade de recursos internos positivos que poderemos ter. Por isso, muitas vezes, a intervenção psicológica é essencial para desimpedir o constrangimento que a pessoa sente e que a impede de sair dos seus próprios bloqueios e resolver a sua situação, reequilibrando-se. O Vasco foi gradualmente ficando melhor. Começou a sentir que havia um lugar para si no futuro, que esse lugar tinha de ar por se libertar daquilo que o tinha prejudicado, revendo as suas próprias crenças avaliativas de si próprio e dos outros. Começou a compreender a importância da diferença e da partilha em relação aos que o rodeavam e tinham rodeado. Compreendeu que o seu nível de rapidez analítica talvez fosse potenciado se fosse capaz de o partilhar num trabalho
de grupo e, acima de tudo, compreendeu que os outros não eram obrigatoriamente menos inteligentes, eram sim diferentes no conjunto das características que revelavam, tornando-se complementares nas interacções sociais. E assim se aram um par de meses, os festejos natalícios e a entrada no ano novo. O Vasco começou a querer encontrar um caminho diferente para si, um rumo para o seu futuro. Tinha poupanças consideráveis face ao seu antigo salário, como vimos não tinha quase nenhuns gastos de ordem social e era muito contido em qualquer despesa, tinha comprado com crédito um pequeno apartamento que estava muito valorizado entretanto, para além dos interesses financeiros que tinha sabido gerir de forma sábia. Com estes activos pode concretizar uma decisão. Resolveu fazer o que praticamente nunca tinha feito. Foi viajar e conhecer outras realidades. Ele que nunca tinha saído do seu pequeníssimo mundo sentiu que era agora que devia experimentar o desconhecido, a incerteza e até a aventura. Escolheu ir para a Indochina, vaguear por lá, esperar para ver o que poderia acontecer e então decidir o que fazer. A sua atitude perante si próprio e os outros mudou radicalmente. Agora praticava sobretudo a tolerância e aceitava com alguma facilidade a diferença em relação a ele mesmo. Não foi difícil através de um e de outro conhecer pessoas locais ligadas à sua antiga firma. Foi um o até lhe terem proposto um trabalho de coordenação e liderança num projecto. O Vasco aceitou, não deixando, porém, de referir que não estava na região para ficar, mas tão só para fazer um percurso de experiência pessoal. Era outro Vasco que foi manager de projecto na Tailândia. Foi capaz de fazer tudo diferente e de forma muito mais humanizada. As características, que anos antes o tinham bloqueado na sua evolução e realização, não apareciam no dia-a-dia das suas relações com os outros agora. Interagia com generosidade, era humilde quando revelava a sua superioridade de rapidez de pensamento e era sempre inspirador e portador de esperança para os outros. Quando aproximadamente um ano mais tarde se soube cá, na sua firma, desta transformação, ninguém verdadeiramente acreditou. A maioria dos seus antigos colegas e supervisores já o tinham esquecido, como era hábito, uma vez que o Vasco se tinha comportado como um autómato. Aqueles que
o tinham vagamente na memória ficavam interrogados sobre alguma nova vivência mística que justificasse tais melhorias. De outra forma não seria possível, comentavam sem um interesse específico no assunto, rapidamente mudando de tema. Em pouco tempo o Vasco ficou esquecido por cá de tão insípido e inodoro que tinha sido. Além da sua pequena família, ele não habitava na memória de ninguém. Nem os colegas do secundário ou da universidade se lembravam dele. Quando por acaso era visto nalguma foto de grupo durante o seu percurso escolar, aparecia sempre com ar de tédio ou indiferente, sem sorriso ou outra qualquer expressão emocional. «E este cromo por onde anda?», «Sei lá.» Era o máximo que era referido sobre o seu percurso. adas duas épocas natalícias, o Vasco veio visitar a sua família, as únicas pessoas com quem mantinha relações a Ocidente. Foi nestas férias que tomou uma decisão a longo prazo. Iria ficar a viver a Oriente. Não porque não sentisse capacidade de cá se manter já «reinventado e reorganizado», como sentia consciência que agora estava, mas porque aquele mundo que tinha descoberto era pleno de oportunidades pessoais e profissionais e era lá que se via a viver o seu futuro. De regresso à Tailândia, o Vasco sentiu que até certo ponto era para esses lados que se sentia em casa. Continuou com outro projecto, liderando e entregando com sucesso a missão que a sua consultora lhe tinha atribuído. Era diligente e focado nas suas missões e, sobretudo, muito bem avaliado como inspirador e aglutinador de grupos de trabalho. Porém, e apesar do sucesso que continuava a ter, não era esse tipo de vida que o deixava pleno e realizado. Chegou a pensar que provavelmente seria a presença na sua memória do Vasco do ado que não lhe dava sossego. O facto de estar na mesma firma como consultor, se bem que do outro lado do mundo, condicionava-o, não lhe deixava espaço para desfrutar com a serenidade necessária este renovado EU, que se apresentava no Vasco do presente. Como sempre acontece quando se está disponível para encontrar outros, quando se vive a curiosidade de conhecer pessoas e nos mostramos
interessados e atentos aos seres humanos que vamos encontrando aqui e ali, a ocasião para nos identificarmos com alguém é muito provável. O Vasco conheceu a Xuan, uma vietnamita a fazer uma expatriação numa importante sociedade de advogados da região. Começaram por se conhecer ao acaso, no turbilhão dos prazeres do corpo. Tanto um como o outro se sentia feliz nos reencontros, porém, nenhum deles dava importância especial à relação para além do prazer que sentiam quando estavam juntos. Foram falando de isto e daquilo. A Xuan contou-lhe do ecoresort do pai em Da Nang e como um dia gostaria de lá ficar a viver. Comentou as ideias que tinha para o renovar e tornar ainda mais ecológico, mais de acordo com o que procuravam os seus hóspedes. O Vasco contou-lhe como se tinha reinventado, o que tinha sofrido e como se sentia então, e disse-lhe que se sentia num prelúdio, num intervalo preparatório para uma nova vivência que ainda não tinha descoberto. De encontros em encontros criaram uma ligação intimista e simbiótica, por vezes sentiam que se conheciam desde sempre, ficando atónitos com a confirmação que tinham nascido tão distantes na geografia e no tempo. Contavam com uma diferença etária de quase duas décadas, mas sentiam-se como gémeos, os dois iguais racialmente, geracionalmente e na forma como encaravam tudo. O managing partner do Vasco pensou que a paz que ele reflectia indiciava um compromisso definitivo com a sua evolução e foi-lhe dando mais oportunidades para que o Vasco chegasse a director. A Xuan propôs mais uma renovação do contrato na sua sociedade de advogados. Os dois tinham um pacto não verbalizado, porém absolutamente assinado entre as suas mentes, que não se abandonariam um ao outro nessa terra de encontros e de descobertas. E assim estiveram um par de anos até decidirem ir para Da Nang viver e gerir o ecoresort cada vez mais ecológico e especial. Os que encontravam este novo Vasco comentavam sempre quão inteligente, divertido e próximo que ele era. A sua sensibilidade emocional tornava-o empático e quase íntimo com quem privava e cruzava experiências com ele. O Vasco, por seu lado, gostava de novos encontros e sentia-se sempre bem com o intercâmbio das relações. Sentia-se emocional e empático.
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EXPONENCIAR-SE A SI PRÓPRIO. VIVER PARA UM FUTURO ABUNDANTE
[A HISTÓRIA DE DEEPAK]
O mundo está a mudar. Sempre mudou como sabemos, mas o ritmo de mudança é cada vez mais acelerado. Em todas as áreas de investigação e análise ligadas ao desenvolvimento civilizacional e humano, podemos ver uma curva exponencial de crescimento, quase vertical, nos últimos anos. A esperança de vida está a ultraar os 80 anos no mundo Ocidental, e parece que os algoritmos nos provam que vamos viver mais um ano em média por cada ano de calendário já após 2029. A ciência médica é cada vez mais avançada e customizada às necessidades de cada um de nós, deixando uma esperança de cura muito menos agressiva nos seus processos de tratamento e nos efeitos adversos. Os investigadores actuais desenham o «microbioma» de cada um de nós através de um dinâmico ecossistema de bactérias, fungos e vírus que nos habitam e deverão determinar o tipo de alimentação e outros cuidados quotidianos individualizados de acordo com o genótipo de cada um. A IA vai estar ao nosso lado para aumentar e exponenciar o nosso pensamento, tal como o Excel hoje ou até, no ado recente, as calculadoras nos ajudaram e ajudam a reduzir o tempo necessário para estabelecer correlações, cálculos e raciocínios. Acredita-se que a conjugação da tecnologia exponencial com as pessoas criará habilidades super-humanas ao alcance de todos nós. Se por um lado a pressão do crescimento da população mundial pressiona a extinção de florestas, transformando-as em zonas de produção alimentar, pondo também em risco a sobrevivência de outras espécies animais e vegetais e aumenta o nível de poluição, só para citar algumas questões sobejamente debatidas, por outro lado há cientistas que apresentam a solução através do conceito «Drawdown». «Drawdown» é o ponto no futuro em que a poluição começará a declinar, revertendo o aquecimento global e a pressão exercida sobre o nosso planeta. Como exemplo são, sobretudo, apontadas causas ligadas à tecnologia de ponta na alteração da refrigeração, energias renováveis em grande percentagem de utilização, redução de desperdício alimentar, dietas muito saudáveis com diminuição crescente no impacto ambiental causado pela alimentação humana, protecção das florestas, educação consciente e planeamento familiar. A evolução exponencial da robotização deixará os humanos livres de trabalhos
rotineiros, repetitivos e transaccionais. Imagina-se que num futuro abundante todos poderão ter esperança de exercer uma profissão ou várias durante a sua longa existência, em que farão só aquilo que gostam e lhes dá prazer. Ficará para os andróides, como no ado se baptizaram os robôs, executar as tarefas que ninguém gosta nem é feliz a fazer. A evolução da robotização dará no final mais alegria e paixão a qualquer actividade que cada ser humano se predisponha a fazer. Acredita-se que com a work balance conseguida, haverá provavelmente espaço para uma maior individualidade e motivação pelas actividades escolhidas por cada um de nós para sermos socialmente úteis, com uma profissão cada vez mais itinerante, mas capaz de realizar cada ser humano. A análise estratégica da história das civilizações mostra-nos a ambivalência, por vezes conflituosa, da evolução versus a continuidade. Resta-nos analisar com espírito crítico e transparente aquilo que a humanidade fez e, a partir desse conhecimento, influenciar com a nossa micro-individualidade, no meio de triliões de outros actos e iniciativas de outros, o que pudermos, de forma a contribuirmos com as nossas acções e comportamentos sociais e profissionais para a melhoria global. A inclusão nos sistemas sociais, sejam governamentais, empresariais ou outros agrupamentos da sociedade, é provadamente uma ferramenta de evolução civilizacional. Género, geração, background, credos, etnias, entre outras potenciais diversidades, criam e criarão uma sociedade indubitavelmente mais próspera. Um dos temas mais impactantes deste novo pensamento exponencial e optimista é o futuro da alimentação. A constatação do impacto ambiental provocado pela devastação de florestas, para a criação de áreas de produção alimentar agrícola ou produção animal atinge percentagens preocupantes no equilíbrio do nosso planeta. Hoje a evolução da ciência permite sintetizar moléculas para a produção de carnes e algumas espécies de peixes sem alterar o sabor, as qualidades nutritivas, melhorando-as até, caminhando-se para se conseguir toda uma dieta adaptada às necessidades de cada um, sem a «pegada ecológica», hoje ainda constatada. Já podemos ter essa experiência através da degustação do impossible burger. Caminhamos rapidamente para a constatação da falta de ética que pressupõe
a nossa alimentação de hoje ao criarmos e aprisionarmos seres vivos para podermos sobreviver como se estivéssemos ainda nos primórdios da evolução humana. Com o avanço tecnológico, tal como a nanotecnologia, a impressão 3D, a robotização, a inteligência artificial e a realidade aumentada, caminharemos para conhecimentos de novos diagnósticos, novas terapias e a criação de condições para a evolução efectiva das características do ser humano tal como hoje conhecemos. A chamada biologia digital parece apresentar-se como uma abordagem que sintetiza as ciências com tecnologia de ponta. A aceitação da diferença e tolerância acredita-se que trará maior capacidade de coabitar e coexistir em sociedades pluralistas, assegurando um futuro abundante e capaz de reconhecer a multiplicidade das diferenças. A evolução tecnológica irá avançar em paralelo com a consciencialização do propósito de todos os negócios e do impacto positivo que estes possam ter na vida de todos. Hoje as organizações têm de, em definitivo, redefinir a sua estratégia, abrir espaço à inovação e viver em transformação constante. Só assim poderemos estar preparados para fazer parte da exponencial capacidade de sermos actores de um futuro abundante. As pessoas não estão ainda a mudar os seus comportamentos tão rapidamente como a tecnologia se tem desenvolvido. Este diferencial cria necessidade de ferramentas intuitivas que ajudem à evolução dos comportamentos humanos e uma abordagem à transformação comportamental. Teremos todos muito em breve de estar preparados para termos profissões em evolução contínua, com necessidade permanente de voltarmos à universidade e à aprendizagem. Nenhum trabalho repetitivo sobreviverá para os humanos, o que nos obrigará a todos a ter a sua própria organização pessoal como se de uma empresa unipessoal se tratasse. Não haverá lugar para nenhum emprego para a vida e a nossa auto-reinvenção será uma constante. A mudança tem de ser disruptiva para que possa acompanhar a cada vez mais rápida evolução tecnológica.
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O Deepak nasceu perto de Chandigarh, na Índia, há menos de 30 anos. A sua família sempre esteve ligada a negócios e cedo o Deepak despertou para a criação de oportunidades comerciais. Criou um negócio de importação e representação de produtos alimentares ainda antes de terminar a formação em Gestão na Panjab University. Enquanto conhecia os intermediários, os distribuidores e os retalhistas de bens alimentares, foi verificando de forma consciente as grandes desigualdades humanas, as tremendas diferenças entre oportunidades de o e sobretudo o fatalismo que os grupos sociais desfavorecidos aceitavam como imutável e nunca reversível. O fatalismo de nada terem e a nada poderem aspirar a vir a ter. O Deepak começou por ter raciocínios simples. Poderia tentar subtrair a esta cadeia confrangedora algumas etapas. Uma vez que os produtos que importava eram bens, isto é, mercadorias directamente provenientes da produção agrícola, só com denominação de origem e respectivos certificados de qualidade, talvez conseguisse chegar a um número maior da população e sobretudo democratizar o o aos mesmos, se subtraindo uma parte dessa cadeia de grandes ganhos, conseguisse melhor preço final para o consumidor. Porém, as dificuldades que encontrou foram tremendas. É como se quisesse conduzir seguindo uma viagem por uma auto-estrada em vez de caminhos sinuosos sem, no entanto, haver postos de abastecimento. Qualquer tentativa de comunicação directa com um intermediário seguinte nessa enredada cadeia de abastecimento era imediatamente bloqueada. Para além disso, começou a ter dificuldades de continuar com o volume que já tinha conseguido de facturação, uma vez que ou a ser bloqueado pelos seus clientes directos, acusando-o de falta de ética corporativa e de tentativa de prejudicar o sistema vigente, tão interessantemente lucrativo para todos. A desilusão foi tão grande que resolveu parar com o seu próprio negócio,
a sua startup. Deixou tudo entregue a um familiar, vendendo o negócio e capitalizando o suficiente para ter capacidade financeira para poder recomeçar com alguma coisa diferente, algum outro negócio sempre ligado a um propósito, a algo que fizesse sentido, sentido ético, de forma a poder sentir-se preenchido e pleno. Estava ávido de conhecimento. Queria aprender, de forma a poder ter consistência de conhecimento suficiente para poder recomeçar e fazer algo diferente. Queria estar preparado para poder criar novamente um negócio com propósito, mas desta vez com impacto global. Um negócio capaz de tocar e optimizar um número grande de pessoas. Concorreu para o MIT Sloan MBA Program e foi aceite. Tinha tido bons níveis nas provas de o, mas o que mais influenciou estar no grupo dos seleccionados foi, por um lado, a sua experiência como startuper de sucesso e, por outro lado, as razões apontadas para não ter continuado o seu próprio negócio tão promissor financeiramente. A verdade é que queria ter um negócio capaz de influenciar positivamente a vida de milhares de milhões de pessoas. Não queria ser mais um ambicioso e egoísta entrepreneur, tornar-se somente rico, poderoso e poder ter o a muitos bens e mordomias não era o objectivo do Deepak. Queria ir muito mais além, queria ser um influenciador da melhoria das condições humanas de alguma maneira e pensar num futuro de forma positiva para a civilização. Logo no decurso do primeiro semestre do MBA, o Deepak ficou tocado e quase em êxtase com o mundo de ideias que se lhe abriam. Falava-se sempre de um futuro melhor, mais abundante para todos. Como tinha uma grande abertura de espírito, era profundamente empático e tendia sempre para ver a resolução dos problemas de ângulos diferentes e disruptivos, tornou-se bastante popular entre os colegas e a academia em geral. Para o Deepak a agem pelo MIT tinha de o inspirar e assim prosseguir com um tipo de vida que fosse um propósito para ele. Ficou ainda mais claro na sua mente que as novas conquistas tecnológicas seriam com certeza uma ferramenta muito importante na mudança que se avizinha a os largos. Começou a trabalhar quase sempre com colegas vindos de formação
tecnológica, sobretudo um developer com quem se dava particularmente bem. Um sul-americano que tinha feito os estudos universitários nos EUA, e que se deixava fascinar com o entusiasmo contagiante do Deepak de cada vez que este falava do futuro e de como está de alguma forma nas nossas mãos sermos, com maior ou menor intensidade, os influenciadores do modo como queremos ver a nossa sociedade a evoluir. Falavam como o mundo ficará mais «plano», como foi abordado pelo autor Thomas L. Friedman, mas que também haverá muito mais interesse e até respeito pelos pequenos redutos de cultura e de diferenciação baseada no nosso imaginário. Foram-se ando os meses intensivos de conhecimentos e novas ideias sempre acompanhados de projectos sobre negócios inovadores, disruptivos, transformadores do futuro e quase sempre digitais. No meio destes processos inovadores, surgiu a hipótese de criarem uma startup que até certo ponto começava a partir do primeiro negócio do Deepak. A ideia era a criação de uma food blockchain de transacção directa, sem intermediários, de bens alimentares. Não poderia ter restrição de volume adquirido nem de logística geográfica, tendo, no entanto, tanto a capilaridade como o custo de transporte afetação directa no preço das mercadorias. Com este projecto já concretizado em plano de negócios, Deepak decidiu ir para Silicon Valley e arrastou o amigo consigo. Este, por sua vez, tinha uma rede de developers neste ecossistema de inovação tecnológica e transformacional que facilitou o desenvolvimento operacional da startup. O Deepak angariou quase dez milhões de dólares e tudo mudou para ele. Manteve-se como Chief Strategy Officer (CSO) desta food blockchain (FB), ficando o seu amigo co-fundador como CEO. Quando era questionado sobre as razões desta distribuição de responsabilidades, dizia sempre que estava na função que mais potenciava o seu talento, isto é, conseguir guiar os seus parceiros e sócios para o que eles melhor faziam. Dizia que estava sempre a fervilhar com novas ideias, mas que nunca as poderia potenciar sem a ajuda expert dos que verdadeiramente conseguiam executar os projectos. O Deepak estava sempre a repetir que nada fez de facto, e que se limitou a potenciar o melhor dos seus sócios e parceiros, mas que o mais importante
era conseguir melhorar o o aos produtos alimentares pelos consumidores finais da FB. Era neste ponto que lhe chamavam a atenção dos números avultados de prejuízo que tinha causado a vários intermediários que começaram a diminuir a facturação, o lucro e até a falir. Mostravam tabelas com a desproporção de postos de trabalho destruídos versus os criados na sua FB. Era neste ponto que o Deepak relembrava a mediocridade e a rotina infeliz dos trabalhadores dos distribuidores tradicionais, e como era contrário ao ambiente dos developers na FB, já para não falar no compromisso, espírito de missão e propósito dos mesmos. Começou a ser ouvido e notado. Entrou nos rankings dos jovens startupers. Foi nomeado pela revista Forbes na lista dos «TOP 30 Young Entrepreneurs». Fez muitas apresentações da sua percepção sobre o futuro e de cada vez que isso acontecia deixava sempre nos auditórios uma «onda» de esperança, de alegria e de autoconfiança em quem o ouvia. Consciencializou-se que a sua vida deveria ser uma missão ligada ao empreendedorismo digital, com o propósito de ajudar a criar um futuro mais abundante através da tecnologia, mas igualitário e mais promissor para todos. Como quase sempre acontece, há um movimento em espiral, uma espécie de progressão geométrica extraordinariamente crescente quando se apanha a «onda» certa de crescimento e evolução. Não demorou muito para que o Deepak entrasse no círculo de inovação da Stanford University. Foi fellow no Research Department e começou a ter pequenas incursões como investidor e business angel. Baseou muitas das suas apostas como investidor e researcher no pressuposto que a organização social e organizacional, que finalmente condiciona a estruturação dos negócios, é quase sempre resultado de complexos dinamismos sociais que bloqueiam e ataviam, até certo ponto, a disrupção e as ideias inovadoras. Viu-se no ado, na sua primeira empresa ainda na Índia e compreendeu com clareza que essa tinha sido a razão de ele próprio, e muitos outros como ele, não ter conseguido avançar com a concretização de novas ideias. Fez destas conclusões a sua «bandeira» e, com a sua natural
facilidade de analisar os assuntos de forma diferente, vistos de um outro ângulo mais descomplicado e sobretudo de forma mais eficaz, lançou-se na criação de mais duas startups com base em simplificadores de tecnologia blockchain. Em simultâneo, e vivendo neste ambiente tecnológico da Califórnia do Norte, esteve na Singularity University (SU). O Executive Program da SU é um ponto de reflexão e encontro com grupos muito inclusivos de pessoas que procuram inspiração para o futuro próximo. A SU é uma comunidade global de aprendizagem e inovação que usa tecnologias exponenciais para enfrentar os maiores desafios do mundo e construir um futuro melhor preparado. A plataforma colaborativa da SU permite que indivíduos e organizações em todo o mundo aprendam, conectem e inovem soluções disruptivas, utilizando tecnologias aceleradas, como IA, robótica e biologia digital. Oferece programas educacionais, programas de estratégia empresarial, liderança e inovação. Apoia e dimensiona startups e promove o impacto social, notícias e conteúdos online. A comunidade da SU inclui empresários, corporações, organizações sem fins lucrativos globais, governos, investidores e instituições académicas. Promove mudanças positivas nas áreas da saúde, meio ambiente, segurança, educação, energia, alimentação, prosperidade, água, espaço, resiliência a desastres, abrigo e governança. Foi então que o Deepak começou a desenvolver a ideia de criar uma nova startup desta vez ligada à saúde ou à sua prevenção. A Movihs é uma plataforma de informação do genoma baseada em blockchain. É uma empresa de dados e análises de biotecnologia que optimiza a forma como os dados de assistência médica são compartilhados, protegidos e analisados, utilizando tecnologias inovadoras como blockchain e algoritmos de IA, a Movihs é capaz de democratizar o o ao genoma. Ao fazer isso, capacita os proprietários de dados, pesquisadores e empresas farmacêuticas com a possibilidade de compartilhar, armazenar e analisar dados de ADN de maneira rápida, eficiente e em qualquer escala. Quem se cruza com o Deepak e o conhece, não fica indiferente à sua
personalidade. Fica evidente que o Deepak vai continuar a influenciar este movimento influenciador e de «Drawdown» dentro das áreas que vai dominando. É um tipo de pessoa que está sempre desperto para a mudança e a necessária aprendizagem de conteúdos que sustentem a execução e preparação para um futuro abundante e exponencial; abundante porque será igualitário e com o de múltiplas oportunidades para todos, já começamos a ver isso na forte democratização da tecnologia, permitindo oportunidades cada vez mais iguais para muitos de proveniência muito diferente; exponencial porque a curva matemática de crescimento dos vários fenómenos dar-se-á quase de forma vertical.
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A ESCOLHA É SEMPRE DE CADA UM DE NÓS. O TEMPO COMO VALOR FUNDAMENTAL
[A HISTÓRIA DE MARIN, ARTUR, RAUL E ISABEL]
Entraram «os quatro» para o primeiro ano naquele famoso colégio. Muitos pais faziam tudo o que fosse preciso para conseguir uma vaga naquele estabelecimento de ensino, um colégio afamado por estar quase sempre no pódio das classificações e rankings pelo critério de colocação dos seus alunos nas melhores universidades do país. Porém, também é um colégio demasiado grande, demasiado orientado ao sucesso económico, com pouco tempo para estar atento às individualidades e particularidades de cada aluno. Tem turmas sempre com mais de 30 alunos, tudo é massificado e tem de funcionar de forma célere e préprogramada. Não há director de ciclo que esteja sensibilizado e atento a qualquer diferença de um ou outro aluno em particular, como se tratasse de uma qualquer indústria de manufactura em série numa linha de montagem. Os alunos para terem sucesso são acompanhados em casa por familiares com experiência de serem eles próprios professores, muitas vezes a própria mãe ou os avós. Outros têm um educador, uma nova forma de descrever um explicador individual e quotidiano que normalmente acompanha vários temas do programa lectivo. A vertigem de terem conseguido fazer entrar os seus filhos nesse colégio, deixava os pais indisponíveis para analisarem com espírito crítico o que realmente se ava. Os encarregados de educação raramente conseguiam ter capacidade de detectar a verdadeira essência do colégio a tempo de tomarem uma decisão. Normalmente, quando o conseguiam, ou já faltava pouco para terminar a escolaridade do secundário, ou receavam o momento traumático que poderia acontecer aos seus filhos com uma mudança, sobretudo a meio do percurso, para um estabelecimento de ensino teoricamente pior perante a opinião pública em geral e das suas famílias e amigos em particular. Neste ambiente de «selva», como a própria directora de ciclo, numa reunião de pais, se referiu a propósito do «agressivo» relacionamento que no colégio existia no refeitório e noutro qualquer espaço de convívio, «os quatro» criaram um círculo à sua volta, defendendo-se e protegendo-se constantemente.
Estas quatro crianças eram completamente diferentes, tanto do ponto de vista do enquadramento familiar como do ambiente e tipo de educação que tinham vivenciado até então, mas tinham algo em comum: eram alunos muito pouco padronizáveis. Para além disso, comungavam de elevada capacidade intelectual e grande acuidade crítica e criativa, tornando-os por vezes bons alunos, mas também por vezes avaliativos e rebeldes, segundo a opinião de alguns professores mais tradicionais.
A Marin (Maria Inês, porém com esse diminutivo dado pela própria mãe logo em tenra idade) estava quase desde sempre ao encargo de dois tios irmãos da mãe. Os pais tinham ido para a Austrália quando ela tinha dois anos. O tio era funcionário do Estado e vivia só, um daqueles celibatários que quase não convivem para além do o reduzido com o grupo do jogo de xadrez. A tia era freira e lá se ocupava dos seus afazeres religiosos sem grande disponibilidade nem motivação para acompanhar a sobrinha. A sua missão na vida era o recolhimento e a oração, como uma vez disse numa reunião com o delegado de turma do colégio. Nenhum deles tinha mais família próxima para além da Marin e da mãe desta. A Marin era uma criança difícil, segundo o critério vigente. Era pouco obediente sempre que as normas não lhe pareciam razoáveis e punha sempre tudo em causa. Era impositiva e em regra conseguia influenciar o comportamento das outras crianças. Gostava muito mais do tempo de aulas do que das férias. Durante as aulas tinha tantas actividades desportivas que só parava ao jantar. Nas férias ficava sem os amigos, a actividade desportiva também se esfumava e, a não ser que os pais da amiga Isabel a convidassem para o tempo de férias que dedicavam a ficar na casa de campo em Portalegre, nada tinha para fazer a não ser ler, ar tempo infinito na internet e morrer de tédio. O Artur nasceu no seio de uma família tradicional. O seu pai era um engenheiro de sucesso e a mãe tinha um lugar interessante numa grande empresa. Tinham uma família grande, avós, tios e primos muito próximos com quem estavam com regularidade. Havia à sua volta um ambiente quente e emocional. O Artur era o terceiro de quatro filhos. Era protegido por todo o ambiente familiar por um lado, mas por outro dava a ideia que tinha nascido quase por acaso. Parecia que era mais um a preencher um
qualquer objectivo quantitativo por parte dos pais. Apesar de viverem de forma desafogada, o Artur herdava quase tudo do irmão mais velho. Brinquedos, roupas e até livros. Raramente lhe era perguntado o que queria, fosse o que queria comer ou fazer durante o fim-de-semana, ou o que quer que seja. Lá ia crescendo sem nada lhe faltar, mas sempre com a ausência quase total de atenção à sua individualidade. Quando começou a escolaridade, o Artur mostrou ter uma capacidade interessante de aprendizagem nas áreas analíticas. Bloqueava normalmente nas disciplinas com professores pouco inspiradores e medíocres, aqueles que recorrem sistematicamente à memorização das matérias como factor de avaliação positiva. O Artur era rebelde, segundo o critério do colégio. Não aceitava regras que não compreendesse serem necessárias. Na família e mais tarde no colégio era conhecido por ser diferente, criativo e pouco normalizado com o colectivo. O Raul nasceu na África do Sul. O pai era de origem portuguesa e a mãe africana. Foi enviado pelo pai para Portugal para ser educado pela avó materna, logo que os pais se separaram. Considerava que, para além da insegurança que se vive na África do Sul, seria vantajoso para o Raul ter uma educação na Europa e aqui criar raízes. Também não sentia nenhum apego nem motivação para educar e criar um filho. «O Raul é espertíssimo», diziam alguns dos seus professores. «O Raul é muito inteligente», diziam outros, sempre a propósito da sua facilidade em «brilhar» no desempenho escolar. Claro que aprendia com muita facilidade, fruto da capacidade analítica e sintética que tinha. Mas também era muito esperto, arguto e capaz de interpretar com facilidade o que se esperava dele, o que o tornava diligente e o aluno que todos os mestres desejam ter. Apesar de nunca ser resignado nem parecer totalmente satisfeito com nada que o rodeava, era cumpridor e normalmente estava no «quadro de honra», embora fosse sempre crítico e interpretativo. A Isabel era a típica boa aluna. Claro que também gozava de uma capacidade intelectual superior, tinha muito boa memória e se isolada era sossegadinha e com bom comportamento, diziam os professores. Mas o que a distinguia era ser muito aplicada. Tinha tudo em ordem, «num aprumo», diziam os adultos que com ela conviviam. Fazia todos os trabalhos pedidos, apresentava os dossiês impecavelmente organizados e, tal como o Raul, estava sempre no pódio dos melhores alunos. Porém, era fortemente
insubmissa a qualquer percepção de injustiça ou falsidade. Exigia sempre dos outros total correcção e hombridade em relação a qualquer decisão ou comportamento, o que deixava os adultos quase tensos ao seu lado. Tinha uma atracção intensa por estar com os amigos, o que fazia estranhar por vezes os seus pais, que viam neste grupo algo de estranho, não normalizado, sobretudo no caso da Marin e do Raul que vinham de um tipo de família quase disfuncional. Porém, no minuto seguinte a tocarem nesta preocupação enquanto falavam da Isabel, logo se consciencializavam que não deveriam ter um pensamento tão linear. Eles próprios, sem saber porquê, tinham em casa também um inexplicável problema. O António Maria, filho dez anos mais velho do que a Isabel, que não parava de lhes dar todo o tipo de preocupações e desassossegos, tanto disciplinares como de aproveitamento. «Nunca se sabe como se deve educar», comentavam. Mas o que era visível era o facto de a Isabel parecer querer compensar a família dos desgostos que o irmão lhes dava sistematicamente, tornando-se aplicada e exemplar. Apesar do Raul e da Isabel serem alunos de cinco e do Artur e Marin «brilharem» em muitas matérias, formavam um grupo tão rebelde e contestatário que o corpo docente preferiria não os ter no colégio. Eram criativos, interessados por qualquer causa social e com propósito, mas críticos, contestatários, pouco submissos e capazes de dissecar de forma interpretativa qualquer decisão da direcção do colégio sempre que essa pudesse carecer de sentido ou objectivo claro. Questionavam sistematicamente tudo e punham tudo em causa quando não entendiam o propósito ou o consideravam injusto. Alguns professores em forma de desabafo diziam: «Estes vão para a política ou para o magistério público, estão sempre em cima de tudo, a opinar sobre tudo e a espalhar sentenças e críticas.» Eram os «Quatro Mosqueteiros» para os que gostavam deles e as «Tartarugas Ninja» para aqueles que os viam como uma ameaça sempre alerta. Quando os «quatro» chegaram ao 10.o ano tiveram opções diferentes. Em reunião de professores foi com alívio que foi comentado que finalmente aquele «grupinho» se separara e deixava de os importunar. De facto, tiveram razão até certo ponto.
A Marin escolheu Humanidades, como se dizia na altura. Fez o 12.o ano com facilidade e decidiu tirar um curso rápido, prático, que a integrasse no mercado de trabalho sem complicações. O que a Marin mais desejava era ser autónoma o mais depressa possível e deixar de estar agarrada à dependência dos tios. Começou a sentir com clareza que os pais não se preocupavam de todo com ela. O mais importante para a Marin eram os amigos, era com eles que contava sempre. Cursou Turismo e foi imediatamente integrada como trainee numa importante cadeia hoteleira internacional. Foi muito feliz nos anos que viveu na hotelaria. Começou na recepção do hotel em Lisboa, mas como tinha muito boa avaliação, foi promovida sem qualquer dúvida ou hesitação. Falava seis línguas com fluência, comunicava sempre bem com os clientes, era muito diligente e, acima de tudo, estava sempre a tentar melhorar e partilhar ideias novas com os colegas e chefes. Punha sempre à frente de qualquer decisão mais complicada alternativas diferentes do habitual. Havia sempre alguém que se irritava com esta atitude constante de quebrar a rotina e fazer algo melhor, mas esses eram normalmente os que pouco ou nada influenciavam a avaliação de desempenho da Marin. Foi assim evoluindo e mudando de funções de job rotatiton permanente, com maiores responsabilidades e clara progressão de carreira. Depois de Lisboa ou um par de anos em Paris onde se sentiu em casa, por assim dizer. Era o centro de tudo, tanto em termos profissionais como culturais, para além de estar aqui tão perto… Tudo lhe parecia perfeito, a vida corria-lhe com alegria e proporcionava-lhe descobertas constantes. Encontrou este e aquele, teve relações doces e cálidas, mas sempre ageiras e descomprometidas. O que lhe dava afinco e corpo era voltar sempre ao seu «porto seguro», isto é, ao encontro em Lisboa com os seus adorados amigos. Aquelas tertúlias de fim-desemana, o pôr a conversa em dia, as gargalhadas e os carinhos entre todos eram o seu balão de oxigénio. Porém, um dia durante a avaliação foi-lhe apresentado o plano para a continuação da progressão da carreira e o próximo o. Continuaria a crescer em responsabilidades e muito boas condições, mas mudaria novamente de hotel e de país, desta vez o destino seria o Dubai e já no
trimestre seguinte. Sentiu que o seu equilíbrio e bem-estar iam ser postos em causa. Tudo o que a Marin desejava era ter uma vida independente, mas ancorada aos seus queridos amigos e para isso tinha de viver mais ou menos próxima deles. Todos os dias se comunicavam uma vez que estavam quase no mesmo fuso horário e nunca tinha ado um mês em que não se encontrassem uma ou duas vezes. A ligação entre eles continuava forte e quente e a Marlin não queria quebrar essa corrente de afecto. Por um lado, não podia deixar aquela carreira que lhe tinha dado tudo o que desejava desde o princípio da adolescência, que era ser independente e não pensar na sua própria condição de quase abandonada pelos pais e enviada para casa daquele tio tão distante e frio. Mas por outro lado, ir para tão longe e ficar a milhas de distância dos amigos, estava a torturá-la. Sentia mesmo que lhe estava a faltar o «chão» com esta notícia. A Isabel quando soube ficou com os olhos vidrados e uma expressão de quem estava a sufocar. O Raul escondeu-se do grupo, fingindo ter uma grande agitação bolsista que exigia a sua imediata atenção. Foi o Artur que ou o grupo e a Marin dizendo que o mundo está todo cada vez mais perto, que se veriam com certeza com frequência e que a seguir seria ele a ir para qualquer parte longínqua e incerta. A Marin lá foi. No hotel as coisas até corriam bem, mas a cultura local influenciava muito a relação com os colegas e clientes, deixando-a pouco contente e realizada. Começou a perder a alegria contagiante e a fechar-se em si própria. Foi neste ambiente de fragilidade emocional que se deixou seduzir e se apaixonou. Ele estava também expatriado no Dubai, era belga e trabalhava numa destacada consultora de estratégia. O contrato dele de colocação no Dubai acabaria entretanto, o que o obrigava a mudar de região inevitavelmente. Foi neste enquadramento que a Marin decidiu casar e deixar a sua carreira na hotelaria. Sentia-se segura e confortável ao pé dele. Como esperado, ele foi convidado para mudar de geografia, para um importante posto em Singapura. Mudaram-se cheios de pressa e alívio. Nos primeiros anos tudo parecia
correr bem. Os primeiros tempos foram de adaptação e logo a seguir a Marin ficou grávida de gémeos. Tinha muito com que se entreter e gostava de se dedicar só à vida familiar e social. Quando esporadicamente estava com os amigos, sentia que, até certo ponto, se tinha libertado deles. Com a construção da sua própria família deixou de depender emocionalmente deles. Eles já não eram a âncora da sua vida. O marido e sobretudo os filhos faziam com que se sentisse completa. Entretanto por razões ligadas à evolução da carreira dele, tiveram que regressar à Europa. Desta vez a Marin viu-se em Amesterdão com os gémeos já na escola e sem muito que fazer. Foi então que experimentou o ócio, essa forma de viver fácil, mas quase sempre insustentável para mentes exigentes. Agradava-lhe a situação de nada a preocupar directamente. Os filhos iam bem no seu crescimento e as tarefas do quotidiano eram fáceis. O tempo para a Marin corria como um rio que segue lento e pachorrento, que mais para a frente irá encontrar um aperto no seu leito, um desfiladeiro ou algo que o comprime, deixando-o temporária e ocasionalmente pacífico e sem qualquer sobressalto. Não sabe se foi o cinzento do céu ou a racionalidade dele ou somente aquela vida demasiado previsível, fácil e programada que a fez sentir parda, esverdeada, sem ânimo e qualquer interesse. No meio deste marasmo, ou talvez resultado do mesmo, Marin decidiu divorciar-se. Ele aceitou imediatamente. Já nada encontravam que lhes desse ânimo ou excitação. O que a fez verdadeiramente sofrer foi a ausência absoluta de qualquer apego da parte dele a tudo o que tinham tido em conjunto, principalmente aos filhos. Tudo se resumiu à partilha de alguns bens comuns e ao valor da pensão familiar. Não houve mais discussão ou troca de emoções. Hoje a Marin vive em Lisboa. Os filhos são adultos embora um deles ainda precise de apoio financeiro. A Marin vive dos activos que recebeu do divórcio. Pratica desporto e vive entretida a matar o tempo, sem ânimo e propósito. Nem o voluntariado lhe restaurou o «norte» e um rumo para a vida. Tem muito tempo para tudo, o que torna esse mesmo tempo desvalorizado
e aborrecido. Para a Marin o tempo tem um sabor semelhante ao que lhe sabe o tédio.
«Artur! Artur»!, ouvia de longe a chamar insistentemente. Sentia que o puxavam pelo peito, dando-lhe murros ao contrário. Ele tinha acabado de entrar num espaço negro transparente, como quando se entra num lago muito limpo durante a noite. Tudo era gelidamente pacífico, sereno e calmo. Sentia que nem andava, nem nadava, nem voava, só estava lá a começar a diluir-se. Não era quente nem frio, era só um espaço sem limite e bom para ele se desfazer em descanso. Não queria regressar. Sentia uma sensação de alívio e sossego definitivo que o libertava daquelas dores horríveis e daquele mal-estar inável. Sentiu uma solidão plena. Nada nem ninguém o acompanhava. Era o espaço da desintegração, o sítio onde se esfuma o ser, sem qualquer existência para além dele próprio. Mas o médico chamou-o muito, chamou-o de forma muito aflita e insistente, continuando a «puxá-lo» pelo peito, batendo-lhe e não o deixando em paz. Quando hoje pensa nisto, quando se lembra desta brutal experiência, quando recorda o seu processo de reviver ou de ressuscitar, tem consciência plena que foi quase por acaso que voltou. Não teve a noção da questão fundamental que sempre é posta sobre valer a pena ou não, sobreviver e viver. Hoje sabe que regressou por acaso. Foi já do lado dos vivos, depois de ar por um difícil e estreito desfiladeiro que decidiu alguma coisa. Decidiu lutar e recuperar daquela doença desumana e cruel. Acreditou que valia a pena, que tinha para trás pouco mais que vinte anos de existência e que poderia ter mais do dobro de vida pela frente. Lutou com determinação e resolveu ficar saudável. A recuperação levou meses e foi feita com muito sofrimento até o Artur conquistar a sua independência novamente. Os amigos tiveram um papel fundamental no ânimo e acompanhamento diário do Artur. Hoje pensa que sem eles, se calhar, não teria resistido a tanto tratamento, tanta humilhação, tanta desumanidade e tanta dor. Foi durante a convalescença, já em casa, que o Artur decidiu que não iria
regressar ao curso de Engenharia. Não queria continuar com a carreira que tinha sido traçada em casa pelo seu pai, ele próprio um engenheiro muito conhecido. O Artur queria algo diferente, mais amigável para a sua maneira de ser. Disse ao pai que não acabaria o curso e que queria fazer algo diferente, algo ligado às artes. Em casa chegaram a pensar e indagar se não teria havido perda de capacidades de discernimento com todo o processo de paragem respiratória e morte. Mas, entretanto, compreenderam que não, que o Artur queria algo divergente que o ligasse àquela tendência que sempre revelara, o elevado sentido estético. Tirou Arquitectura sem pressas. Já tinha mais de trinta anos quando começou a trabalhar num gabinete de projectos. O acaso, ou não, aproximou-o a uns jovens clientes do gabinete que tinham montado um promissor negócio tecnológico. Ficou fascinado com a ideia do poder interventivo e global do mundo digital. Como era possível criar uma solução para o público em geral ou para as organizações, sem conhecer limites de fronteiras e assim ter possibilidade de impacto planetário. Falou nestas entusiasmantes ideias com os amigos Raul e Isabel. A Marin estava na Ásia, como sabemos. Os amigos aderiram e começaram a pôr em prática uma ideia e um plano de negócios. Lançaram uma startup com sucesso e de forma sustentável. Hoje o Artur vive intensamente o negócio que criou com os amigos. Encontrou uma paixão que lhe alimenta a alma e tem um filhote que lhe norteia a existência. Não tem tempo para nada. Vive intensamente todos os minutos que tem. Ou está a trabalhar ou a viajar em trabalho ou por lazer, ou a ler e a aprender. Tem múltiplos projectos e interesses, o que não lhe deixa sobra de tempo para nada fazer. Mesmo nas férias de verão, na praia a descansar, tem sempre algo para fazer tão variado como estar a brincar com o filho ou estar a ler literatura entretanto esquecida ou novas apresentações de espaço urbano. Como não tem tempo a desperdiçar, o tempo para ele é um bem escasso e precioso. O tempo falta-lhe e provavelmente faltar-lhe-á sempre.
O Raul poderia ter escolhido qualquer curso. Era em tudo muito bom e quase sempre mesmo o melhor. Escolheu Engenharia Informática e de Computadores. Como ele próprio diria mais tarde, foi só quando chegou ao
Instituto Superior Técnico que começou a estudar verdadeiramente. Até então era a sua esperteza e assertividade que lhe garantiam compreender a fórmula adequada para ter muito boas notas, além de estar sempre atento a tudo que os professores debitavam e que valorizavam nas avaliações. No Técnico tudo é demasiado grande, demasiado impessoal e desprovido de qualquer carga emocional. Aqui o que interessa são os factos, os resultados ou achievements como costumavam dizer. Apesar deste nível de dificuldade, o Raul não estava habituado a ser mediano e por isso fez tudo para conseguir também então continuar com o seu hábito, isto é, ter sucesso escolar. Conseguiu e aprendeu a gostar das descobertas tecnológicas em que ia participando, foi naturalmente convidado para ficar na academia e fazer Doutoramento. Como sempre acontece, desejamos aquilo que nos faltou. Ao Raul faltou ter uma família. Se não fossem os amigos, o Artur e a Isabel que o adoptavam nas suas próprias casas, o Raul nunca teria experimentado o sabor dos almoços de aniversário ou os festejos tradicionais do Natal. Porém, teve sorte no meio do seu infortúnio, era como se tivesse dois pais e duas mães à disposição. Era tudo isto tão visível que na residência onde viveu até aos 18 anos não duvidavam da sorte que o Raul tinha em contar com estes amigos. Entretanto, andava o Raul nas suas professorais investigações tecnológicas quando o Artur o desafiou para a startup. E foi então nesse «baixar da guarda» e de controlo que o Raul reparou nela. Viu como a sua anca ondulava quando andava ou até mesmo quando estava quieta. Percebeu que era aquela a pessoa que ainda não tinha encontrado. Foi desajeitadamente arrebatador e empenhou-se em conquistá-la com mais persistência e tenacidade do que em qualquer uma das suas conquistas académicas. Ela não resistiu àquele mestiço enigmático com olhos tímidos e inseguros, cedeu àquela onda de paixão e resolveu surfar com ele. O Raul queria ter uma família, queria dar-lhes o que nunca teve. Hoje tem quatro filhos de várias cores. Vive intensamente a sua vida familiar e é o CTO da startup. Nunca lhe faltou tempo, mas também nunca lhe sobrou. Consegue habilidosamente ter um equilíbrio família e o trabalho notável. Não tem outras distracções ou interesses definidos. O valor mais precioso para o Raul é o tempo emocional, esse que nunca teve até ter a sua própria família. Tempo para o Raul é como a cadência dos dias, o nascer e o pôr-do-
sol diariamente. Tempo para ele é o presente do quotidiano, é um assunto sem tema.
A Isabel como já sabemos foi sempre a melhor. Dos melhores espera-se sempre que consigam enfrentar as maiores dificuldades e os maiores desafios. A Isabel foi para Medicina quase sem hesitar. Não lhe restava qualquer alternativa face às expectativas que se depositaram nela. Fez esta escolha por obrigação, disse-o mais tarde numa entrevista e fê-la sem se questionar em relação a qualquer outra alternativa. Quando terminou o 6.o ano e estava licenciada, não houve ânimo em relação à especialidade a escolher. Acabou por escolher o que estava destinado para os melhores, isto é a especialidade mais procurada. No ano da escolha da Isabel, Cirurgia Plástica estava no pódio das primeiras escolhas. E tudo continuou na mesma. A Isabel tinha capacidade técnica e científica, mas nada acontecia com ânimo ou paixão. Porém, os amigos estavam por perto e chamaram-na outra vez para a irreverência e o improvável. Deixar a carreira médica que não lhe trazia satisfação, excitação nem realização e partir com eles para a aventura. À startup a Isabel empresta o seu conhecimento científico. A Isabel organiza todos os pequenos e grandes os, tem o espírito crítico e analítico que faltava e aprofunda de forma sistemática todos os detalhes. O Artur e o Raul sabem que sem ela estariam perdidos no turbilhão das descobertas A Isabel tem hoje, tal como sempre teve, tempo para tudo. Mesmo quando se deita muito cansada e estoirada não lhe ocorre culpar o tempo por lhe ter faltado. Sabe que sempre que tropeça no desenrolar das horas, é efectivamente sua a falha. Ou se organizou mal, ou calculou erroneamente o tempo necessário para alocar aquela tarefa ou aquele empreendimento. A Isabel tem domínio do seu próprio tempo.
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O que é o tempo?
Vivemos num momento em que parece que nos falta sempre tempo. Um dos tópicos mais actuais no mundo empresarial é a gestão de tempo. A natureza do tempo é um conceito que pode ser olhado de ângulos diferentes por cada um de nós. Tudo depende das nossas percepções, forma de ser e de vivenciar a nossa própria vida. A agem do tempo, a forma como ele flui, a linearidade do mesmo, difere de pessoa para pessoa e pode sofrer evoluções ao longo da nossa vida. O tempo, porém, é considerado uma das propriedades gerais da exterioridade relativamente ao pensamento. O tempo é para cada um de nós ível de ser dividido em três dimensões lineares: o ado, o presente e o futuro. A medida do tempo torna-se subjectiva quando cada um a pode percepcionar de forma diferente, consoante a situação. Numa situação agradável a depressa, numa situação penosa a devagar. Cada um de nós, pela sua condição humana mortal, é afectado pelo tempo de uma maneira diferente da do espaço. Este é irreversível, o que pode causar angústia pelo fim inexorável. Vimos nos casos descritos como a percepção do tempo é diferentemente sentida e vivenciada. E a forma como o tempo é utilizado também. Ao Artur, faltar-lhe-á sempre tempo provavelmente. É um tipo de pessoa com o desassossego dos que têm múltiplos interesses e sempre projectos em desenvolvimento, para além de lhe ter faltado a vida e ter assim sentido a interrupção temporariamente definitiva do tempo e espaço. Ao Raul e à Isabel o tempo a com o equilíbrio cósmico de todas as coisas, no final. Talvez o facto de conseguirem ter sempre sucesso os pacifique, deixando-os com a serenidade certa para sentirem o fluir do tempo em equilíbrio com a dimensão do espaço universal. A Marin tem tempo a mais. Deixou de o aproveitar, tal como não se aproveita a si própria. O tempo sobra-lhe e entedia-a como a própria vida, que por facilitismo e talvez desistência a coloca a sobreviver aos dias que am e a arranjar ocupações que lhe façam esquecer a sua existência. O melhor que lhe acontece é arranjar pretextos para matar o tempo. Fala-se muito da gestão do tempo e propõem-se «receitas milagrosas» sobre o que está certo e errado na gestão do nosso próprio tempo. Na minha opinião esta é mais uma abordagem abusadora
e intromissora, de outros que se auto-rotulam de detentores da verdade na nossa própria vida. O nosso próprio tempo é a nossa vida e só pertence a cada um de nós gerir da forma mais sábia e adequada os nossos objectivos. Como vimos na história dos quatro amigos, ter ou não ter tempo (livre) não tem correspondência com atingir a realização e a felicidade, como muitas vezes nos fazem querer.
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FALHAR É UM PROCESSO NATURAL DE APRENDER E CRESCER
[A HISTÓRIA DE MIGUEL]
Ter uma vida corporativa, pertencer a uma máquina montada e a uma organização grande e complexa, mesmo que vitoriosa e presente em todo o mundo, não o deixava nada confortável. Apesar de tudo que lhe foi dito durante as entrevistas de entrada e da vida cheia de encontros estratégicos e mundiais, o Miguel não estava convencido. Sentia mesmo um aperto, uma espécie de falta de ar quando se imaginava a pertencer a uma grande estrutura, a uma máquina onde tudo pode ser programado à distância, tanto física como hierarquicamente. O Miguel não sabia de facto o que seria melhor para ele, mas sabia que não era essa a vida por que aspirava. Mas aquela grande empresa fez uma interessantíssima apresentação sobre o que pretendia dos seus juniores aquando da sua incorporação, quem liderava a apresentação aos alunos era um alumnus, com uma sensibilidade muito próxima dos anseios dos finalistas, capaz de antever as perguntas e organizar um discurso muito assertivo e esclarecedor. O Miguel, ao contrário das suas primeiras ideias, pareceu-lhe agora um tipo de organização que lhe daria espaço para crescer de acordo consigo mesmo. Apesar de todas as dúvidas, acabou por aceitar começar a trabalhar logo no princípio de Setembro. Foi muito interessante o programa de trainee. Andou por várias áreas de intervenção estratégica e operacional e compreendeu que estava numa empresa, numa escola, numa organização muito bem planeada e estruturada, com capacidade de inserir e tirar partido do que há de melhor em cada novo talento. Correu tudo como previsto e teve sempre boas avaliações. Foi já quando era manager e tinha um tipo de responsabilidade mais alargada, tanto a nível de coordenação de novos elementos na organização como de responsabilidades directas e autónomas sobre importantes assuntos da organização, que o Miguel começou a duvidar se era aquela vida que combinava com ele. Tinha ferramentas e skills para regressar ao sonho que alimentou durante quase todo o curso de Engenharia de Gestão Industrial: ser um agente de mudança e trabalhar de forma inovadora na área de e num fundo
de investimento, para assim poder intervir em diferentes organizações, pensava ele, «livrando-se da carga hierárquica de uma grande firma». Avançou com a sua decisão e pediu a demissão da empresa. Não foi aceite com facilidade. Pam-no a falar com quase todo o tipo de pessoas na hierarquia e foi até convidado para falar da sua decisão com o vicepresidente da zona sul da Europa. Era incompreensível que o Miguel quisesse deixar a empresa agora que estava confirmado como manager com pouco mais de meia dúzia de anos de experiência e com tão rápida progressão, mas a decisão estava tomada. O Miguel queria ir para Massachusetts e juntar-se ao seu primo como analista de e a uma venture capital. Foi recebido com muito afecto e atenção, o que facilitou muito a sua adaptação social e humana. Ficou na casa do seu primo, conheceu os seus amigos e foi-se integrando com relativa facilidade naquela sociedade de Boston, muito mais ligada à Europa culturalmente do que a maioria das cidades americanas. Socialmente sentia-se enquadrado e muito confortável. Ultraou a adaptação ao inverno muito frio, fez amizades e amores, enfim, integrouse. Profissionalmente, porém, começava a sentir-se um certo mal-estar. Não conseguia ter o comportamento desejado com os clientes e outros stakeholders. Em Lisboa e noutras geografias europeias, qualquer indivíduo ligado a uma actividade profissional que seja relacional, como quase todas são profissionalmente, tem de ser agradável e proporcionar uma imagem de confiança naquilo que faz. Não se torna obrigatório mais que isso. No ambiente onde agora estava tinha de estar permanentemente sorridente, explodindo de entusiasmo perante seja o que fosse como se estivesse num palco permanentemente. O Miguel estava a ter mesmo um mentor para se poder adaptar melhor, porém, começava a pensar que talvez não conseguisse. Este aspecto era importante, mas não demolidor. Contudo, a forma como tudo se pensava e priorizava isso sim estava a tornar-se inultraável. Qualquer conversa tinha o valor e a importância do dinheiro como centro de tudo. Sempre que se falava de alguém, falava-se sempre e como centro de todo o seu ser da sua própria capacidade de alcançar objectivos materiais. Ninguém era referido por qualquer outro
critério que não fosse o de ser capaz, ou não, de facturar e de fazer crescer o seu património, mesmo que o gastasse de imediato num qualquer devaneio ou numa retirada sabática. O Miguel não conseguia fazer um processo adaptativo que o ajudasse a ser também assim, ou pelo menos a aceitar conviver com uma sociedade com um valor tão evidente de conquista e ganho como aquela em que teria que se inserir. Para além de que seria evidente que ser diferente, actuar de outra forma, com outro ritmo, naquele meio de investidores e dos negócios ligados ao investimento seria praticamente impossível. Percebeu que não lhe restava outro caminho que não fosse o de assumir o seu falhanço. Tinha de aceitar que nem a sua primeira empresa corporativa, nem agora esta firma de investimento e capital de risco eram lugares que combinassem consigo. Não queria continuar nos Estados Unidos ligado a qualquer outra actividade e forma de vida. Queria voltar e repensar a sua existência e o seu futuro socioprofissional. Quando deixou Lisboa vivia numa casa própria na zona de Telheiras, em processo de pagamento a longo prazo como na época era hábito. Agora, o que tinha de rendimentos não lhe permitiria viver na cidade. Foi morar para a periferia num apartamento alugado à mãe de um amigo de infância. Como gostava muito de desportos motorizados tinha conseguido ter um carro razoável e uma mota que usava sempre que o tempo permitia no seu dia-a-dia. Quando voltou, pôs de parte a ideia de voltar a ter um carro próprio, «pelo menos por enquanto», dizia ando a utilizar ou uma lambreta para percursos que assim permitiam ou transportes públicos que rapidamente verificou não funcionarem. Enfim, tinha de assumir que falhou. Teve de aceitar os comentários omissos e silenciosos dos que diziam interiormente que regressou muito pior do que estava antes de partir. Quando reapareceu no primeiro Natal após a sua ida para Boston, todos lhe perguntavam como era por lá, como era estar num negócio tão agressivo e exigente naquela sociedade verdadeiramente experiente e competitiva nestas matérias de corporate finance e investimento. Nessa altura tudo lhe parecia muito bem e era com alegria e entusiasmo que explicava como tudo se ava. Como era exigente, mas também excitante viver no centro
de tudo e onde tudo acontece. Aparecer agora, com uma situação pior do que a que tinha antes de partir e ter que itir que tudo tinha dado errado ados um par de anos, não foi nada fácil. O seu irmão mais velho até lhe sugeriu que não aparecesse tendo em conta a forma como o viu sofrer logo no primeiro encontro de amigos. Ver-se confrontado com interrogações e interjeições como «mas então quando é que tudo começou a ser difícil para ti?» ou «porque é que não te vieste logo embora?» ou ainda mais confrangedor: «já falaste com o teu antigo chefe? Pode ser que ele te reenquadre mesmo que seja num escalão um pouco abaixo?» E foi difícil e perturbador quando houve o encontro dos ex-colaboradores da sua antiga firma, onde ele foi como que arrastado pelos seus antigos colegas e verificou com clareza aonde poderia estar agora, caso tivesse ficado e como poderia ter sucesso, quando se comparava com os demais do seu tempo. Foram tempos muito difíceis para o Miguel. Teve de fazer um profundo processo introspectivo e de auto-análise sem cair na tentação do autoflagelo e comiseração, para recompor-se e reorganizar-se pessoal e socialmente. Foi por acaso que conheceu o seu futuro sócio e amigo. Este era um dos novos ses que descobrem Portugal como quem descobre um tesouro ainda mais ou menos por encontrar. O amigo também tinha deixado uma carreira corporativa para fazer algo que ainda não sabia o que poderia ser. Estava fascinado pelo areal imenso da costa portuguesa, pelas bravas ondas e sobretudo pela luz do céu. Através de um outro amigo também francês, e já cá residente, começou a visitar um bar de praia que este tinha comprado na Costa da Caparica. Pensou que este poderia ser um tipo de vida que gostaria de ter para si, mas não queria avançar sozinho. O Miguel, no meio de conversas perdidas em noite de copos, soube destes projectos. Ficou entusiasmado, mas tenso ao mesmo tempo. Como iria propor ao francês que poderia estar disponível para entrar no negócio? E como entraria? Como empregado? Ele que não tinha facilidade nem gosto ou prazer para estar sempre em o com diferentes pessoas, como é exigido num negócio de restauração. Ou como sócio? Onde iria arranjar capital para este tipo de investimento? Que tipo de investidor poderá acreditar e confiar num falhado? «Falhado não és», disse-lhe o irmão. «Isso é lá um conceito americano. Miguel, por cá és só uma pessoa que arriscou e falhou um objectivo.»
Depois de várias conversas como esta, também partilhadas com o seu antigo chefe, ficou claro para o Miguel o que seria mais adequado e que melhor combinava com ele. O que o Miguel gostava era de organizar, planear, optimizar e digitalizar formatos de gestão. Era uma «barra» em Excel e sabia como orientar developers na criação de ferramentas automáticas, integradas e inteligentes de organização e gestão. Foi esta mais-valia e ferramenta que propôs ao francês. Muniu-se de tamanha minúcia e certeza que acelerou o processo decisivo do amigo, isto é, deu-lhe tanto conforto em relação a como o negócio seria controlado e customizado que ajudou o francês a tomar o risco de avançar sozinho para o investimento. O Miguel tratou de tudo que não fosse obras de instalação e recrutamento de três empregados. Organizou todos os processos com actualização automática de todas as actividades desta pequena startup. Criou um sistema integrado e online de business inteligence, que permitia ao Antoine prever quase tudo: desde o tipo de clientela que poderia estimar ter em função da meteorologia, calendário de feriados e férias previsíveis, até um sofisticado sistema decisional sobre os produtos mais vendidos e a correlação das vendas com o aprovisionamento, até às melhores opções de compras. Tudo estava integrado e monitorado de forma totalmente integrada. Qualquer experiência ou desvio estratégico que o Antoine quisesse fazer, poderia ser projectado em sistemas de forecast com margem mínima de desvio. «Ton ami c’est vraiment incroyable», comentavam todos a quem o Antoine começou por apresentar o seu próprio tableau de bord. E tudo começou assim nesta nova vida profissional para o Miguel. O ar de palavra foi acontecendo com relativa celeridade e começaram a chover novas encomendas de organização, automação e optimização de processos. O Miguel não queria criar uma estrutura, um grupo de consultoria. Optou por «arrastar» com ele outros independentes, alguns deles colegas de Engenharia e sobretudo da sua primeira empresa. Trabalhou muito para startups sobretudo através de investidores, mas também para a sua antiga empresa e para muitas outras organizações estabelecidas, digitalizando
e criando processos de melhoria e mudança. O seu trabalho é muito customizado e por isso não é facilmente replicável. Há várias consultoras internacionais que entram também com sucesso nestes processos de modernização, digitalização e melhoria contínua, mas o que o Miguel faz é bastante único. Não tem um sistema propriamente dito. Estuda a situação e trabalha sozinho ou em grupo, quase sempre com independentes como ele, aproveitando a experiência acumulada para melhor fazer, mas nunca actuando de forma igual a uma anterior. Voltou a ter sucesso. Já mora em Lisboa e desta vez num bairro antigo e encontrou a paz consigo próprio.
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O Miguel sempre revelou capacidade introspectiva e de auto-análise. Sempre soube o que combinava com ele. Não hesitou quando, ainda muito novo, escolheu Engenharia. Sabia que iria funcionar muito melhor, relacionando-se sobretudo com coisas. Não que quisesse evitar as pessoas, mas pareceu-lhe que uma formação que lhe garantisse nível de execução muito técnico e independente lhe daria melhores garantias de poder vir a actuar como lhe parecia que seria melhor para ele. O Miguel tinha bons amigos, verdadeiros, daqueles que funcionam como irmãos, mas nunca foi do género de meter conversa com qualquer um e muito menos de sobressair num grupo. Era sempre o que ajudava, não o que liderava o que quer que fosse. Um dia bem ado para o Miguel não o obrigava necessariamente a estar com outras pessoas. Poderia estar a explorar qualquer assunto de lazer ou conhecimento sozinho, sem precisar de sair e conviver. Mais tarde, durante a faculdade não gostou dos trabalhos de grupo. Aceitar a desigualdade de rapidez de pensamento ou de conhecimento era-lhe possível, mas ficava decepcionado e atónico com os que sobrevivem sem participarem, conseguindo avançar sem qualquer mérito e muitas vezes conseguindo ludibriar os examinadores. Imaginar-se numa organização, já a trabalhar e a ter de viver circunstâncias semelhantes tanto com os pares como com os chefes, deixava-o
perturbado. Quando entrou para a grande empresa, aceitou o desafio pelo entusiasmo das apresentações dos mais velhos, como vimos, mas foi sempre com algum cuidado e suspeição que ou os primeiros os. Finalmente viu-se onde não queria estar: progredir hierarquicamente com responsabilidades cada vez mais de concretização relacional do que de execução técnica. Influenciado pelo primo foi para Nova Inglaterra. Imaginou que num ambiente tão tecnicamente sofisticado, o que contasse fosse a execução per si, sem haver espaço para outro tipo de entorno avaliativo. Como estava enganado… Falhou redondamente. Deixou Lisboa onde tinha uma situação agradável e equilibrada para regressar três anos depois quase sem ter como ser autónomo. Porém, o Miguel conseguiu reagir. Aceitou o erro, a precipitação de ter deixado a sua empresa sem ter um projecto bem estudado. Facilitou e arriscou de mais. Poderia ter ado umas semanas em Boston e tentar compreender melhor o que poderia ser por lá a sua vida, mas a pressa de se ver livre do mundo corporativo não lhe deu clareza de pensamento. Porém, foram as duas experiências que teve e onde não funcionou ou não quis funcionar que lhe proporcionaram clareza e capacidade para se reinventar. Hoje tem exactamente a vida de que gosta. É independente e vive da sua capacidade técnica de encontrar e criar soluções organizacionais.
Para muitos a palavra falhar tem um estigma social pesado, uma conotação negativa muito forte. Mas sabemos, porque temos exemplos práticos de grandes empreendedores que antes de alcançarem o sucesso que agora lhes conhecemos falharam várias vezes, tropeçaram várias vezes no seu caminho, que falhar pode incorporar e fazer parte do nosso processo de aprendizagem e crescimento pessoal. Falhar é uma etapa do sucesso e muitas vezes o precursor do mesmo. O que é importante é sermos capazes de aprender com os erros, sobretudo com os erros que nós próprios cometemos e, depois, termos capacidade de mudar, de nos reinventar e de descobrirmos outras soluções para a nossa própria vida. Não podemos de forma alguma ficar presos aos erros, a lamentarmo-nos, nem voltar a cometer esses mesmos erros. É preciso aprender com eles, retirar deles o conhecimento e o saber necessários para fazer melhor, para mudar e reinventar
até alcançarmos o nosso objectivo.
«Está bem celebrarmos o sucesso, mas é mais importante guardar as lições dos falhanços.» Bill Gates
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SER ÚNICO, NOVAS FORMAS DE VIVER E DESEMPENHAR UM LUGAR SOCIOPROFISSIONAL
[A HISTÓRIA DE SOFIA]
Sofia, Sophia, Sophie é o seu nome, dependendo das coordenadas geográficas onde está nesse preciso momento e com quem está a comunicar. Muitas vezes, quando lhe perguntam de onde é, a Sofia diz que é da «bacia atlântica». É um exemplo humano em que o Oceano Atlântico une em vez de separar gentes e culturas. Nasceu num hemisfério, cresceu noutro e saltou das Américas para África e Europa em duas décadas. De facto, nunca esteve mais de meia dúzia de anos num só continente nem num só hemisfério. O mesmo se a com a sua ascendência. Os quatro avós eram de origens muito diferentes. Desde um brasileiro com origens luso-indígenas tantas vezes encontradas lá para Minas, até uma canadiana com pais açorianos muito loiros e nome de família que denotava proveniência sa ou talvez belga, ando pela avó africana ainda educada numa roça e com evidente mestiçagem na sua proveniência, para acabar no seu avô lisboeta que afinal também era meio-inglês e meio-transmontano, tudo se cruzava e se misturava na vida da Sophia, não só no sangue, mas na sua existência. Sentia-se como que uma ilha, talvez Fernando Noronha, ou Faial ou Boavista ou qualquer ilhéu dos Bijagós. Nalguns dias parecia-lhe sentir que era tropical, querendo sentir com prazer um calor constante e nebulado, mas noutras alturas era norte atlântica, sentindo um evidente odor perfumado a emanar dos seus poros, que é o cheiro salgado e simultaneamente húmido e transparente da neblina nas manhãs de maresia. Filha de cientistas ligados à investigação de microbiologia citológica e nuclear, a Sofia foi vivendo em países diferentes, mudando de casa e de colégio, ao sabor das bolsas e das várias etapas do trabalho de investigação dos pais, contando com as sabáticas de um e outro e com as separações que ela nunca conseguiu distinguir serem definitivas ou de mero descanso relacional e emocional. O que é certo é que fez cada período da sua vida em seu sítio, cruzando o Atlântico de Norte a Sul e de Este a Oeste, vezes sem conta, numa desenfreada competição com qualquer tripulante aéreo. Jardim-de-infância num sítio, ensino básico e secundário em dois continentes diferentes e escolhas universitárias também com mudança de região e de área. De facto, tudo o que lhe foi circunstante e todas as suas vivências acabariam por ter influência nas suas decisões, como sempre
acontece. Nos últimos dois anos do ensino secundário, a Sophia viveu nos Estados Unidos. Foi muito influenciada por aquela sociedade e pela qualidade e influência que os média têm na intervenção social, tendo sempre tido facilidade de escrever tanto em português como em inglês por um lado e por outro, tendo sempre revelado uma capacidade crítica e de observação notável, foi fácil escolher Jornalismo num ambiente tão qualitativo e sólido nestas matérias. Tirou Jornalismo na University of Missouri-Columbia. Foi research assistant e copy editor durante um bom par de anos. Esteve ao serviço de um grupo de média numa interessante área de investigação e edição de documentos muito ligada à compliance e à comprovação de notícias e acontecimentos. Foi muito impactante para a Sophia este período da sua existência que apanhou a sua primeira experiência profissional e de vida como adulta. Sentiu e compreendeu como é fácil a manipulação das pessoas e da sociedade através do que se comunica e sentiu uma necessidade crescente de ser um «actor» dos mecanismos sociais para além de «observador» ou delator dos mesmos. Foi com este espírito e com estes pensamentos que resolveu tirar um Mestrado em Gestão. Parecia-lhe que seria assim que estaria segura e com as ferramentas certas para poder ser ela directamente a ter um papel activo na organização social, através da intervenção no mundo empresarial. Na sua ânsia permanente de conhecimento e múltipla exposição a diferentes culturas, concorreu para escolas de negócios na Europa e foi aceite na sua preferida. Para qualquer sítio que fosse e em qualquer regresso a um outro hemisfério ou outro lado do Atlântico, a Sofia sentia sempre uma estranha sensação antagónica de regressar a casa, mas também de deixar o seu mundo para trás. Sentia-se a regressar a casa porque regressava a uma das suas origens, mas também sentia que deixava o que tinha vivido num mundo que também era o seu. Quando regressava a um qualquer dos quatro vértices geográficos da sua existência reencontrava sempre um primo ou parente, um qualquer amigo do ado com quem mantinha uma relação dentro do que é possível com alguém cuja vida parecia estar parada, enquanto o carrossel da existência
da Sofia continuava numa roda viva em inacabados círculos, elipses e quadraduras no espaço atlântico. Quando acabou o Mestrado tinha um nível de maturidade muito superior à maior parte dos seus colegas. O facto de já ter trabalhado um par de anos e a exposição a diferentes meios sociais e culturais diferenciava-a do aluno «regular» nesta etapa de vida. A Sophia sabia bem o que queria. Queria trabalhar num ambiente em que se pudesse sentir integrada e influente num «propósito» empresarial que fizesse sentido para ela. Começou numa empresa de produtos alimentares de nicho. Desenvolviam e comercializavam marcas sempre biológicas e orgânicas com impacto neutro no equilíbrio sustentável do planeta e com uma mensagem expressa profiláctica de apoio à vida saudável e à prevenção de doenças. A empresa tinha um mercado alvo que era cada vez mais alargado, mas conseguia equilibradamente produzir e diferenciar os seus pontos de venda e tornou-se uma referência. A Sophia começou num programa de trainee de management e ou por várias áreas da organização. Tinha sempre uma boa avaliação de desempenho. Era considerada muito empenhada e atenta, com níveis de dedicação e entrega muito elevados. Os seus managers diziam sempre que a Sofia era de confiança, entregava com empenho o que se esperava dela e tentava sempre acrescentar valor. Era ágil e proactiva, sempre pronta a encarar novas formas de pensar e de fazer. Era portadora de uma energia vibrante o que lhe conferia grande capacidade de resiliência e trabalho. Ficou a trabalhar na sede, junto à área de inovação e desenvolvimento de produtos com uma função de planeamento e estratégia de e aos novos alimentos e ao seu posicionamento no mercado. Fez parte de muitos sucessos que a empresa viveu e participou no posicionamento estratégico da organização, fazendo parte da equipa que ajudou a colocar as marcas nas listas obrigatórias de alimentação saudável, prevenção e mesmo por vezes combate às doenças e sustentabilidade do planeta. A Sophia viveu anos felizes nesta organização empresarial. Porém, não sabe se foi novamente um apelo ao hemisfério Sul, se foi uma necessidade
de ar do bem-estar e da abundância material e cultural para um mundo sem quase nada, ou se foi somente aquela sensação de que estaria a desistir da sua vida caso ficasse e permanecesse no seu confortável mundo ocidentalizado, só sabe que teve necessidade de mudar. Tomou a decisão de concorrer a uma organização não-governamental (ONG) ligada a cuidados médicos, pensando sempre que apesar de não ser nem médica, nem possuidora de qualquer outra formação ligada à saúde, poderia ajudar através das suas competências de organização e gestão, conseguindo que os outros colaboradores médicos, enfermeiros e outras valências de saúde pudessem talvez ter nela um apoio organizativo, planeamento e assim melhoria de eficácia. ou todas as etapas do processo de issão, tendo sido escrutinada cuidadosamente tanto pela utilidade das suas competências para a ONG no terreno, como pelo equilíbrio personalístico demonstrado. Finalmente foi aceite. Foi com uma serena excitação que se explicou e despediu dos colegas e do seu mais círculo de amigos. Quando se abeirou da porta do avião à chegada, teve aquela vertigem de prazer quando mais uma vez sentiu aquele bafo húmido e quente das terras tropicais. A Sofia integrou-se sem dificuldades. Adaptou-se muito rapidamente chegando a pensar que era essa a sua verdadeira mais-valia. Era como um camaleão. Conseguia mudar de hábitos num relance. Mudara do clima Norte-Atlântico com quatro estações para o clima tropical com as noites da temperatura dos dias e num contínuo calor quase só variando conforme havia ou não havia chuvas. Mudara também na forma de estar e de se arranjar. De um porte urbano e sofisticado, ou para um estilo absolutamente simples, sempre igual, sem espelhos, tendências ou fantasias. Ali, em África, naquela África carente e necessitada de tudo ou quase tudo, arrasada por interesses de tiranos e oportunistas, não era preciso parecer coisa alguma. Só era necessário ser. Também teve de se habituar à indiferença ou até pior à sobranceria dos que actuavam na linha da frente por serem médicos ou técnicos de saúde, ela que estava habituada a ter lugar na área estratégica na sua anterior empresa. A tudo se adaptou e pacientemente, com uma alegria que lhe nascia da excitação da mudança, foi conquistando os colegas, ando estes a verem a Sofia como um
elemento indispensável à sua qualidade de trabalho e de eficácia. Foi já numa fase de grande reconhecimento por parte dos colegas que um astro vindo lá do firmamento se lhe impôs na sua vida. Houve um olhar luminoso e penetrante num final de dia, já na fase em que cada um se retira para descansar. Um par de dias depois houve um toque, uma comunicação física mínima que provocou um tremor, um ligeiro choque eléctrico. As duas sentiram a atracção, o desespero da vontade de se encontrarem e um fogo que não se apagaria com facilidade. Viveu uma paixão intensa, tropicalíssima até se desvanecer com o terminar do contrato do seu amor. Tudo se esfumou como as colheitas que via desaparecer nas enxurradas das chuvas. Teve dificuldade de ver os dias a cores e teve um gosto azul-noite a vir-lhe à boca durante meses. Mas a ferida acabou por sarar e pouco a pouco foi conquistando o cheiro da luz, o sabor do amarelo e a visão do sossego feliz. A Sofia fez um trabalho extraordinário na ONG. Ninguém estranhou quando foi convidada para um lugar de direcção operacional do continente africano, respondendo hierarquicamente à sede da organização. Entretanto a sua mais-valia organizativa, a forma como era capaz de lidar com situações difíceis, a capacidade de representar a ONG no terreno, fizeram dela candidata a membro do Conselho. Foi aceite com grande aprovação da maioria dos decisores. Viu-se agora obrigada a mudar para mais perto da sede e inevitavelmente na Europa. Hoje vive em Lisboa e entre aviões de médio curso para a sede, intercalados com longo curso para tratar de assuntos no terreno, Sofia sabe que provavelmente ainda vai ter outras vidas e actividades. Sabe que nunca irá desistir de querer sentir-se única, tentando encontrar o seu próprio caminho, o propósito da sua existência com a autenticidade que nunca é reconhecida, mas por vezes identificada por aquele pequeno grupo dos atentos às particularidades dos seres.
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Não há nada mais gratificante do que a sensação de conquista dos nossos próprios sonhos. Sonhos individuais que só a nós pertencem. Conquistar a diferenciação da nossa existência é um o fundamental ao atingimento da percepção de sucesso e muitas vezes ao próprio sucesso. A diferenciação conquista-se através do autoconhecimento e da construção individual do nosso próprio perfil, de que já vos falei repetidas vezes neste livro. Para isso ser possível, torna-se fundamental conseguirmos pensar por nós próprios, termos um pensamento «único». Único é ser fiel ao projecto pessoal de cada um. Com esta expressão pretendo sublinhar a necessidade de contrariarmos essa tendência fácil e perniciosa de seguirmos modelos e imagens de outros seres. Há pessoas que nos poderão inspirar, mas não convém que nos dominem com a sua própria imagem e personalidade, provocando-nos uma acção vivencial meramente de seguidismo, sem qualquer integração humana e, por conseguinte, sem conteúdo verdadeiro que nos conduza à realização, ao sucesso e à aproximação do nosso objectivo final que é sermos felizes. Nunca é suficiente conseguirmos atingir um objectivo, se este for o objectivo de outro, de alguém que seguimos e, porque não dizer, imitamos. É verdade que vivemos numa época de comunicação intensa e imediata online. Temos o a praticamente todo o tipo de informação. Com esta ferramenta somos fortemente influenciados por «modelos», por celebridades que nos preenchem o quotidiano e nos influenciam os comportamentos. Isto aliado à nossa necessidade de agregação, obriganos a seguir determinados estereótipos nos nossos comportamentos quotidianos. Há que diferenciar e distinguir o essencial do supérfluo. Podemos seguir modelos e deixarmo-nos «arrastar» pela futilidade do consumismo de coisas menores. Mas o que é importante é mantermos sempre a nossa própria consciência, o nosso «ser», o nosso propósito.
Inspirarmo-nos em determinados modelos talvez sim, mas não deixar que sejam essas imagens a moldar a nossa própria existência, a nossa vida.
CONCLUSÃO
Qualquer semelhança encontrada nestas personagens com pessoas reais não é uma coincidência. Claro está que mudei nomes, género e particularidades sociais e profissionais, mas todas elas existem mesmo, são pessoas reais, como eu e você, caro leitor. Eu própria lá estou retratada numa pequena peça, modificada, mas identificável por aqueles que me conhecem bem. Em alguns casos recorri a uma mistura de pessoas reais para poder realçar um feito ou disfarçar uma identidade. Com algumas destas pessoas tenho intimidade suficiente para as avisar de que contei com elas quando escrevi um tema baseado nelas próprias, criando determinada personagem. Agradeço por ter o privilégio de tanta riqueza de conhecimento real que a minha actividade de consultora de Executive Search me proporciona. Ao longo destes anos de trabalho tive o privilégio de conhecer milhares de pessoas profissionalmente e constato a relação de causa e efeito dos seus actos e das suas decisões. Verifico e posso provar a veracidade da frase sábia: «O FUTURO COMEÇA HOJE.» Tudo que hoje fizermos e decidirmos terá invariavelmente uma repercussão no futuro. Estas pessoas cujas histórias conto são de facto como nós. Capazes de errar ou de caminhar no futuro que melhor lhes convém, mas são pessoas reais com histórias reais de vida. Falham por vezes, demoram mais ou menos tempo a resistir à mudança para melhor, caem e voltam a levantar-se com maior ou menor dificuldade. Todas têm histórias de vida e formas de enfrentar os desafios que me parecem inspiradoras perante os temas abordados e propostos. Umas estarão mais realizadas com aquilo que fizeram ou fazem, outras pelo contrário afunilaram a sua existência de forma quase imperdoável, como os seus mais íntimos dizem, tendo em conta os seus dons ou aquilo que era esperado delas.
Espero conseguir inspirar os leitores para tentarem ser sempre um pouco melhores de acordo com cada um de nós. Um pouco mais de esforço para alguns será o suficiente para conseguir o que conjugar melhor consigo, mas, por favor, medite e pense em si e por si, sem barreiras estereotipadas e faça o melhor que puder por quem é mais importante, a sua própria PESSOA. Só assim poderá ser melhor também para os outros que lhe importam. Espero que tenha tido uma leitura agradável e inspiradora e, por favor, convença-se que estamos sempre a tempo de sermos melhores de acordo com nós próprios.
AGRADECIMENTOS
À Sofia Monteiro, a minha inteligente e perspicaz editora, não sou capaz de escrever nem dizer o quanto lhe agradeço por me ter motivado para mais este desafio. Quando me propôs escrever um novo livro, a minha reacção foi imediata: «Mas eu já escrevi tudo o que sei no Eu Sou o Meu Maior Projecto.» Contudo, ela insistiu e contrariou-me, enviando-me um esboço dos dez capítulos a abordar, agora centrados numa história real, como exemplo e inspiração para o leitor. Muito obrigada, Sofia! Agradeço também a todas as pessoas que se cruzam comigo na minha actividade de consultora de Leadership Solutions e Executive Search. São estes que no meu quotidiano me dão o «tom» para eu pensar e aprender.
LIVROS INSPIRADORES DURANTE A ESCRITA DESTA OBRA
Cordeiro, José Luis, Wood, David, La Muerte de la Muerte, Barcelona: Centro Libros, 2018. Diamandis, Peter H., Kotler, Abundance, Nova Iorque: Free Press, 2014. Diamandis, Peter H., Kotler, Steven, The Future Is Faster Than You Think, Nova Iorque: Simon & Schuster, 2020. Hooper, Alain, Potter, John, Liderança Inteligente, Lisboa: Actual Editora, 2003. Kegan, Robert, Lahey, Lisa Laskow, Immunity to Change, Massachusetts: Harvard Business Review Press, 2009. Kurzweil, Ray Kurzweil, The Singularity Is Near, Londres: Penguin Books, 2006. Leonhard, Gerd, Tecnologia versus Humanidade, Lisboa: Gradiva, 2019. Pink, Daniel H., Drive, Lisboa: Lua de Papel, 2017. Ribeiro, Maria da Glória, Eu Sou o Meu Maior Projecto, Lisboa: Manuscrito, 2016. Rosling, Hans, Factfulness, Lisboa: Temas e Debates, 2018. Thaler, Richard H., Comportamento Inadequado, Lisboa: Actual Editora, 2016. Ton, Zeynep, The Good Jobs Strategy, Nova Iorque: Amazon Publishing, 2014.
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ISBN: 978-989-777-428-7 (epub)
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