3. QUADRO METODOLÓGICO Abordar as práticas e experiências de deslocamentos e gestionamento da vida binacional protagonizadas por trabalhadores rurais na fronteira brasileiro-uruguaia requer uma perspectiva metodológica que atente, simultaneamente, às narrativas dos sujeitos e à relação destas com um modo de vida ancorado no lugar. A ênfase nas narrativas permite ao pesquisador de campo mapear a incidência de relações diversas e temporalizadas na discursividade “localizada” dos interlocutores. O lugar, por sua vez, é concebido, como uma encruzilhada de múltiplos poderes e conexões espaço-temporais. Entendê-lo desta maneira sensibiliza o olhar etnográfico para identificar a pluralidade de vetores que dinamizam os processos de significação e colocam as manifestações locais da cultura numa relação de interdependência e mesmo de determinação com outros níveis da atividade social.
Os sujeitos que conformam meu universo de pesquisa
partilham certa trajetória social pautada, como já comentei, pela permanente necessidade de circulação. Daí a importância de escutar as suas falas como desdobramento transitório de uma longa experiência de diálogo e tensão com agentes institucionais diversos. Desde 1991, com a do Tratado de Assunção, que deu origem ao Mercosul, os povoadores das zonas de fronteira foram expostos a novas mediações normativas que incidiram sobre suas práticas de comércio, intercâmbio e deslocamento. As fronteiras, como sinalizaram diversos autores (ÁLVAEZ, 1995; CASTELLANOS, 1995; LEVITT, 2001), estão colocadas no centro das estratégias globais de flexibilização dos fluxos de capital e mercadorias, emergindo como espaços essencialmente porosos e transnacionalizados. Seguindo as sugestões de Marcus (2000), Bensa (1998), Escobar (2011), Restrepo (2007) e Actis (2003), apresento, neste projeto, um quadro metodológico que contempla a densidade evocativa dos enunciados e das experiências particulares, abrindo espaço para que sejam correlacionados com outros lugares e tempos e analisados tendo em vista a incidência de fenômenos que transcendem o próprio contexto fronteiriço. A etnografia estrategicamente situada, em que pese seu caráter unilocal (MARCUS, 2000), pode mapear o espaço geral de relações que conforma as experiências e práticas que são o foco de minha investigação. Para atingir este objetivo, no entanto, tal modalidade de etnografia precisa estar ancorada numa noção complexa de lugar. Onde quer que se posicione geográficoespacialmente, o encontro etnográfico habilita situações de interlocução com um enorme
potencial evocativo que não pode ser desperdiçado. O lugar da etnografia orientada à formulação de um saber crítico não se circunscreve aos limites estreitos da “tradicionalidade”, da “comunidade” ou do território em sua acepção meramente física. Ao contrário, ele aparece como a justaposição de múltiplas escalas de enunciados, discursos, relações de poder, estratégias de controle e apropriação do espaço. Arturo Escobar propõe que estendamos nossas pesquisas em direção ao lugar para considerar o impacto que exercem sobre ele questões mais amplas, tais como a relação do lugar com as economias regionais e transnacionais; o cruzamento de fronteiras; o híbrido; e o impacto da tecnologia digital, particularmente a Internet (ESCOBAR, 2011, p. 147). O recorte transversal do presente, além de iluminar uma sucessão de ados e remeter a um contexto espacial muito mais extenso, como escreveu Ginzburg, também nos permite apreender a relação conflitiva entre poderes e práticas diversos e desigualmente distribuídos: a etnografia deveria ser capaz de revelar os diversos campos do discurso em que coexistem declarações oficiais, elucubrações marginais, concepções unanimemente aceitas ou compartilhadas por alguns, enunciados proibidos ou excepcionais e mesmo, muito aquém de tudo o que se pode ouvir, proposições impensadas. (BENSA, 1998, p. 52)
As microrrelações enraizadas no lugar – espaço privilegiado do estudo etnográfico – exigem da antropologia a análise das múltiplas experiências culturais num contexto de globalidade e inter-relação, onde se fragmentam as ficções etnográficas da comunidade e da cultura como unidades metodológicas que se auto-contêm e se explicam nos seus próprios termos (RESTREPO, 2007, p. 300). Uma perspectiva heterárquica1 permite que respondamos a esta exigência, já que ela nos conduz no sentido de um materialismo emergentista que implica múltiplos processos enredados a diferentes níveis estruturais, inseridos numa única realidade material histórica (que inclui o simbólico ideológico como parte dessa mesma realidade material) (GROSFOGUEL, 2010, p. 474). Para fechar esta já extensa cadeia de citações, retomo 1 Castro-Gómez (2007) sugere que o sistema-mundo patriarcal/capitalista/moderno europeu constitui uma totalidade heterárquica onde diferentes poderes agem, tencionam e se intersectam, permitindo e promovendo a produção constante de alteridades. O autor apresenta esquematicamente este campo de forças como estando composto por: “um nível microfísico no qual operariam as tecnologias disciplinares e de produção de sujeitos, assim como as “técnicas de si”, que buscam uma produção autônoma da subjetividade; um nível mesofísico no qual se inscreve a governamentalidade do Estado moderno e seu controle sobre as populações através da biopolítica; e um nível macrofísico onde se localizam os dispositivos supraestatais de segurança que favorecem a “livre competição” entre os Estados hegemônicos pelos recursos naturais e humanos do planeta. Em cada um destes três níveis o capitalismo e a colonialidade do poder se manifestam de forma diferente". (Castro-Gómez, 2007, p. 162)
Arturo Escobar, para quem construir o lugar como um projeto, converter o imaginário baseado no lugar em uma crítica radical do poder, e alinhar a teoria social com uma crítica do poder através do lugar, exige que nos aventuremos rumo a outros terrenos (…) O saber local não é puro, nem livre de dominação; os lugares podem ter suas próprias formas de opressão e até mesmo de terror; são históricos e estão conectados ao mundo através de relações de poder e de muitas maneiras estão determinados por elas (ESCOBAR, 2011, p. 147).
A busca destas relações, conexões e determinações que conformam a especificidade e a globalidade do lugar consiste no objetivo central do que Marcus (2000) denominou etnografia estrategicamente situada. Sob este prisma metodológico, torna-se possível discutir a coexistência mais ou menos conflitiva de diferentes formas de construção e apropriação do lugar e sua incidência sobre a cultura, a natureza e a economia (ESCOBAR, 2010). A noção de cultura, aqui, já não descreve processos de simbolização atemporais e desindividualizados, ela evoca, isto sim, uma encruzilhada (RESTREPO, 2007) transitória de processos multiescalares amalgamados sob termos específicos em contextos temporais e espaciais determinados. Adotando este enfoque, penso que podemos evitar tanto o economicismo hierárquico – que supõe a univocidade da esfera econômica na determinação dos processos superestruturais – quanto o culturalismo (e outras formas de determinismo cultural), ponderando, cuidadosamente, a influência da justaposição de dinâmicas múltiplas de subjetivação e assujeitamento sobre a realidade contextual de pessoas de carne-e-osso. No estabelecimento da interlocução com trabalhadores que se deslocam através da fronteira brasileiro-uruguaia, proponho uma abordagem empírica divida em dois focos: 1) escuta das narrativas-de-experiências e das narrativas-de-práticas; 2) observação etnográfica das relações entre trabalhadores e agentes fronteiriços. Na coleta das narrativas, aplicarei entrevistas não-diretivas, de modo a incorporar os marcos de referência dos interlocutores e poder explorar, junto com eles, os aspectos da problemática em discussão e do universo sócio-cultural em questão (GUBER, 2005). Minha aproximação à temática dos deslocamentos fronteiriços através das falas dos trabalhadores rurais decorre da preocupação por constituir uma amostra significativa, onde um fato ou um caso podem surgir como pertinentes para dar conta do feixe de relações que caracterizam os deslocamentos humanos em zona de fronteira. A ênfase nas narrativas, por sua vez, decorre de
uma preocupação com a escuta, faculdade essencial que habilita o pesquisador a mapear discursividades singulares para, então, relacioná-las com campos enunciativos mais abrangentes em busca de determinações, causações e imbricações. A narrativa – podendo ser verbal, real ou virtual – é uma articulação discursiva que traz em si o instrumental cognitivo que permite dar sentido à experiência, favorecendo a construção de identidade (TELLA citada por ZEBALLOS, 2007, p. 20). Ela não conta tudo sobre os sujeitos, senão que revela um campo de ilusões e perspectivas, um espaço de subjetivação que não a indene às dinâmicas de assujeitamento e subordinação que marcam um momento específico da trajetória social de alguém. Disposto a acompanhar de perto os itinerários dos meus interlocutores, considero inserir no horizonte empírico da investigação etnográfica os espaços de interação entre sujeitos migrantes e agentes fronteiriços. Alejandro Grimson (2001) propõe que a definição e construção das fronteiras políticas inclui a ação de múltiplos atores, não redutíveis unicamente às manifestações do aparelho de Estado. Segundo este autor, poderiam ser considerados agentes fronteiriços os proprietários rurais, as instituições religiosas e outros tantos protagonistas e fomentadores do deslocamento de pessoas nas divisas nacionais. Por esta razão e porque meus interlocutores efetivamente relacionam-se com a burocracia estatal e com empreendimentos privados, é fundamental afinar o instrumental etnográfico para a observação e análise de contextos formalizados. Nestes espaços, Heyman (1995) propõe que contrastemos missões formais com políticas e contingências reais. Sugere, também, no caso específico da burocracia estatal, que atentemos para as noções de si, dos outros, para as relacionalidades e causalidades (frente aos outros e a si mesmos), temporalidades, espacialidades e formas de classificação operadas por funcionários públicos. A burocracia e os demais agentes fronteiriços aparecem, neste quadro metodológico, como produtores de prescrições normativas, percepções individuais, discursos potentes, racionalidades políticas e modalidades informais de negociação que dão os contornos de uma estratégia possível de controle sobre populações.