Galvez O Imperador Do Acre.pdf 1k32b

GALVEZ, IMPERADOR DO ACRE: UM NEO-PÍCARO OU UM MALANDRO? UM MALANDRO OU UM NEO-PÍCARO NO ACRE? MANTOLVANI, Rosangela M. Galvez Imperador do Acre, romance do amazonense Márcio Sousa tem sido classificado por alguns críticos como uma obra histórica que trata da questão da disputa de terras do Acre, área de terras hoje incorporada ao território brasileiro. Márcio Sousa preferiu abordar a questão pelo veio do humor e da sátira, incorporando os fatos históricos à ficção de maneira a referir-se aos acontecimentos de forma artística que desloca e reinterpreta os dados da história oficial como elementos de um fazer artístico: a autobiografia de um espanhol do século XIX que teria escrito suas memórias em 1945 revelando todas as aventuras que viveu em pleno território amazonense no momento histórico que antecedeu a incorporação do Acre aos Estados do Brasil, na condição de território. Diz ele: Em 1945 um velho decidiu escrever as suas memórias. O velho morava em Cádiz, (...). O velho gostava de viajar e para os seus raros amigos era um consumado mentiroso. Mas na Espanha a mentira tinha um sabor especial. No Amazonas, também. O velho deixou um pacote de manuscritos contando uma série de sandices, as mesmas que seus amigos costumavam ouvir sem acreditar. O velho não se preocupava com isso e sabia que essas sandices tinham sido fatos relevantes em sua vida. Uma vida que somente tinha sido relevante porque vivida numa terra irrelevante. O velho morreu em 1946 e não deixou herdeiros. Aparentemente completou o manuscrito porque o calhamaço de papéis, repletos de uma letra firme e clara, foi encontrado vinte anos depois e ainda bem acondicionado numa pasta de cartão, como toda história de aventuras que se preza, o manuscrito foi encontrado num sebo de Paris, em `1973, por um turista brasileiro. Até hoje não se sabe como esse manuscrito saiu de Cádiz e foi parar na prateleira de um sebo do Boulevard Saint-Michel. O certo é que o brasileiro que andava fuçando as livrarias de Paris adquiriu o manuscrito redigido em português, pela quantia de trezentos e cinqüenta francos, o que na época não era um preço muito alto. O justo valor para um manuscrito irrelevante. O brasileiro leu o manuscrito em dois dias, e pensando em José de Alencar, que havia feito o mesmo no livro Guerra dos Mascates, decidiu organizá-lo e publicar. O turista brasileiro era eu e acabei impressionado com as sandices desse espanholl do século XIX. Dessa papelada descoberta de modo estúrdio, como disse José de Alencar, alinhavei este livro que agora se tira à estampa. (...) (Souza, 2001:13-14) O autor utiliza como recurso de verossimilhança uma certa autobiografia, do qual será o "reescritor", embora considerando que muitas mentiras podem estar registradas nela, pois era considerado "um consumado mentiroso". Suas aventuras se referem especificamente "sobre um triângulo de terras que pertencia aos índios amoaca, arara, canamari e ipuriná". (Souza, 2001: 15) Esse triângulo estava assinalado nos mapas bolivianos como "tierras no descubiertas", porém foi encontrado por um cearense que por lá se estabeleceu e iniciou um pequeno comércio, vindo em seguida outros e outros que iniciariam a exploração da

borracha (hevea brasiliensis), produto muito cotado no mercado internacional. A narrativa, contada pelo brasileiro que encontrou os manuscritos do espanhol no sebo do Boulevard Saint-Michel, em Paris, inicia-se "in media res", de forma que conta episódios da vida do aventureiro a partir dos 39 anos de idade, o que não o impede de contar seu ado. Vejamos: "1898, uma noite de julho em Belém do Pará. Começo a contar do meio da minha vida e já estou com 39 anos." (Souza, 2001:15) O autor das Memórias, Luiz Galvez, tratou de relatar seu ado de aventureiro, por meio de analepses, distribuídas pela narrativa, de modo a fornecer os dados necessários para identificá-lo como um neo-pícaro espanhol em suas aventuras por terras brasileiras, depois de ter ado por várias partes do mundo e diferentes ocupações que não constituem, de fato, trabalhos, mas ocupações remuneradas. Sua história se inicia no episódio "Vulto do ado", quando organiza uma analepse para contar fatos sobre seu nascimento: Mesmo sem critério, o aventureiro tem sua história. Nasci na madrugada de 20 de fevereiro de 1859, em Cádiz, Espanha. Meu pai era Fernando Luiz Galvez Concepcion de Aria, almirante da Marinha, e minha mãe, Rosaura Rodrigues de Aria, era das prendas domésticas. Meu pai morreu em 1896 e minha mãe dois meses depois dele (...) meu pai era um entusiasmado jogador e não havia me deixado herança. (...) Em 1868, meu pai participou da rebelião de Cádiz e vi as tropas trocarem tiros no istmo de San Fernando. [No exército contra a coroa dos Bourbons, seu pai foi preso em 1875, quando foi restaurada a Monarquia.] Galvez fugiu para Ceuta com a mãe e lá ficou durante um ano. Na grande casa de Cádiz, sua mãe bordava e contava histórias fantásticas de aventuras de soldados espanhóis e berberes suarentos. (p.43-44) Ao revelar o destino do pai, e a trajetória posterior da mãe, percebe-se que o herói desta história não se assemelha a um aventureiro comum, mas que pode manter analogias muito importantes com outros personagens aventureiros espanhóis, assim como ele. Trata-se dos protagonistas do ciclo da picaresca clássica na Espanha, a exemplo de Lazarillo, anti-herói, cuja triste história de fome e miséria o leva a servir de moço de cego, com quem se instrui nas artes pícaras, aprendendo a ser ladino e a fazer-se por si só. Sofrendo as misérias da vida, serve a vários amos diferentes, cujos trabalhos não conseguem resolver seus problemas de sobrevivência na obra "Lazarillo de Tormes" (1553), do Anônimo. Ou do protagonista de "Guzmán de Alfarache: atalaya de la vida humana" (1602), do autor Mateo Alemán, em que o protagonista Guzmanillo, de origem pouco menos desfavorecida que Lazarillo, tem a oportunidade, inclusive, de viajar por diferentes cidades da Europa, o que o faz um pícaro internacional, ou ainda Pablo, que freqüenta inclusive uma universidade, a de Alcalá, personagem anti-herói da obra "La vida del Buscón llamado don Pablos" (16...), de Quevedo. Observa-se que a ida de don Pablo para a Universidade de Alcalá e seu comportamento nesta se assemelha ao comportamento do protagonista de Galvez Imperador do Acre. Observemos o que Galvez diz sobre sua estadia na Universidade:

(...) Entrei na Universidade de Sevilha e fiz o curso de Ciências Jurídicas e Sociais. (...) A Universidade (...) era um foco de debates [também políticos]. (...) Eu vivia afastado da política e me considerava um adepto do terrorismo boêmio. Andava com os guitarristas pelas bodegas do Alcazar e digo que não me impressionava com nada. Fui estudante regular, aprendi a falar francês, inglês e português. Comia bem e não dispensava uma mulher com comovedora honestidade. (...) ei a juventude de modo tradicional, com as mulheres, as feiras, as danças flamengas e os estudos, nesta exata ordem. [ Noivo de Paula Mudejar, herdeira da fortuna de Fernando Rivadavia y Churroguera Mudejar, vinhateiro e fabricante de cigarros, conseguiu um cargo no corpo diplomático. Adiado o casamento, acaba por não se realizar] Segundo Galvez: (...) o meu noivado acabaria de forma intempestiva, como tudo que faço na vida. (p.52) O noivado ou futuro casamento de Luiz Galvez não se sustentava sobre um nobre sentimento, a exemplo dos outros pícaros, que raramente se apaixonam, mas mantém relacionamentos de interesse mútuo, geralmente associados a questões econômicas e sociais, como modos e meios de atingir um outro patamar social. É o que verificamos em Lázaro de Tormes e Guzmán. Pablo não foge à regra, vivendo inclusive dos expedientes sexuais de sua esposa. Galvez, em sua trajetória, perde a noiva e o sogro endinheirado que garantiria seu futuro de moço desafortunado por não resistir às "tentações da carne", como os demais pícaros, sempre se envolvendo em aventuras perigosas, que não condizem com a "moral social" da época. (...) 1887 eu estava em San Sebastian tentando pegar nas mamas virgens de Paula Mudejar. A Corte se transferiu para a cidade e eu conheci a duquesa Theresse Von Zienssine. (...) Nos encontramos no restaurante e fomos parar na alcova de seu palácio. Nossos encontros se tornaram tão evidentes que (...) [em San Sebastian] não se falava em outra coisa. O marido soube em uma sacristia e não gostou. Paula Mudejar também soube e rompeu o noivado, tentando o suicído bebendo três litros de vinho. (...) Perdi a Charuteria de Ópera de Don Fernando. (p.57) Observa-se em suas Memórias um descaso para com os sentimentos, pois não se preocupa em ter perdido as emoções que o casamento poderia lhe proporcionar, mas as benesses de seu futuro sogro, o que ocorre também com os outros pícaros. Outro detalhe importante é a forma como foi segredado ao marido de Theresse Von Zienssine os encontros escusos dos amantes: ele é informado durante uma confissão, na sacristia. De alguma forma, a moral religiosa o perseguirá em alguns momentos fundamentais de sua vida, colaborando para desfazer seus planos de ascensão social, como veremos no final da narrativa. A história de Galvez prossegue em seu percurso por diferentes lugares, países e diferentes ocupações, como se pode observar nas analepses que se seguem diluídas na narrativa autobiográfica. De San Sebastian, Luiz Galvez segue para Roma: E vendo um paramento me lembrei do bispo de Palermo. Eu estava em Roma em 1889, para onde os zelos da diplomacia espanhola tinham me transferido. Me vestia

pelos melhores alfaiates e conhecia Bianca Donatelli, princesa toscana. Roma é uma cidade encantadora em todas as extravagâncias. (...) Bianca é uma dessas mulheres que olham os homens com credulidade. Uma mulher, portanto, rara. Tão rara que, enfrentando os preconceitos de um país católico, indulgira em se tornar amante de um bispo. Isso antes de nos encontrarmos. O bispo era um virulento siciliano que por baixo da batina suada guardava o sangue quente de Palermo. Era um "homem de honra', para o meu azar. Encontrei Bianca numa recepção do Vaticano. (p.79-80) [Surpreendidos pelo chefe de Galvez, o segundo-secretário adjunto da embaixada. Ao saber do fato, o bispo ameaça Galvez e o embaixador. Por conta disso, Galvez foi transferido para Paris como terceiro secretário.] Galvez tece uma crítica aos membros da Igreja, de forma irônica, nos mesmos moldes como aparecem nos romances do ciclo da picaresca clássica espanhola. A presença do bispo, tão comum nas obras do ciclo da picaresca espanhola, surge em suas lembranças no momento em que embarca como fugitivo em um vapor de religiosos, repleto de imagens de santos e paramentos religiosos, após ter sido acusado injustamente de abuso sexual, em direção a Manaus. Na fuga, envolve-se com Irmã Joana, noiva de Cristo, porém não mais virgem, que ele trata de "corromper". [O vapor a por Breves, Piriá, Arumanduba, Almerim e Prainha.] Nossos encontros duraram nove dias (...) No segundo dia ela deixou que eu lhe desse um beijo e me deu um prato de guisado de galinha. No terceiro dia ficou nua e me mostrou um sinal em forma de cruz que havia perto de seu seio esquerdo (...) Nos outros cinco dias ele me deixou explorar o seu corpo nem totalmente feminino, nem masculino. (...) não era uma virgem. Me contou que havia perdido a virgindade numa brincadeira com um primo. (...) (p.82) Este episódio ocorre no vapor, já em 1898, a caminho de Manaus. São duas religiosas que lhe dificultam a realização de suas intenções também neste episódio, quando o flagram em pleno ato sexual com Irmã Joana: Quando deveríamos começar um novo ciclo de novenas, fomos descobertos. (...) As duas velhas religiosas (...) flagraram o clandestino e a ovelha desgarrada. (p.83) ÊXODO Irmã Joana foi encerrada num camarote e obrigada a fazer jejum. As duas velhas superioras me acusavam de ter parte com Satanás e de ter induzido à luxúria uma noiva de Cristo. [O bispo mandou que o desembarcassem imediatamente] (p.84) Novamente, é o bispo quem decide seu destino, como o de Palermo, desembarcando-o em plena selva amazônica, à mercê de feras e de selvagens. A história de sua vida continua no episódio " Revolução sexual": Paris.1891. (...) O Théatre du Chatelet anunciava uma cantora espanhola e lá eu

encontrei Agnes Louise. (...). Era uma mulher irável, como todas as mulheres do ado de qualquer homem. (...) Começamos a nos encontrar num hotel da Rue de Rivoli, próximo ao Louvre. No quatro de hotel tive lições daquilo que a França sempre soube exportar. (...) fomos surpreendidos pelo marido. Eu nunca tive sorte com maridos e recebemos uns tiros. Felizmente, era um péssimo atirador e sofria de convulsões. (p.92) [Por conta disso é novamente transferido.] Envolvido permanentemente com mulheres e, muitas delas comprometidas, o nosso anti-herói sujeita-se às mais difíceis situações, pois tem sua integridade física freqüentemente ameaçada. Sua existência se transforma numa série de envolvimentos fadados ao fracasso, pois envolve-se com diferentes tipos de mulheres, recaindo sobre ele a ira de maridos, amantes, pais, irmãos, etc. Novamente transferido, agora para Buenos Aires, Galvez repete as façanhas anteriores: 1896. (...) Eu tinha sido transferido para Buenos Aires e gostava da cidade, de sentir a sua tradição euroopéia e de seu clima tão britânico. Um dia, (...) tive a atenção desviada para o brilho alvo e delicado do busto de Maria Isabel y Fierro, que saltava do decote com a impertinência das delícias intocadas (...) Dom Ramon Lizando y Aragon y Fierro, pai de Isabel, não merecia ser o autor de semelhante obra-prima. Sonhava para Isabel um casamento que lhe permitisse aumentar o imenso feudo. "El Toro Loco", como era conhecido, fez saltar chispas de fogo quando descobriu que Isabel já não era mais donzela. Eu tinha feito a desonra entrar na casa dos Fierro e devia pagar. (p.108) Desta feita, a família da donzela decide lavar sua honra com sangue, e Luiz Galvez é desafiado para um duelo, com a finalidade de limpar o bom nome da família Aragón y Fierro: Pablo, irmão de Isabel, me desafiou para um duelo, prática ilegal na Argentina, mas largamente usada entre os homens de sociedade. Abati Pablo com um tiro, entre as árvores do Ezeiza. (...) Fui demitido do corpo diplomático espanhol e recebi o convite de abandonar a Argentina em 48 horas. (p.108) Obrigado a abandonar a Argentina para não ser preso, Galvez vai para o Rio de Janeiro, onde consegue um novo trabalho, cargo muito abaixo do que estava acostumado a executar. a de secretário de Embaixada a escriturário de empresa. É por essa época que encontra um antigo conhecido que tornou-se milionário. Por conta disso, Galvez cria novas ilusões de fazer fortuna fácil. Em março de 97 eu estava no Rio de Janeiro trabalhando como escriturário da firma Lourenço & Cia. Encontrei Maldonado, um biscainho de Bilbao que havia ficado milionário no Amazonas, vendendo artigos de perfumaria. Ele tinha me convencido a vir para Belém com o meu projeto mais realista. (p.41) Certo de que nascera com uma sina destinada ao sucesso e à riqueza, Galvez

perseguia seus desejos, sempre envolvido em aventuras. A profecia de uma cigana, há muito tempo em San Sebastian, predizia um grandioso futuro para o anti-herói. Uma cigana previa para Luiz Galvez um estado real, opulento: (...) Eis o que eu era, um homem sem critérios que gostava de exerimentar o maior contato com a vida. No meu tempo de estudante visitei uma feira de Valladolid e lá uma cigana previu que um dia eu seria aclamado rei. (...) Eu tinha encontrado essa cigana no outono de 76 e desde então até a figura de burguês que eu dealizava tinha seus toques aristocráticos. Quando carimbava aportes em San Sebastian, Galvez eu sonhava em me tornar o rei das escravas brancas em Istambul. (p.42) Galvez está em sua antiga casa em Cádiz, presenteada pelo Governador do Amazonas, que resolveu doá-la em presente, um desejo do anti-herói como condição para fazer a revolução do Acre. Nesse momento inicia a narrativa, que se inicia contando que Luiz Galvez está em Belém, no Pará, com 39 anos. O próprio protagonista é quem traça seu retrato: (...) 39 anos e era um homem alto, meio curvado e estava usando uma barbicha e um bigode pontudo (...) óculos de aros dourados e redondos, e meu nariz era afilado. Sou do tipo mediterrâneo e minha pela estava queimada de sol. Era um homem atraente (...)(p.18 - 19) Convencido no Rio de Janeiro de que se fosse a Belém com um bom projeto poderia tornar-se rico, Galvez decide encaminhar-se para lá, pois como todo pícaro, busca fortuna fácil. Os acontecimentos que se seguem encaixam-se na linearidade da narrativa, que retrata três momentos importantes, divididos em quatro capítulos. No primeiro capítulo, nos deparamos com sua estada em Belém, capital do Estado do Pará, e compreende o período de novembro de 1897 a novembro de 1898, um ano, portanto. No capítulo II, Galvez encontra-se em pleno Rio Amazonas, após ter fugido de Belém, em um barco de religiosos, onde conhece Irmã Joana, com quem se envolve e, posteriormente, salva sua vida de um ataque antropofágico, episódio contestado pelo "reescritor", ou organizador das memórias, que interfere, alegando serem falsas. No capítulo III que compreende a estadia em Manaus no período de março a junho de 1899, três meses, em que Galvez se envolve nos episódios da emancipação do Acre e, ainda neste mesmo capítulo, é narrada a partida para o Acre e a chegada dos revolucionários no Seringal de Versalhes, próximo a Puerto Alonso, no Acre. No capítulo IV, encontram-se narrados os episódios que compreendem o período de julho de 1899 a dezembro do mesmo ano, intitulado "O Império do Acre", que se inicia e termina em Puerto Alonso. A incerteza do destino, a agem por inúmeros locais, fazem de Galvez um neopícaro, bem como a mudança de "patrões", que, neste caso, se apresentam como pretensos beneficiários. Em Belém, Galvez, ao fugir do marido de uma "caboca" que o apanha em flagrantedelito com sua mulher, salva, acidentalmente, de um seqüestro, o Cônsul-Geral da Bolívia, Luiz Trucco, tornando-se amigo deste. Por meio de Truco, conhece Cira e

Alberto Chermont, casal de bem-sucedidos burgueses paraenses e, posteriormente, Michael Kennedy, o Cônsul-Geral dos Estados Unidos em Belém. Sobre a figura deste último, o narrador iniciará um processo de crítica anti-norte-americana, que percorrerá toda a narrativa: (...) Um típico funcionário americano cuja maior especialidade era provocar arrepios. Arrepiava as mocinhas casadoiras (...) Arrepiava os comerciantes e políticos pelos conchavos e promessas e arrepiava os nacionalistas pelas constantes ameaças que seu país costumava fazer contra a integridade da Amazônia. (...) Kennedy trazia um envelope azul que Trucco abriu apressado lendo o conteúdo demoradamente. (...) foi dizendo que a Bolívia começava a negociar com os Estados Unidos a solução dos problemas do Acre. Foi a primeira vez que tive minha atenção despertada para o caso do Acre, (...)(p.29) O envolvimento amoroso de Galvez com Cira não tarda a acontecer, pois trata-se de um pícaro que ressuscita o mito de Don Juan, espanhol conquistador, mestre nas artes do amor, ao qual nenhuma mulher resiste. Galvez mantém com Cira Chermont um relacionamento sob os olhos do marido, que este parece não perceber. É ela quem o coloca a par dos documentos acerca da questão do Acre. Em 20 de setembro de 1898, quinta feira, Galvez se encontra com Cira e João Lúcio, secretário do Jornal A Província do Pará, em uma usina abandonada. Eles e mais três personagens: um estudante de direito, um poeta satírico e um advogado com ar britânico e cara de índio. Articulavam sobre o destino do Acre. Estava reunido pela primeira vez o COMITÊ DE DEFESA DO ACRE. (p.45) Esses três últimos eram os mesmos que haviam tentado seqüestrar Trucco e foram acidentalmente impedidos por Luiz Galvez, que caiu, em plena fuga, do primeiro andar, como uma pedra sobre eles. No episódio "Quadro Político" a situação é esclarecida. Galvez conta que o Estado do Amazonas brigava com o Estado do Pará. O governo do primeiro apoiava o Acre como uma causa brasileira. O segundo, considerava o Acre um estado boliviano. Sobre essa questão do Acre, o leitor é informado nas páginas 29 e 30, no episódio "Equívocos acreanos" sobre os tratados que foram firmados entre Brasil e Bolívia com relação às terras do Acre: O direito boliviano sobre as terras do Acre já estava reconhecido desde 1867, pelo Tratado de Ayacucho. Mas o art. 2 do tratado também estabelecia aos brasileiros o uti possedis. A fronteira não estava definida e somente em 1895 os dois governos iniciaram negociação nesse sentido. O Acre já estava praticamente ocupado por cearenses desde 1877. (p.29-30) De acordo com a narrativa, os interesses americanos sobre a região iam além do limite de fronteiras e se concentravam na exploração das riquezas da floresta tropical, especialmente na produção e comercialização da borracha, produto fundamental na indústria internacional. Galvez declara sua antipatia pelos americanos em "Minha Política": "Eu não gostava de americanos (...) estavam se aproveitando do desespero espanhol em Cuba (...) Havia campos de concentração,

torturas e assassinatos. (...) (p.46) Assim, Galvez, por amor a Cira, ou por amor ao dinheiro (?), decide integrar-se ao COMITÊ DE DEFESA DO ACRE, assiste à escritura de primeira ata do movimento: ATA Comitê de Defesa do Acre. Reunidos no Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de Mil Oitocentos e Noventa e Oito, às vinte e duas horas e dez minutos no local denominado Usina Velha, na estrada do Val-de-Cães, o nosso presidente Dr. João Lúcio de Azevedo (...) Alberto Leite: "lutamos contra a criação de uma Corporação Internacional que poderá dominar o Acre. Já existem muitas regiões do globo infelicitadas por esse tipo de empresa. Zanzibar é um exemplo. (...) Até a metade deste século ninguém discutia a nacionalidade do Acre. (...) Os cearenses não tiveram medo da febre e entraram na região. Empurraram a fronteira com a própria miséria..." (p.47) MÁXIMA Certamente a miséria também é imperialista. ATA - CONTINUA ... E quem se beneficiou foi o Brasil. Hoje a borracha do Acre recebe excelente cotação no mercado. Por isso, a Bolívia quer o território, incentivada nos bastidores por banqueiros ingleses e americanos. O ministro Aramayo, proprietário de minas de cobre em Tupiza quer entregar o Acre a uma Corporação Internacional. Não temos ainda provas disso, mas seria uma catástrofe, um precedente perigoso na América do Sul. (...) "O mais grave é que o presidente Campos Sales vem se prendendo a um tratado de limites que foge à realidade. Ele teme as pressões internacionais, teme perder créditos, e dessa maneira o Brasil acabará cedendo o Acre aos capitalistas" (...) "Há um documento com o cônsul da Bolívia. [segundo Galvez foi o cônsul americano, Michael Kennedy quem entregou] (...) Esse documento se relaciona com a Corporação Internacional". (p.48) A crítica que Galvez traça contra o imperialismo americano é ácida e mostra os interesses econômicos em torno de regiões cuja economia produz meios de controle sobre o poder econômico mundial, como no caso da borracha que, naquele momento era de fundamental importância à indústria mundial, antes que ela começasse a ser produzida em países asiáticos e africanos. Naquele momento, a borracha se apresentava como produto estratégico, o que preocupava os norteamericanos, interessados em perpetuar suas áreas de exploração na região. Galvez reluta mas, pressionado por Cira, acaba aceitando o encargo de roubar o documento que se encontra com Luiz Trucco. Segundo o "reescritor" da Memórias, Galvez mente, pois não teria roubado, mas Trucco teria pedido a ele que traduzisse o documento, ocasião em que se apropria do documento via tradução. O documento, na verdade, era um acordo com a Bolívia que facilitava o comércio da borracha, com muitas vantagens para os Estados Unidos. Observe: A CLAREZA DE UM DOCUMENTO

State Department. Foreign Office. Os Estados Unidos da América, por via diplomática, da República do Brasil, gestionarão o reconhecimento dos direitos da República da Bolívia nos territórios do Acre, Purus e Iaco, hoje ocupados de acordo com os direitos estabelecidos pelo Tratado de 1867. Os Estados Unidos da América se comprometem a facilitar à República da Bolívia o numerário bélico de que esta necessitar em caso de guerra com o Brasil. Os Estados Unidos da América exigirão que o Brasil nomeie dentro do corrente ano uma comissão que, de acordo com a Bolívia deslinde as fronteiras definitivas entre o Purus e o Javari. O Brasil deverá ceder a livre navegação do rio Amazonas aos barcos de propriedade boliviana, assim como o livre trânsito pelas alfândegas do Pará e Manaus às mercadorias destinadas aos portos bolivianos. Em recompensa aos seus bons ofícios a Bolívia concederá aos Estados Unidos da América o abatimento de 50% dos direitos da borracha que saia com destino para qualquer parte da dita nação e este abatimento durará pelo prazo de 10 anos. No caso de Ter que apela pela guerra, a Bolívia denunciará o Tratado de 1867, sendo então a linha limítrofe da Bolívia a Boca do Acre, e entregará o território restante, isto é, a zona compreendida entre a Boca do Acre e a atual ocupação, aos Estados Unidos da América em livre posse. Washington, 9 de maio de 1898. (p.58) Chega a Belém a Companhia de ópera sa, trazendo Justine L'Amour e Blangis, dois artistas que, mais tarde, tornar-se-ão aliados de Galvez. Envolvido com a sociedade de Belém, Galvez atrai a atenção de uma respeitável senhora, que se sente atraída pelo jornalista e procura de todas as formas manter com ele um relacionamento amoroso. Ele, porém, não a desdenhando, termina por criar uma situação bastante embaraçosa no dia da estréia da ópera Aída, quando D. Irene, sentindo-se recusada, resolve acusá-lo de abuso sexual. Perseguido por policiais, instaura um tumulto no teatro que impede o término da peça e o obriga a fugir num vapor em direção a Manaus. Já no capítulo II, subindo o Rio Amazonas, Galvez se depara com uma enorme quantidade de peças religiosas no barco que o transporta e se lembra do episódio do bispo de Palermo. Traça, então, uma crítica feroz à Igreja e seus integrantes, de forma irônica, remetendo às narrativas do ciclo da picaresca. Galvez Imperador do Acre, no entanto, aborda o tema de uma forma mais clara e transparente, sem os subterfúgios da linguagem barroca que aparecem nas obras renascentistas, como se pode perceber no corpus abaixo: COMÉRCIO As imagens de santos estavam amarradas como mártires. Havia um caixote com outras imagens menores, outros caixotes com pacotes de santinhos em tricromia, terços de âmbar, crucifixos e medalhinhas de latão, catecismos de primeira comunhão encadernados de madrepérola e outros artigos de miudeza da devoção católica (...) (p.78) VISÃO

Sentei e irei a sagacidade comercial de quem quer que fosse o proprietário daquelas mercadorias. O comércio religioso seria certamente o mais rendoso naquela terra. Qualquer coronel de barranco ficaria orgulhoso em possuir uma capela no seringal (...) E entre os produtos de seu armazém, não deixaria de incluir os itens devotos para o exercício espiritual de seus empregados. (...)(p.79) O narrador em primeira pessoa articula uma crítica ácida à utilização da religião como arma de controle dos ânimos dos homens menos esclarecidos, ferramenta ideológica aliada ao capitalismo selvagem, ainda como fonte de lucro dos mesmos que utilizam a religião com essa finalidade, revendendo-a em seus próprios armazéns. Autuado em flagrante após nove dias de caso com Irmã Joana, Galvez é abandonado às margens do rio Amazonas, onde assistiria a uma cena canibalesca. Mais abaixo, segundo sua autobiografia, o grupo de religiosos é capturado por um grupo de selvagens, índios antropófagos que realizam um ritual de antropofagia, do qual consegue salvar Joana. Escondido durante dias em um trapiche numa árvore, consegue embarcar com Joana, dias depois em um barco de "pesquisa científica". Sir Henry Lost fundara em Bombaim a British Society for Primitive Metaphysical Research e era engenheiro. Falava na terceira pessoa do plural e recebera a Ordem da Águia Branca de Adis Abeba. Para Sir. Henry, os extraterrestres existem e o Teatro Amazonas, em Manaus, é uma de suas marcas. O cientista, sir. Henry Lost, salva o casal e lhes oferece chá. No mesmo barco, encontram-se os integrantes da Companhia de Ópera que se apresentou em Belém. Interessante observar como os artistas também tem um destino que se assemelha a algumas características das narrativas dos pícaros. Segundo o relato de Galvez: Os artistas também sofrem vexações como os aventureiros: em Caiena, a istração colonial taxava ópera como artigo de luxo, o que quase leva a Companhia à falência. Em Trinidad-Tobago, foram presos como terroristas irlandeses. Em Havana, tiveram duas coristas violadas. Obrigados a se apresentar de cidade em cidade, a vida dos artistas também é entremeada por grandes percalços, o que os aproxima dos pícaros, pois a arte poucos lucros produziam em alguns locais e, muitas vezes, resultavam altos prejuízos, como o que lhes ocorrera em Belém. Em conversa com Galvez, Blangis relata que, durante a apresentação de Aída no Teatro, "alguém" saltou de um camarote e, após o tumulto geral, toda a Companhia fora detida, ando dias horríveis em uma prisão imunda, o que os fez adoecer e, por conta disso, morreram quase todos os integrantes da Companhia, à exceção de Justine L'Amour, Marthe Renoud, Concetta Cezari e Marie Anelli. O cônsul francês, Mr. Dupont, conseguiu corromper o delegado de polícia de Belém com uma caixa de champanha, o que foi suficiente para liberar os sobreviventes detidos. Sentindo-se responsável pelo ocorrido, mas não réu-confesso, Galvez decide armar uma zarzuela e transforma a antiga Companhia de Óperas no grupo "Les Comediéns Tropicales". Ainda no vapor, organizam a primeira zarzuela, sobre a Guerra do Paraguai, que sempre fazia sucesso na Amazônia e se transforma num sucesso.

Sir Henry mandava o barcos ancorar nos bancos de pedra às margens do rio para realizar suas pesquisas, enquanto Joana deixava de usar o hábito de freira, embora com muita vergonha. Ela era amazonense e estava ansiosa para chegar a Manaus e rever os pais. O Capítulo III relata a chegada do grupo a Manaus, onde Galvez articula a apresentação da zarzuela nos teatros da capital amazônica. As apresentações em Manaus permitem que o grupo se recupere economicamente., recebendo duzentos contos de réis por semana. Justine L'Amour se encontra muito satisfeita com seu saldo no London Bank, enquanto Sir Henry segue viagem para São Miguel da Cachoeira. No Palácio do Governo, Galvez encontra o jornalista Thaumaturgo Vaez que consegue para Les Comédiens Tropicales uma estréia no Hotel Cassina. Cira presenteou Galvez com mil e quinhentos contos de réis, depositados no London Bank, enquanto Thaumaturgo Vaez o apresenta a milionários amazonenses. No teatro, o Coronel Eduardo Ribeiro veio cumprimentar as meninas da Companhia. Até senhoras de respeito se disfarçam para assistir a zarzuela, tamanho o sucesso. E mesmo um cônego vale-se desse expediente para assistir à peça teatral. Justine, que já havia mantido uma relação com Sir. James, agora envolve-se com Eduardo Ribeiro, o homem mais libertino de Manaus, colecionador de ligas femininas. Ao contrário do que pensava Sir. Henry, o Teatro Amazonas não fora construído por extraterrestres, mas custara aos cofres públicos quatrocentas mil libras esterlinas.Manaus era uma cidade cara. Um almoço modesto não saía por menos de seis dólares e ali havia o maior consumo per capita de diamantes do mundo (...) (p.124) A referência que o narrador faz aos preços dos produz sempre se traduz em moedas estrangeiras, de forma a revelar a influência do capital exterior nessa faixa do território brasileiro em pleno início do século XX. Galvez se deita com Justine L'Amour, enquanto Sir. Henry retorna do Alto do Rio Negro com uma coleção de genitálias que havia conseguido dos índios vaupés, dado o interesse científico pelo tamanho das mesmas. O narrador em primeira pessoa traça um quadro social da cidade de Manaus, não esquecendo de incluir o grande número de prostitutas, a questão da omissão dos casos de sedução de menores, o panorama econômico e a mentalidade arcaica dos homens com relação às questões sexuais. Em reunião no Hotel Cassina, Galvez é apresentado a um grupo interessante, articulado às questões do Acre. Entre os presentes estavam Joana, o governador do Amazonas, Vaez, O major Freire, o deputado Mesquita, o Coronel Epaminondas Valle e o comerciante e seringalista do Acre, Bacharel Júlio Araújo. Sir. Henry o convida para assumir uma função na sociedade de pesquisas, enquanto o governador do Amazonas, o lendário Coronel Ramalho Junior, "homem finíssimo que presenteava os maestros com batutas de sólido ouro e as coristas com colares de pérolas legítimas" (p. 137), lhe oferece a oportunidade de conquistar o Acre, numa articulação que, mais cedo ou mais tarde, colocaria aquela gleba de terras nas mãos do Brasil. OBRIGAÇÕES ACREANAS Por cinqüenta mil libras eu tinha de conquistar o Acre do domínio boliviano,

declarar o território independente, formar um governo e tentar o reconhecimento internacional Quando tudo estivesse resolvido, meu governo solicitaria a anexação ao Brasil. Minha nacionalidade afastaria qualquer suspeita de participação brasileira. Quanto à forma de governo, eles não se importavam. (p. 139) REPÚBLICA DE PLATÃO (...) Decidi pela Monarquia, que era pomposa, colorida e animada como uma festa folclórica. (p.139) O anti-herói aceita se tornar um revolucionário e, dentre os compromissos que Luiz Galvez assume junto à Comissão que o definira como conquistador das terras do Acre, uma lista de obrigações se fazem prementes em sua ação revolucionária inicial: AGENDA Organizar um Comitê revolucionário (...) /um serviço de informações (...) uma equipe de recrutamento de voluntários (...) uma equipe de intendência e munições. Alugar uma área de treinamento militar dos elementos recrutados. (p.140-141) MANOBRAS (...) Nomeei Marthe, Conceta e Marie para o serviço de informações. Thaumaturgo Vaez ofereceu o quintal de sua chácara para realizarmos os treinamentos militares. (p. 141) Ameaçado de pobreza, Galvez aceita fazer a revolução no Acre, e inicia suas atividades. Descobre que em Puerto Alonso apenas trinta guardas bolivianos fazem a segurança do local, enquanto Sir Henry deixa o Amazonas no vapor Liverpool, encontrando dificuldades para liberar sua coleção de genitálias masculinas, que ficaram retidos na Alfândega, pois os funcionários "entendiam como uma espécie de usurpação dos brios nacionais" (p.136). Mas o Ministério da Fazenda não entende assim e liberaria a coleção como "objetos de uso pessoal. Uma gentileza do governo para facilitar o progresso da humanidade". (p.136) Determinado a organizar seu "exército", e os locais de treinamento, Galvez consegue o quintal da casa de Vaez e um grupo que, com toda sua picardia, ainda consegue surpreendê-lo: (...) aqueles meninos depravados, reunidos aos goles de cerveja no quintal de Vaez, a minha revolução, mesmo com inimigos tão miseráveis, não oferecia grandes esperanças. Mas as libras me arrebataram. (...) (p.142) MANHÃ DE SOL E CERVEJA Quando cheguei ao quintal de Vaez (...) fui recebido não por tradicionais continências, ou outra austera saudação militar digna de uma tropa revolucionária, mas por um alegre brinde de espumante chope. (...) Eram estudantes eternos, vagabundos, crônicos, poetas inéditos, ovelhas-negras de boas famílias, advogados chicanistas, todos irmanados pela incurável insônia que os obrigava a varar

madrugadas o ano inteiro. (p.144) [os últimos românticos? Ou os últimos revolucionários?] BALÍSTICA Se minha tropa fosse obrigada a usar arma de fogo, não saberia por qual extremidade do fuzil a bala iria sair. (...) (p.144) Vários diálogos aparecem em episódios diferentes, nos quais se manifesta o discurso direto das personagens. Estes, no entanto, apresentam-se como no textos de teatro, em que o nome da personagens antecede a fala desta. Esses diálogos apresentam-se em francês, português, inglês, de forma a oferecer um panorama lingüístico tão diversificado quanto a nacionalidade das personagens envolvidas na narrativa. Assim também ocorre com a Ópera, cuja peça Aída tem trechos reproduzidos entre os acontecimentos no teatro no final do capítulo I, em Belém. Outros tipos de textos, de diferentes gêneros, surgirão simplificados em suas formas e disseminados pela narrativa, como por exemplo, as ordens de serviço que Galvez emitirá assim que organiza seu exército e começa a dispor do dinheiro que lhe foi fornecido para a revolução. ORDEM DE SERVIÇO: Do: Comandante Galvez Para: Intendente Chefe. Prezado Senhor, venho por meio desta ordenar um remanejamento em nossa compras. Queira diminuir a munição em quatro caixotes de balas e adicionar duas caixas de vinho e vinte dúzias de cerveja. Saudações Revolucionárias Viva o Acre Independente Galvez, Comandante-em-Chefe. (p.145) Galvez é comunicado que Luiz Trucco e Michael Kennedy preparam-se para embarcar juntamente com cinco bolivianos e funcionários brasileiros do Ministério das Relações Exteriores para Puerto Alonso como o objetivo de decidir o destino do Acre. Na tentativa de impedir a viagem, Galvez decide fazer "Guerra Psicológica". Blangis entra no Hotel Cassina com um caixão e um "defunto" dentro tratando de chamar a atenção do grupo que ali se encontra e diz a Michael Kennedy que o finado é um comerciante acreano "vítima de um pertinaz beribéri, moléstia comum no Acre. Kennedy ficou visivelmente perturbado, uma vez que seu pai havia morrido de febre amarela contraída na Guatemala. Galvez havia se ado por morto e, descoberto pelos enfermeiros, paga uma gorjeta de dois mil réis pelo silêncio deles, enquanto a tropa de bêbados do exército revolucionário fazia ginástica ao som do ragtime de um gramofone. Acobertado pelos alcoólatras de Vaez e pelos Commédiens Tropicales, Galvez viaja dentro do caixão, no mesmo vapor que leva Trucco, Kennedy e sua comitiva ao Acre, cedido propositadamente pelo Governador Ramalho Júnior. O vapor Esperança era comandado por Soares, que orgulhava-se de nunca ter encalhado o gaiola de cento e cinqüenta pés. As sas distraíam Trucco no convés, enquanto Galvez viaja num camarote fora

do caixão, porém sem cama e diverte-se contando as notas de mil réis que eram guardadas em seu caixão. Joana, que havia se transformado numa pessoa assexuada, só pensava em política. Michael Kennedy que ara a viagem toda trancado em seu camarote com medo de contágio pela doença do defunto, sonha em voltar a Belém, e depois a Chicago, onde se casaria com Constance Benedict, agora com 32 anos e ainda à sua espera, e voltaria paraBelle Rose, a vagabunda espirituosa (...) (p.159). Certa noite, porém, ao perceber luz no camarote do "defunto", surpreende-se ao ver Justine fazendo sexo com o "morto", dentro do caixão. Daí em diante, Kennedy aria dias terríveis, acreditando-se vítima de um delírio, de algum sintoma pouco difundido de alguma moléstia tropical. O coronel Pedro Paixão era o proprietário do local onde aportam os revolucionários e o "defunto". Galvez descreve o local, que se chama Versalles: A SELVA SELVAGGIA Caminhamos meia hora pelo encharcado e bolorento castanhal até avistarmos o barracão central de Versalhes. (...) Um grande sobrado de madeira e taipa. Olhando da varanda em direção ao rio, eu vi o Esperança desatracar e rumar para Puerto Alonso, a duas horas daquela localidade. OS GIROS DA HISTÓRIA (...) Versalhes, a praça histórica da Revolução sa seria o nosso ponto de partida. Dei motivos para mais alguns brindes, anunciando que tomaríamos Puerto Alonso no dia 14 de julho. (P.162) Como se pode observar, numa clara alusão ao local e à queda da Bastilha, episódio da Revolução sa, bem como ao Palácio de Versalhes, sede da Monarquia sa no mesmo episódio. Segundo os historiadores oficiais: Quando em 14 de julho de 1789, o 'povo simples' de Paris invadiu a Bastilha, milenar fortaleza-prisão do Estado francês, as notícias sobre esse fato percorreram rapidamente a Europa. Espalharam-se de boca em boca, em jornais, panfletos, cartazes. O símbolo do Antigo Regime (denominação dada pelos revolucionários de 1789 à sociedade sa da Idade Moderna) caíra! (Ostermann & Kunze, 1995:3) O tom irônico com que descreve Versalhes nem de longe revela qualquer vestígio de semelhança com o luxo do Palácio francês, exceto pelo nome e pelo intento que desejam realizar: tomar as forças políticas no Acre, cuja luta se organiza a partir do 'povo simples', liderados por artistas e "intelectuais". A presença de Joana, alude a um outro episódio: o comando de Joana D'Arc, heroína sa à frente das tropas nas Guerras de Libertação. JOANA D'ARC Joana organizou um batalhão de seringueiros e comandava os homens com mão de ferro. (...) Ela tinha aprendido muito bem os ensinamentos da Igreja Católica. Mal falava comigo e me olhava com sinais de repreensão. A da adesão de Paixão era para Joana uma leitura a priori do que seria a minha revolução. (p.168)

As alusões à Revolução sa se manifestam também na confecção da bandeira e no nome do batalhão de Joana, que se organiza de trabalhadores e se chamou "Os Inconfidentes", numa clara relação com a Inconfidência Mineira no Brasil, reflexo da Revolução sa. A bandeira foi confeccionada em azul e branco, as cores da França, com uma estrela e as palavras: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. O batalhão comandado por Joana e intitulado "Os Inconfidentes" desfilou garbosamente na Praça Versalhes. Eram homens franzinos, desdentados, chapéus de palha e sapatos de látex nos pés. (...) De Puerto Alonso chegava a notícia de que os bolivianos iam um acordo bilateral com o Brasil, anexando o território do Acre e reclassificando as propriedades dos brasileiros. (...) (p. 170) No capítulo IV, o autobiografista retorna ao tempo da narração, para comentar sobre o tempo da narrativa e dizer que foram os melhores momentos que viveu entre suas inúmeras aventuras. "Eu vivi a aventura e depois me transformei numa lenda". (p.175) Galvez se prepara para tomar Puerto Alonso e ordena a partida às quatro horas da manhã, dividindo as tropas em três batalhões. Vaez, examinando a cidade de binóculo, constatou que uma tropa organizada e bem vestida ao som de uma banda de música marchava pelas ruas, enquanto gaguejava que se tratava de uma cilada. Galvez imagina que sejam mercenários do Bolivian Syndicate. Mesmo assim não se amedronta: Eram seis horas da manhã quando ordenei o assalto (...) Uma avalancha de alcoólatras, dançarinas e cearenses caiu sobre a praça, ponde em debandada vergonhosa os desprevenidos mercenários. No campo de honra ficaram as bandeiras, estandartes e instrumentos musicais. Tínhamos conquistado nosso primeiro objetivo sem disparos. (...) O Batalhão dos Inconfidentes avançava pelo fundo e já dominava a retirada dos mercenários que iam caindo prisioneiros sem maiores resistências. O batalhão de Paixão vasculhava outra ala da cidade e fazia prisioneiros na tomada da Delegacia boliviana. [ Luiz Trucco e o americano foram presos por Vaez] (p.177) Blangis trava um duelo de florete com a coronela do Exército de Salvação, atacado não apenas pelos motivos da Revolução, mas por motivos antigos: (...) a Coronela do Exército (...) avançava contra o francês [Blangis] que havia destruído o seu xale em Belém. Blangis (...) defendeu-se galhardamente, desfazendo [com um florete] a coronela de sucessivas peças de roupa. (...) Os membros do Exército da Salvação, ao verem sua maior patente ultrajada e em trajes menores (...) perderam a compostura e (...) engalfinharam-se com a turba de cearenses que torcia e se divertia em volta. Estava sendo travada a batalha que ficaria na História como a Grande Batalha Campal de Puerto Alonso, vencida pelo meu exército e marco fundamental de meu Império.(p.178)

Após prender Michael Kennedy e Luiz Trucco, Luiz Galvezmarcha sobre a praça, juntamente com Thaumaturgo Vaez e Pedro Paixão, montados em cavalos com enfeites fora de época, por isso alguns acreditavam que se tratava de D. Pedro I que havia retornado ao Brasil. Justine e as bailarinas gritavam vivas ao Imperador, enquanto o cura soltava fogos da porta da Igreja. Então Galvez grita: Pátria e Liberdade! Viva o Acre livre! Viva a revolução! No segundo dia de revolução, Galvez baixa seus decretos, suas leis e uma série de textos burocráticos simplificados permeiam a narrativa, de uma forma satírica, com um humor muito apurado, como requer uma monarquia do tipo instituído no Acre. Assim, encontram-se Decretos, Pronunciamentos, documentos que criam Comitês, Desapropriação de Imóveis (lembrando o Bota-fora de D. João IV), bilhetes, respostas a bilhetes, Nomeações, Orçamentos, Declarações de Orçamento, distribuição de soldos, etc. Para manter seu prestígio tanto junto ao povo quanto junto aos patrões, Galvez toma medidas importantes: não deixa faltar bebida e baixa um decreto abolindo o imposto sobre a borracha bruta, aumentando os lucros dos proprietários que ficam muito satisfeitos. Depois de uma semana de comemorações, Galvez, finalmente, é coroado Imperador. Tanto nesta cena, quanto em toda narrativa, observamos o efeito da carnavalização Bakhtin (1982, p. 105-107): A cerimônia de minha coroação, já no Palácio delirantemente decorado com uma pompa até então ignorada naquela latitude, transcorreu com intensa comoção de grandeza. INTERFERÊNCIA DO NARRADOR. Os leitores me perdoem o estilo grandiloqüente, mas toda coroação é assim. Blangis, mestre na improvisação de cenários em papier mâché, elaborou um deslumbrante salão de audiência com os detalhes rococós de um antigo cenário para a ópera Don Giovanni. (...)(p.189). Sobre a carnavalização, Mikhail Bakthin nos diz que a transposição das práticas das festas de carnaval para a literatura temos acarnavalização da literatura, que pressupõem quatro categorias: asmésalliances, a excentricidade, a familiaridade entre os homens de diferentes classes ou níveis sociais e a profanação. Todas estas categorias podem ser encontradas no texto Galvez, Imperador do Acre. Enquanto Galvez cuida da manutenção de sua coroa, Pedro Paixão se afasta para o Seringal Versalhes e Joana percorre todo o território acreano, verificando que pode haver um levante contra o governo de Galvez, organizado pelo seringalista Neutel Maia, aliado dos bolivianos. Blangis sonha com uma Ópera mais opulenta do que o Teatro Amazonas. Após ser chamado pelo chefe de polícia para resolver o problema de uma mulher do que falava português com dialeto regional, Galvez constata que o povo brasileiro possui uma linguagem de vanguarda. E, após ser informado de que aquela cidadã matara seu marido, por tê-lo encontrado na cama com outra, conclui sobriamente que seu Império "era um pedaço de mundo absurdo em suas leis próximas ao estado natural".

Joana alia-se ao povo e organiza escolas, criava centros recreativos no interior do país, e não escondia que essas instituições funcionavam como organismos paramilitares, enquanto o Ministério delirava em projetos utópicos. As senhoras da sociedade acreana escandalizam-se com o uso do maiô de banho por algumas coristas da Companhia de Teatro, enquanto o cura protesta na missa. Blangis tramava um desfile alegórico para o dia 31 de dezembro, às 10 horas da manã, destacando os principais momentos da história universal e, para isso, solicitou um grande carregamento de vinho e champanhe. Vaez telegrafa para Manaus pedindo todas as vagabundas disponíveis. As mercadorias para a entrada do século eram duzentas meninas que já desciam do vapor fazendo sucesso. Dona Vitória, esposa de Paixão, que já se posicionara contra os libertinos do Acre, armou um altar na Praça Versalhes e lá desfiara fervorosas orações pela conversão do Acre pecador. (p.211) Em casa, Dona Vitória recusa o marido no leito nupcial pela primeira vez desde o casamento e prefere fazer terço. "Olha seu bode safado, só quando as vagabundas forem embora" (p.211) Pedro Paixão ouve de outros proprietários que havia um complô feminino e que o ato de dona Vitória era político. As mulheres exigiam a imediata expulsão dos pervertidos do Acre. Assim, no Natal, o tenente Burlamaqui oferecia seus talentos para por fim na desordem que reinava no Acre. Ele sempre esperara por uma oportunidade como aquela. Combinaram a senha para o início do putsch: "Abaixo o can-can", uma idéia de Dona Vitória. No dia 31 de dezembro, o povo aguardava o desfile, entusiasmado, e resultou em absoluto sucesso: Era a visão operística da História da Humanidade. Meus súditos não tiveram olhos para acreditar e assistiram petrificados. (...) Quando o último carro alegórico atravessou a avenida, o povo explodiu numa alegria desenfreada. Dançavam, casais se beijavam e os velhos e as crianças choravam. (...) (p. 215) Quando a noite chegou, já ninguém se entendia e o álcool havia abolido todas a hierarquias. O interior do Palácio Imperial era um ponto sensitivo onde corpos exultavam mudos e ocupados e as almas perdiam-se em êxtases e torrentes de calor. Para uma orgia daquelas, só apelando para o parnasianismo. (...) (p.215216) Articulado o Golpe de Estado contra o Império de Galvez, as tropas contrarevolucionárias de Burlamaqui se apressam em dar o golpe: O Golpe de Estado teve início às nove horas da noite, com o desembarque das tropas contra-revolucionárias. Burlamaqui organizou uma aproximação rápida do Palácio e no caminho ia recolhendo os bêbados e desgarrados que eram amarrados e amontoados no trapiche. (...) [Burlamaqui abre fogo aos gritos de "abaixo o can-can". (...) Dentro do Palácio alguns pensaram que era o novo século que chegava na salva de foguetes e gritavam saudações absurdas. (p.216)

Os Inconfidentes de Joana já haviam feito um cerco em volta do Palácio para garantir a segurança dos que participavam da festa que acontecia no seu interior, mas foram abatidos e os contra-revolucionários, pouco a pouco conseguiram adentrar pelo Palácio. Dos trinta homens de Joana, apenas nove escaparam com vida e Joana acabou tombando em combate na defesa do Império do Acre. Galvez relata sem emoção a sua deposição: [Burlamaqui ] (...) estava me procurando e queria a honra de me depor pessoalmente. Blangis foi preso quando banhava duas ninfas com champanha, e Thaumaturgo Vaez quando dormia num sofá em meu gabinete, completamente despido e abraçado com a deusa Vênus (uma linda columbiana vinda de Manaus0. Fui localizado dormindo entre várias garrafas de xerez, (...) vomitei copiosamente sobre a farda de meu depositor. (p. 217-218) De acordo com seu relato, Galvez foi derrotado pelo século XX, pois é um personagem dos oitocentos sem profilaxia. Em seu relato final, dirige-se aos leitores, confessando sua veia picaresca: Os leitores que me perdoem, mas furtei o ado da alacridade das memórias e da seriedade das autobiografias. Devolvo minhas aventuras como elas sempre foram: um pastiche da literatura em série, tão subsidiária e tão preenchedora do mundo. Reparti minhas sensações nestes capítulos e entrego meus os ao rodapé imaginário de um jornal. (p.219) É o organizador de suas memórias, o escritor que encontrou o manuscrito em Paris quem encerra o relato, confirmando a existência real do anti-herói, e associando os lances picarescos de Luiz Galvez com os acontecimentos políticos do ciclo da borracha no norte do Brasil: O nosso herói existiu realmente e pelo norte do Brasil exercitou sua fidalguia. Comandou uma das revoluções acreanas, e quem duvidar que procure um livro sério que confirme nossa afirmação. Os lances picarescos de Luiz Galvez formam um todo com o vaudeville político do ciclo da borracha. No livro do escritor Veiga Simões, Daquem e Dalem Mar, editado em Manaus no ano de 1917, pela livraria Palais Royal, há a seguinte descrição do herói: "Por algum tempo esse aventureiro audacioso manteve o gesto que mais tarde repetiria Jacques Lebaudy, Imperador do Sahara; e D. Galvez I legislou, batalhou, deu armas e bandeira ao novo Estado - enquanto teve recursos... Acabados eles, esse Império esvaiu-se, sumiu-se pelo boqueirão das coisas pícaras que deixam a memória envolvida em troça." (p.219-220) Galvez sofre um processo de destronamento, quando sua deposição acontece, por meio da ocupação do estado, como um dos procedimentos da carnavalização da literatura, enquanto recupera a história de um evento político brasileiro pela via da ironia e da paródia da história oficial, investindo sobre a históricidade, produzindo o lúdico e o riso da sátira por meio da ficção.