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Revisão: Márcia Santos
Capa: Matheus de Alexandro
Diagramação: Leticia Nisihara
Edição em Versão Impressa: 2021
Edição em Versão Digital: 2021
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
R114 Contos de Quase Amor / Márcio Rabelo. - Jundiaí, SP : Paco, 2021. Recurso digital For
Índice para catálogo sistemático I. Conto : Literatura brasileira : Crônica
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Para aquela turma lendo contos nas tardes de sexta.
Agradeço às longas horas que me aram – e eu a elas – a essa entrega enlevada e delirante para a conclusão deste livro.
O AUTOR
SUMÁRIO
FOLHA DE ROSTO
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
CONTOS DE TODO AMOR
A EUFORIA DO DESCONSOLO
DEPOIS DA SENSIBILIDADE
ESTER
TRÊS ATOS DE QUASE AMOR
A MENINA
NOIVA NO ESPELHO
A MAIS SUBLIME HISTÓRIA DE AMOR
O QUARTO ESCURO
O SAPATO NA JANELA
ANTÔNIA FLOR
A ÁRVORE DO FUTURO
O BATOM QUE FICA NO CIGARRO
O SANTUÁRIO DE LEOPOLDO
PÉS DESCALçOS NA NOITE
CACHORROS
ALUGA-SE ESTA CASA
O CLAUSTRO
CHUVA LINDA CHUVA
PÁGINA FINAL
CONTOS DE TODO AMOR
É na literatura que podemos encontrar a experiência do mundo. Ao contrário do que se possa pensar, a ficção não esconde, nem trai a realidade. Sabemos, porém, que é pela própria força da realidade que a ficção se constrói. Nela, o amor é presença marcante. É a partir do amor que depende, conforme nos diz Jorge de Sena (1992), a elaboração do conhecimento de nós mesmos e do mundo. O tema é necessário e permanente. Pela mão talentosa de Márcio Rabelo, encontramos nos Contos de Quase Amor uma autêntica busca pela vida, que se multiplica em muitos caminhos narrativos, todos repletos de uma delicadeza de pensamento que procura sondar as realidades do amor e suas muitas formas. A potencialidade de cada narrativa está em trazer ao leitor não apenas a visão das possibilidades e contextos do amor, mas seu estado de permanente busca, de ser e não ser, de quase existir – como palavra sussurrada ou flor que apenas se anuncia, sutil, na terra bruta. O fluir de cada conto se desdobra em ondas que podem ser suaves e algumas vezes impetuosas, nas quais o leitor acompanha o desenrolar dos acontecimentos e seus significados, muitas vezes com a surpresa de inusitados desfechos. Em todos os contos, abrem-se as possibilidades do amor, os direitos do amor, as várias falas do amor. Erguem-se no ar a bondade, a esperança, a ilusão, a dor, mas não poderiam deixar de estar aqui também os quartos escuros, os fantasmas, a destruição do amor que se quer espontâneo e livre, a infância em permanente espera, a pobreza que limita a vida, o medo do desejo e o desejo de amar. Os personagens dos contos se distribuem pelas mais variadas esferas do viver, em que a discussão da liberdade e da morte também fazem parte. Assim, o olhar de Márcio afasta-se das margens do esperado e encontra terceiros caminhos: é capaz de trazer, no prenúncio de uma lágrima, o improvável encontro de um pai idoso e seu filho; numa dança, o desejo da existência de uma mulher, numa dúvida imensa entre dois amigos, a suavidade da resposta. A escrita de Márcio é forte e dirige seu olhar atento para os meandros do mundo. Abra-se para ler esse livro. Deixe que fale com você. No quase do amor, há
sempre uma imensidão de esperanças.
Flávia Aninger de Barros
Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana
A EUFORIA DO DESCONSOLO
Ela vai entrar por aquela porta: sacos na mão, boca calada, uma pedra de orgulho no queixo, e seguirá para a cozinha. Depositará as compras sobre a mesa, higienizará as mãos e começará os afazeres domésticos. Certamente vai logo preparar um café, ou um chá, e depois, sem perguntas, me trará uma xícara, como se fosse velha companheira e conhecesse as manias de antigo esposo. Eu estou na sala, e olho para esta porta por onde ela vai entrar. Não quero parecer otimista demais, mas é que os sonhos são quase verdades às vezes, e eu conto com a possibilidade de um milagre. Profecia? Esperança. Os contos de fadas na minha infância foram de grande valia, eu que imaginava todas as coisas que a professora dizia, todas as coisas que ela lia naquele livro sem fotografias, sem imagens rabiscadas, sem caricaturas, sem colorido, só palavras, só letras em preto e branco impressas. Então eu imaginava todas as cenas como se assistisse a desenhos animados, e, quando estive pela primeira vez no cinema, era da voz da professora que eu mais lembrava, das coisas que narrava com grandiloquência e genialidade, como se fosse uma intérprete indescoberta. No cinema, era a voz dela que eu ouvia, ela que fora o meu primeiro amor, isto é, minha primeira desilusão. Meu primeiro cinema foi para mim a raspa de alguma coisa sem mágica, porque não se tratava de uma história fantástica como aquelas que minha professora contava. O realismo do filme me trazia a proximidade desta vida áspera, e, daí, minha frustração, porque sou inclinado aos sonhos. E se isso for uma característica patológica do meu cérebro, quem sabe seja eu um corpo a dividir o espaço da alma entre o adulto inconcluso que sou e a criança que eu era; não sei, sei apenas que espero o abrir de portas miraculosas a me apresentar o cenário de um mundo que me faça sentir chacoalhado – não pelo que ele contenha de exótico, mas pelo modo inusitado como se manifestará.
Não sei se é uma professora ou se é mulher comum. Não vou aos bares. Raramente às ruas. Sou quase mudo e quase imóvel. A esperar. Atenho-me. Essa porta é imperiosa, eu gostaria de trocá-la. Ela me afasta do mundo com o peso do seu corpo e esse jeito de quem impõe uma fronteira. Eu gostaria de uma que rangesse, coisa que esta não faz, ela é muda como a parede que a rodeia. Eu quero uma porta fácil de abrir e que, quando aberta, o barulho me anuncie a chegada. Assim eu me tranquilizo, sabendo que para ela a entrada estará facilitada. Na parede que ladeia a porta, a moldura acima do sofá. Eu cogito: pode ser que ela não goste desse retrato. Não foi invenção minha, é do tempo dos meus avós, quando a casa era cheia e havia gente de sobra, festa e comida. Hoje é a penúria e a sensação de míngua. É pelo viés deste declínio que basicamente me sobrou uma irmã. Mas esta, faz algum tempo, resolveu se bandear para o Maranhão. Aliás, coragem que eu não tenho. Gosto de pontos fixos, não me apraz mutações de cidades, amigos e cultura. Mudanças assim são como abandonos. Abdicam-se de coisas em prol de outras. Sou das ferrugens e dos encravados. Por isso espero. Para a fixidez. Se eu fosse dado aos artesanatos, diria que estou a reforçar o trançado da corda com a qual darei o nó. Casamento é nó? Eu quero o nó. Embora eu prenuncie os efeitos colaterais. Pensando nisso, outro dia eu reli o Machado, só para me comparar com o Casmurro, e cheguei ao paradoxal entendimento de que gosto e odeio o Bentinho. Ele tinha a mulher e a deixou dissipar. Não me pergunte o que acho, se ela o traiu. Se o fez, o outro morreu, podiam ter reconstruído. Todavia, o Bento acabou por compor uma memória feito o próprio sentimento, amputada de partes. Você me pergunta: o que podia ter sido reconstruído no limiar da sua história? Eu respondo: o amor. Não o dele, que, apesar de ferido, andava apenas embriagado; mas o dela, que vagava extraviado. E se, de fato, ela não mais o amasse e toda a paixão que nutrira pelo Bento fora transportada para o amigo que, por conseguinte, o levara para a catacumba, sendo assim, a mulher, fadada ao fragmento, ao estar no mundo sem ser totalmente, no auge da solitária loucura, certamente desejaria um abraço quente que a confortasse no perdão. O Casmurro beberia sua dose de sofrimento por saber que não dependia dele a manipulação de fatos ados, mas visando a reparação de um futuro cuja
esposa, regressada do extravio, nem suspeitaria das desconfianças do marido. As dissimulações. Eliminadas estas possibilidades, Bentinho acabou numa casa feita à moda antiga, numa rua pacata, respirando o ar pouco oxigenado da desilusão. Não sou melhor do que ele. Ele tivera a coragem de trocar a batina para colonizar as saias. E eu, até agora, a única coragem que tive, e ainda não executada, foi a de desejar trocar a porta pesada por uma de plástico. E esperar. Capitu esperou o retorno de Bentinho. Bentinho ansiou reencontrar Capitu. E assim aconteceu. Eu posso esperar. Comparação tosca essa, entre ficção e realidade. Já informei das minhas preferências pelo inverossímil, mas quem sabe. Ela vai chegar com as sacolas, vindo do mercado, o queijo fresco e o pão quentinho, fará o café ou o chá e vai me servir a xícara e o prato com a fatia do bread. Não sei nada dessa fortuna, mas existe, eu me convenço. Relicários mergulhados sob as águas de impenetráveis cavernas. Quem sabe. — Você acha que essa mulher vai cair do céu, vai chegar de repente e casar com você? – perguntou-me aborrecida uma vez minha irmã, a que mora no Maranhão, por ocasião de uma de suas visitas a mim. Ela me queria com os pés no chão, o pensamento enfiado no cérebro, pura sensatez e proteção. Mas eu insisto na possibilidade dessa mulher e ela sentencia. — Você está ficando louco e precisa ser internado. — But I’m crazy for you – respondi sem fluência e com sotaque, daí ela riu e a zanga se desfez. Depois continuou a compor a sua tese de que eu devia ser mesmo doido, tantã, insano, maluco, eu que, não tendo muito o que fazer, aprendia inglês em manuais para amadores, maneira de ar o tempo. — Repete isso que você disse em inglês... — I love you so much! Mana Angelina abriu a boca num largo riso esticado cheio de graça e benevolência. Ela só me queria bem. Ficou o eco de sua risada, gostosa e macia como um algodão perfumado. E a imagem embaçada de sua face pacífica que há três anos não vejo e, naqueles
instantes, duvidava da minha sorte. Penso que padecesse por saber dos meus anseios: para ela, era utópica a possibilidade. Ainda consigo lembrar do seu humor alterado ao me considerar mentecapto, aquele jeito impaciente de não acreditar nos meus sonhos. Minha irmã não crê na mulher entrando por esta porta. Desde que eu me instalei nessa cadeira de rodas, a relação dela comigo se desenvolveu no sentido de não contribuir para o meu engano. Eu sei da minha condição e das desvantagens que eu levo, especialmente porque dispenso o esforço, esse prelúdio da sedução, eu simplesmente quero que a dona do pedaço apareça. Quem me conhece sabe o quanto sou sincero. Quem me conhece – e são poucos – sabe o que penso e sinto. Sinto solidão de amor e vazio de gente. Contudo, eu sinto que ela vai chegar. Se o fato de eu não andar é uma ameaça, se a carência exacerbada é outra ameaça, se a agem do tempo é a terceira ameaça, o que resta a um paralítico que não se atrai pela vida fora de casa? Da porta para dentro, a habitação do amor. Quero o seu cheiro misturado com gordura de cozinha. Quero a sua presença, ainda que fragmentada por tantos cozinhares e lavares e ares. Quero a sua raiva nos momentos em que o casamento se mostra imperfeito. Quero a sua candura quando o corpo se quer satisfeito. Quero a sua gula, o seu cansaço, a sua vaidade. Quero me sentir vivo diante do medo de ser abandonado. Quero vê-la entrar e sair, levar sacolas, trazer compras, pagar contas, e eu certo de sua volta. Estou quase imóvel nesta cadeira e não curto ir às ruas. Não penso em ir procurá-la, pode ser que não a encontre logo de cara, e isto é mais angustiante do que esperar, pois, procurando, a brutalidade da minha limitação se agiganta. Esperar tem certo conforto. Eu a desenho, paciente e frenético como um pintor, e me alimento no esconderijo do casulo, cápsula de teto e parede, ostra. Penso em esperá-la porque não é possível que nenhuma dessas todas um dia não resolva vir estar comigo. Tenho algum dinheiro e deixarei herança. Tenho alguma esperança, there’s hope! Enquanto isso, máquina lava, fogão cozinha, transito pela casa sentado nesta cadeira de rodas, pela sorte que não me foi a tetraplegia, mas a paraplegia. Se fosse aquela, eu estaria liquidado, não haveria esperanças, no hope. Mas meus braços me alimentam fisicamente, dão combustível aos movimentos minimamente necessários para a condução desta minguante vida.
Não sinto pena de mim nem desejo que sintam. É só um modo de viver, uma maneira de estar no mundo. Além do mais, não sou tão asqueroso para que não me queiram. Peçam uma foto minha à minha irmã do Maranhão, ela tem. Beijo bem. Amo bem. Sei muita coisa dos tempos quando minhas pernas caminhavam. Do corredor, eu visualizo a madeira antiga e envernizada. Ela vai chegar por aquela porta. Já faz tempo que eu espero. E eis. Meu Deus! A porta se abre e as mãos da mulher não estão vazias. Trazem sacos de supermercado. E uma sacola de viagem. Hospedagem? Me olha e sorri. Pergunta se estou bem. O sotaque não é desta terra aqui. Nem nunca a vi nos tempos em que andava sem a cadeira. É mulher determinada e corajosa, pois abriu a porta. E estou louco para indagar como sabia de mim: — Você me conhece? Ela me olha, deposita a bagagem no chão, as compras sobre a mesa. — Não basta que eu tenha chegado? Silencio pois de fato bastava que tenha chegado. Estão dispensadas as excessivas e inúteis formalidades, o banal movimento das coisas. Basta o que basta. Que ela entre, se aloje, saia, retorne, presença viva. Quero o medo de perdê-la porque aí saberei que é amor. Quero conquistá-la porque aí saberei alguma coisa. Não sei o que saberei. Mas não importa. Importa o que está, não o que seja. — Deixa-me ver... O nosso quarto deve ser este aqui, acertei? Nosso? E foi entrando, desbravando as matas. Dona de cabelos grandes, uma selva esta mulher. Foi entrando e exalando por toda a casa um perfume de madeira. O andar ondulante e malicioso como serpente se enroscando em árvore. — A viagem foi cansativa, demorou mais do que o previsto. Esta cozinha está precisando de uma faxina. Aliás, a casa inteira! Deixa-me ver o que tem no
armário para o jantar. Ainda bem que eu trouxe algumas coisas. Abre o armário, depois a geladeira, faz cara de descontente com o que vê, vem até mim, beija minha boca, não ousa a língua, apenas um selinho, e sai. Volta depois como outras compras, prepara o café. Não vem me servir. Ajeita a mesa, as canecas, os talheres, os pães, o bolo, o queijo, os ovos, e me chama. Não bonita, antes intrigante. Acho-a tão bonita porque é o próprio milagre. Cheirosa. É uma Gabriela. — Qual o seu nome? Olha-me e sorri: — Gabriela. Nada respondi e disfarcei o riso. Nesse contínuo, fui me servindo das coisas que ela aprontou e demonstrei agrado por tudo. Mais tarde, a noite já bem instalada, fomos para o quarto. Ficar na quentura da cama aconchegados, mistério e bobagem. E, como é comum aos namorados, perguntei: — De onde você é? — Isso importa? Não importava mesmo. Saber para quê? Deixemos a brincadeira se instalar. Os contos de fadas são assim, não se prestam às semelhanças. O crível está dispensado. Ela ficará comigo e talvez eu desconfie de suas inúmeras idas ao supermercado ou ao banco, quando chegar o instante em que essas idas se tornem constantes e prolongadas. Talvez se trate de um amante, mas não demonstrarei a minha suspeita. Ao contrário do Bentinho, eu não tenho pernas para andar. Ao contrário do Bentinho, sei repartir o amor. Se ele não conseguiu esconder o ressentimento, eu conseguirei. A nossa semelhança só se manifestará se um dia essa que agora aqui está se desertar. Não porque eu não tenha conseguido ar a mulher feita para mais de um homem, mas porque a vida possui inusitados. Se ela me deixar,
serei um Casmurro numa casa feita à minha imagem, e viverei uma solidão maior que a preexistente a ela, saboreando o vinho dos amantes que padecem na euforia do desconsolo. Eu desconfio de toda a verdade por trás da aparência, mas evito mergulhar em pensamentos que possam me mostrar as substâncias do que elas são feitas. As aparências servem aos combinados, àquilo que se estrutura sob a forma de conchavos. Criei a minha forma, a minha estrutura e os meus conchavos. Se não fosse assim, como sobreviveria? Desconfio de que seu nome não é Gabriela. Minha irmã Angelina sabia da minha vontade de namorar alguém com esse nome. Desconfio de que essa moça apenas quer ser o que eu desejo que ela seja. Durante a intimidade, foi um amor tão gostoso – o sexo tântrico. Não resta dúvida: eu a quero junto a mim, personagem que seja. E como as formalidades solicitam que agradeçamos a quem nos presenteia, eu dou obrigado. Obrigado, querida irmã, muito obrigado a você, que mora no Maranhão, mas não esqueceu as margens de cá. Penso que foi você que me felicitou essa dádiva, enviando-a para mim, você que tinha a chave da porta pesada e a transmitiu a ela. Sei também que nunca irá itir essa benevolente ação, que tem a cara do seu rosto. Não dizem que o segredo é a alma do negócio? Evitemos o aprofundamento das indagações. Rejeito as dúvidas eternas transformando-as em verdades, as que me interessam. Deixemos as dúvidas para o Bentinho, eu não as quero. Não sei quanto pagou a ela, se lhe prometeu a minha herança. Está tudo certo, não há erros. São linhas escritas para um conto que não é de fadas. Deixemo-la desbravar as matas, deixemo-la escancarar a porta. Se tiver o cuidado como tem tido até agora, sempre será possível o inverossímil. Transmutemos as incertezas, elas viram verdades. Preservemos o mistério e finjamos que não o vemos, eis uma possibilidade de vida. Ela é mulher e entrou por esta porta, me serviu o café e o jantar, não reparou no quadro pendurado na parede. Está aqui e não a esquecerei, como não esqueci a voz da minha professora. Neste mundo áspero e sem ficção, bem faz quem ainda acaricia o devaneio. Ouço o eco macio do seu sorriso, mana Angelina. Seu aborrecimento com a
minha ilusão, a minha mania de querer ser feliz sob as aparências. Capitu é uma ficção. A vida muitas vezes também é. Aqui ao meu lado, Gabriela. Os medos e as vontades. O cotidiano. Esta cadeira, estes braços que a movimentam, este homem. Esta cama. Esta mulher! O sexo tântrico. O que importa? O que importa? Obrigado.
DEPOIS DA SENSIBILIDADE
Uma colega de escola me perguntou certa vez se eu via o mundo exatamente como ele é. A princípio não notei a gota de maldade diluída na indagação, até que, enfiando o meu olhar dentro daquele olho vesgo, convalesci ao notar que seu desejo não era o de aproximação, ou o de quem quisesse se inteirar dos processos pelos quais am uma pessoa com síndrome de Down. O seu desejo era tão somente o de estabelecer uma tortura. Ela tinha o olho vesgo e uma adolescência de crueldades. Na escola, a sua brincadeira preferida era alfinetar o que possuíssemos de frágil, constranger-nos diante dos outros. E, por mais que a evitássemos, ela sempre encontrava uma brecha, um jeito, um instante delicado para enfiar o seu alfinete. Para a minha proteção, eu desafiava-a, encarando-a, reagindo. No lugar da indiferença e da apatia, o enfrentamento. Com essa atitude, ganhei notoriedade e fui acolhida na caravana das que também eram por ela constrangidas, o que me levou a conhecer Lia. Naquele grupo, todas as garotas se ressentiam da menina de dezesseis anos que tinha o olhar vesgo e a sádica mania de persegui-las. Foi a primeira opositora da minha vida. A segunda, um bocado mais íntima, torturou-me de modo mais ardil. Se a garota de olhar vesgo demonstrou sua índole por meio de gestos e comportamentos concretos, logo me deu a possibilidade de defesa porque era uma inimiga declarada. Mas a outra foi retirando a minha defesa como quem arrancasse lentamente pétala por pétala de uma flor. O meu nome é Eulália. Eu gostaria de começar essa história assim: era uma vez uma menina chamada Eulália. Ou então: esta é a história de uma garota muito legal chamada Eulália. Ou ainda: Eulália vivia satisfeita numa casa onde reinava a harmonia. Mas não sendo este um conto de fadas, mais sensato seria começar assim: meu nome é Eulália e esta história possui alguns arranhões. Todos nascidos do instante em que mamãe transformou a desconfiança em certeza...
Ela nos encontrou deitadas, prontas para dormir. Mamãe, cujo olhar nada tinha de vesgo, veio nos dar boa noite só para se certificar ou flagrar um descuido, um rastro maior de intimidade, qualquer movimento que nos denunciasse. O que não foi difícil perceber, pois, no instante em que ela empurrou a porta do quarto sem bater, Lia, deitada ao meu lado, ava as mãos nos meus cabelos. Carinho um tanto ambíguo, eu sei, uma vez que esse podia tratar-se de um gesto isento de qualquer lascívia, porém, quando duas mulheres se querem mais do que amigas, a atmosfera que as rodeia não lhes garante a neutralidade insuspeita. Foi essa atmosfera que fez com que mamãe me doasse aquele olhar de censura eternizado em minha memória, bem como aquele dissimulado “durmam bem” falado depois de um ofensivo silêncio de chumbo. O pesado silêncio nos antecipou a opinião de mamãe sobre o nosso envolvimento e com ele fomos – eu e Lia – dormir a nossa primeira noite de aflição, abraçadas e temerosas do futuro. Mas o futuro não era uma estação no porvir, ele já estava ali, áspero, adiantado e pontual, diluído naquele pão que não foi comido. Porque na manhã seguinte, durante o café, os verbos utilizados por mamãe em vez de afetuosos dedicaram-se a desenhar uma linha acusatória: — Lia, ando observando que Eulália está com o rendimento mais baixo do que o do semestre ado. Tenho certeza que isso se deve ao excesso dos encontros de vocês. De modo que vou precisar limitar senão proibir completamente a sua presença aqui em casa. Eu e Lia éramos muito envolvidas com nossa aprendizagem escolar; e acusarnos de estarmos negligenciando os estudos era uma verdade infundada. — Mamãe, – tentei uma defesa – apenas em Biologia e História eu tirei três décimos a menos do que na unidade anterior... E minhas notas continuam excelentes! — Não estão excelentes quando em duas disciplinas você tira três décimos a menos do que na unidade anterior! Eu te dei uma meta e você não a cumpriu. Quanto a você, – virou-se para Lia e encarou-a por dois segundos antes de prosseguir – vou aconselhar sua mãe a acompanhar mais de perto os seus estudos. Dito isso, mamãe retirou-se abrupta da mesa. Eu e Lia ficamos ali, paradas, olhando-nos sem apetite, as emoções partidas. Ameaçadas, tínhamos um amor
para salvar. Ameaçadas, quase não sabíamos como lutar. Ameaçadas, tínhamos a limitação de sermos ambas portadoras da síndrome de Down. Vi lágrimas brotarem dos olhos de Lia, que, repetindo mamãe, também se levantou sem nada dizer e saiu. Não a culpo. Sei bem o que é ameaça: quase morri uma vez. Quando mamãe descobriu que, ao nascer, eu necessitaria para sempre de cuidados especiais, chegou a planejar o aborto. Mas o medo de ter complicações e morrer junto comigo fez com que desistisse. Papai, todavia, decidiu separar-se dela. O fato de ela não ter concretizado o que seria um crime, mas premeditado, denunciou a natureza corrosiva com a qual ele desistiu de conviver. Ao que tudo indica, quando mamãe não levou seu projeto adiante – o de extrair a vida que carregava em si –, acabou por criar um projeto maior: o de extrair a vida que eu carregava em mim. Expulsa de seu ventre não para a morte, mas para a vida, eu carregava a maldade de ter encarnado em corpo ruim, era o que ela julgava. Oh, cromossomos, por que não se combinaram na estrutura perfeita? Por que me presenteastes a trissomia 21? Por que me destes essa cara redonda, os cabelos escorridos, os olhos esticados e esse ar de pobre coitada?! Por que me escolhestes? Eu sei, eu sei, eu sei. Desculpem-me este momento de fraqueza, eu sei que vós sois perfeitos, vós sois a natureza das coisas. Eu sei que a ideia é exatamente essa, a de parecer que erraram. Não erram. Estão apenas trabalhando – em disfarce – para fazer com que cheguemos ao amor por meio do relacionamento com as diferenças. Sim, não há erros, mas desígnio. Assim vós fazeis das diversas humanidades um modo de conexão. Eu: uma humanidade. Completa. Down e lésbica. Perfeita. Embora para mamãe eu fosse um estado de imperfeição em constante ascendência, de vez em quando eu ouvia-a chorar ao telefone, em conversas com as amigas, a infelicidade de sua condição materna. Se do que deveria ser par eu migrara para a trissomia, possuo uma gravidade insensível à cura. Sou uma boneca quebrada. Assim mamãe me fez sempre sentir. Mas agora havia uma diferença: eu amava. Então a boneca quebrada era uma boneca quebrada que amava, e isso mudava tudo.
Mudava tanto que havia um detalhe que em outro momento de minha vida não faria tanta diferença, mas naquele contexto tivera uma importância relevante. Tratava-se do meu cabelo. ei a amá-lo cada vez mais porque sempre que estávamos juntas era por meio dele que eu recebia o afago mais comum e regular de Lia, as suas mãos eando pela minha cabeça, deslizando pelos fios, improvisando penteados, fazendo cachos com os dedos. A percepção dessas carícias, todavia, fez nascer em mamãe um desejo sádico de vingança. Na tarde daquele mesmo dia em que ela determinou o limite do convívio entre Lia e mim, convenceu-me de que meu cabelo precisava de um corte, e sua voz era tão mãe, mansa e agradável, que eu lhe quis amizade: — Vem que mamãe dá um jeito nele... Carente e obediente, eu fui. E mamãe decepou meu cabelo. Fingindo ajeitar, ela estava a cortar o mais que podia, de modo que para desfazer todos os erros que cometera foi necessário ar a máquina. Não sei se as lágrimas que deixei escorrer – copiosas – fizeram mamãe arrepender-se do que praticara, mas sei que ela se afastou chorando e se perguntando onde foi que errara. Como se sabe, as mães nunca desistem de curar os filhos. Ela quis me curar. Não da síndrome, por saber impossível, mas da minha inclinação para o amor, que julgava tratar-se de um vício. Tenho dezoito anos e não contei: aos catorze, eu namorei uma menina – que também tinha a síndrome – por quem me apaixonei. Quando mamãe descobriu e vislumbrou o tamanho do nosso envolvimento, mudamo-nos de cidade, ela veio abrir o salão de beleza aqui nesta que agora moramos. Daí eu saber que uma nova batalha estava começando. Uma batalha ainda mais pesada, porque desta vez mamãe resolveu me presentear novos amigos. Trouxe-me rapazes com Down, rapazes cegos, outros mudos, outros surdos. Buscou associações e parcerias, perto e longe de casa, a fim de encontrar algum rapaz pelo qual eu pudesse me interessar. Fui proibida de me aproximar de garotas. Elas não faziam parte do acordo. E como eu não me interessasse por nenhum deles, num ato de desespero – prefiro julgar que tenha sido um ato de desespero –, mamãe fez com que um rapaz cego, semanas depois, viesse à nossa casa e dormisse comigo. A cegueira dele o impediria de ver a minha cara redonda e meu cabelo ainda esquisito; e eu deveria, ainda de acordo com mamãe, fazer com que ele imaginasse que eu fosse uma princesa.
— Sabe, filha... poderá parecer estranho de início... mas deixe... ouça o que ele tem a dizer, deixe-se levar pelas palavras dele, pelo momento de intimidade, entende? Vocês poderão se dar muito bem... Fragilizada, eu queria fazer mamãe feliz, dar a ela uma boa noite de sono, contribuir para o sossego de sua alma, ainda que desassossegasse a minha. Desse no que desse, eu não aguentava mais ser a culpada do infortúnio daquela que me deu a vida: estátua, deitei-me com o homem cego, enquanto a minha alma – embalada pelas lembranças – correu a se deitar na cama de Lia. A infinita noite foi marcada por palavras, sussurros, carícias e ataques ao meu corpo. Foi noite insone e violenta, em que o cego apalpava sob duas escuridões, a dos seus olhos e a do quarto, o frio corpo da princesa que sonhava com outra princesa. Embora frio o corpo da princesa, quente a ânsia voraz do cego. Embora longe o pensamento da princesa, no fundo ela esperava, com os olhos abertos no escuro, a cura que a libertaria. Não me curei. Pela manhã, tendo o rapaz cumprido sua obrigação e se retirado, mamãe esperava com aflição que eu falasse do milagre. Ela esperava um milagre. Coitadas, ambas, ela e eu. Eu também esperei – durante a infinita noite – a grandiosa chegada do milagre. No fundo, e apesar de mim, eu desejava ser invadida pela coisa que deixaria mamãe satisfeita com a minha existência, uma vez que para ela já bastava o peso da síndrome. Mas tudo é como é: virtualidade, espírito, essência. Uma pedra possui essência de pedra, e ser pedra consiste em carregar pela vida o pesado silêncio de um corpo de pedra. Ainda que se molde o corpo dessa rocha, como fazem com os brilhantes, existe algo nela que permanece inalterado. E assim será por meio de toda forma que ganhar, seja lapidada pela natureza ou pelo homem. A água, em estado de gelo ou vaporoso, não perde a essência de ser água. Ela transita de uma condição a outra e permanece água, atravessa todos os ciclos e jamais elimina a formulação que faz com que seja água. Com bicho e planta também é assim, e com gente não é diferente. Foi aí que mamãe errou. Quando quis me adestrar, eu não era bicho. Quando lapidou meu cabelo, eu não era planta. E ainda que eu fosse bicho ou planta, eu conteria a essência individual e intransferível que faz de cada ser um universo. Isso não
significa, no entanto, que nosso universo esteja livre das tormentas. A somatória das procelas com as realizações compõe a nossa história. Assim é que lembro da cara palerma e da vontade incessante daquela que insistia em me normatizar: — Não se preocupe, filha, ele virá mais vezes. Com o tempo você pega amor. Nem sempre as coisas são pra já. Tudo vai dar certo, você verá. Desanimada, eu olhava para a cara embasbacada de mamãe com tanto asco que senti raiva de mim. Eu queria odiá-la, mas no fundo eu só conseguia transformar a repugnância em piedade. Era da minha essência não conseguir odiá-la, embora o desejasse. Eu sentia, sim, eu sentia, eu sentia que estava perdendo a minha namorada para aquele horror de realidade. Eu não sabia se voltaríamos a nos ver para além da escola, se ela e eu seríamos transferidas de instituição, se mudaríamos de cidade, mamãe era capaz de tudo. Não sei se teríamos novos instantes de delicadeza como aqueles quando ela, bem pertinho de mim, a respiração próxima, enfiava os dedos nos meus cabelos, éramos pura essência de nós. Mamãe, confiante no milagre, articulava que o cego deveria voltar à minha cama. Mamãe era a imagem do alter ego da rejeição. Não me queria Down, não me queria lésbica. O que queria de mim? Um fantoche dos seus desejos? Naquele instante em que ela projetava o retorno do cego, e principalmente naquele instante, eu vislumbrei em sua face a face da menina dos olhos vesgos me perguntando se eu via o mundo tal qual o mundo é. E a resposta – que ficara em suspensão – agora eu a lanço ao vento: sim. Eu vejo o mundo exatamente como ele é, inóspito e com toda a sua violência.
ESTER
Acordou como se comesse maçã e observasse um dia claro. Não era a felicidade nem mesmo a sua total ausência. Talvez fosse mais próximo de uma neutralidade. Mas quantas vezes os aparentes estados de neutralidade escondem certas potencialidades? Se assim era, Ester parecia não saber. E saiu da cama depois de ter deixado os lençóis ainda cheirosos acariciados pelo solitário corpo. A maciez e a fragrância eram de paz. Deixou a carne aproveitar daquele instante em que a solidão é mais amiga do que uma ameaça. Lá no outro quarto, as crianças dormiam. Avistou o clarão por trás da cortina e entregou-se impotente. Era bom às vezes: os fins de semana são como intervalos. Felipe não apareceria. Havia duas ou três semanas, nem lembrava com exatidão, que não telefonava, mas isso nem doía. Sentia mais pelas crianças que não cansavam de perguntar pelo pai. - Não sabem que ele está viajando? E bastava. A Ester bastava saber que ser caminhoneiro exigia do marido tempo demais. Era muita estrada a percorrer, pouco tempo para a família. Certa vez uma amiga tentou convencê-la de que, por mais que a profissão exigisse, a ausência demasiada de Felipe insinuava-se um tanto suspeita. Ester não considerou. Evitando a ruína, preferiu a solidez dos dias brancos. Sobre a mesa uma bandeja com vermelhas maçãs. Olhou-as. Tão bonitas! Tão atrativas! Até achou Deus cruel por condenar Adão e Eva. Como resistir a uma coisinha tão delicada? Tão púrpuras, tão bem desenhadas! Ritualizou: não lançaria sua mão brutalmente incivilizada e objetiva no ato concreto de apanhar uma e mordê-la como a falta de sutileza com que um macho às vezes se apodera de uma fêmea. Não. Precisava, porque era bom, cobiçá-la, conhecê-la, repará-la. Por isso prostrou-se sentada na cadeira diante das maçãs sobre a mesa como
quem contemplasse a poesia de um quadro. Minutos depois, afastou-se e foi até a varanda com uma sensação de vazio e ao mesmo tempo de plenitude, saboreando no abstrato a maçã e irando o dia branco de puro sol. Foi quando avistou o homem na varanda vizinha. Era a primeira vez que eles se viam assim tão de frente. Ester corou. Das outras vezes, era apenas ela quem, por trás das cortinas, o observava, curiosa pelo vizinho que há um mês fora morar ali ao lado. Normalmente saía de manhã, voltava à noite. Casmurro, homem muito sério. Aparentemente solitário. Duas vezes ele a avistou de longe, quando voltava do trabalho, mas coincidia – coincidia? – de ela sair da varanda e tomar o interior da casa. Só não sabia quantas vezes ele a reparou furtivamente. Agora, aquela proximidade de metros exigia dela um cumprimento. Acenou-lhe com a mão um tímido oi e esquivou-se mais uma vez para dentro do lar sem marido. O homem não sabia, mas Ester era uma amiga anônima a lhe dedicar tempo e atenção. Pelas músicas que ele escutava, ela foi compondo o vizinho recente. Pelo andar que ele tinha, pelas roupas que vestia, pelo corte de cabelo, pela ausência de mulher e de filhos e principalmente pelas canções que ele ouvia, pelas mesmas músicas que ele muito repetia, Ester foi caracterizando o homem sozinho, saudoso, romântico e apaixonado. Ali de perto, os olhos próximos, Ester sentiu-se como quem acabasse de cometer um crime e fora apanhada em flagrante. Pior: a fixação dos olhos dele pareceu desnudá-la, sabê-la. Ester não era mais a amiga anônima, mas uma correspondente suspeita. Quando ele acenou, ela enrubesceu, sorriu sem graça, e foi ser mãe. Entrou afobada no quarto das crianças, e elas dormiam com a inocência de quem na infância nada sabe das ameaças da vida. Sorriu para elas, tão suas, deixou-as continuar o sono matinal. Saiu do quarto, seguiu para a sala, sentou-se no sofá de frente para a televisão. Olhando assim a casa repleta de móveis estagnados, pensou no marido, em sua ausência, em sua indiferença, e na voz da amiga insinuando possíveis infidelidades. Não fosse comportamento corriqueiro, aquele grande espaço de tempo sem dar as caras, até ficaria receosa de que algo de ruim pudesse ter acontecido. Mas ela sabia que uma hora qualquer ele apareceria como quem houvesse saído de manhã e estivesse retornando no fim da tarde, e ela o amaria com bandejas e perdões. As crianças acordaram, e Ester dedicou-se a elas. Depois do café da manhã, resolveu levá-las ao clube para um banho de piscina. Já acomodados em uma mesa, o filho mais velho observou que na outra mesa havia um casal e duas
crianças, no que indagou: - Por que papai não vem, mamãe? Aturdida pelo questionamento do filho, respondeu meio trôpega, mantendo também o olhar fixo na outra família: - Ele virá. Outro dia. Da próxima vez. Ester, reparando nas pessoas que ali se divertiam, todas aparentando excessivas alegrias – talvez uma piscina fosse motivo suficiente para a felicidade –, recordou novamente a voz delatora da amiga: - Não é bem estranho que depois de ar tanto tempo fora, viajando... ainda que seja a trabalho... ele chegue em casa e nem lhe procure? Como querendo espantar o pensamento ruim, ela tentou um diálogo insustentável com os filhos, depois sugeriu que eles fizessem um lanche. Incentivou-os com a paz já ameaçada: - Vão, vão! Vieram aqui pra tomar banho ou pra ficar na mesa olhando os outros? Quando a esposa se afastou, o marido da mesa próxima encarou-a enquanto mastigava batata-frita. Ester, outra vez, desconcertou-se. Tinha a impressão de que as pessoas a percebiam na intimidade. Ou talvez fosse a sua timidez que a condenava. Mas os olhos, como os daquele homem agora, pareciam fazer uma leitura que dizia mais do que ela revelava. Era assim que necessitava fugir, quebrar o espelho para que ele não refletisse o espírito do pensamento. Pediu às crianças que se adiantassem, precisava chegar a tempo de preparar o almoço. A esposa da mesa próxima retornou, e o marido desviou-lhe o olhar. Ao chegar em casa, sentiu-se como num lar desabitado. Depois do almoço e da sesta, calculou o peso daquela tarde de sábado. Quanto tardaria ainda de acabar! Era como se quisesse pular o vazio e avançar o espaço seguinte que porventura pudesse ser preenchido. Mas amanhã seria domingo, e os domingos são ainda mais vagarosos. Decidiu ir ao zoológico, mas o céu se anunciou inseguro, nuvens pesadas foram se aglomerando, e logo uma chuva torrencial desabou. Sábado ainda mais indigesto.
Na casa ao lado, um silêncio de ausências. Ou um silêncio de sintonias. A amiga anônima relembrou o amigo forasteiro enquanto a chuva lhes molhava os jardins. Chuva forte e constante. A tarde já era noite, assim. Mas quando a noite se anunciou verdadeiramente, e a chuva resolveu dar uma trégua, permitindo apenas que uma garoa beijasse as ruas, na casa ao lado uma melodia começou a tocar. Ester encontrava-se folheando uma revista, tentativa de esquecer-se. A música logo lhe chamou a atenção. Era o amigo desejando corresponder-se. Ela devia estar pronta para a sintonia, mas algo já a incomodava. Depois da proximidade do olhar, anseios e impulsos eram combatidos por uma autodefesa já indefesa. Ester correu à varanda para reparar na chuva. Talvez fosse a chuva. Talvez fosse mais que isso. E a canção vinha na voz de Ângela Maria, num canto de outros tempos, saudar aquela paisagem: numa noite em que a chuva chorava lá fora... Eu chorava também porque alguém fora embora... O lamento da melodia fez Ester sentir-se um tanto mais desalojada, porém necessária àquele homem que, na casa ao lado, certamente gritava um nome qualquer. Aquele homem de quarenta e poucos anos, de rosto forte, de beleza rústica, transmitia a Ester uma ânsia de enigmas. Ângela Maria chorava sua Noite Chuvosa, e os versos lambiam as orelhas de Ester como um beijo doce de amor: nunca mais eu chorei, nunca mais, e agora?...Eu até acho graça da chuva lá fora... Findada a música, ele a repetiu. E Ester parecia saber. Parecia saber. Do chamado. E a tristeza não mais existe... Abriu o portão, atravessou a garoa, bateu na porta do vizinho. Tão logo ele prostrou-se a sua frente, viu que o homem observava o vestido molhado já um pouco colado à sua pele. E a tristeza não mais existe... Ester não sabia o que dizer, o homem nada perguntou. No entanto, lentamente, ela foi se aproximando... até que, rápida, beijou a boca forasteira. Dois estranhos mundos que se tocavam: fronteiras que se interligavam. Um beijo molhado. O confuso erótico da sensação de levitar na gravidade alheia. Três segundos que a lançaram na dimensão profunda. Deu-lhe as costas e voltou para casa – a casa já habitada por fantasmas –, trazendo o molhado dos lábios. Foi até à cozinha porque não sabia aonde ir. Olhou a bandeja de maçãs e, despida de rituais, vendo-as todas vermelhas, todas bonitas, apanhou uma, sedenta e objetiva, e mordeu-a com avidez.
TRÊS ATOS DE QUASE AMOR
Esta história acontece em três atos. O primeiro, mais prosaico, dá-se nas exterioridades e chama-se O Rosto: Buzinas de carros impacientes poluíam a avenida na tarde comum. Automóveis aglomeravam-se no tumultuado trânsito da cidade naquela hora em que os ônibus vão cheios, conduzindo ageiros de volta para casa. Semáforos quebrados acabavam por tornar o confuso espaço ainda mais caótico e buzinas histéricas formavam uma espécie de coro em sinal de protesto. Os ônibus iam cheios e quase parados. Os carros pequenos, com seu número limitado de pessoas, iam quase parados. Em meio aos veículos, vendedores ambulantes ofereciam produtos aos gritos. Elisa pediu à amiga que desligasse o ar-condicionado e abaixou o vidro ao tempo em que se justificava: - Não o engarrafamento. Fico tensa! Preciso fumar! - Acho que você devia parar, amiga. Vai estragar a voz. Você, que vive da música... Elisa fez uma breve associação entre ser cantora, seu sonho infantil, e sua atual realidade. Cantar – o que antes fazia com extensão de prazer – tornara-se monótono, pois a obrigação sobrepujou-se à arte. Era preciso sustentar-se, pagar contas, comprar cigarros. O som que fazia de sexta a domingo em famoso bar concedia-lhe o dinheiro; ia perdendo, no entanto, a magia. Sentia-se quase obrigada a cantar e nenhuma arte se consagra pela obrigação, considerava. Também havia aquele vazio que nem a música nem os amigos ultimamente preenchiam. Saudade de alguma coisa que se distanciava. Mas não há filósofo que diz que a saudade antes seja presença? É por estar na gente que dói. Assim, a falta não pode ser distância, posto que seja aproximação. A amiga fazia comentários que Elisa não processava. Ensimesmada, alimentava pensamentos que não se completavam, interrompidos pela sucessão de novos
pensamentos que acabavam novamente fragmentados pela falta de coesão. O aluguel venceria no dia seguinte e não havia saldo na conta corrente. Quando adolescente eram outras perspectivas. O patrão pediu que renovasse o repertório. O último namorado a abandonara por outra. Antagonismos. Soprava a fumaça e gostava do cheiro. O trânsito continuava lento e Elisa reparou no ônibus que se posicionou na faixa da direita. Pessoas espremidas avam seus rostos cansados, gente que dependia do transporte coletivo. Transporte coletivo que conduzia ageiros muito além do permitido. Em meio à fadiga do tumultuado, um rosto se destacou. Um rosto que também se ava e cujo olhar escondia em seu cofre uma esperança. Um rosto de rapaz. Rosto comum, rosto bom. Esse rosto ia estreitado com seu cansaço; mas os olhos, que fisgam a liberdade da amplidão, são capazes de flagrar pontos interessantes. Elisa tinha o olhar concentrado naquele rosto. Acendeu um segundo cigarro e manteve o pescoço inclinado que era para não o perder de vista. Já o rapaz, olhando para baixo, também se ateve à moça. Esta, ofertando-lhe um sorriso, bateu a ponta do dedo no cigarro, livrando-se das cinzas. O rapaz ia apertado, grudado a outros calores, mas também conectado às insinuações do olhar que vinha de baixo, benzido com fumaça e oferecimento. Audacioso, devolveu o sorriso e, em seguida, notou que pessoas indiscretas já percebiam a correspondência. Elisa logo tratou de encurtar aquela distância. Ofertava a si ocasionalmente o que pudesse ser um destino. Quem sabe trabalhassem juntos e juntos pagassem o aluguel, juntos fizessem o almoço, juntos cuidassem dos filhos, juntos conhecessem o Egito. Pobre rapaz! – ageiro excedente do transporte coletivo. Fez sinal para que ele descesse e fosse estar com ela no carro. O jovem sorriu mas não reagiu; ela não sabia se porque não acreditava nela, se porque não compreendera, se porque a julgara insana ou se pela impossibilidade de conseguir agem em meio ao emaranhado de gente. A reticência do moço não suscitou inércia em Elisa, que pediu desculpas à amiga e desceu do carro. Misturou-se aos veículos, solicitou ao motorista que abrisse a porta do ônibus e foi ser mais uma excedente do transporte coletivo. O segundo ato vem das introspecções e intitula-se Cinzas. Se o anterior conservou algum humor por conta da atitude impetuosa da personagem feminina, neste a fotografia é menos colorida e está sujeita às rubricas e aos monólogos.
Ali está Elisa. No tapete da sala e por entre almofadas, copo de bebida junto ao cinzeiro repleto de cinzas e de pontas de cigarro. Os cabelos presos à cabeça por uma caneta e uma camisa longa feito vestido. Os olhos foram desamparados pelo brilho ostensivo que possuem aqueles que amam e são presenteados pelo mesmo brilho. Fagulha apagada, debatia-se Elisa na madrugada, tendo o rapaz, cujo nome agora já sabia – Emanoel –, deixado seu apartamento há algumas semanas. Deixara seu apartamento há algumas semanas e levara consigo a centelha de vida. Consolavam-na o álcool e a fumaça. Foi de quase amor. Quando atravessara o torniquete e enfrentara a falta de espaço, idealizava, senão o puro amor, pelo menos um relacionamento progressivo. Seus 37 anos não se amedrontaram diante da incipiente experiência de quem possuía 22. Como convém a namorados principiantes, o estudante de engenharia dedicou-lhe horas a falar-lhe de suas dificuldades financeiras para cumprir os estudos, de sua família, de momentos inesquecíveis da infância, de seus sonhos. Elisa fez-se ouvinte atenta, amiga interessada em suas histórias, mulher entregue. Para confortá-lo, os seios fartos, os beijos repetidos. adas três semanas, o rapaz, viciado, sempre regressava. Um, dois, três meses. Emanoel tinha fome, Elisa preparava-lhe molhos para o macarrão engolido com felicidade. Depois dos beijos, a sede e então a lenitiva água. Se estava exaurido, Elisa tomava do violão e a bossa devolvia o repouso à virilidade que se alquebrava. Emanoel grávido de confidenciar, a cantora deleitava-se em ouvirlhe a meiguice da voz, o jeito carente de quem necessitava de frequentes carinhos. Envolvida pelos verbos e afetos, Elisa principiou a fazer planos de uma vida conjugal. De início, nas suas reservas, foi tecendo-os individualmente, segura que não estava de que podia revelá-los. E quando os revelou para os acréscimos que possivelmente o companheiro faria, avistou apenas o desmoronar lento e irreversível da frágil muralha que haviam edificado. Ruía o concreto impalpável amor. Amor? O quase amor. Porque, extraído o sangue das horas, elas já não pulsavam com o fervor dos áureos dias, e Emanoel foi espaçando os encontros com a cantora, que agora já mendigava a presença que se fazia escassa. Ouvia promessas de que no dia seguinte ele apareceria, mas no dia seguinte Emanoel precisava preparar um trabalho ou então acontecia uma emergência com algum familiar e solicitavam a ajuda dele. Para surpresa de Elisa, às vezes ele aparecia sem avisar; depois ou a aparecer raramente; até que deixou totalmente de aparecer na mesma
ocasião em que seu celular anunciava apenas um desligado ou fora de área. Violão no colo, a cantora cantava saudades. Em sua frente, a parede branca. Em sua frente, a parede branca que era como o corpo branco de Emanoel. Em sua frente, a parede branca em que Emanoel rabiscara o mesmo desenho da tatuagem que ele possuía no braço. O desenho da tatuagem que ele possuía no braço e que para se completar carecia de outro corpo que permitisse a outra metade do desenho. Elisa faria. Mas a intenção sofreu a fratura do tempo. Emanoel se foi e levou o desenho no braço. Ficou o rabisco na parede e o braço dela sem o traço, a incompletude. No consumo desenfreado daquele amor, não concebera seu precoce fim. Não sabendo onde ele morava, não podia ir ser patética. Ainda que soubesse, fosse e ele a aceitasse, de que adiantaria render-se à mediocridade da volta se ações e palavras não abalariam uma consciência já livre da afetividade? Alcançava assim a tola sabedoria de que o amor é um começo e um fim. E quando, depois da madrugada, a manhã trouxe o dia, Elisa entregou-se esgotada ao conforto da inconsciência. O terceiro ato nomeia-se Ciclo e começa no instante em que Elisa acorda no meio da tarde. Corpo pesado, cabeça pesada, olhos abertos e parados fitam o teto parado. O que é o tempo? O tempo só confirma os ciclos. Se o tempo é transitório, ele não a o vazio. Deseja estar prenhe de renovada composição. Certeza de que o tempo é contínuo e de que ele refaz as coisas. Certeza de que as coisas de repente se sabem frequentemente novas porque o tempo é irmão da busca e esta não cessa de, juntamente com o tempo, edificar novo começo. Naquela noite cantaria feliz porque estava triste. A falta que sentia era presença forte: a ausência não é aproximação? Animaria a garganta seca para chorar música. O canto seria um pedido ao tempo. Ergueu, enfim, o corpo pesado da cama que insistia em tê-lo e, ligando o rádio, sintonizou em uma das estações. Tomar banho, disfarçar as olheiras, maquiar-se, encarar o dia, trabalhar. Enquanto se banhava, acompanhou com sua voz a canção que tocava na rádio. O locutor anunciou que em alguns pontos da cidade havia retenção no trânsito. Chamou um táxi e, em vez de pedir ao motorista que evitasse o trajeto que, segundo a estação de rádio, estaria congestionado, pediu-lhe justamente o
contrário, que fosse naquela direção. As cinco horas da tarde já se aproximavam e logo ônibus e automóveis deixariam as ruas tumultuadas. Pessoas cansadas estariam espremidas por trás de vidros opacos de sujeira. A fotografia diária. Quem sabe um rosto comum compreendido por ela como incomum se tornasse necessário. Quem sabe algum estudante carente e cheio de problemas. Quem sabe um adolescente afoito ou um viúvo na ânsia de permitir-se outra vez à vida. Quem sabe alguém que quisesse deixar na parede branca da sala o desenho de uma tatuagem. Quem sabe fosse ela a chave de alguma alegria. - Pelo visto, moça, esse engarrafamento não vai ser pra hoje... – sentenciou o taxista enquanto Elisa concentrava-se cáustica no objetivo pretendido. Pediu permissão para o cigarro, no que foi atendida e acendeu um. Os olhos atentos. - E o pior é que ninguém consegue resolver esse problema! - É verdade, o senhor tem razão, concordava Elisa, em tom distante porque seus olhos farejavam os olhos dos ageiros do ônibus que se posicionou ao lado. Excesso de gente na compressão diária. Certamente um rosto comum – ou raro de tão incomum, vai saber! – desejasse, em meio ao trânsito parado, à escassez de espaço e à rotina, ser cobiçado por uma mulher de 37 anos que subitamente lhe oferecesse, dentro de uma bandeja, a felicidade.
A MENINA
Foi no tempo das bibliotecas, quando caminhar até esses espaços públicos para tomar livros emprestados era hábito comum. E se elas – as bibliotecas – não deixaram de existir, também não se multiplicaram. Andam capengas, uma ou duas pernas a menos; e persistem com seus baús e relicários. Se as bibliotecas ainda persistem, já não se pode dizer o mesmo das cartas. Salvo algumas exceções, elas perderam o objetivo para o qual foram criadas. Por assim dizer, foi no tempo de quando o correio andava devagar e acendia no remetente aquela vigorosa chama de curiosidade: adivinhar o momento em que seu destinatário receberia o papel bordado com as bem desenhadas letras. Quanto ao destinatário – esse ponto no universo –, vivia sempre em suspensão tentando adivinhar se naquele dia o carteiro chegaria e, se chegando, lhe estenderia algum papel. Foi no tempo das cartas. Quando elas inspiravam poetas, amantes, jornalistas, fazendeiros e políticos. Toda sorte de gente que gostasse de conexão. E a julgar pelo futuro que alcançamos, arrisco que, salvo algumas exceções, esses seres especiais que existem em todos os tempos, todos extasiavam ao ter em suas mãos o leve pouso de um envelope trazido pelo carteiro. As cartas eram um gesto fascinante, para quem as enviava e para quem as recebia. Sua chegada era acontecimento singular. Há pessoas que, depois de recebido o sobrescrito, demoravam-se a abri-lo só para prolongar o deleite do instante. Também havia aquelas que, curiosas por verem as palavras que atravessaram estradas ou mares, rasgavam o envelope no instante que o recebiam, sem mistérios nem prolongamentos. Mas o que tenho a contar não chegou pelo correio, carta escrita e posta dentro de envelope com todas as formalidades que o gênero exige. A carta – ou o bilhete – digamos assim, estava dentro de um livro numa dessas bibliotecas públicas
frequentadas por leitores que ali vão visitar os mundos. Quem a encontrou foi Fernando Sacramento, conhecido escrivão de polícia dos Barris. O homem era dado às páginas. Quase todas as semanas estava a tomar um exemplar novo ou a devolver um que tomara emprestado da Biblioteca Central. Possuía, todavia, um hábito, se não digo trivial é porque era realmente peculiar. O mesmo diziam dele com relação às mulheres, especialmente os próximos da família ou os colegas de profissão: — Exige demais, escolhe demais, vai acabar só. A tal exigência dedicada às mulheres também era devotada aos livros, os quais se demorava a escolher. Raramente um título ou o nome do autor o atraía com facilidade. Gastava horas a olhar, a folhear, a ler sinopses, a sentir nas mãos o peso ou o formato do objeto, a estudar a capa, a buscar pistas entre as linhas para ver se o tema interessava. Os funcionários da biblioteca, já conhecendo os seus hábitos, não se ofereciam mais para ajudar. Esqueciam-no lá entre as estantes menos adas e menos íveis, bem próximo onde era mais forte o cheiro dos ácaros e das traças. Naquele dia levou para casa uma edição de O Livro de Alda, de Abel Botelho. O escrivão havia encontrado motivo bastante curioso para essa tomada de decisão. Ao folhear o exemplar, encontrara entre as páginas, um papel meio amarelado, uma folha avulsa contendo umas letras de mulher:
Se ler isto é que estás a tocar o exemplar que eu toquei em maio de 1960. Sinto muito por Alda, que não foi compreendida. Sinto muito por mim, que terei uma vida contrária à dela. Ela, ao menos, amou. Quanto a mim, já nem sei se meu destino me reserva tal honra. É que só amo a quem não posso amar. E a quem me quer eu desvio os olhos. Tem sido assim. Talvez você, quando ler isso, se ler, possa me salvar. E este é um desejo que divido em dois: metade deixo aqui depositado e a outra metade levo comigo. Estarei a te esperar, não importa quando. Não importa quem seja. Se tiver coragem e disposição de me procurar, já basta. Está aí o meu endereço. Venha até mim. Por favor... Rúbia.
E o endereço estava logo abaixo. Foi o bastante para solicitar o volume e sair. Morava na Rua Chile. Atravessou a Praça da Piedade, ganhou a Avenida Sete, subiu a Praça Castro Alves e chegou em casa ávido por reler o bilhete e instigado pela leitura de Alda, personagem que já o intrigava. Qual a relação entre aquelas duas mulheres, a do livro e a da carta? O que fazer com aquele pedido? Não podia simplesmente desconsiderar o conteúdo a que acabara de ter o. Certamente ele, e somente ele, tivera a oportunidade de encontrar aquela folha de papel, de modo que tinha agora nas mãos uma decisão a tomar. Não era homem de não refletir as coisas e lançar-se em precipitadas decisões. Sempre se demorava abundante dentro do pensamento, era um detalhista. Por isso mesmo, não podia atender sobremaneira tal pedido como se a mulher fosse uma romântica jovem desesperada por amor, e ele, o príncipe que a salvaria. Trazia consigo pouco menos de 40 anos de vida e nenhuma riqueza. Embora alguma experiência, senão empírica, ao menos intuitiva. E um pouco de matemática. Se o bilhete fora escrito em 1960 e estamos em 1980, duas décadas se aram. Quantos anos ela tinha quando leu O Livro de Alda? Se 15, teria agora 35; se 20 anos, teria agora 40, etc. De qualquer forma, para Fernando Sacramento importava muito mais a atitude e a substância do que a imprecisa e supérflua hipótese da adivinhação. O homem era um instigado. E sofria de pensamento. Quem sabe até de solidão. Beirando os quarenta sem casar, e não sendo desses que vivem a galantear as moças possíveis de namoro, é capaz que andasse a suspirar nos silêncios de sua casa erma de parentes. Aquela noite ele ou em claro. Leu metade do Abel Botelho entre cafés e cigarros. Quando os primeiros raios injetaram claridade na casa, lembrou que não era feriado. Aprontou-se e seguiu para a delegacia, disciplinado e disposto. Diria que executou o trabalho dentro da normalidade se não fosse pelos vários instantes em que, estando sem datilografar ou escrever as atas, vagou em oscilantes mares. Releu inúmeras vezes o bilhete como se quisesse permanecer dentro da atmosfera que as letras imprimiam. Sempre que sentia a sensação se
esvaindo feito fumaça que aos poucos desaparece, abria a gaveta, retirava o livro, pegava o papel com todo o cuidado como se se tratasse de uma relíquia, e recomeçava a leitura: se ler isto é que estás a tocar o exemplar que eu toquei em maio de 1960... — Mas é outubro de 1980! Pronunciou com volume na voz, o que lhe rendeu um questionamento feito pela mulher que limpava o chão: — O que tem outubro de 1980, seu Fernando? — O quê? Ah, nada não, nada não, foi um só um pensamento. A mulher olhou meio intrigada para ele e, como tivesse intimidade, prosseguiu: — Dizem que quem estuda demais fica doido... E voltou a limpar o chão. Ao fim do expediente, Fernando Sacramento não foi direto para casa. ou antes na Biblioteca Central e procurou uma moça que vivia a lhe ofertar uns jeitos suspeitos. A moça veio até ele, um sorriso nos lábios: — Pois não, seu Fernando, em que posso ajudá-lo? — Mil desculpas pelo incômodo, mas estou precisando de ajuda. A moça, demonstrando boa vontade, fez um gesto para que ele prosseguisse. — Eu preciso comunicar o falecimento de um parente a uma tia com a qual perdemos o contato. O nome dela é Rúbia. Ela esteve aqui na biblioteca e tomou livros de empréstimos. Mas isso foi em 1960. Eu preciso localizar o formulário com o endereço que à época ela deixou aqui registrado... — 1960? Faz muito tempo! — Sei disso. Por isso preciso de sua ajuda. Sabe, é muito importante para minha família que possamos encontrá-la. — Sim, eu entendo, seu Fernando.
— Será que esses registros ainda constam? — Não nos registros atuais. Talvez nos inativos. Mas estão no depósito do andar de baixo e não se pode entrar lá assim, seu Fernando, sem uma ordem expressa da direção. O homem tomou as mãos da funcionária entre as suas e ela compreendeu que não havia mal em ajudar. Uma hora e meia depois, tendo aberto e fechado inúmeras gavetas e pastas, o escrivão localizou um cadastro em nome de Rúbia. Seria a mesma pessoa? Conferiu o endereço do bilhete e o comparou com o achado nos registros da biblioteca. Exatamente iguais. O coração de Fernando Sacramento disparou. E, se disparou, isso representava, somado à noite insone, às frequentes lembranças ao longo do dia e à busca pelo nome no arquivo morto da biblioteca, aceitação e envolvimento. Rendia-se, o funcionário público, ao pedido de salvação. Notadamente porque nas últimas horas o escrivão foi se deixando invadir pela esquisitice de considerar como aquela situação era excêntrica e como seria intrigante chegar ao endereço contido no bilhete e mostrar à remetente que, vinte anos depois, o seu recado fora dado e ele estava ali para, se a súplica ainda existisse, salvá-la. Balançou a cabeça para espantar o devaneio. Loucura pensar o que ele pensou. No fundo, e em casos especiais, um homem é conduzido pelas intenções. Não há que se deixar de itir o desejo e a esperança. Não se pode desconsiderar a solidão e a lascívia de quem, solteiro e em idade ainda promissora, antevê possibilidade. ados vinte anos, tudo podia ter girado, e a carente mulher se transformado no avesso da que fora. Talvez tivesse filhos, marido e uma vida bastante ocupada. Talvez estivesse morta. Quem sabe atravessara o oceano e vivesse agora em terra alheia. As hipóteses eram muitas e, quanto mais as remoesse, mais as encontraria. O melhor a fazer era o que resistia por itir: aceitar o convite, tomar um ônibus e ganhar a estrada. Dias depois, Fernando Sacramento solicitou afastamento e preparou a viagem. Na delegacia estranharam o fato e, como o escrivão fosse homem discreto,
evitou justificar o mais que pôde. Deixou a cidade assim que a dispensa foi publicada. Na mala, O Livro de Alda e, dentro dele, o bilhete contendo o nome da cidade: Andaraí. Ao chegar na cidade de casarões antigos, Fernando Sacramento procurou uma pensão e ali se hospedou. Deixaria para o dia seguinte o encontro, tinha o rosto cansado da viagem e não queria parecer mais velho do que era. A dona da pousada era uma senhora curiosa, magra e realçada, maquiagem e pulseiras. Muito disposta e comunicativa: — Por aqui, senhor Fernando, deixa-me te mostrar o quarto. O jantar será servido às seis, o senhor esteja à vontade... — Se eu não aparecer, não precisa se preocupar. Preciso descansar um pouco. — Eu entendo. E quanto à rua que o senhor está procurando, amanhã eu peço para meu sobrinho te mostrar. Veio a trabalho ou visitar familiares? — Vim por amizade. — Ai, que maravilha! Bons tempos aqueles quando eu também recebia visitações. Hoje as coisas mudaram um pouco, sabe? Já não existem as horas da boa camaradagem, o tempo sobrando, nem a disposição das pessoas. Fico feliz pelo senhor. Espero que se divirta muito. Fernando Sacramento agradeceu, fechou a porta e instalou-se no quarto. Abriu a mala, pegou o livro e o pôs sobre a cama. Ficou a olhar para aquele objeto que guardava a vida de Alda. Como se o livro fosse o corpo, e as palavras, a alma. Aquele livro estava sendo a ponte entre duas margens distantes. Como conhecia a impulsiva ansiedade que o invadia em momentos de expectativa, o escrivão tomou os comprimidos para dormir. De outra forma, o sono não chegaria e, pela manhã, estaria ainda mais cansado do que no dia anterior. Por mais que desejasse esquecer, o pensamento o atraía tentando adivinhar o rosto da mulher que estava ali na outra rua. Não sabia exatamente o motivo de sua peregrinação àquela cidade. De modo vago, desconfiava que só queria cumprir um destino como quem pagasse uma conta, e uma conta é uma dívida. Para Fernando Sacramento, dívidas não prescrevem. E se ele, justamente ele, encontrou aquele pedido dentro do livro,
não entendia que pudesse ser algo descartável. O sono o engoliu quando pensou no desejo. E se houvesse a manifestação do desejo? Não importaria se ela fosse bem mais velha, importaria se entre remetente e destinatário ocorresse uma singular correspondência e se essa singular correspondência fosse possível de ser vivida. Seu pensamento transitava por esses termos quando o sono o engoliu. De manhã, a dona da pensão se desdobrou em tentativas para fazê-lo comer, mas ele só quis o café. Acordara antes do clarear do dia, talvez às cinco. Às sete, estava à mesa. Bebeu o café e procurou lugar para fumar. As horas se arrastavam, ele não tinha vontade de conhecer a cidade, queria apenas estar com aquela que há vinte anos pedira uma salvação. Fernando Sacramento foi conduzido, enfim, ao endereço da carta. A rua era de paralelepípedo, uns casarões coloniais, bordados e coloridos, apesar de mal conservados. Esta era a rua. — Muito obrigado, garoto. Esta é a rua. Deixa que eu procuro a casa. Tome aqui para um refrigerante. Estendeu ao sobrinho da dona da pensão uma cédula. E seguiu andando, à procura. Aproximou-se de uma casa azul e branca, olhou a numeração: — 45. É esta. Bateu à porta. Ainda eram oito horas, o silêncio. Insistiu. Ouviu os se aproximarem e surgiu uma mulher na janela. — Bom dia, posso ajudar? — Estou procurando a Rúbia. Ela mora aqui? A mulher olhou desconfiada e apertou os olhos para enxergar direito. — O que o senhor quer? Comedido, a voz pausada, Fernando Sacramento mostrou o livro para a mulher que estava na janela:
— Eu tenho uma encomenda para ela. — Pode me entregar. Qual o seu nome? — É que só pode ser entregue em mãos, desculpa. E disse o nome dele completo. Em seguida, esclareceu: — A encomenda pode ser que ainda tenha grande valor sentimental. A mulher olhava esquisito para o desconhecido, mas pediu que ele aguardasse um pouco e fechou a janela. Quando tornou a aparecer, estava à porta e o convidou a entrar. Atravessaram a primeira sala e, na segunda, havia uma senhora sentada numa das cadeiras junto à mesa. Aparentava uns sessenta anos e tinha nas mãos uma caneca de chá. — Sente-se, por favor. Em que posso ajudá-lo? O homem obedeceu e se ajeitou em outra cadeira. — Meu nome é Fernando Sacramento. Sou escrivão de polícia e trabalho na delegacia dos Barris, em Salvador. Mas não vim aqui a trabalho. Abriu o livro e mostrou a capa àquela senhora: — Vim por isto. Se lembra? A mulher colocou os óculos e pediu o livro. Aproximou-o dos olhos tentando adivinhar. Não adivinhando, devolveu-o ao visitante: — Não, eu não lembro. Fernando Sacramento sentiu a espinha gelar. Não acreditava que viajara quilômetros, atravessara noites mal dormidas, pedira licença do trabalho para a mulher lhe dizer que não se lembrava. Não convencido, tentou de outra maneira: — E a carta? Lembra de tê-la escrito? — Não estou entendendo, meu senhor. Fernando Sacramento adiantou-se a abrir o exemplar de O Livro de Alda e
retirou o papel envelhecido de dentro. — Eu encontrei esse bilhete dentro deste livro – explicou Fernando Sacramento, estendendo a mão e entregando o sobrescrito àquela senhora. Ela leu demoradamente, e quando voltou a olhar para o homem à sua frente, esclareceu: — Eu não falei antes porque queria saber quem era o senhor e a que veio. Quem escreveu essa carta não fui eu, mas a minha irmã. O senhor seja bem-vindo. Fernando Sacramento sentiu o sangue reavivar o corpo e derreter o gelo que se formara sobre ele. A mulher desfez a indiferença inicial com que o tratou ao lhe sorrir e pedir um abraço: — O senhor não sabe o quanto minha irmã esperou por esse momento. — Eu não sei exatamente, mas posso imaginar. — O meu nome é Rosália, mas pode me chamar de Dona Rosa. Todas nós conhecemos essa história, ela não guardou segredo. Fernando Sacramento apertou o livro entre as mãos, gotas de suor brotavam sobre a testa. — Um ano depois de ter escrito essa carta, ela resolveu ir para o convento. Mas, antes, me segredou que, se algum homem chegasse aqui com essa carta na mão querendo conhecê-la, eu deveria combinar esse encontro. Tinha 31 anos à época. Saiu do convento faz seis meses. Questões de saúde, o senhor entende? A dona da casa fez uma pausa e esperou que o homem olhasse em seus olhos. Quando ela fisgou o olhar introvertido do escrivão, declarou de um modo suave, mas grave: — O seu gesto de encontrar a carta e se dispor a vir aqui atender a um chamado tão.. tão... como eu posso dizer? Improvável. Tão improvável... o gesto do senhor é um gesto muito honrável. — Obrigado pelas palavras, Dona Rosa, eu estou mais feliz agora. Eu não sabia como seria recebido; na verdade, eu tinha muito receio. Mas eu precisava fazer isso. A voz na carta... a voz de sua irmã... ficou martelando na minha cabeça, pedindo que eu viesse...
— Estou muito satisfeita com a sua chegada. Rúbia também ficará. Mas eu preciso dizer uma coisa ao senhor... A anfitriã, de cuja boca saía uma voz serena, declarou com a mesma brandura com que preanunciara a informação: — Ela não tem muito tempo de vida. O escrivão sentiu o espírito em pulsação. Como assim? Uma mulher esperou vinte anos para que sua mensagem fosse lida e quando isso finalmente acontece ela está para morrer? Que raio de coincidência era esse? Que grande ironia! Dona Rosália, percebendo a palidez que tomou conta do rosto do visitante, solicitou à empregada que trouxesse água. — Por favor... deixa-me vê-la – pediu Fernando Sacramento, com a voz triste. — Claro. Mas teremos de ir ao hospital. Ela está internada. Instantes depois, o visitante ia no ritmo dos os lentos da anfitriã. Iam devagar, pisando os desalinhados paralelepípedos, Dona Rosália tendo como apoio o braço esquerdo de Fernando Sacramento como se fossem velhos conhecidos. Na mão direita do escrivão, o livro que guardava a carta. A carta que ele guardava com o cuidado que merece um achado valioso. Já no hospital, entraram por um corredor, aram duas portas, pararam na terceira. A porta estava entreaberta. Fernando Sacramento foi convidado a entrar. Uma enfermeira adequava o oxímetro no indicador. Em seguida, verificou a pressão arterial e, a pedido de Dona Rosália, inclinou a cama para que ela pudesse ver melhor o visitante. Foi assim que Fernando Sacramento se posicionou bem em frente àquela que há vinte anos escrevera as letras que ele tinha entre os dedos. — Iremos deixá-los um pouco a sós, senhor Fernando – falou Dona Rosália, saindo junto com a enfermeira. Fernando Sacramento deu mais dois os para frente, os olhos fixos em Rúbia, que respirava através do tubo injetado pelo procedimento da traqueostomia.
— Deve estar se perguntando quem sou eu. A enferma ofegou, os olhinhos miúdos fazendo esforço para se manterem abertos. De onde estava, o escrivão posicionou a capa do livro para que ela visse. A enferma ofegou ainda mais. Fernando Sacramento sentiu os batimentos acelerarem no corpo frágil da doente. — Por favor, tente se manter calma. Eu encontrei a sua carta dentro deste livro e confirmei o seu endereço nos registros da biblioteca. Então eu vim. Eu vim atender o seu pedido. Dizer que eu li o que escreveu, dizer que compreendi o que informou, dizer que suas palavras me tocaram profundamente. Na face abatida de Rúbia, o escrivão flagrou uma expressão de contentamento. Uma expressão tão vaga que ele só percebera porque estava envolvido pelo mesmo êxtase. Subtraído o contentamento, a mulher era uma forma moribunda. A doença dera a ela uma velhice antecipada, a magreza de uma retirante e a impossibilidade de viver plenamente aquele encontro. Ela tentou um movimento, mas as forças eram débeis. — Eu vim e de certa forma estou realizado, sinto que cumpri um destino. Lamento pelo seu estado, eu gostaria de tê-la encontrado em circunstância diferente. Mas a vida é como é... Neste momento, Fernando Sacramento avistou o retrato. Estava numa moldura ao lado da cama. Era a fotografia de uma adolescente montada num cavalo, sorrindo e olhando para a câmera. A enferma tentava dizer que a garota montada no cavalo era ela, e o escrivão entendeu. Não só pelo gesto que ela fez, mas porque o rosto envelhecido conservava, apesar do avanço da doença, algum traço do tempo da bondade. Num impulso, o homem tomou a moldura entre as mãos. Sentou-se na cadeira ao lado da cama, os olhos parados na imagem em preto e branco. Um magnífico rosto de mulher. Podia sentir o perfume parado naquela paisagem que falava de um tempo em que as horas eram estáveis e sem porvir. Então beijou o retrato bem onde estava o sorriso da menina. E aí as lágrimas escorreram, o retrato contra o peito como se o abraçasse. O corpo deitado naquela cama continha o rosto daquele retrato, mas o rosto daquele retrato não pertencia ao corpo deitado naquela cama.
Fernando Sacramento sentiu pela primeira vez o que ousou chamar de amor. E só compreendeu tratar-se do que chamam de amor porque fora invadido por uma sensação incomum que até então nunca havia experimentado. Tantos anos vividos, tantos mundos visitados por meio das páginas e só agora ele descobria, por imprevisível e inexplicável, a singularidade do amor? Sentiu que amava a dona daquele rosto preso na moldura, e a dona daquele rosto preso na moldura estava à sua frente, embora transformada na vida que findava. Faltava ao escrivão o poder de regressar ao instante daquela fotografia ou o poder de devolver à enferma a saúde e, especialmente, o corpo de outrora. O corpo sobre o cavalo era uma perfeita forma de vida a experimentar o alegre vigor da juventude para a qual ele queria se transportar. Mas o que o impedia de amá-la? Ergueu a cabeça, respirou, encarou a mulher que arfava. Só voltaria para sua terra depois que Rúbia morresse, decidiu. Enquanto ela pulsasse, ele a salvaria.
NOIVA NO ESPELHO
Um dos momentos do seu dia de que Malu mais gostava era do demorado banho na banheira submersa entre óleos e cheiros. Era sem pressa. Era quase sem ação. As mãos leves roçando suavemente a nuca, os braços e o ventre, os pés acariciando os pés, as coxas tocando as coxas. Era lento, era em silêncio. De vez em quando fingia escutar alguma música que não discernia qual, não sabia se Chopin, Bah ou Vivaldi. Tentava agarrar no núcleo do silêncio a melodia que, abstrata, não se concretizava, esvanecida como perfume que se sente mas não se aprisiona. O corpo todo envolvido pela instrumental melodia e pela espuma, que às vezes virava bolha de sabão por algum assopro seu. Achava graça e ria sem barulho, que era para não quebrar a magia. Findado o banho, decidiu ir ao costumeiro restaurante. Entrou espalhando perfume, anunciando a sua chegada. Alguns homens, acompanhados das esposas, padeciam à promessa do contrato conjugal, disfarçando o olhar. Outros, livres e profanos, giravam o pescoço para análise mais detalhada. Beliscou alguma coisa, tomou uns drinques, pediu a conta, entregou o cartão para o pagamento. Loira, o cabelo cuidado em salões, o vestido justo desenhando as formas delineadas do seu corpo. O batom quase uva nos lábios, uma mulher autossuficiente. Digitou a senha, sorriu para o garçom, hora de ir. Levantou distribuindo charme e foi andando com aquele jeito de quem, sozinha, não é solitária. Atravessou o restaurante com os leves, enquanto os mesmos olhares de quando chegara observavam-lhe agora o queixo erguido e o olhar firme e reto, o que não era uma superioridade, mas indiferença. O perfume denunciou novamente sua agem, os mesmos e já outros olhos fixados em sua direção, ovacionada em segredo por homens e por mulheres. Em seu apartamento, outro dia, o porteiro interfonou para avisar a chegada do entregador. Depois de autorizar a subida, foi à porta do vigésimo andar receber a comida mediterrânea. Sentira fome e no armário nada encontrara, mania de não ir ao supermercado, habituada que estava a fazer as refeições fora de casa.
Recebeu a encomenda, ofertou a gorjeta, fechou a porta, observou que a noite avançara. — Mas isso não são horas de comer mais nada! E jogou a comida no lixo. — Não serve para comer amanhã. Devia respeito ao corpo, não comeria aquelas calorias fora de hora. Os episódios da nova temporada prenderam a sua atenção, fazendo-a esquecer o tempo. A fome veio e, num impulso, solicitou a refeição. Só diante do entregador percebeu que já eram oito horas da noite e nessa hora não se come. Recusava-se a receber a visita das gordurinhas a mais. A sua oração diária tantas vezes era a abstinência e já havia se acostumado a resolver o problema com água. Estar de bem consigo significa para Malu estar preparada para os holofotes. Que eles a iluminassem, não tinha receios. Não era mulher de começar o regime em janeiro. Compreendera desde cedo que devia estar sempre preparada para os instantes em que os convites chegassem. Como quem trabalha e acumula dinheiro, ela vivia em prol de acumular vida, o que em última instância significava caber dentro de um padrão, dando ao corpo as dimensões precisas e capazes de despertar os anseios. Pensou na carreira de modelo, mas havia o balé. Pôs água no copo e foi prostrar-se diante da televisão para ver a apresentação das bailarinas, essas mulheres que desprendem poemas nas pontas dos pés. Bebia água e assistia aos movimentos precisos, flexões e giros. irou as sinuosidades e os sentimentos que transbordavam em meio aos echappé e pas de chat. A dança tinha raiva, ardor, mas também paixão. O equilíbrio expresso pelo corpo ao executar o gran plié deixava Malu possuída daquela vontade de colocar as sapatilhas de meia ponta e pisar o palco para os arabesques sensuais. Findadas as coreografias, ela tinha lágrimas nos olhos como era de costume. Foi deitar na cama fresca para, através da janela aberta no vigésimo andar, sentir o lamber do vento em sua pele macia como a das bailarinas. Os travesseiros abraçaram seu corpo como quem lhe falasse de nuvens e levitações. Pensou no dia seguinte. Não iria ao trabalho porque não havia trabalho. Vivia da
herança deixada pelo pai e que agora lhe rendia o suficiente em investimentos bem aplicados. No entanto, precisaria ir à academia, à esteticista, outra vez ao cabeleireiro para se queixar de uma mecha e, se sobrasse tempo, iria à yoga. No outro dia, seria a vez do analista e da estilista para o desenho do vestido que usaria na formatura de Ricardo. Nesse ínterim, o celular tocou. A voz do outro lado descumpriu os requintes dos bons modos e, sem se apresentar ou dar boa noite, vomitou cobranças no ouvido de Malu. Quando, enfim, parou de falar, ela respondeu: — Claro que eu sei, claro que estou lembrada. Você não me deixa esquecer! E desligou o telefone. O casamento aconteceria dali a uma semana. Em um determinado momento, estivera entre três pretendentes, todos interessantes e iráveis, mas imperfeitos, cada qual a sua maneira. Riqueza os três possuíam. Distinguiam-se, no entanto, em aspectos menos concretos e no modo de tratá-la. Rangel, o excessivo ciúme. Pedro Henrique, a escassez de tempo. Em Bernardo, a falta de ambição e a incivilidade. Decidira-se por Bernardo e iria ao padre para o sim. O vestido de noiva estava em uma caixa dentro do guarda-roupa, era bom experimentá-lo. Abriu a caixa e ou a mão com leveza sobre o tecido branco. Estendeu-o depois sobre a cama e observou os bordados e as pedrarias, perfeitos. Diante do espelho, vestiu-o com dificuldade. Vestiu-o, mas o corpo estufara no abraço da renda, que parecia querer explodir. Na testa e por sobre o lábio superior, gotículas de suor respondiam ao esforço feito. Parada diante do espelho, a noiva contemplou-se demoradamente. O espelho – objeto por excelência sincero – foi soprando para ela o que havia atrás de si. Malu avistou os blocos sem reboco, a fiação escapando pelos buracos da parede, o chão de cimento. Móveis envelhecidos e quebrados. Um balde no chão para conter a pingueira da última chuva. Desviou o olhar do reflexo que o espelho insistia em mostrar para ver de novo o vestido esticado sobre a carne gorda. O vestido de tão esticado estava quase arrebentando.
— Será que tem jeito? Uma boa costureira talvez o adaptasse para ela, pensou. — Dez centímetros a mais de pano aqui e aqui acho que resolve – falava consigo, apontando com o dedo as regiões que mereciam mais renda, e eram muitas, por isso manteve os olhos fixos para averiguação especializada. E a averiguação especializada lhe disse que o veredito era desfavorável, mas verdadeiro. E Malu foi constatando, se deixando convencer da inevitável realidade. O mundo de fantasias era bom, relaxava, tornava seu dia mais suave. O sonho tinha a magia da invisibilidade, de modo que podia vivê-lo em qualquer lugar ou momento sem que ninguém a censurasse. Mas ali era o espelho, que não mente. Quando muito, distorce um pouco a coisa refletida. No seu caso, a distorção era gigantesca. Um alarme. Corpo grande, vestido pouco. Como caberia? Uma sensação de desmaio a invadiu. Uma tonteira, a garganta seca, a boca seca, sede. Talvez o açúcar estivesse alto. Na agem para a cozinha, cadê a leveza dos os do restaurante se o peso que os pés avam era demasiado? Queria o poema saindo do corpo da bailarina quando dançasse o balé La Sylphide. Tentasse um o de pas de chat e despencaria no chão. ou a mão na testa suada, depois nos cabelos, os dedos nervosos desfazendo os nós do megahair malfeito. Abriu a geladeira e, antes de encontrar a garrafa de água, observou que ali não havia maçã nem alface, couve ou gengibre, muito menos quinoa ou desnatados. Em compensação, os refrigerantes e as massas para fritura, os queijos, os salames, os presuntos, os doces, os pães e os salgados comprados em padarias e guardados com amor para depois. Sedenta e atordoada, bebeu refrigerante em vez de água. Depois foi para o banheiro sem banheira, óleos ou cheiros. Lavou o rosto na pequena pia enferrujada. E de novo o espelho refletindo o rosto molhado. Mas um espelho quebrado, repartindo a sua cara em pedaços e dando a ela três linhas de verdades. Não três iráveis pretendentes.
Voltou ao quarto. A cama simples de colchão antigo a convidou para deitar o corpo que, por causa da sensação de desmaio, parecia ainda mais pesado. O quarto estava abafado, não havia o frescor de uma janela no vigésimo andar. O telefone outra vez tocou. Era Bernardo gritando aos seus ouvidos. — Sim, eu estou em casa, vem pra cá. Não me sinto bem. — Você e suas manias! E desligou. Três linhas de verdade eram o avesso das ilusões. O que sobrava era a vida real e o casamento com o homem que lhe fora possível. Com Bernardo iria à igreja, ele que era quase sem salário, excessivamente mentiroso e enfadonho. Era com esse que iria se casar, apertando as carnes no vestido roubado em casa de antiga patroa.
A MAIS SUBLIME HISTÓRIA DE AMOR
Parece que o amor é esse corpo trêmulo e inapreensível situado entre o anseio e a dúvida. Não era para dizer isso assim, tão no começo, tão logo, mas acontece que os impulsos são filhos dos anseios, e não da dúvida, e os anseios gostam de nos arremessar ao perigo. Era antes para dizer que não sei se o que vou contar está amparado sob a lógica de alguma verdade ou se anda a procurar qualquer conexão que o caiba. É, certamente, fantasia, contudo. E sendo fantasia, já é uma certeza. Preciso contar, tão impulsivo e breve como aquele parto compulsório vomitado na quentura da terra. A mãe tigre ou a língua nas duas crias paridas na densa mata tropical da Sumatra. Olhos e ouvidos atentos como convêm aos caçadores, pareceu de repente que ela queria se afastar dali, mas a impossibilidade de carregar as duas vidas que não chegavam a um quilo cada inibiu o gesto. Talvez ela tenha percebido algum tremor de terra, um rastro, um barulho, um olhar, não se sabe. E se não tinha o pensamento como o condutor dos seus atos é porque ela era pura hesitação e instabilidade, o que já é um pensamento também. Estava ali uma família em aparente estado de perenidade, condição própria à perfeição animal. A mãe tigre entregou as mamas para os filhos se alimentarem e havia nela dois impulsos, o de dar o leite e o de perceber os perigos. Enquanto os filhotes lhe sugavam, a maneira de quem estava atenta dava a ela uma função que a distinguia daqueles outros dois recém-nascidos: a de fugir ou atacar. Se falei há pouco em aparente estado de perenidade é que a permanência nesta condição não é ininterrupta. Por isso a tigresa está atenta e contém em si apenas a vida que se é, não a que se foi ou a que será. Está atenta e é perfeita por ser continuidade e permanência. O resto é imperfeição, que ela desconhece. Mas a sua perfeição reside no impulso que se manifesta em forma de coragem ou medo. Por isso é toda amor. Porque retém no íntimo o corpo trêmulo e inapreensível situado entre o anseio e a dúvida. Uma fertilidade, assim.
Se o ataque dá à mãe tigre o combustível para viver, o medo lhe dá outro modo de se proteger. Nesse momento, ela receia. A mãe tigre receia. Olha a ninhada e sabe que precisa protegê-la. Assim viverá os próximos dias, entre anseios e dúvidas, cheia de amor. Enquanto isso, os pássaros bicam-se distribuindo beijos e cantos. Ao que tudo indica, a Sumatra já ficou para trás, é outra mata agora, tão fechada quanto aquela. Cobras perscrutam, interessadas; outras, já alimentadas, estão indiferentes, isto é, sem amor, nenhuma intenção, nenhum medo. Isentas neste instante inglório. As que perscrutam interessadas estão repletas daquela vontade impulsiva de avançar mas esperam a hora. Pássaros deslocam-se como breves ventos. Têm o corpo soprado, ágil, esperto, mas sempre ameaçado. Esses são os que sobreviveram para além dos primeiros voos, pois tantos outros já não são irmãos de canto, devorados que foram entre impulsos e desejos. Houve um que olhou para o outro e se aproximou com um pouso macio, sem barulho. Eram gralhas azuladas com plumagem preta do pescoço para o peito. Cumprimentaram-se com pulos e bicos, a linguagem fática. — Como vai? — Tenho fugido de muitos ataques. — E quando ataca tem encontrado minhocas? — Oh, sempre que possível! — Que sorte a sua. Tenho vivido de sementes. — E o ninho, está com ovos? — Começam a estourar. — Cuidado. Os meus foram comidos por saguis.
Ao que tudo indica, um deles notou o olhar ardente de uma cobra e voou convidando o outro a fazer o mesmo. Frustrada, a cobra verde enrolou-se no galho, camuflando-se por entre as folhas. Havendo granívoros por perto, fora atingida pelo estado trêmulo entre o anseio e a dúvida, essa plenitude. Perto dali um cágado experimentava ânsia e dúvida com a cabeça disfarçada no casco. Alongar o pescoço para fora ou permanecer estático? A fome se anunciava, esta visitante pontual, e trazia consigo a instintiva inconsciência da coragem, mas também do medo. O cágado oscilava dentro do tremor inapreensível do anseio e da dúvida. A pretensão e a paralisia. Quando fosse atacar, podiam atacá-lo. Na camuflagem do seu corpo achatado, uma solidão. Um forasteiro se aproximou. Uma forma invertebrada antes nunca vista por ele. Da beira do casco os olhinhos escondidos observavam o bichinho esquisito em seu corpo mole. Feio, mas atraente. Parecia não saber dos inusitados momentos. O próprio cágado era todo um momento inusitado. O cágado se atraía pela facilidade com que aquele bichinho se entregava, mas em verdade o bichinho não se entregava, ele era uma forma em ataque, não para o cágado, mas para outra forma existente. O invertebrado procurava. Os olhinhos do cágado o espiavam. E, quando o pescoço saiu do seu recolhimento para se permitir o ataque, o bichinho esquisito avançou ligeiro e se escondeu. Não do cágado, pois nem o havia notado, mas de um rastro que se aproximou na mata fechada. Começo a sentir medo por temer o instante. O amor dói. Só de imaginar, me angustia saber que a cobra poderá devorar a prudente gralha que em algum instante vacilará. Ou que a tigresa terá uma de suas crias devorada. O amor é sempre em suspensão: esse estado de ânsia e medo, um corpo trêmulo e duvidoso. É isso o que nos une, essa coisa oscilante que está sempre no meio, nem princípio nem fim? Esquivou-se o inseto na presença do lagarto de coloração esverdeada. A língua esticada ainda tentou alcançá-lo, mas a folha seca sob a qual o inseto se escondeu devolveu a ele a condição da aparente eternidade. Depois se abrigou
em lugar ainda menos ível. O lagarto aproximou-se do casco seco do cágado, e próximo dali havia o corpo deslizante e sutil de uma serpente a espreitá-lo. Quando uma das gralhas voou de volta para o ninho, havia um bicho de olhos sedentos observando os ovos que estouravam. O inseto feio encontrou um corpo ainda vivo, mas em decomposição. A serpente que observava o lagarto não se deu conta que as retinas de uma ave de rapina a espreitavam também. Uma aranha esperava qualquer corpo em sua teia. A espera era tão intensa que não notou a presença do melharuco azul a vigiá-la, pronto para bicá-la. As folhas balançavam à agem dos ventos, misturando os sons dos rastros, silvos, coaxares, sibilos, zumbidos, pios, cricris, ora atraentes ora afugentadores. Todos os instintos buscando defender o corpo que habitam, todos os instintos buscando atacar o corpo que os salva. O amor, esse elo. Não o relaxamento, a perenidade, a ininterrupta paz que produz uma existência sem luta e sem glória. A conexão está na mira e no ataque, que é dor ou alegria, só depende de quem chora. Sem o que faz tremer, o cágado caminharia por terras ou nadaria em águas em busca de nada. Não haveria temor em pôr o pescoço para fora. Os pássaros não sofreriam as ânsias de vigiar os ovos, nada os consumiria. As formigas poderiam andar à toa, as aves não as bicariam, o que podia ser um milagre, mas um milagre sem mistério. O amor caminha em tentativas de reparar os desvios. A fome é um caminho desviante. Mas é o que se tem por agora. Todas as horas, todos os corpos se conectam por esse elo. A alegria nasce da dor. Devo prosseguir? Sim, eu tenho vontade, mas tenho medo, sobretudo porque ganhei a consciência que os bichos não ganharam. Eles estão a postos.
Inclusive a mãe tigre com seus dois filhotes. Ela tem fome e observa um cervo. O cervo tem dentro de si uma paz enorme. Sua paz está ameaçada. Sua paz está em ligação com a ânsia da mãe tigre que deseja se abastecer para abastecer sua cria. Enquanto projeta o ataque, a mãe tigre tem dúvida: o momento é oportuno? Os olhos flamejam. A distância é considerável, porém ela tem pernas que quase voam. O cervo está lindo em sua perenidade sem futuro. O cervo não sabe, mas está ligado em amor e ódio com a mãe tigre, que treme de ânsia e amor por aquele cervo que não se sabe almejado. O amor é isso, é o que devora? Nem tigre nem cervo o sabem. Estão apenas cumprindo uma ânsia. O tigre quer a carne e o cervo se alimenta de erva. Falando assim, sobram desvantagens, e a mãe tigre ganha o título de covarde por desfazer um estado de paz. Mas o amor não se mede por essa lógica.
O QUARTO ESCURO
Quando Ana entregou a Otávio a xícara com o chá, ele pensou na solidão que os separava. Considerou o poder aniquilador desta senhora invisível, a solidão. Mas o professor de Filosofia talvez não pensasse nisso se pela manhã não tivessem zombado dele depois que um vídeo seu fora compartilhado entre os alunos. Aquele fim de tarde calmo, no sofá de casa, era apenas um aparente fim de tarde calmo no sofá de casa. A esposa não desconfiava que o casamento de dez anos e dois filhos estivesse para o marido naquele ponto das interrogações. Otávio sabia e constantemente dava à esposa de presente, sem que ela soubesse, a anistia pelo amor que lhe devotava, um amor manifestado em respeito e dedicação. De igual maneira, Otávio perdoava a si também. Não havia culpados. As infiltrações que ameaçavam desmoronar as paredes daquela instituição, o casamento, talvez continuassem minando sem que as paredes nunca desabassem. Assim continuariam aparentemente inatingíveis, conectados, se não pela cumplicidade que sustenta o matrimônio, pelo menos com a natural disposição com que se entrega às comodidades. Se as pessoas entrassem em seu quarto escuro veriam fantasmas e se espantariam. Não eram fantasmas para ele. Talvez nem o fossem para tantos outros homens e mulheres, mas a disciplina a que foram expostos ensinou-lhes que deviam se espantar, e, por isso, se espantavam. Os fantasmas a que Otávio se referia não lhes eram estranhos por tão companheiros de longa data, mas isso não significava, por outro lado, que o professor convivesse harmoniosamente com eles. Fingindo indiferença, evitavaos muitas vezes; em outras, esforçava-se por não atender ao chamado, pois era penoso lutar contra o pensamento que se repetia feito um eco em propagação. Do sofá observava o filho que, sentado no tapete, folheava uma enciclopédia. Mais um disciplinado, considerou. Seguiria as regras, seria ensinado a se espantar, seria ensinado a esconder todos os fantasmas na intransponível gravidade do quarto escuro. Ele tinha cinco anos e agora se aproximava da mãe, levando a enciclopédia e apontando uma imagem com o dedo:
— Mãe, por que esse bichinho não tem perna e esse tem? Ana interrompeu a leitura do livro para olhar a revista que o filho tinha nas mãos. — Porque Deus deu a cada bichinho uma forma diferente. — Deus pode mudar a forma desse bichinho aqui? — E por que você gostaria que Deus mudasse a forma desse bichinho? Olhe para você, veja como você é! Deus lhe fez assim e fez os bichinhos de outra maneira. É isso. Cada um tem a sua forma. A criança, ainda intrigada, ficou a olhar para as imagens sem estar convencida. Sentou no tapete outra vez, enquanto a mãe retomava a atividade anterior. Otávio desviou o olhar do filho para a esposa, que estava sentada no outro sofá, e o que ele sentiu beirava a piedade. Uma mulher tão boa! Fazia exatamente tudo o que a disciplina lhe ensinou, ser mãe, ser mulher, ser dócil e educada. Confuso, Otávio estava no meio da ponte sem conseguir distinguir se a revolta que o invadia era pela complacência com que sempre procurou retribuir as gentilezas, desenhando a imagem do casamento justo e adequado ou porque a esposa fosse tão exata e apropriada que o desarmava. A mulher não lhe dava motivos concretos para a separação, e ele, em verdade, nem sabia se os queria. Também não lhe parecia crível que precisasse encontrar qualquer pretexto para justificar sua decisão se guardava em si a vontade de ser livre, o que já era o bastante. — Mãe, por que Deus não me fez assim? O menino, repetindo o gesto de levantar e se aproximar da mãe, levou outra vez a revista para mostrar o bicho com o qual estava se comparando. — E por que você queria ser esse bichinho? — Porque ele é um bicho bonito. Fala com Deus pra eu ser assim. — Vou falar, sim, não se preocupe. Nesse ponto da conversa entre mãe e filho, o pai interveio com severidade:
— Esqueça, Miguel. Deus não pode mudar as coisas. Deus não vai mudar as coisas pelo simples fato de que ele não existe! Mulher e filho fitaram-no ao mesmo tempo, surpresos. O filho olhava para o pai e era uma ação que não ultraava o gesto de olhar para o pai, enquanto Ana, pasmada, tentava compreender a reação do marido. Já o sabia ateu, mas não imperativo ao ponto de exigir de uma criança maturidade para lidar com o assunto. Otávio se dirigiu até o filho, ajoelhou-se em frente a ele e depositou uma mão em cada braço do menino: — Filho, existem histórias verdadeiras e existem histórias de mentira. Essa história de que Deus vai mudar o seu modo de ser, transformando você em outra coisa, essa é uma história de mentira. Quem o transforma em outra coisa não é Deus, mas as pessoas. Seus dois braços e suas duas pernas vão aumentar de tamanho, você todinho vai aumentar de tamanho, você vai continuar tendo dois braços e duas pernas, só que maiores. Você tem dois braços e duas pernas porque você saiu de dentro de sua mãe, então você é uma cópia dela, entendeu? — Então eu sou uma menina? Otávio, ainda ajoelhado em frente ao filho, ficou ali a encará-lo por três segundos, e depois, sem responder, se levantou: — Em vez de perder tempo contando baboseiras para o menino – falava dirigindo-se à mulher –, sugiro que o ensine a lidar com as verdades. Vai ser melhor assim. Eu vou precisar sair agora. Termine a explicação, mas não conte mentiras a ele, por favor. E foi se afastando, enquanto a esposa, perplexa, seguia os os do marido, que atravessou a porta e a fechou atrás de si. Retirando o carro da garagem, relembrou o vídeo. O professor com o dedo enfiado no nariz. Ele assistia à apresentação dos alunos e, ao levar a mão para coçar o rosto, aproveitou a proximidade para vasculhar a cavidade nasal. Mas as câmeras andam por toda parte e, minutos depois, o vídeo de dez segundos rondava os celulares de professores, funcionários e alunos. A inconsciência corporal de pescar coisas no nariz é ação que todos praticam, pensava o professor de Filosofia. Contudo, ou se negam a afirmar ou se negam a fazê-la diante das pessoas, uma disciplina social. Essa disciplina, maiormente,
deve ser seguida com todo o rigor por aqueles de quem se espera o exemplo, sob pena de ser ridicularizado ou desacreditado. O homem é para os outros o que é por fora. Por dentro, são os fantasmas, e esses não interessam. Interessa, por exemplo, dizer eu te amo, e não amar. Dizer eu te perdoo, e não perdoar. Se isso não é uma forma de vingança é porque a vingança se revestiu de bondade e a aparente bondade virou regra, que Otávio cumpria com falsa docilidade porque havia os julgamentos com os quais se alfinetava. Tinha contas a pagar e o saldo no banco nem era suficiente, mas esse é um detalhe a que o público não deve ter o. Para o grande público, outra paisagem: os filhos nas boas escolas, as roupas novas, o carro do ano, a mulher adorável. Esse era o jogo, o dedo no nariz não era o jogo. Mexer o nariz expõe a intimidade da nudez, pois é como estar nu e ser flagrado. Nesse dia em que o vídeo vazara, Otávio sucumbiu demasiado. Os questionamentos, normalmente amansados, se agitavam nas reservas de sua tolerância, e agora se perfilavam como carros num congestionamento. O problema se amontoava, pois, assim como os carros, eles não saíam do lugar, e o filósofo foi sobrepondo os imes, as dúvidas e as penúrias. Seguia com o carro para algum lugar, ação intencional, pois não queria um destino acertado. E meia hora depois, como ainda não soubesse para onde ir, guardou o veículo em um estacionamento no centro da cidade e decidiu ir a pé. A noite chegou, ele parou em um bar, sentou numa das mesas que ficavam na calçada e pediu vodca. Na distância de duas mesas Otávio observou o casal que bebia cerveja e petiscava. Sem reservas, o sujeito pegou uma coxa de frango frito e, depois de comer a carne, mordeu o osso até triturá-lo. Então cuspiu o osso esfarinhado no prato, e isso era um estado de liberdade. Se aquele homem enfiasse o dedo no nariz tampouco seria ridicularizado porque as liberdades são diferentes para cada pessoa. O casal conversava, bebia e comia. Quando a mulher riu para o namorado, exibiu uns dentes escuros e desalinhados. Foi o bastante para que o companheiro se inclinasse para beijá-la, tendo ainda restos de farinha na boca. Minutos depois, um garoto de aproximadamente dez anos de idade, usando
roupas sujas e rasgadas, se aproximou do professor. — Tio, pode me ajudar? E ligou o play das tristes histórias que se contam para os convencimentos. Tinha a missão de levar comida para casa. Sem pai e estando a mãe doente ele precisava alimentar os irmãos, todos mais novos que ele. — Senta aí. Falou o professor, empurrando com os pés uma cadeira depois de ouvir o relato do menino. — O quê? — Senta aí, não ouviu? O garoto obedeceu e assumiu um ar de timidez. — Que foi? Tão falante, só porque se sentou perdeu a voz? — É que ninguém nunca me mandou sentar. — Tem fome ou tudo é fingimento? — Tenho fome. Otávio pediu que trouxessem para o menino dois sanduíches e um refrigerante. Era isso. Não podia renunciar à oportunidade de se aproximar das coisas que a vida com suas regras costuma afastar. O mundo, criado para as aproximações, acabou por gerar os distanciamentos, e por isso parecia estranho assistir um homem na sua condição social sentar-se à mesa de um bar e ter por companhia um pedinte. Se aquela cena fosse filmada durante dez segundos, descontextualizada e compartilhada sem as devidas explicações, talvez gerasse outra polêmica. Atravessar a ponte e caminhar em direção à incivilidade. Fazer coisas como introduzir o dedo no nariz ou dividir a mesa com um maltrapilho. Dizer não te amo e nem te perdoo.
— Estou negando o teatro da vida – disse ele ao garoto, que comia concentrado e deixando pedaços do alimento cair sobre a mesa. — Pode comer à vontade e sujar tudo, essa é uma liberdade que lhe cabe. Não queira nem saber o que acontece comigo se eu for em algum evento e ao mastigar um sanduíche cair um pedaço de pão sobre a mesa. Otávio virou o copo e pediu outra vodca. O garoto, tendo o corpo na cadeira mas o espírito em outra humanidade, não compreendia aquele homem, que lhe parecia estranho. Mas comia. Se o preço a pagar era aquele, ele ouvia. E comia. — Sabe o que eu sou? O garoto respondeu que sim com a cabeça. — Não, você não sabe o que eu sou. Eu sou um pai de família, um professor irável, eu tenho uma esposa irável, tenho dois filhos iráveis. Eu sirvo de exemplo para os outros. Gostou? — Sim, eu gostei – respondeu o garoto acabando de comer o primeiro sanduíche. — Mas isso é o que eu te disse. Isso é o que as pessoas iriam te dizer. Porque na verdade, meu jovem, eu não sou esse homem que te apresentei. Ou até sou, mas guardo outro que ninguém vê. — Por que ninguém vê? — Porque eu não mostro. — E por que o senhor não mostra? O garçom apareceu, ou a flanela sobre a mesa e recolheu os guardanapos utilizados, no que Otávio aproveitou para pedir mais uma bebida. Tendo o garçom se afastado, o professor se voltou para o companheiro de mesa: — Porque são fantasmas.
— Fantasmas? — É. Fantasmas. — Fantasmas não existem. — Existem, eu posso te garantir. — E onde eles moram? — Em quartos escuros. Silêncio. O menino comia os últimos pedaços da comida e tinha o olhar concentrado no professor. Talvez tentasse adivinhar a localização dos quartos escuros que guardam fantasmas. Talvez tentasse se convencer de que a informação fosse verdadeira. Do outro lado da mesa, em sua cadeira, o professor desviou do menino para o casal ao lado. O homem pagava a conta e a mulher retocava o batom que fora arrancado pelos beijos e pela farinha. Ao lado do bar, um letreiro colorido de hotel os convidara e para lá se dirigiram, a mulher tentando se equilibrar em cima do sapato alto que parecia escorregar nos paralelepípedos. Os desejos, pensou Otávio, quem sabe chulos. O professor pediu a conta, enquanto lhe ardia no pensamento a ideia de que desejos não são crimes. — Eu vou embora – falou o pequeno como se pedisse autorização para ir. — Não peça, vá. Você é livre! E não precisa dizer obrigado. O menino de roupas sujas foi levantando devagar da cadeira sem tirar os olhos do professor, como se estivesse desconfiado. Teria que fazer alguma coisa para pagar o que comeu? Como o professor não manifestasse nenhum gesto ou palavra, ele se foi. Otávio, por sua vez, vagava por pensamento mais delirante: se esse garoto cometesse um crime, refletia, as pessoas não se surpreenderiam porque julgam natural que alguém à margem da vida ultrae o limite da lei. Aquele garoto era livre para matar e não surpreender porque a sociedade cria potenciais criminosos, dando a eles etiquetas de autorização, de modo que, quando matam, não assombram. Sua família, por exemplo, se alguém de sua família matasse, assombraria, considerou o professor.
A mulher devia estar em casa vendo televisão com os meninos. Assis, o mais velho, a esta altura já devia ter chegado, e Miguel talvez estivesse se acostumando à ideia de que saíra de uma barriga e não poderia se transformar em um bicho ou em outra forma que não fosse humana. Pagou a conta e seguiu a pé para aqueles quarteirões da Praça da Sé onde se conservam antigas arquiteturas. Era costume abrirem bregas e cabarés próximos de cines pornôs. Consultou o relógio, eram oito e quinze da noite. As ruas já estavam ficando desertas e a iluminação precária dos postes dava àquelas vias um aspecto ainda mais penumbroso. Havia pessoas dormindo em cima de papelões e sob as marquises, e uns bares com pouca clientela se preparavam para fechar. Otávio não sabia ao certo, mas era por ali que ficava o local, segundo informação recebida. Depois de alguns equívocos, avistou uma porta aberta e, ao olhar para dentro, viu os primeiros degraus de uma escada iluminada por uma luz azulada. Atravessou a rua e, da soleira, olhou para o alto, no que avistou um homem barbudo sentado em uma cadeira no topo da escada. Subiu os degraus iluminados pela luz azul e lá em cima as luzes ganhavam novas cores embora conservassem sempre aquela qualidade fosca. O homem barbudo sentado na cadeira era o bilheteiro. Pagou e foi entrando. Deu de cara com um corredor que bifurcava para dois lados. Seguindo para a esquerda, no final havia duas portas que permitiam entrar em diferentes ambientes: a primeira porta dava o a uma sala onde havia algumas cadeiras brancas de plástico – ocupadas em sua maioria por homens – e em cuja parede era projetado um filme em que três rapazes copulavam com uma mulher. A outra, conduzia a um quarto totalmente escuro. Otávio não se atreveu a entrar. Deu os para trás, tomou o corredor de volta e seguiu para o lado oposto. No meado do corredor, viu outra escadaria. Subiu. No andar de cima, vários cubículos serviam de guarida aos mais discretos ou aos de tendência ao sexo monogâmico. Na entrada de algumas alcovas, mulheres se ofereciam com olhares instigantes e roupas insinuantes. A iluminação era um pouco mais escura do que a do andar de baixo. Otávio recuou, desceu as escadas, tomou o corredor, seguiu para a direita. No final, encontrou um ambiente com balcão, mesas e cadeiras. O homem por trás do balcão entregava bebidas. As lâmpadas foram cobertas com papéis laminados azuis e vermelhos, e havia homens e mulheres
conversando alto, bebendo e fumando. Atravessando esse salão, havia um espaço ao ar livre em que a iluminação era aberta e as paredes ornamentadas com búzios, cartas de tarô e imagens de orixás. Um rapaz de olhos amarelados, cabelos cacheados e correntes no pescoço lançou para Otávio um olhar libidinoso ao mesmo tempo que soprava a fumaça do cigarro em sua direção. Desconcertado, o professor recuou e foi até o balcão na sala anterior para solicitar uma cerveja. Solicitou a cerveja e, enquanto aguardava, tentava localizar outra vez o olhar do rapaz. — Essa está bem gelada – falou o homem por trás do balcão ao entregar a cerveja. E falou, rindo com escárnio: — Tomando uns drinques, daqui a pouco tudo é só vontade... Otávio pegou a garrafa e se instalou em uma das mesas. Observou as imagens nas paredes: eram traços feitos com tinta spray, imperfeitos e de péssimo gosto. Na parede à sua frente, uma cortina de renda fora pendurada como ornamentação. A música alta daquele recinto forçava as pessoas a conversarem gritando. Mas a música alta não era só ali. Em todos os espaços daquela atmosfera havia caixas amplificadoras penduradas nas paredes, de onde saía o som dos sambas, pagodes e axés que embalavam insinuações e possibilitavam avanços. O submundo, pensou Otávio, enquanto bebia mais um gole de cerveja. Aquelas pessoas ou eram totalmente livres e viviam sem fingimentos ou eram como ele e estavam ali para o refúgio. De uma forma ou de outra, todas possuíam fantasmas habitando seus quartos escuros e os quartos escuros não podem ser abertos a qualquer hora e de qualquer jeito. Há que se preparar o momento e encontrar uma maneira. Ansioso, Otávio tinha necessidade de se locomover, por isso abasteceu o copo com a cerveja e se retirou, seguindo outra vez para o final do comprido corredor. Quis entrar no quarto escuro, mas hesitou. Apesar da ânsia, um medo. Entrou na porta seguinte, na sala que exibia o filme. Mãos complacentes se tocavam, mulheres e homens se inclinavam para as carícias. Olhares procuravam, espreitando outros olhares que pudessem retribuir a intenção. Daí a pouco, uma mulher nua se ofereceu e um homem avançou; na sequência, já um segundo homem se aproximou dessa mesma mulher; e quando um terceiro repetiria o gesto, Otávio saiu da sala e, num impulso, quase entrou no quarto escuro.
Os quartos escuros assustam. Mas o quarto escuro deste lugar... é impossível resistir ao quarto escuro deste lugar. Não o adentrou agora porque a coragem ainda era pouca e trêmula. Voltou ao bar, pediu mais bebida, ficou num banquinho ao canto, detetive, observando. O rapaz de olhos amarelados, cabelos cacheados e correntes no pescoço, ao atravessar a sala em direção ao corredor, ofertou-lhe um segundo convite com o olhar, e desapareceu. De onde estava, o professor tentava compreender aquela gente solta, escandalosa, estampada, fora de forma, desprestigiada, natural. Em seus diálogos, os palavrões eram constantes. Contavam histórias mirabolantes e carregadas de orgasmos. Xingavam uns aos outros sem o menor pudor. Tocavam em suas partes íntimas para reforçar os comentários, dramatizando, dando às histórias uma feição ainda mais real. Otávio foi ao banheiro só para poder circular de novo, depois perambulou pelo corredor, depois voltou ao bar, depois voltou à sala de cinema, a mulher e aqueles três homens já não estavam mais lá, ou pelo quarto escuro, quis entrar, desistiu. Subiu as escadas e, no andar de cima, outras pessoas se agarravam livremente à pouca luz. Homens suspendiam saias de mulheres e de dentro dos quartinhos escapavam gemidos sob as coloridas luzes opacas. Desceu. Otávio suava. Era ânsia, essa extrema vontade. Tinha que ser! Entrou no quarto escuro. É como ser cego e viver o mundo tátil. Respirações e mãos se procuram. Ele percebeu a presença de duas ou três pessoas por meio das mãos que o tocaram e do instante em que seu corpo no escuro se chocou em outro. Aos pouquinhos, os olhos foram se acostumando à escuridão. Quando a porta abria, a luz turva do corredor permitia ver um pouco mais, porém a porta logo se fechava, e o breu outra vez se instalava. A porta abriu e se fechou duas vezes e, em cada vez, alguém saiu, de modo que pareceu a Otávio que só havia ele naquela penumbra. Encostou numa das paredes e ali ficou, parado e mudo uns três minutos sob a escuridão, esperando. Foi então que um braço tocou o seu. Ele parado, não se atreveu a nenhum movimento. Mas veio uma mão deslizando pelo seu ombro e indo até o peito, onde atravessou os botões e foi alisar os pelos. Sem pudor, a mão foi descendo
um pouco mais e logo ali ficou, realizando uma carícia demorada. A boca de Otávio procurou a boca de quem ali estava e, ao beijá-la, ou a mão sobre o outro peito. Os seus dedos se enroscaram nas correntes envoltas no pescoço e depois subiram para os cabelos, uns cabelos cacheados. Otávio desabotoou a calça, estava afoito e arfava. Então empurrou os ombros do rapaz para que ele se ajoelhasse, e então a boca ignota avançou com lascívia. A fim de que o gesto ganhasse mais velocidade, puxava os cabelos cacheados daquele que para ele não ava de uma sombra, empurrando a cabeça do desconhecido em movimentos de vindas e idas. O quarto escuro em que a vida não se permite mostrar, mas acontece. O outro lado das coisas. Não haveria vídeo compartilhado para ridicularizá-lo. O garoto que podia matar sem que ninguém se assombrasse. Dizer ao filho sobre a inexistência de Deus só para indisciplinálo. Em meio à escuridão, a volúpia. E a supressão do mundo exterior. A música alta vibrava o seu ritmo frenético, e nos outros recintos certamente gestos iguais àquele aconteciam. Mas não exatamente iguais, porque Otávio, com mãos potentes e premeditadas, torceu o pescoço da vítima com tanta violência que o infeliz nem teve tempo de se debater. Deliberado, Otávio se inclinou para consultar pulso e coração. Não havendo sinais de vida, arrastou o corpo para um dos cantos do quarto e ali o deixou. Mas antes, puxou as correntes do pescoço e as colocou no bolso da calça. Com a camisa molhada de suor, abriu a porta e saiu. Atravessou o corredor, pediu outra cerveja, contou uma piada para o homem por trás do balcão e depois se sentou em uma das mesas. Terminada a cerveja, levantou, atravessou o corredor, ou pelo bilheteiro, deu boa noite, desceu os degraus iluminados pela luz azul e ganhou a rua. Seguiria para casa, onde mulher e filhos certamente o aguardavam.
O SAPATO NA JANELA
E lá foi o menino antes das seis da manhã com o corpo pulado da cama, em êxtase, de encontro ao sapato. Há mais de um mês esperava por aquele momento e agora ia com a dúvida no peito arfante. A arrebatadora visita teria vindo? Abriu a janela da frente da casa – mundo de mistérios – e avistou o sapato. Não um par de sapatos, mas apenas um pé, aquele que na noite anterior havia deixado para receber o presente. Estendeu a mão e tocou o objeto com o qual se vestia para ir à escola. Mas antes de olhar para o orifício onde os pés se encaixam, sentiu o coraçãozinho bater como se quisesse sair pela garganta, pois aquele era um mistério que ele estava prestes a desvendar e, tudo se confirmando, ele teria uma felicidade por companhia nos tantos dias que viriam pela frente. Dias antes, Moacir observava nuvens se misturando no céu. O sofá de sua casa, de onde deitado acompanhava as nuvens, foi perdendo a beleza dos primeiros tempos quando o desgaste pelo uso deixou que a espuma sob o plástico estufasse a cara para fora. Não só uma cara, mas duas, três, algumas. Desviando a atenção das nuvens para o sofá, Moacir depositava sobre o móvel um olhar clínico de cirurgião. Para o menino, a espuma estufada era tal qual uma carne viva que, rasgada, sangrava. Fitando o músculo que sofrera o corte, Moacir na verdade fitava a espuma do sofá, e então, se pensando médico, queria costurar o plástico rasgado, dar-lhe alguns pontos para estancar a hemorragia como quem fechasse a ferida. Se a mãe fosse mulher menos brava, pediria a ela linha e agulha e resolveria o problema. Mas não podendo ser médico sem os aparelhos necessários e sem a confiança da paciente, voltou para as nuvens porque para elas bastava o olhar: — Um dragão cuspindo fogo. — Um anjo varrendo o chão do céu. — Um cachorro com um osso na boca.
— Um pinheiro. O pensamento do menino vagava lá no alto, e embaralhava-se à medida que as efêmeras nuvens iam se transformando. Agora Moacir se esforçava para enxergar naqueles movimentos a imagem de um homem barbudo e seu trenó. Mas as nuvens não se firmavam de maneira que ele pudesse vislumbrar o desenho, e foi se cansando de esperar, especialmente porque nesse instante a mãe o chamava: — Moacir, é hora do banho! – gritava a mãe lá do fundo da casa. — Já vou! O menino, no entanto, não saiu do lugar. Para desembaçar os olhos das nuvens, mirou de novo para o sofá e dedicou-se às observações médicas. A pele se abrindo, a espuma saindo, o sangue, a carne estufando, era preciso uma cirurgia de emergência! Dali a alguns dias seria a noite de Natal. A professora comentara sobre o Papai Noel, que trazia presentes e os colocava dentro dos sapatos nas janelas. Expectativa. A princípio, ele não era o Noel, mas São Nicolau, e havia aquelas irmãs que precisavam se casar mas não tinham dinheiro. Em verdade, o garoto não compreendera a necessidade de as meninas precisarem de riqueza para conseguirem um marido, mas tudo bem, no mundo das histórias nem tudo deve ser questionado. O fato é que São Nicolau foi ganhando formas ao se espalhar pelo mundo e chegou por aqui com a roupa vermelha e o jeito de velhinho barbudo por ocasião do Natal. — E se eu colocar o meu sapato na janela será que eu ganho uma bicicleta? Expectativa. Puro pensamento quando já se é vontade e expectativa porque crença. Mas a crença esbarrou no tamanho, pois não se pode caber brinquedo tão grande em buraco tão pequeno. O que Moacir queria não cabia dentro do minúsculo buraco de um sapato. Ele queria coisas que em meio ao humor daquela infância difícil nunca pudera ter. Como não se adiantara para o banho da tarde, a mãe veio até ele, um pano entre as mãos, apressando-o:
— Vamos, é hora. Já para o banheiro! Vontade de falar com a mãe sobre o que a professora disse a respeito do Papai Noel, mas a mãe certamente lhe daria uma bronca. Diria para não acreditar em tudo o que se conta, talvez até dissesse que São Nicolau nunca existiu e que as três irmãs é história inventada. Quantas horas faltavam para o homem de barba branca descer escorregando em seu trenó puxado pelas renas até chegar à sua casa? Moacir ousou planejar que na noite do dia 24 de dezembro esperaria a mãe dormir e, quando a mãe estivesse roncando, ele faria plantão atrás da janela para vigiar o instante em que o velhinho chegasse e depositasse o presente no sapato. Faria exatamente isso se a professora não tivesse dito que o presente só era colocado depois que todos estivessem dormindo, que Papai Noel não se mostrava para ninguém, apenas deixava o rastro de sua visita nos presentes doados. Moacir entendeu que a tônica da ação consistia num mistério. São Nicolau virou santo porque associaram milagres a ele, e milagres são mistérios, de modo que mistérios são circunstâncias que não se querem compreendidas. Expectativa. — Que chato! — O que é chato? – perguntou a mãe, distraída, tirando com o pano o pó da estante. — Não é nada. — Adiante o seu banho, Moacir. Vencido pela insistência, o menino se levantou desanimado por deixar o sofá com sua hemorragia e não poder ficar olhando para o céu, caminho por onde o velhinho de vermelho ará. Terminado o banho, vai para a mesa, uma sopa o espera. Os pedaços de macarrão e legumes dentro do prato são disformes, mas ele vê pequenos bichinhos. Seus olhos desenham animações, crocodilos à espera de presas para alimentar sua fome, formigas boiam no meio de uma enchente. Coitadinha desta formiga! Ela precisa subir num tronco de árvore. Mas o tronco de árvore mais próximo já está ocupado por uma galinha que não teve tempo de escapar, e,
como se sabe, galinhas engolem formigas. Tempo esgotado, um gigante devora tanto a galinha quanto a formiga: é ele que, com sua colher, engole a comida. — Adeus, formiguinha! Nos encontramos no próximo capítulo. Termina a sopa, vai para o quarto, escolhe o sapato. — Tem que ser você, eu só tenho você, o único que tenho é você. Vai ser você. Observa, contudo, que o sapato está sujo. Corre a pedir à mãe que o lave. — Amanhã eu lavo – responde ela, os olhos na televisão. Vai para o eio da casa, senta-se junto à porta. Olha para o céu de muitas estrelas, caminho por onde o velhinho ará. Quantas horas faltam para o sapato receber o presente? Moacir se dá conta, todavia, de que está diante de um problema. No buraco do sapato não cabe uma bicicleta, e no bilhete que vai deixar dentro do sapato e escrito há mais de uma semana está dito que o seu desejo é o de ganhar aquele veículo de duas rodas, com o qual ele poderá pedalar até a escola. Buraco de sapato é por demais pequeno para caber coisas grandes. Papai Noel não podia orientar que colocassem uma caixa em vez de um sapato? Mas talvez a ideia fosse a economia de recursos, não se pode esquecer que existem milhões de crianças no mundo a solicitar presentes, e ele, Moacir, era mais um multiplicado. Fosse uma caixa, ele poderia pedir uma bicicleta, pois armada ou desarmada ela caberia. Fosse permitida uma caixa, e Papai Noel não tivesse o cuidado de informar as dimensões do produto, tudo estaria resolvido porque ele colocaria ao dispor do velhinho uma caixa do tamanho de uma geladeira. Buracos de sapatos têm dimensões diferentes mas em nenhum deles vai caber um objeto maior do que uma maçã. Nem se pedisse emprestado o sapato de um adulto ele resolveria o problema. De tanto pensar, veio a ideia: — Já sei! Vou pedir dinheiro, assim posso comprar a bicicleta. É isso! Corre até a gaveta onde guarda os livros da escola e pega o bilhete. Rasga o bilhete. Arranca uma folha do caderno e refaz o pedido, escrevendo ao tempo que o pronuncia:
— Querido e esperado, Papai Noel! Espero que faça uma boa viagem ao vir para cá. Eu ia pedir uma bicicleta, mas uma bicicleta não cabe no buraco de um sapato. Então solicito o dinheiro para que eu possa comprá-la. E assina. Guarda o bilhete atualizado no lugar em que o anterior estava. Fecha os olhos e pensa em São Nicolau. Pensa também nas três irmãs. E pensa em milagres porque aos oito anos de idade não é difícil crê-los. A maior dificuldade consiste em esperá-los acontecer, o que é diferente, não porque haja dúvida – isso não está em questão –, mas porque há ansiedade, que gera os longos dias. Assim, as duras horas se arrastaram pela vontade de avançá-las. Sol e Lua se demoraram feito castigo para aquela infância que via na probabilidade do brinquedo a possibilidade da alegria. Eis que chega a esperada noite. Essa é a noite que levará ao amanhecer da grande comprovação. Na casa ao lado, luzes coloridas piscam ao ritmo da música natalina. No sobrado em frente, as luzes coloridas não cantam, mas ornamentam a fachada da varanda, enquanto na casa de Dona Conceição o piscapisca enfeita a palmeira do rol de entrada. Em sua casa, o tom natalino é dado pelas luzes preta e branca da televisão e piscam à medida que as imagens avançam. A mãe de Moacir assiste à televisão, ela que atendeu ao pedido do filho e lavou os sapatos, julgando que ele os usaria nesta ocasião. Por alguma espécie de constrangimento, nas noites de Natal esta mãe não deixava a casa aberta como nos dias comuns, e nem as luzes ligadas, era seu modo de se defender por não ter presépios nem presentes a oferecer. Ela não sabe, mas o filho espera. Espera que as horas terminem de maltratá-lo, levando-o ao amanhecer em que tomará o dinheiro nas mãos e correrá à loja para adquirir o tão sonhado veículo de duas rodas. Mas aí veio uma dúvida, e por isso roeu uma unha. A professora disse que o Papai Noel traz presentes dentro do seu grande saco de mil coisas, ela não disse se nesse caso há dinheiro. E, não havendo, o que vai acontecer quando o velhinho ler o seu bilhete? Deixará qualquer outra coisa no lugar ou simplesmente deixará o sapato vazio?
Deseja que o sono chegue logo, que o envolva, que o leve às primeiras horas, mas ele não vem, e ainda é cedo. Ouve gritos de alegria na casa ao lado, estão abrindo os presentes. Mas ele não se importa, ele ganhará o melhor presente de todos, o presente que, como um mistério, vai chegar durante a madrugada, e isso o torna alguém ainda mais especial. — Filho... vem cá. Segue os os da mãe que se dirige à cozinha. Ela retira a tampa de uma vasilha plástica e, surpresa, lhe apresenta algumas fatias do queijo com pele vermelha, doação de uma irmã. — Pegue. Ele olha desconfiado para o alimento. Serve-se de uma fatia, o rosto se encrespa. — É salgado e amargo – resmunga. — Bebe café que sai o gosto ruim da boca, orienta a mãe. — Na casa de Dona Conceição deve ter peru assado. — Quem lhe disse? – perguntou a mãe comendo o queijo de pele vermelha e servindo café para ela e o filho. — Tito. — Disse mas não lhe convidou. Quer mais açúcar? — Convidou sim, mas a senhora não ia deixar eu ir... Quero sim. — Dona Conceição não esquece da gente. Amanhã ela traz um pedaço. Terminam a ceia e o garoto tem vontade de ir para a cama esperar o sono chegar, mas antes precisa colocar o sapato na janela, o que só pode ser feito depois que a mãe desligar a televisão e dormir. Porém a mãe assiste à novela, empolgada, e ele se acomoda ao lado dela para assistir também. — Você nunca vê essa novela... — Não tenho sono.
Moacir olha para os rasgões no sofá. — Vontade de operar esse sofá. — O quê?! Operar? — Costurar, fazer uma cirurgia nele. — Por quê? Tá feio? — Tá ferido. — Você e suas ideias. E se voltam para a televisão. Longa noite, pensa Moacir. Ainda tem que assistir à novela que ele não gosta. Mas como tudo o que se arrasta não se arrasta para sempre, a mãe resolve ir se deitar, e o menino ainda espera os prolongados minutos até que ela pegue no sono. Como não ouvisse o motor do ronco, dirige-se ao quarto da mãe sem fazer barulho e coloca-se a escutar por trás da cortina de tecido. Ela não ronca, mas tem a impressão de que respira profundamente. Todas as luzes estão apagadas, é seguro que possa ir? Se a mãe não fosse uma mulher brava, teria contado a ela o seu propósito. Clandestino, os pés furtivos, Moacir destranca a porta, tem nas mãos o sapato lavado. Põe os pés no eio da casa, uma brisa fria toca o seu rosto, ele deposita o pé de sapato no parapeito da janela. No meio da noite, o sorriso das luzes coloridas das casas da vizinhança. Cuidadoso, faz o percurso de volta e vai para a cama, louco para dormir, louco para acordar. Prolongados instantes. Os olhos não querem fechar, até que sem se dar conta eles se fecham e o menino adormece pensando no futuro, as próximas horas. Era o princípio da manhã, o sol ainda meio coberto pelo cobertor da noite. Moacir saltou da cama, Papai Noel já teria ado e cumprido o seu mistério. E lá foi o menino antes das seis da manhã com o corpo pulado da cama, em
êxtase, de encontro ao sapato. Ansioso, desconfiado. Expectativa. Não abriu a porta, abriu a janela para ver sem mistérios e sem rodeios. Pegou o sapato e enfiou a pequenina mão, procurando. Tirou a mão, virou o sapato, sacudiu. Não caiu nem uma moeda, as moedas de ouro lançadas pela chaminé por São Nicolau na casa das três irmãs. Insistindo, outra vez enfiava os dedinhos, tateando o pouco espaço que havia dentro daquele objeto de pano e borracha. Nada. Havia um beco ao lado da sua casa. Quem sabe Papai Noel tivesse deixado a bicicleta ali por segurança, não era impossível. Temendo acordar a mãe antes da hora, não abriu a porta; pulou a janela e foi até o beco para averiguar. Mas no beco só encontrou o silêncio enquanto dentro dele se formava um barulho. Então aos poucos foi se convencendo de que Papai Noel não dá dinheiro, apenas presentes. Pequenos presentes, desses que cabem na abertura do sapato. Mas a infância é estação das esperanças e das expectativas. E se Papai Noel houvesse deixado a bicicleta no fundo do quintal? Voltou para casa, correu ao quintal. Quintal grande, talvez estivesse no meio daquelas coisas empilhadas. Procurou, procurou. Nada. Vencido, andou lentamente até o quarto e depositou aquele pé de sapato junto ao outro pé que lá estava. Lado a lado, simples imagem, um simples par de sapatos. Sapatos velhos e limpos que ele usará no ano seguinte para ir à escola se os pés não crescerem muito. Por sua frustração, não havia a quem reclamar. Não se queixar à mãe nem a ninguém. Ninguém saberá o seu segredo. Moacir se deitou outra vez na cama ainda quente, ali era bom, seguro, podia pensar. Encolheu-se na cama, abraçando o seu corpo, sem presente.
ANTÔNIA FLOR
Quem sabe Antônia sempre fizera a sua própria revolução, colocando em choque os dois mundos que habitava, o do pensamento e o da vida prática. Ou talvez nem os colocasse em choque, mas em convívio, de modo que um não interferisse no outro por suas funcionalidades distintas. Juntando as opostas realidades da mulher bifurcada em duas, ela era inteira, servindo ao trabalho para o alimento do corpo e servindo ao devaneio para as estratégias da alma. — Filho... O filho não estava. A casa, constantemente a casa e ela. Na casa de meio quarto, meia sala e meia cozinha, pedaços dela espalhavam-se pelos cômodos que abrigavam os poucos móveis que possuía. A televisão antiga sobre uma escrivaninha, uma poltrona de sofá, um fogão, uma geladeira com pontos de ferrugem, e no quarto um colchão sem cama. Mas Antônia, como qualquer pessoa vaidosa, tinha o seu desiderato e investiu dinheiro no objeto que para ela valia mais do que um fogão e uma geladeira: um espelho de dois metros. Não saía de casa sem antes consultá-lo, mostrando-se para ele como uma despedida. Em verdade, apenas se mostrava para ser vista. Não cobrava os acréscimos, não exigia que o espelho apontasse uma falha no batom ou no cabelo ou lhe observasse a combinação da roupa. Não era isso, Antônia não tinha o espelho como consultor estético. Ao que parece, ela só queria ser vista pelo espelho e por ela mesma. Por isso não pergunta se existe outra pessoa mais irável que ela, pois, além de saber que a resposta é sim, está convencida de sua anêmica beleza, essa forma herdada de alguma natureza hostil. Vestiu a farda repetida, que guardava o suor do dia anterior, e foi para o trabalho. O trânsito não a invadia e o boné escondia parte do seu rosto, o boné asfixiava o seu cabelo crespo e amarelado, que sufocava por dentro. O andar desalinhado e vagaroso, levando-a ao compromisso que lhe abençoava a sobrevivência. Cumpria limpar ruas, separar os sólidos da poeira, recolher o que não pertencia
aos lugares para dá-los o tratamento devido. Empurrava agora o carrinho de mão. Parava, varria a distância de um espaço, avançava alguns os, empurrava de novo o carrinho de mão, parava e varria, ia varrendo e separando o lixo que enchia o compartimento previamente revestido com saco plástico. — Ei, vem cá... Era o eco de uma lembrança descortinando pedaços de frases do tempo que ainda nem tinha dez anos de idade. Quando criança, seu sonho não era ser coletora de lixo, mas também não se recorda que sonhasse em ser alguma coisa se já era ser alguma coisa quando as ordens da mãe exigiam que ela fosse às portas pedir comida. — Garotinha... Ei, vem cá. Como o fluxo de veículos e pedestres não a invadisse, recortes de antigos instantes eram como fogos de artifício no reservado das lembranças. A garota loira de cabelos embaraçados, e que não sonhava em varrer ruas, atendia aliciada e com malícia ao chamado. O adiantado corpo culminaria na vida que agora se formara, mas por aquele tempo, embebido na incompreensível vaguidão, não se pensava, apenas cumpria curiosidade, ambição, inocência. O que não estava desvinculado de outra ordem. Não havia rendimentos ou receitas de pai ou mãe que lhe garantissem assistência, a mãe sobrevivia da reciclagem e gastava o pouco que ganhava com as aguardentes, enquanto o pai não se sabia por onde andava. Enquanto isso, nas portas a que se expunha pedindo comida, de vez em quando uma se abria e ofertava um convite: — Entra aqui... — Cadê a boneca que você disse que ia me dar...? – pergunta a menina um pouco arisca. — Da próxima vez eu te dou, respondeu o homem de cabelos rasos lançando
sobre ela um olhar de malícia, a voz já um pouco murmurante. — Mas você disse que ia me dar ontem e não deu. — É verdade, eu falei, desculpa. Desculpa, meu amor! Faz o seguinte, vem aqui, aí eu juro, juro de verdade – e beijou os dedos indicadores em cruz – que amanhã eu trago a boneca. Pode acreditar em mim, eu te dou a minha palavra. Teria o quarto cheio de bonecas se as promessas houvessem se cumprido. Embora hoje, ela cogita, as teria queimado, como se aniquilando as bonecas extinguisse cada convite aceito. — Te dou um pacote de biscoito recheado se você deitar aqui ao meu lado – oestava o homem de cabelos rasos. E em outra casa era a voz de um rapazinho magro: — No meu quarto tem suspiro. Vem que eu te dou um. A menina seguiu o rapazola até o quarto, mas em vez do suspiro ele lhe estendeu um chiclete. — Cadê o suspiro? — Se você deitar em minha cama e deixar eu te ver, eu te dou. Ela deitou, mas depois de cumprir sua parte o rapazinho magro pediu um momento: — Fique aí, eu já volto. Antônia se recompôs enquanto esperava. Naquele dia ainda não havia conseguido nada, e sua mãe esperava-a bêbada em casa. — Olha só – falou o rapazola quando voltou, as mãos vazias – eu guardei um suspiro inteiro na geladeira, mas não está mais lá. Minha mãe foi com meu irmão para a casa de minha avó, e eu acho que ele pegou. Mas não liga não, Antoninha, outro dia eu te dou em dobro, te dou dois. Antônia encostou a vassoura no carrinho, abriu a garrafa de água, serviu-se um
pouco. Depois da água, atravessou a rua e entrou na bomboniere em frente. — Me dê um suspiro, falou – e em seguida: – Um não, o dobro, quero o dobro. Dois, dois suspiros – vingou-se a moça do ado sem boneca, suspiro, nem biscoito recheado. Pagou e saiu comendo o quadradinho doce e ornamentado, feito de açúcar e claras de ovo. No fim da tarde, voltar para casa. A casa de pequenos cômodos e em cujo quarto havia uma improvisada prateleira de plástico branco já meio amarelado em que ela organizava as suas roupas. Ao lado desta prateleira, o espelho de dois metros. Nunca sabe se vai encontrar o filho em casa. Teme o dia em que talvez nunca mais ele retorne. Tem doze anos, e os outros quatro, mais novos que ele, entregou-os para adoção. — Filho, cheguei! Está em casa? O vento empurra a janela contra a parede e balança a cortina, e é toda a presença que há. O resto é continuidade da vasta vida rasa. O filho anda por caminhos atravessados, dizem, dizem também que ele é muito temido, um famigerado. Ela prefere não saber ou pensar muito pouco sobre. — É meu filho e basta! – diz ela mirando-se no espelho. Não podendo dar ao filho a infância que não teve, não podia impedi-lo do futuro que se anunciava. Se ela tivera o corpo adiantado, o filho também tivera. O adiantado corpo que tantas vezes culmina na tragédia humana. Ele é o avesso de uma humanidade, ela o avesso de uma grandeza. Mãe e filho feitos da mesma substância, mas substâncias que resultam em coisas diferentes. É que os destinos, apesar das mesmas estradas, são feitos de probabilidades e, por isso, de incertezas. Voltando de mais um dia do mesmo trabalho, abriu a casa, chamou pelo filho, o vento balançou a sua ausência, ela percorreu a pequena casa. De vez em quando, depois do banho, a revolução. Hora de vestir uma peça limpa lavada com amaciante. Vai para a frente do espelho, a peça mais interessante que
possui. Vislumbra-se. Tomada banho, exibe para o espelho o corpo sem roupa. Lembra do batom, abre uma caixa, procura, procura, apanha um cor de uva. Volta para o espelho, essa grandiosidade. O espelho tem olhos psicanalíticos. Seria bom se pudesse ouvi-la, mas para ela basta que a veja. Pinta os lábios que evita levar à rua pintados porque se os levar à rua pintados é como dar ao grande público a lembrança da garota convidada. A garotinha que batia nas portas para pedir comida e que tantas vezes era chamada a entrar, não por uma vovozinha ou por uma família que lhe oferecesse sopa, mas por um indigesto prato de maldade. Os lábios púrpuros de uva guardam memórias de antigos gritos calados: mudos gritos presos ao pensamento – mais vontade de gritar do que propriamente o grito – pois, suprimindo o grito, restavam os soluços abafados quando o corpo incipiente se obrigava adiantado para o cabimento dos outros. O batom era só para si e para o seu espelho. Gostava de borrar a boca. Ali, o batom nada acusava, tinha um sabor bom, um cheiro delicado. A boca aumentada pela tinta excessiva que ultraava a curvatura dos lábios. Quase riu entusiasmada pela simplicidade do instante. Colocou aquela calcinha e sutiã de renda ganhados por engano no amigo secreto do ano ado. Não usara porque esperou encontrar namorado, mas o namorado não veio, então amanhã ela colocaria por baixo da farda para varrer ruas. — Ninguém nunca vai imaginar que por baixo daquele macacão cinza haverá essa linda renda – contou ao espelho com sarcasmo. Aproveitou o instante para ser completa. Pôs nos pés aquele salto alto comprado e fadado ao escuro de uma caixa há mais de dois anos. Calçou-os. Revolução da alma e do corpo. Riu de si pela altura que ganhara. Em desequilíbrio, desfilou para o espelho. Caiu, achou graça, gargalhou. Estranhou o próprio riso porque aprendera a rir baixo ou nem os ter, como aprendera a abafar gritos. A sua presença naquele quarto se performando diante do espelho era como a presença de uma outra de si, de modo que tudo era compreensão e leveza. Antônia possuía um gênio da garrafa, o qual se manifestava com roupa íntima,
batom e salto alto: — O que você deseja? Só tem direito a um pedido. Pense bem, porque depois de feito não poderá voltar atrás – falou, mudando a voz e vendo-se dentro do espelho. Fechou os olhos e fez o pedido: — Quero que meu filho mais velho nunca morra e que os outros quatro adotados sejam felizes na nova família. Findada a oração, ajeitou o cabelo com a mão, já um pouco inimiga de alguma coisa. Talvez tenha desconfiado de que, apesar de ter feito um pedido único, fora um grande pedido, tão grande que para virar realidade quem sabe fosse preciso mais de um gênio da garrafa. E se dirigiu à cozinha com o salto alto, os lábios aumentados pelo batom e a pouca roupa. Bebeu café se imaginando sentada num jardim, desses que existem na frente de certas mansões. Vi isso na Sessão da Tarde uma vez, pensou. E quase riu; ou riu calada. É fatal, no entanto, que as coisas se transformem. As batidas na porta não eram comum. Cobriu o corpo com uma toalha de banho e foi ver quem era. — Antônia, posso entrar? Era a vizinha, uma quase amiga. Diria amiga se amigas tivesse. — Sim, claro... A vizinha vinha séria, a expressão carrancuda de quem anunciaria uma tragédia: — Tenho uma péssima notícia. Como se a mãe soubesse o fato, foi largando o corpo cair no chão. Nos pés, o salto alto da alegria anterior; e nos olhos umas lágrimas já escorriam. — Ele foi cercado pela polícia. Dizem que reagiu, atirando...
Depois de longo choro e ficar parada no silêncio que se instalou, olhou para o lado e avistou no chão a farda acumulada do cheiro de sucessivos dias de trabalho. No dia seguinte não varreria as ruas porque iria ao enterro. Olhou para a vizinha, descalçou os pés, seguiu para o quarto, guardou como uma criminosa os tamancos na caixa. Quem sabe usasse na próxima semana, na missa de sétimo dia. Iria bonita, elegante, para que seu filho a visse de onde estivesse.
A ÁRVORE DO FUTURO
Chamava-se Aristides e tinha noventa anos. Em verdade, neste dia quente de outubro, estava a completar as nove décadas de uma felicidade que fora construída aos pedaços e aos engasgos. O que fizera de uma vida que julgara devesse ser plena e completa como uma história perfeitinha: princípio, meio e fim? Ao menos plantara um nome que não findaria quando a vida se cansasse dele e o levasse, esse nome que ficaria para sempre impresso no nome da filha que agora mora na Argentina e já lhe dera dois netos, e no do filho, esse cirurgião plástico que está vindo lhe visitar por causa deste aniversário de noventa anos e cujo presente solicitado fora uma viagem. O filho médico se chama Arturo, com o mesmo A de Aristides, tudo intencional para que o filho carregasse não só a genética, mas alguma marca além do sangue, algo extrínseco, que não fosse somente um traço do rosto, algo que o pai tivesse doado ao filho de propósito, não como um pensamento, pois que por subjetivo era duvidoso, mas como uma tatuagem com a qual não se nasce e depois se escolhe ter. O aniversariante chegou na sacada do décimo oitavo andar e olhou para a cidade. — Deslumbrante! – exclamou, sentindo o vento que bateu em seu rosto. Fazia mais de ano que este senhor não pisava os pés na varanda do apartamento, não se sabe se por zanga ou por protesto, o certo é que não era por medo, senhor Aristides não tinha medo de altura. Medo sempre tivera de perder para a morte a esposa, que a morte depois levara. Esse fora um medo que lhe rondara, carregando sua intuição de densos pressentimentos que ele se esforçava por disfarçar e não dizer, temendo que, dizendo, se tornasse realidade. A realidade veio sem atraso e precoce, considerou, e por isso mesmo a realidade levou Marta para a Argentina, esta filha que não conseguiu ar e ficar, preferindo ir esquecer a dor lá nas águas do sul, era o que o velho ponderava no dia do seu aniversário enquanto esperava a chegada do mais velho.
— Deslumbrante! – repetiu, os olhos fitos na distância, o corpo bambo na varanda. Olhando para o horizonte, era como se possuísse aquela cidade inteira. Dali de cima, ele era o menino pobre transformado em alguma coisa que não permanecera inalterada, ele, Aristides Feitosa de Carvalho, um emergente, o garoto salivando pelo chocolate que não podia ter, o chocolate impossível, ainda uma criança, ainda ontem. Não ouviu quando o filho abriu a porta, só o sentiu ao seu lado: — Pronto, meu pai. Aqui estou. Feliz aniversário. O velho se virou com dificuldade e viu o rosto sério do filho. Ele sabia, o filho não estava contente em deixar o trabalho para lhe atender o pedido. — Olha, filho, como é deslumbrante – diz o velho, apontando com o queixo o azul sobre a praia lá adiante. Mas para chegar ao azul, os olhos am pela cidade, de modo que quando fazemos esse movimento não vemos apenas arquitetura, a fria pedra erguida, nós vemos uma beleza. Tentando captar a sensação abstrata que o pai lhe oferece, o filho direciona os olhos para a distância, buscando apreender o pensamento do pai, este senhor que já vivera o bastante para caducar. — O que é deslumbrante, meu pai? A cidade? – pergunta e está um pouco tenso, havia uma paciente nesta tarde e por causa da visita precisou cancelar. — Você não sente, meu filho? Não sente que apesar de todo o concreto, de toda a estética, tem uma coisa a mais, algo que não é palpável? — Não, não sinto, meu pai. — Então eu acho que eu errei com você. Aristides Feitosa de Carvalho deu as costas para a cidade e foi andando lentamente em direção à sala, não adiantava conversar com quem era pura matemática. — O senhor errou comigo em quê, meu pai? – pergunta o filho, seguindo-o e lhe
dando o braço como apoio. — Amanhã eu te conto. — Amanhã durante a viagem, né? E o celular de Arturo toca, ele atende, ouve, responde: — Remarque essa também. Diga que precisei me ausentar por causa de um problema familiar e tenta ver outro horário. Diz a ela que de verdade eu sinto muito... O cirurgião respira fundo, desliga o aparelho, deposita-o no bolso da calça. Mais uma consulta importante sendo adiada, e amanhã haverá uma reunião da qual não vai poder participar, o pai tinha que inventar essa viagem justamente nesse momento de sua carreira?! O velho, como se lesse o pensamento do filho, falou: — Qualquer instante que eu lhe pedisse para me levar seria assim, filho. Ou você acha que daqui a cinco anos as coisas vão ser diferentes? Sempre haverá pacientes, o povo quer mudar o nariz e os peitos, o povo quer mudar a cara, e a fila é enorme. Mas a filosofia do pai era rasa para Arturo, que não se via como médico, mas empresário, para quem tempo é dinheiro e cada cliente é indispensável. — Isso não é deslumbrante, filho. — O quê, meu pai? — Isso que você está aí pensando. — Você e suas ideias. Aristides se acomodou numa poltrona. Amanhã tomariam a estrada. Não queria que o filho o levasse, pediu a ele um motorista no ano ado, mas Arturo se recusou, dizendo que o pai só iria se fosse com ele, então o convenceu a esperar um pouco mais até as coisas se acalmarem, as coisas não se acalmaram, até aumentaram, o pai pedindo apenas um motorista, não queria morrer sem antes voltar à cidadezinha onde nascera, é certo que não havia mais parentes vivos, mas era importante para ele, só ele sabia o quanto.
— A gente vai chegar lá depois de dez horas de viagem, isso se formos sem parar, coisa que não vai acontecer, o senhor vai dar uma volta na pracinha da cidade, vai ver a igrejinha, a padaria, a farmácia e acaba o eio, é isso, meu pai? — É isso, meu filho, é isso. O pai respondeu com aquele modo que ele tinha de dizer quando queria abreviar uma polêmica. — O senhor quer alguma coisa? — Só descansar e guardar as forças para amanhã. Como você falou, são mais de dez horas de estrada... Eu vou dormir cedo para amanhecer bem disposto. Bem disposto, pensou Arturo vendo o pai realizar os movimentos que cada vez mais apresentavam um corpo que se entrevava. O filho foi à cozinha, preparou um mingau, veio dar ao velho, que, sem reclamar, aceitou. — O velho mingau que sua mãe fazia... O filho não respondeu, em vez disso pediu licença e foi para a varanda, não para ver a paisagem até o horizonte e tentar perceber a poesia vista pelos olhos do pai, mas para dar telefonemas e acertar detalhes daqueles três dias que ficaria longe da clínica, um estrago! Falou com a secretária, deu ordens, pediu respostas e exigiu soluções. O que o pai tinha de inventar aquela viagem para uma cidade tão distante justamente naquela semana em que haveria consultas, reuniões e cirurgias? Mas Arturo desconhecia uma semana em que não houvesse o que dar conta. Pela sorte, outros médicos podiam substituí-lo se o paciente autorizasse, mas isso não era bom, isso era péssimo, vislumbrou calculista e inflexível. Voltou para a sala, ver se o pai havia terminado o mingau. Lá estava ele já quase dormindo na poltrona macia, o copo largado no colo. Pediu que o ajudasse a ir para a cama, a cama em que não havia mais a presença de Lúcia. — A morte a levara tão cedo – resmungou para o filho. — Todos morremos um dia, meu pai. Mais cedo ou mais tarde.
— Olha quem está dizendo... o homem que prepara as pessoas para morrerem bonitas. É como colocar maquiagem no rosto e ir para o caixão, só que tem uma diferença: essa maquiagem custa caro e não tem água que apague, não é, meu filho? Aristides riu e quase fez o filho rir também. Mas Arturo estava tão irredutível que não se entregou ao relaxamento, era assim desde criança quando não queria fazer uma coisa e a mãe o obrigava, já que o pai nunca foi de impor determinações. Às quatro horas da manhã do dia seguinte, o pai se dirigiu ao quarto em que o filho dormia e, vendo-o enrolado na coberta, tão seu, tão criança ainda, falou o que falava quando ele era adolescente e o despertava para cumprir as obrigações: — Interromper descanso! — Já são horas? – perguntou Arturo, demonstrando preguiça. — Quem trabalha demais tem insônia, dorme mal feito você. Por isso está assim. Já eu, que sou aposentado... Meia hora depois, tendo iniciada a viagem, Arturo dava início ao presente que o pai tanto queria. Se ao menos Marta não estivesse em outro país, o irmão entregaria a ela essa missão, mas agora não havia jeito, era dirigir e chegar. Aristides abre o zíper da pequena bolsa que tem nas mãos e retira o doce de dentro. — O que é isso? — Prestígio. — Uma hora dessas, seu Aristides? — E tem hora certa para comer um chocolate? O filho acelerou um pouco mais. O pai era difícil às vezes, a teimosia indomada. Havia de se ter muita paciência! Dentro do carro se instalou um silêncio, desses quando cada qual se fecha no barulho de um pensamento até quando o homem de noventa anos voltou a falar:
— Filho, existem coisas que você não sabe – e a voz do velho era uma voz pausada, baixa, emocionada, era a voz de um pai que, apesar da idade avançada, não perdera a autoridade –, existem coisas que você não sabe e coisas que você não percebe. Talvez nunca venha a perceber se continuar na ambição de mais e mais, o que é uma pena. Porque veja... eu e sua mãe criamos você e sua irmã para serem grandes, mas não para serem tolos. Eu tenho orgulho de você, orgulho de você ter alcançado o que desejou, de ser um homem responsável, sério, íntegro, eu tenho orgulho de você. Mas não tenho orgulho da sua tolice. — Então eu sou um tolo? — É, você é um tolo. Novo silêncio. O pai mordeu um pedaço do prestígio e Arturo acelerou de novo, estavam longe de chegar, aqueles primeiros quilômetros eram só o começo. Haveria uma reunião às dez horas e ele pediu para o Teixeira lhe substituir. E, de acordo com o pai, ele era um tolo. — Não estou dizendo que você não é inteligente, estou dizendo que você é ingênuo. Ontem, por exemplo, o seu olhar estava morto, você não conseguiu ver a beleza que eu te mostrava lá no horizonte... — Só porque o senhor me mostra a bobagem de um céu! Eu vejo o céu todo dia, meu pai! Estou indo para a clínica, eu vejo o céu; agora mesmo, estou dirigindo a caminho dessa cidade lá no fim do mundo, terei todas as horas para ver o céu. É isso, o senhor me mostrou uma coisa que eu vejo todos os dias! — Você tem razão, meu filho. Você vê, sim, você vê o céu, mas o que você sente? Sente que vai ser um dia de sol, sente que vai chover, é isso que você sente? O filho não respondeu. — Quando eu era criança lá nesse fim de mundo para onde você está me levando, a gente aprendia a sentir. Sabe por quê? Porque nós não podíamos ter. Ter não é igual a sentir. Por exemplo, eu sempre achava linda a embalagem desse chocolate, essa embalagem vermelha e branca. Eu ficava imaginando que o vermelho representava a parte do chocolate ao leite e que o branco era o coco sob a camada escura. Sabe o que acontecia? Eu não podia comprar, eu não tinha dinheiro. Nosso doce era a cocada que a vovó fazia, coco e açúcar, mas não
havia a camada de chocolate ao leite, essa gordurinha gostosa. Eu ia na venda comprar o pão da tarde – isso quando havia dinheiro para o pão! – Eu ia para a escola, pequeno e magro, e no caminho havia a venda de Dona Estelita. Às vezes eu parava e ficava contemplando o prestígio, tentando adivinhar de novo o gosto que eu conheci uma vez por meio do pedaço que um amigo me deu. Não era fácil ter as coisas, então nós aprendíamos a sentir, a intuir, a imaginar, e isso nos dá a possibilidade de ver as coisas com deslumbramento. — Meu pai, eu não tenho culpa se o senhor viveu uma infância pobre. — Não é culpa o que eu quero que você sinta. O que eu espero de você é o deslumbramento. Mas Arturo não nadava na mesma água que o pai. E, se nadava, não mergulhava, mantendo as braçadas ativas para não afundar, ele queria chegar, enquanto o pai ia procurar corais lá no fundo. Os olhos de Arturo mediam a distância, nadar até a margem, nadar para chegar, a terra firme era um bom lugar. — Lembra de quando você era criança, Arturo, e eu te levava para o mar? Tudo o que você queria era nadar para se salvar. Você não apreciava aquele instante, não ficava ali mergulhando, você só queria a areia da praia. Mas eu te entendo, meu filho, você é um calculista. — É por isso que você está comendo esse chocolate agora? Para se vingar da infância? — Acontece que meu filho Arturo usa uns termos inapropriados para a questão. Eu não diria que estou a me vingar. Eu diria que estou a alimentar minha alegria quando nesse instante me recordo de algo que eu sempre gostei mas que nem sempre eu pude ter. Acontece que meu filho Arturo quando criança comia todos os doces que queria, não sabe o que é não ter dinheiro para comprá-los. Parar em um posto de gasolina para abastecer, ir ao banheiro e alongar o corpo. Beber água e café. Eram oito horas da manhã, o cirurgião iria aproveitar para dar uns telefonemas. — Não tem que fazer uso de alguma medicação, meu pai? — Sim, eu tenho. Uma cervejinha.
— O quê? — Pega uma latinha pra mim. — Sem chances. A viagem ainda vai demorar e cerveja pede banheiro. Cerveja não. Horas depois, transcorridos mais de quinhentos quilômetros, a cidade parecia se aproximar. Já não estavam lá porque Arturo precisou fazer várias paradas para o pai esticar o corpo, exatamente como agora. — Droga! Aqui não tem sinal de celular. — E para que você quer sinal de celular? Pelo amor de Deus, homem das galáxias! Quando a gente faz uma viagem a gente procura esquecer tudo o que ficou para trás, a gente quer viver dali para frente. Você não consegue entender isso? — Eu preciso saber os detalhes da reunião e de outros procedimentos, meu pai, mas deixa pra lá, são coisas que você não vai entender... Pai e filho voltam para o carro e seguem a estrada. — Você sabia que quando eu era criança eu plantei uma árvore? — Lá vem o senhor com suas histórias. — Não é história. É fato. — Então, tá. Me conta esse fato. O médico queria ouvir as histórias mirabolantes do pai para esquecer as preocupações e ver se a viagem terminava logo. Ele ainda não havia se convencido de que estava a atender o pedido do seu Aristides quando o mundo que ficou lá atrás exigia tanto a sua presença. Que invenção essa de voltar a uma cidadezinha do ado para fazer nada. — Vai, pai, conta. — Eu tinha nove anos e cursava a quarta série do primário. Foi por ocasião da
comemoração do Dia da Árvore. Nossa escola era formidável, os eventos eram constantes, simples, mas constantes. Eu tinha uma relação muito próxima com a minha professora Inês. E nesse dia todos os alunos foram convidados a seguir até o jardim mais próximo. Chegando lá, a diretora fez uma oratória sobre a importância do meio ambiente, uma estudante leu um poema de sua autoria e o instante final estava reservado ao plantio de uma árvore. Não de uma árvore, se é que me entende... mas de uma muda, aquilo que se tornaria uma árvore depois. — E o senhor foi o aluno que plantou essa árvore. O ancião olhou a paisagem com uma expressão suave no rosto. Ele sentia demasiado orgulho da árvore plantada. Um ano depois, quando a mãe veio embora para a capital à procura de trabalho e o trouxera consigo, a árvore ainda era aquele corpo frágil e vulnerável, qualquer mão algoz, quando anseia cumprir uma maldade, podia destruí-la. De vez em quando escrevia cartas à avó para saber se a planta continuava viva, e sua avó o reconfortava, sim, meu neto, ela ganhou caule e raiz, vai vingar. — Eu plantei a árvore, meu filho, fui eu quem plantou a árvore. O telefone do médico tocou, ele quis atender, mas o pai o impediu. — Não seja estúpido, Turo. Estamos falando de árvore e você com esse pensamento de pedra! Em verdade, quando o pai solicitara ao filho um motorista para conduzi-lo àquela viagem, o pai sabia. O pai sabia que o filho, por mais pedra que fosse, seria incapaz de deixá-lo ir sob os cuidados de outra pessoa. Por isso tivera paciência de esperar durante um ano, o filho protelando, dando as descabidas desculpas, ele fingindo acreditar. Aristides conhecia Arturo, Arturo só o deixaria ir se fosse com Marta, mas Marta não mora mais no Brasil. E o pai amava aquele filho de pedra que, até certo ponto, fora um projeto seu. Projetara garantir para ele uma infância com chocolates e os devidos brinquedos, os sorvetes e os leites fermentados, tudo o que ele não tivera por causa dos tempos difíceis. Projetara dar ao filho um caminho seguro, uma profissão rentável, uma segurança. Mas Aristides reconhecia que perdera o ponto, o filho se tornara robusto financeiramente, mas não conhecia o encanto que advém da simplicidade, coisa com a qual ele sempre convivera. Então tropeçara.
— Marta também é ambiciosa que nem você, Arturo. Mas vocês são fracos, são incapazes de ar um dia sem a droga de uma internet, e isso não é força, ao contrário do que vocês pensam. A diferença entre vocês é que sua irmã não queria o desgaste do estudo, preferindo deixar o corpo no ponto de consumo, até que achou esse gringo endinheirado com quem casou. Tudo bem, ela sabia que sempre a criei livre para ser grande, e que bom que deu tudo certo, podia ter dado errado, mas não deu. Mas é que tá faltando... Arturo não quis perguntar o que estava faltando, não queria render mais conversa; o pai estava conseguindo tirá-lo do sério e ele queria manter o equilíbrio familiar, pois já bastava o incômodo causado pelo distanciamento das atividades profissionais. Era por volta de quatro horas da tarde quando o carro do cirurgião entrou numa curva sinuosa, deu um giro de noventa graus e então pai e filho avistaram as primeiras casas da cidade. Havia uma bifurcação em que para um lado continuaria a pista de asfalto e, para o outro, o carro tomaria uma rua calçada a pedras. Foi neste caminho de pedras que Aristides mandou o filho entrar. Ele queria ver a cidade começando do cabo, ir mostrando o corpo aos poucos até que mostrasse o pátio principal onde o movimento de pessoas costuma ser maior. Chegando no pequeno centro da cidade, a hospedagem no hotel. E depois... Depois é a infância retornada aos noventa anos de idade. Nunca imaginou que viveria esse momento, o instante de voltar à cidade onde não havia mais parentes. É que ali havia uma parte pequena, mas densa de sua história, tão significativa quanto inesquecível. Arturo não era muito de falar, por isso não perguntou ao pai o que fariam naquele fim de tarde. De certo, conhecia demais aquele que o educara, e ele sabia que não deveria indagar, deixasse o pai ir dando as coordenadas. Era certo, também, que Arturo ainda não achara a justa razão daquela odisseia, porém tentava se convencer de que três dias, por mais demorados, não são eternos, e, quitada a dívida, o pai nunca mais precisaria voltar àquela cidade. — Descansemos, meu filho. Vamos deixar a visitação para amanhã – falou Aristides quando o filho o instalou naquele recinto de hotel. Arturo foi para o quarto ao lado, levando consigo a semente de um pensamento. Tomou banho e se deitou, cansado, mas aceso. Não por causa da clínica, mas por
algo que excedia a sua existência e era anterior a ele, aquela cidade, aquele pai e sua história. Era como se de repente o pai fosse outro homem, ele que o conhecera desde sempre de outra maneira, o pai que se não era rico, tampouco era pobre; um pai forte, rígido, mas afável, um grande pai. Agora esse pai ia lhe parecendo um pouco menor, dono de um ado frágil e uma infância contrária à sua, não era mais o metalúrgico que investira pesado na educação dos filhos, era um menino que plantou uma árvore, um pai em miniatura, uma criança. O médico até se angustiara ao lembrar dos adiamentos dessa viagem, pois se o pai houvesse morrido antes de ali ter chegado, ele jamais teria compreendido tal circunstância. Amanhã certamente eles andariam pela cidade, iriam no antigo bairro, veriam a antiga casa, buscariam por conhecidos. Amanhã. Arturo se assustou quando abriu os olhos, viu que já estava claro e olhou para o relógio. Oito horas e o pai não fora acordá-lo! Saltou da cama com a rapidez de uma fuga e foi bater à porta do quarto vizinho: — Meu pai, meu pai! Sem resposta, ele girou a maçaneta, a porta se abriu, a cama vazia e desarrumada, ninguém. O médico correu à sacada do hotel. Em frente havia aquela praça, olhou para o movimento daquela quarta-feira. Reconheceu o pai sentado num dos bancos de cimento, sentado sob o sol, as pernas cruzadas, a camisa verde de botão, calça e sandália. Respirou fundo, o pai era mesmo surpreendente. Voltou ao quarto, olhou para o celular sobre a mesinha de cabeceira, e ficou parado a olhar o celular sobre a mesinha de cabeceira. Luzes indicavam novas mensagens, mas o médico não se movia, apenas olhava. Sentia estranhamento em estar longe de sua realidade, mas estando em outra realidade já não queria a conexão. Pegou o aparelho e o desligou, trocou de roupa e se dirigiu para os banquinhos de cimento. Aristides entrou no carro, embora quisesse ir a pé. — Deve ser pelo menos um quilômetro de distância, e o senhor não vai conseguir andar isso tudo embaixo desse sol. Filho e pai seguem para o antigo bairro. aram pelas ruas quase sem gente, as casas fechadas, o silêncio. — É ali! – informou Aristides apontando com a mão uma rua que se alongava
depois de uma suave curva. Quando Arturo observou um jardim mais adiante, o pai pediu que ele parasse o carro. — Está vendo esta casa? A casa era azul, com portas e janelas marrons. — Era aqui que vovó morava. O aniversariante do dia anterior lembrou das cartas trocadas com a avó, a minha árvore está bem? Sim, ela está, pode ficar tranquilo. Ninguém a arrancou, nenhum bicho a comeu? Não, meu filho, todos os dias eu a vejo. Sua avó era uma mulher cálida, atenciosa e extrovertida. Sua avó, repetiu com o pensamento mudo. Ser avô como ele era de netos argentinos não era igual a ser neto de uma avó cálida e atenciosa cuja presença era diária. O velho não deixou a lágrima brotar, não queria preocupar o filho. — E ali é o jardim, é para lá que vamos – e apontou com o queixo para fazer com que o filho desviasse o olhar de cima dele que, comovido, resistia ao choro. Arturo dirigiu um pouco mais e estacionou o carro próximo ao jardim que possuía seis partes geometricamente simétricas e separadas por espaços onde se erguia um poste de iluminação especial. Desceram do carro, e o filho, vendo o pai seguir em direção ao primeiro espaço do jardim onde existia uma placa de latão dourado com gravação em relevo alto, tentava compreender. O pai ia devagar e, diante do perigo das pedras desalinhadas, Arturo se adiantou para ajudá-lo a se equilibrar. Diante da placa, Arturo leu os nomes do prefeito e do governador que inauguraram o logradouro que por ora estava mal conservado. E havia a data: 30 de março de 1939. Aristides estava imóvel observando as plantas que ainda restavam, mas uma se sobressaía, alta e com muita folhagem. Estava viva, o vento tocava nela, ela se mexia esticando os galhos para um abraço, era a sua árvore. — É esta, Arturo. Esta é a árvore que eu plantei aos nove anos de idade. Arturo ficou a olhar para a árvore também, silencioso como quando se está numa igreja pensando sozinho. Pai e filho em pé diante da árvore quase centenária.
— Quando eu a plantei, Arturo, sabe o que eu pensei? O filho não respondeu, mas esperava a resposta. — Essa árvore vai crescer e se tornar forte, eu vou crescer e me tornar forte tanto quanto ela. Foi isso que pensei, Arturo, foi isso que eu pensei. — Pelo visto conseguiu, não é, meu pai? — Está vendo essa vendinha aí em frente? Havia um homem na porta da venda a olhar para eles. — Essa vendinha aí era onde eu namorava o chocolate que tanto queria. Como eu não podia comprar o chocolate, eu comprava qualquer doce que o substituísse, mas a vontade não ava porque não se pode matar o desejo de morango comendo jaca. Quando eu terminei de plantar a árvore, todos que participavam do evento da escola e estavam ao meu redor observando eu enterrar a raiz e regar a planta, todos bateram palma, enquanto eu permanecia em pé olhando extasiado para aquele caule frágil que um dia cresceria. Arturo ou a mão na testa e depois na camisa e Aristides foi em direção ao pequeno estabelecimento comercial cujo homem na porta não tirava os olhos deles. Arturo não seguiu o pai, deixasse ele um pouco à vontade. Sentou-se junto ao jardim e sob a sombra da árvore que um dia o pai plantou. O pai que ainda não era pai e que um dia o teria como filho. Era desta terra que seu sangue vinha, era desta terra. O pai retornou minutos depois e se sentou junto ao filho, sob a sombra da árvore que agora os unia um pouco mais. Trouxe na mão dois prestígios e começou a comer um. — Adoro esses pedacinhos de coco dentro do chocolate. – falou para o filho mastigando o doce – Tem coisa melhor do que estar sob uma árvore e comer o que se gosta? Estou realizado, filho, juro que estou realizado. Voltei ao começo para lembrar de mim. Arturo tomou das mãos do pai o outro prestígio e começou a comer também, tendo o rosto virado para o outro lado. Arturo pensou que o pai não viu, mas Aristides viu, Aristides viu que nos olhos do filho uma lágrima escorria...
Deslumbrante.
O BATOM QUE FICA NO CIGARRO
Quem atravessa de navio à noite, deslocando-se do embarque em São Joaquim com destino à Ilha de Itaparica, sabe o que é ver as luzes lá do bairro da Liberdade irem se afastando, largando-se no meio do mar. São pontos luminosos que, perdendo a individualidade pela distância separando o navio do cais, vão se desfazendo em manchas feito borrão de tinta. É que a coisa observada, estando cada vez mais distante, se invisibiliza, pensa Martin, fumando no convés do navio e olhando quase estático para o bairro da Liberdade. Tal pensamento não dava a ele, contudo, a calma que se espera quando se tem a obviedade por conclusão. Ao contrário, esse era o seu ponto de partida, pois o que o afligia era desconfiar justamente do evidente, quando a teoria da distância não é diferente da teoria da aproximação. O que o pintor das horas vagas estava a conjecturar é que, se de longe tudo é um borrão, de perto o borrão pode prosperar também, e se camuflar. Mas essa era a tentativa de uma teoria fajuta, qualquer epistemologia facilmente a derrotaria, reflete. O que estou a dizer, pensa consigo, é que se aproximar demais de uma coisa – o que não implica todas as coisas – não garante conhecê-la em sua totalidade e ainda se corre o risco de se cegar diante dela. A teoria de Martin se dava no sentido de que nem sempre a aproximação permite ao homem ver a coisa em toda a sua definição. Ele via as luzes da cidade se afastando e se confundindo, mas isso os olhos já sabem. O que intrigava o pintor era quando, na aproximação, tampouco se distinguia a luz, ou seja, o que deveria ser nitidez era intransparência. O navio vai ganhando o mar da Bahia de Todos os Santos, boiando nas águas escuras da noite úmida e salgada de maresia. Seu desejo era que o navio desativasse o motor e ali se mantivesse ao balanço do vento e das ondas leves para que ele pudesse misturar as tintas e pintar a tela a partir do que captasse no exato instante. Pintou uma vez de lembrança, buscando na memória o resgate da fotografia flagrada pelos olhos, mas ao final a tela não transmitiu o que ele queria, e cobriu o trabalho com um lençol.
Desceu a escada, buscou cervejas e cigarros, tornou a subir os degraus que levavam para o ponto mais alto do navio. Era perto da meia-noite, e ao redor uma calmaria de quando se está para encerrar o expediente. Martin acendeu um Free e notou uma mulher que também fumava na outra ponta do convés. Ela usava uma saia comprida de base branca e estampada e uma blusa vermelhoclaro de tricoline. Ela fumava e observava o mar escuro, depois girou o pescoço para ver as luzes da cidade que ficava para trás. Martin foi se aproximando, os os discretos. A mulher só notou sua presença quando ele falou: — É uma bonita fotografia. A mulher se voltou para Martin, surpresa. — Não entendi, moço. — Ver a cidade daqui, as luzes se misturando... Para mim a sensação é de liberdade. — Por quê? Você é um prisioneiro lá? — De certa forma. — É casado? — Não, eu não sou. — Então é estranho Ingênuo pensamento, considerou Martin. Talvez o casamento seja uma espécie de liberdade quando se compreende a liberdade como a possibilidade de estar com alguém que se quer. Mas ele não disse isso à mulher que terminou o cigarro e, para não jogar a bituca no mar, jogou ali mesmo no chão do convés e depois pisou com o pé. — Eu jurei que não ia mais fumar, mas o vício é uma coisa – comentou ela. — O vício é uma desordem psíquica.
— O quê? Ele não respondeu, apenas tragou mais uma vez. E mudou de assunto: — Está indo para qual ilha? — Encarnação. E você? — Ainda não sei. — Como assim? — Só estou indo. — Olha, moço, o senhor é muito estranho, viu? — Só porque, do seu ponto de vista, estou sem destino? — Como é que o senhor atravessa o mar a caminho da ilha e não sabe para onde está indo? — A ilha já é um destino. — Mas há várias ilhas, e o senhor sabe disso. — Na verdade só há uma ilha. Eles dividiram a extensão de areia em nomes, como uma cidade dividida em bairros. É só para ajudar a localização. — Mas o senhor entendeu o que eu quis dizer. — Sim, eu entendi, mas foi só pra distrair. Não vê que você está um pouco séria demais? A travessia não está agradável? Então ela riu pela primeira vez e exibiu uns dentes bonitos na boca grande e vermelha. — Prazer. Meu nome é Martin. – segurou o cigarro entre os lábios e estendeu a mão à mulher – E o da senhorita? Ou já é uma senhora casada? — O senhor teria outro cigarro?
— Só se parar de me chamar de senhor... Quer um pouco de cerveja também? — Não, eu não bebo. Martin estendeu o cigarro para a mulher que não lhe dissera o nome. Deu o gatilho e aproximou do cigarro que ela tinha na boca a chama do isqueiro, e foi aí que ele a observou um pouco mais de perto. Não podia dizer que fosse linda, mas atraente. Não tanto pelo rosto bem delineado, mas pelo conjunto que ia da cabeça aos pés. — O meu nome é Darlene – disse a mulher depois de algumas tragadas – e eu estou furiosa porque voltei a fumar. — Uma fúria só por isso? Que sentimentos mal vividos! — O vício custa caro, moço. Eu não sou rica. — Mas tem graciosidade. Pausa. A princípio não soube o que responder, não era sempre que um homem lhe ofertava palavras tão simpáticas. — O senhor que está dizendo. Quer dizer, você que está dizendo – corrigiu. — Só porque tenho os cabelos grisalhos não consegue me chamar de você? E Martin riu da própria brincadeira e vaidade. Ou talvez tenha sido porque percebera o desconcerto de Darlene por ter errado a forma de tratamento que o agradaria. — Atravessar de noite é chato, parece que o navio não está andando. – observou a mulher de cabelos longos e castanhos – Você me dá um momento? Eu preciso ir ao banheiro. — Claro! Sinta-se à vontade... — Ainda está pela metade, você quer? — Não, não precisa, pode jogar fora. — É que sou avessa ao desperdício, entende? E não quero transitar por aí
lançando fumaça na cara de ninguém... E saiu, depois de repetir o gesto de jogar o cigarro ainda aceso no chão, embora desta vez não o tenha pisado. Martin observou a mulher se afastar com seu ligeiro rebolado e a cabeleira cheirosa. Quando ela desapareceu, ele olhou para o chão e observou a mancha de batom na ponta que Darlene ali deixara. Abaixou, tomou entre os dedos aquela bituca marcada de vermelho e ficou a apreciá-la como se contemplasse as luzes do bairro da Liberdade lá na margem. Darlene lhe pareceu intrigante e, observando a cor do batom naquele pedaço de cigarro, Martin segurava em suas mãos um instante da boca da desconhecida. E esse pintor das horas vagas tinha a mania de reparar em detalhes que normalmente ninguém repara, seu olhar estava constantemente explorando possibilidades. Pensou em pintar uma mão segurando um cigarro manchado de batom vermelho, ou, quem sabe, pintasse o pedaço de cigarro e a fumaça se esvaindo, mas a imagem não podia ser simplesmente a de um cigarro fumado pela metade e abandonado ao acaso, antes deveria instigar a imaginação de quem a apreciasse para que fosse possível captar as circunstâncias por trás do instante. Mas para captar as circunstâncias por trás do instante, Martin levou o cigarro manchado de batom à boca e o fumou em duas longas tragadas, expelindo a fumaça lentamente, porque assim podia melhor sentir o gosto e deter o momento. Darlene voltou um pouco diferente, mais dada e descontraída. Sorriu para ele no meio da umidade fresca daquela noite sobre o mar. O vento insistia em jogar o seu cabelo sobre o rosto e por isso ela pediu a Martin que fossem para a outra ponta do convés. — Como você preferir – respondeu o homem solícito e cavalheiro. — Eu sinto que você é um cara legal. — Eu sinto que você é uma garota... — Não, por favor, não diga nada. Eu não gosto de elogios, me sinto constrangida. Posso te dizer uma coisa? Eu menti quando disse que não bebo. Martin riu. — Acontece.
— É que eu não queria parecer oferecida, mas lhe conhecendo melhor agora... — Volto logo. Três minutos foi o tempo que Martin levou para descer os degraus e retornar com as bebidas. Ao voltar, viu que não estavam mais a sós, pois havia uma sombra e no meio da sombra não se distinguia o homem sentado no outro extremo do convés. A sombra se projetava sobre ele de modo que permitia a percepção de sua presença mas não a feição do seu rosto. — Que foi? Acha que é motivo para sentirmos medo? – indagou Darlene depois de observar que Martin estava incomodado com o homem no meio da sombra. — Um pouco. Eu preferia só nós dois aqui. — Eu nem vi a hora que ele chegou. — Eu preferia só nós dois aqui – repetiu, nos olhos uma fissura indecente. Darlene virou a latinha de cerveja na boca, servindo-se de um gole grande, então respondeu a Martin: — Você é estranho, mas eu confesso que isso me atrai. — Ah é? O olhar que Martin depositava na recém-conhecida ou a ter uma conotação de volúpia, e ela o percebia, ao que tudo indica, ou percebia com distorção: — Você é polícia? Martin dirigiu o olhar mais uma vez para o homem sentado sob a sombra. Quando se voltou para a mulher, informou-lhe que não: — Sou biólogo. E pintor quando eu quero. — Pintor de parede? Martin gargalhou longamente, riu tanto que Darlene começou a rir junto com ele já supondo que havia cometido algum erro:
— Falei algo de errado? — Eu pinto quadros. E Darlene caiu numa profunda gargalhada, no que ele a seguiu e ficaram os dois a rirem ao tempo que se tocavam nos braços e nos ombros como se não se dessem conta dos movimentos que estavam fazendo. Mas quando Darlene ainda rindo um resto de riso soluçado encostou a cabeça no ombro de Martin, ele – conduzido por um impulso que parecia mas não era involuntário – a abraçou, e ela deixou, e ficaram parados se abraçando, deixando os estranhos corpos se conhecerem enquanto a ilha se aproximava devagar. Ali abraçados, pareciam dançar lentamente ao balanço do navio sobre o mar. — Consegue ouvir a música que estou ouvindo? — Eu não – respondeu Darlene, fazendo esforço para tentar escutar. — Não, você não vai conseguir ouvir assim. Está no pensamento. — Lá vem você... E Martin cheirou o pescoço da mulher, e, mão em concha, afagou-lhe um dos seios. Ela se assustou, deu um o para trás, desprendeu-se do abraço e da dança. — Desculpa, moço... — Tudo bem, eu agi errado. — Não, não é isso, é que... O homem continuava camuflado lá no canto, observou Martin, dirigindo-se até ele para sondar: — Tá tudo bem? — Teria um cigarro? – replicou. O biólogo encara de perto o ancião malvestido. Era um homem de idade, uns traços de índio, os dentes faltando. O ancião encara Martin e o sabe desconfiado,
mas apresenta a ele um rosto de índio inalterado, um jeito pacífico e, em vez de dizer obrigado pelo cigarro conseguido, sorri para Martin, que vê com muita paz a boca sem dente. — Estava ali a flutuar? – pergunta o velho soprando a fumaça. — O senhor sabe como é... a moça é magnífica. — A moça? — Sim, a moça. — Não vejo nenhuma moça. — Aquela que está ali com a saia longa. Martin vira-se para apontar Darlene e mostrá-la ao ancião, mas Darlene não está. Volta-se para o homem do rosto de índio: — Deve ter ido ao banheiro. O homem sentado no meio da sombra continua soprando a fumaça com calma e ar de satisfeito por alimentar o vício. Martin senta-se ao lado dele. — Sentar um pouco para descansar as pernas. Quando Darlene voltar, eu a convido para conhecer o senhor porque o senhor já a conhece pelo menos de vista, não é? O velho sorri sem dente como um bebê. — Eu sei que o senhor deve ter imaginado: esse cara tá apaixonado, esquece até os defeitos da mulher e tal. Mas a verdade é que a conheci faz pouco tempo, e não estou apaixonado, estou apenas me envolvendo... acho que sou um aventureiro. — Eu entendo. — Ainda não a vi mais de perto, quero dizer... no íntimo, se é que me entende. Porque para olhar de perto se exige cuidado, pois as luzes embaçam e podemos cegar.
— Mas é necessário. — Eu não sei o que nos espera o desembarque. — Tem outro cigarro? Martin estende a carteira para o homem sentado ao seu lado. — A questão é que pode ocorrer de, estando tão perto, na verdade se está longe, e por estar longe se vê muito menos – disse o velho depois de uma tragada. Martin ficou ensimesmado, intrigado, pensativo. Não fora ele quem dissera que tanto de longe quanto na proximidade as luzes se misturam, dificultando a possibilidade de visão? Havia agora um deslocamento da informação que ele alimentava como verdade, uma vez que a informação que ele alimentava como verdade acabara de receber um complemento às avessas daquela. E se eram duas informações da mesma verdade, que se encaixavam justamente por serem opostas, a compreensão só podia levar ao resultado de que ambas eram mentira ou tudo era relativo, e se tudo era relativo já não havia verdade alguma, só os espaços vazios no meio. E como se preenchem os espaços vazios no meio? Martin não sabia. Perguntou ao homem com cara de índio: — Como se preenchem os espaços vazios? O homem apontou o extremo do convés para Martin: — Acho que sua namorada chegou. Martin olhou, mas não viu Darlene. Contraiu os olhos na tentativa de enxergar melhor, e nada. — Tá vendo fantasma, homem? Tem ninguém ali não. O velho riu. — Tá rindo de quê? — Não vê sua namorada? Martin tornou a fixar os olhos, mas não enxergava Darlene. Girou o pescoço,
olhou para todos os lados, demorou-se em cada sombra que os olhos encontraram, em vão, ele não a via. Será que o velho era doido? — O senhor veio de alguma tribo indígena? — Por que pergunta isso? — Porque se o senhor for um cacique disfarçado, eu quero conhecer as verdades que está querendo me dizer e eu não estou conseguindo captar. — Eu só perguntei se você estava a flutuar... — Com flutuar você quer dizer na hora que eu estava abraçado com a moça? — Que moça? — Ora, não se faça de tolo. Quando eu voltei com a cerveja, o senhor já estava aqui. — Sim, eu estava. — E por que está perguntando?! — É que eu não vi moça alguma. — O quê?! Martin estava se enervando, desejando dar as costas e deixar aquele homem sentado sozinho em sua sombra, todavia ao mesmo tempo ele queria falar mais, ouvir mais. — O senhor está dizendo que não me viu abraçado com a mulher com quem eu conversava? — Estou dizendo que te vi dançando sozinho, abraçado ao corpo com os próprios braços. Quero dizer também que não o censuro, eu achei a cena muito bonita... Na verdade eu pensei que você fosse um ator de teatro ensaiando uma peça. Martin se levantou como um foguete e, indiferente aos espantos que porventura acontecessem, entrou no banheiro feminino, Darlene não estava. Saiu, desceu as
escadas, foi até o balcão das cervejas e dos cigarros, olhou na fila, não a viu. Atravessou o grande salão, olhou para as pessoas, procurando. Nenhuma mulher com a roupa que lembrasse a dela, nenhuma cabeleira parecida. Seguiu para a proa, algumas pessoas respiravam a brisa do mar, mas Darlene não estava. Retornou, foi para a popa, procurou, inútil. Desceu até onde carros estacionam, estaria ela dentro de um daqueles veículos? Subiu, atravessou o grande salão no interior do navio que se estende de uma ponta à outra, retornou pelos corredores laterais, subiu as escadas de novo, voltou ao convés onde principiara a viagem. E encontrou o espaço vazio. — Como se preenchem os espaços vazios? – interrogou-se. E se dirigiu para a sombra onde antes estivera com o velho. Mas o velho não estava. E Martin se sentou no mesmo lugar de instantes atrás, porém sem a presença do cacique. O navio tocou a buzina para o desembarque. Darlene não retornou. Nem o homem que permanecera sob a sombra. Foi quando uma senhora se aproximou e lhe estendeu a mão: — Vamos, Martin, já é hora. Martin não se movia. — Martin! Está me ouvindo? — Estou, tia. — Chegamos! Martin continuava estático. — Eu vou esperar o cacique voltar. Ele vai me ensinar como preencher os vazios. — Ora, Martin! Você tomou os seus remédios hoje? Está visível que não! Sua mãe negligencia o seu tratamento, ela é uma irresponsável em não vigiar você. Martin olhou para o lado e viu os restos dos cigarros fumados anteriormente por
ele e pelo que considerava ser o velho da tribo indígena. Ergueu-se, andou um pouco, procurando, encontrou a ponta deixada por Darlene. Mas não havia mancha no cigarro, era um cigarro sem batom. Cadê o batom que fica no cigarro? — Tia, há pouco havia uma moça aqui. Eu não estou delirando, eu juro que não estou delirando! A tia tocou em seu braço, chamando: — Calma. Vamos tomar o remédio, daqui a pouco isso a. Verdade ou mentira, Martin lembrava do abraço, da mão indiscreta no peito, da dança com Darlene. Sob o céu e sobre o mar, tudo no meio – os espaços vazios – enquanto as luzes da ilha se aproximavam e desconfiguravam, pela proximidade, a exatidão da paisagem.
O SANTUÁRIO DE LEOPOLDO
Eu vinha com os pés descalços caminhando a esmo pelas areias da praia do Jardim de Alah quando o avistei sentado nas pedras a observar o mar. Era um homem de camisa branca e os cabelos descendo pela nuca, os fios brancos se misturando aos pretos. Pareceu-me velho conhecido, mas eu tinha dúvida, e, se de fato fosse ele, fazia bastante tempo que não nos víamos. Como a miopia não possibilitou a nitidez necessária à confirmação, pus os óculos e então me aproximei. — Leopoldo? Ele se virou para ver. E, ao me reconhecer, sorriu, levantando-se para me abraçar e prolongando as felicitações como se quisesse compensar os anos que não nos vimos: bom te ver, vem cá, me abraça, quanto tempo, que coincidência, etc. Já estava um tanto envelhecido o meu amigo – e certamente eu também –, pois a imagem que eu via nele devia ser a mesma que ele via em mim. Por isso, naquele instante eu me senti de algum modo constrangido, não por já ter quase sessenta anos, mas por não ter convivido mais tempo com ele durante aquelas horas boas da juventude. — Então era aqui? – perguntei. — Sim. Leopoldo veio embora de Manaus aos 23 anos de idade, vítima dos medos que assombram os visionários. Mas foi somente nesse encontro que eu ei a conhecer o local que ele chamava de Santuário de Leopoldo em homenagem à data de sua chegada nesta cidade. Embora eu soubesse da peregrinação anual que ele cumpria com austeridade religiosa, eu nunca soube o nome da praia nem de quais pedras ele contemplava o mar, pois o amazonense sempre revelara o fato, mas nunca dissera o endereço de sua visitação, no que eu respeitava, pois sabia se tratar de uma intimidade e
devoção. — Então? Conseguiu terminar a Engenharia? – perguntei. Foi nesse ponto de nossas vidas que nos afastamos, quando ele já estava na faculdade. Já nosso primeiro encontro ocorreu na rodoviária por ocasião do seu desembarque, quando ele ainda nem era estudante, mas praticamente um noivo fugido do altar: — Amigo, boa tarde! Como eu faço para encontrar um albergue bom e barato? – perguntou o jovem Leopoldo, uma turística mochila nas costas e a cara de cansaço. — Bom, acredito que no Pelourinho deva ter. Estou indo para lá... Eu tinha dois anos a mais que ele e já cursava a faculdade de Arquitetura. Quando dei a ele essa informação, conheci o Leopoldo que não havia chegado a eio, mas para encontrar um destino diferente daquele que havia deixado em Manaus: casar e ter filhos. Casar e ter filhos com quem amava. Mas o problema residia no fato de que meu recém-conhecido sofria de uma espécie de síndrome tão rara que eu nunca conheci outra pessoa que sofresse do mesmo mal. Antes de deixá-lo num albergue, trocamos contato não porque eu adivinhasse que seríamos amigos, mas porque simplesmente eu queria ser gentil e ajudá-lo a se familiarizar com a cidade, de modo que no dia seguinte nos reencontramos em minha casa para o café da manhã e meus pais gostaram muito dele, e ali começamos nossa incipiente amizade. — Você veio para cá por causa do medo de casar com a mulher que você ama? – indaguei espantado à época, e isso fazia 32 anos. Ele confirmou, e eu, por mais que tentasse, não compreendia como alguém pudesse agir com tanta firmeza nos contrários da situação. E como eu não alcançasse a lógica que fluía nele como uma justa razão, tentei convencê-lo a
voltar. Orientação inútil, pois o homem não tinha coragem, não se animava, só queria ficar ali e prosseguir no que eu julgava se tratar de uma fuga. O motivo de sua migração era tão esdrúxulo que meu pai, recorrendo às amizades, solicitou investigação policial para ver se não se tratava de um foragido. — O que ela te fez? – não convencido, eu queria saber e ficava martelando na cabeça de Leopoldo que ainda dava tempo de desistir do pulo e não se precipitar na queda, pois, do meu ponto de vista, o que ele havia feito foi saltar sem paraquedas. — Não é o que ela me fez. É o que ela me faria depois. Mas antes que isso acontecesse, e eu sei que aconteceria, eu me poupei de uma dor que seria muito pior do que esta que agora sinto. E ele me estendeu a fotografia da mulher que ele abandonara. — O nome dela é Flora – informou. Eu olhava para o retrato desacreditado e inconformado, especialmente porque eu não era um homem desses que atraem mulheres com facilidade, então eu padecia nas sedes e vontades; e ali estava um homem renunciando uma mulher que, se eu não daria tudo, eu daria quase tudo para ter. — Se eu fosse você, amanhã eu pegaria o ônibus de volta para Manaus e me casaria com essa garota, você não pode deixar esse medo bobo te vencer. — Eu não vou a lugar algum, mano. Eu posso até ser um menino barrigudo, mas essa decisão está tomada, eu não posso conviver com a pessoa que eu amo sabendo que a qualquer momento ela vai me trocar por outro. Isso é para os fracos. Os fracos am porque não têm a coragem de renunciar e permanecem sofrendo até que a coisa se comprova. Eu não. Eu tenho seiva e amor demais para não deixar que a coisa se complique e finde no asqueroso. Como ele podia saber que a mulher iria abandoná-lo, trocando-o por outro? De qualquer forma, eu sabia que a lógica de Leopoldo não era tão desvairada assim, mas normalmente as pessoas deixam o mal se instalar para depois tomar a decisão, e ele estava agindo no oposto do esperado. Foi o que eu disse a ele, que replicou:
— Você sabe quando se ama tanto que dói? Eu lembrei de uma experiência assim, mas a circunstância era similar e não idêntica, porque, no meu caso, quem sentia a coisa era somente eu, e não a menina, de modo que Leopoldo referia-se a um sentimento correspondido, enquanto o meu não havia sido. — Eu sei o que é sentir pra doer. — Pois bem. Agora pense estar com essa pessoa lado a lado todos os dias e construir uma vida com ela, uma vida cheia de planos e de sonhos, e você amar tão profundamente esse ser humano e cada dia mergulhar mais nessa loucura que é o amor e o dia a dia vai acontecendo, você trabalhando em um canto, sua amada trabalhando em outro, e você começa a perder o controle da situação, e a situação começa a acontecer sem que você perceba e, quando menos imaginar, você está no fundo do poço sem condições de se erguer. Porque simplesmente ela chega para você e diz que está com outro ou ela nem chega para você e diz que está com outro, você é quem dá o flagrante. Não, mano, isso eu não conseguiria ar. — Mas por que você acha que ela vai te trocar por outro? Você não falou que ela te ama? — Você é inocente, mano. Eu sou mais novo que você, mas vejo que você não tem malícia, você é um esperançoso. Já viu uma fogueira acesa? Afirmei que sim. — Olhe para a fogueira e depois dê as costas para ela. Permaneça um tempo ali de costas... Quanto voltar a vê-la, já terá outra forma, já não é mais a mesma fogueira, o que quer dizer que se transformou em outra coisa. Isso é o amor. — Então você nunca vai se casar? — Acho que não. Ou talvez eu me case com alguém que eu apenas goste o suficiente para conviver bem. Ou talvez eu case bem velho com uma mulher velha que nem eu. E assim meu amigo quase me convencia de sua decisão. Em verdade, nunca me convenceu porque para mim inexistia justificativa que tornasse tal atitude
compreensível. Ele entrou para a Faculdade de Engenharia no ano seguinte e, por já conhecê-lo um pouquinho mais e principalmente por bondade, meu pai o convidou para vir morar conosco. Eu decidi não falar mais em Flora e nem cobrar de Leopoldo a sanidade que eu julgava ele ter perdido, e caímos nas baladas, e vieram namoradas, ele com as mais cobiçadas, eu com as mais ou menos, ele sem querer casar e eu querendo, mas não casava. Esse companheirismo durou até quando meu pai foi transferido, três anos depois, para Sapinhoá, e precisamos todos seguir para São Paulo, o que já era algo peculiar na minha família. Leopoldo foi convidado, mas não quis ir conosco, havia os estudos, desejou-nos boa sorte e nós a ele, e desde então só agora nos reencontramos. Assim o vejo em minha frente, os cabelos brancos misturados aos pretos, enquanto os meus, nada vaidosos, me abandonaram. — Me diz, mano. Você casou? – perguntou-me Leopoldo. — Casei e descasei. — O que aconteceu? — Ela me traiu. — Que chato! Leopoldo, depois de me encarar surpreso, fitou a areia e se manteve imóvel, pensando. — E depois não casou de novo? — Acho que não houve mais a coincidência, quando um quer e outro também. De qualquer forma, a gente a a ter mais cautela. — Eu é quem estou querendo arriscar agora. E a menina tem menos da metade da minha idade. Surpreendi-me.
Eu podia ouvir qualquer coisa dele, menos que àquela altura ele tivesse a coragem de se entregar aos caminhos imprevisíveis do amor. — Depois que fomos embora para São Paulo, você casou alguma vez? — Não. Surpreendi-me em dobro porque imaginei que durante todos aqueles anos ele não fez outra coisa senão cumprir sua obstinada loucura. Observando aquele homem de camisa branca, parecia o mesmo garotão pedindo ajuda na rodoviária há mais de trinta anos, apenas um pouco diferente. O mesmo jeito, a conhecida tranquilidade que não apaguei da memória. Mas eu devia saber que ninguém permanece servo de um pensamento imutável, especialmente quando o pensamento é envolvido por essa coisa involuntária chamada sentimento. Se na mocidade o amazonense se atreveu à inusitada decisão de abandonar a quem amava e que também o queria tanto, talvez fosse compreensível que perto dos sessenta ele quisesse arriscar justamente por isso, por não ter se permitido nos tempos mais apropriados, quando se tem armas com que lutar. — É incrível como você me encontra em momentos singulares da minha vida. Por acaso, você é uma espécie de guru? – me conta! — O que anda acontecendo? — Te falei. Estou pensando em casar. — Fico muito feliz por isso, Leo! – e sorri sincero para o meu velho conhecido. — Mas isso é o que eu te falo, maluco. É a exterioridade. Por dentro, não é tão simples assim – falou com gravidade na voz. Leopoldo levou a mão ao bolso do short, retirou um papel e o estendeu a mim, pedindo que eu lesse. Quando acabei a leitura da carta, nada falei, eu ainda tentava compreender. Fiquei olhando para o mar e vi a onda se desmanchar nas pedras, arremessando partículas refrescantes de água em nosso rosto. Mas eu também via Flora lá no norte, despedaçada como uma onda, pedindo a Leopoldo para juntar os cacos.
— Nesse tempo todo, ela casou duas vezes – comentou, molhando os pés na água. — Casou mas não foi feliz, é o que a carta diz. E diz também que está disposta a viver contigo daqui para a frente. Mas, sinceramente, meu amigo, você ainda sente alguma coisa por essa mulher depois de tantos anos? — Não sinto como eu sentia antes, mas também não posso dizer que a situação não mexe comigo. No fundo, eu nunca a esqueci e talvez fosse até mais seguro agora por já termos a idade que temos. — Você quer dizer mais seguro em relação a esta outra com quem está para se casar? — Sim. – e daí a pouco mudou de opinião – Não, nem sei. Já não tenho certeza de nada. Mas vem aqui, sente-se comigo nesta pedra, venha conhecer o meu santuário, o santuário de Leopoldo! O santuário que ele tinha como altar para suas rezas. É que depois de tê-lo deixado no albergue – naquele dia da rodoviária – e não querendo ficar dentro de um quarto com desconhecidos, o jovem recém-chegado à cidade decidiu ver o mar e acabou indo a uma praia que eu nunca soube qual era, só agora eu descobria. Leopoldo fez uma homenagem a esse local e todos os anos nesta mesma data ele cumpria a promessa de ficar na companhia dessa natureza, meditação e agradecimento. — Vem, mano, tá com medo de quê? – falou, insistindo e me dando pressa. Tentando um equilíbrio para não bater com a cara nas pedras, consegui me ajeitar numa daquelas rochas de coloração escura próximas à arrebentação. O barulho da água se despedaçando quando se lançava contra os pedregulhos inibiu um pouco a nossa comunicação. De vez em quando eu olhava para Leopoldo e ele para mim, e ele sabia, estávamos os dois mergulhados no dilema que o afligia como se tivesse ele tido uma doença e, depois de curada, a doença houvesse retornado. Só que desta vez de outra forma como uma espécie de mutação. É que no ado existira o medo justamente quando o corpo da potente juventude experimenta o auge da força e beleza, e agora, quando a grandeza física vai cedendo às transformações próprias de uma natureza corrosiva, em vez de tomar os medicamentos preventivos que lhe assegurassem a estabilidade das emoções, é quando se lança com desatino ao uso dos agravantes.
— Faz tempo, né? – gritei para que ele ouvisse. — Mas parece que foi ontem – gritou de onde estava, a voz um pouco embargada pelo barulho das águas. — Já esteve em Manaus depois disso? — Sim, algumas vezes. — Encontrou com Flora? Leopoldo não respondeu de imediato. Pegou um pedaço de pedra e a lançou ao mar e, em seguida, veio para mais perto de mim. — Apenas duas vezes. Uma por verdadeiro acaso, a outra por ocasião da morte de minha mãe; a minha irmã comunicou o fato a ela. — E como foi? — Confuso. Eu não a amava como antes, mas me sentia atraído, confesso, até pensei: ainda haverá possibilidade? — Perguntou isso a ela? — Nessa ocasião ela estava casada. — Agora o jogo se inverteu. Flora está livre e você é quem está impedido. — Acontece que eu não sei se devo insistir nessa empreitada de levar a sério uma menina muito mais nova do que eu ou se é mais seguro aceitar a proposta que chegou até mim por intermédio dessa carta. Pelo visto, meu velho conhecido continuava à deriva nesse mundo dos solavancos. E, ito, apostar nem sempre é fácil. O problema é que se no ado ele possuía a extraordinária força da mocidade, podendo competir de igual para igual, essa força agora – menos intensa por bastante gasta – deveria ser mostrada em forma de estratégia, o que também é uma força, mas de outra maneira. — E o que você pensa em fazer?
— Estou considerando. Onde tenho mais chances de me dar mal? Indo morar com uma linda menina que até então tem me feito feliz e demonstrado me amar ou aceitar cumprir o que me neguei no ado? A do ado, tem as rugas que tenho. Essa, a do presente, possui a intensa beleza que me apavora. — A beleza, entretanto, é ageira. — Quando a beleza dela ar, a minha será uma fagulha na lembrança. Nunca competiremos em condições iguais. — Se você olhar apenas por esse lado, não. — E por onde eu devo olhar? — Ora, Leopoldo, como você a conquistou? E se conquistou, está posto. Você acabou de dizer que ela te ama, qual a dúvida? — Você me conheceu bem anos atrás, e sabe... eu não me baseio apenas no que é, mas no que poderá ser. — Eu acho que você não tem mais idade para se preocupar com o que poderá ser. — Acabou de me chamar de velho. — Acabei de te dizer que você está pronto para começar. Todos os anos que nos separaram não foram o bastante para lapidar aquele homem que ainda sofria da síndrome do futuro. Ele simplesmente não se lançava, preferindo as tempestuosas defensivas que jamais iluminam a alma. Porque para iluminar é preciso o bastante, é preciso correr o risco. Manter-se atrás da cortina tentando adivinhar o que será jamais iria dar a ele o fôlego indispensável do crescimento emocional. Todavia, que moral eu tinha de julgar meu amigo se eu também trazia comigo algumas reservas? Não fora eu que depois de traído ganhara um pouco de medo? A única diferença é que meu medo não era suficiente para resistir às tentações que aparecessem. Leopoldo virou o pescoço para observar, e eu segui o seu movimento. Avistamos: os os caminhando lá na areia, deixando as marcas, trazendo o verão. A saia era uma canga e os cabelos soltos ao vento. Por trás da garota, a
cidade e o barulho. E aqui nas pedras, o santuário. Mas acontece de o profano circundar os arredores do sagrado, pois a menina de olhos orientais, linda como uma onda que se arrebenta, acena para a gente e se aproxima, delicada e sorridente, despreocupada, envolvente e forte como a juventude que não se sabe efêmera. Correspondente, Leopoldo adianta-se para abraçá-la e são um casal efervescente. Ele carrega cinco décadas e meia e ela baila com apenas duas. Ela tem concupiscência e libido, ele, temor e restrição. Ambos possuem ansiedade, ela de querer se dar, ele de querer conter. — Este é um amigo de longas datas, eu tive a alegria de reencontrá-lo hoje. Herivelto, esta é Celine. Senti um frenesi ao tocar aquela mão que se estendeu para tocar a minha. Homem de sorte, esse velho conhecido. Eu arriscaria tudo por aquela maravilha, ainda que durasse apenas duas noites. Mas duas noites em êxtase têm a intensidade de uma vida, e isso é uma hipérbole, eu sei, mas em matéria de desejo tudo é exagero porque assim a fantasia exige. — Ele me falou de você e de seus pais várias vezes, dirigiu-se a mim a de olhos orientais, e, por mais que eu tentasse, eu não conseguia parar de observá-la. — Perdemos o contato depois que eles foram para São Paulo, mas o destino nos presenteou com esse reencontro. Na época da faculdade, eu e Leopoldo nos envolvemos com muitas garotas, eu menos que ele, todavia; porque muitas garotas por quem eu me interessava, interessavam-se pelo meu amigo, então eu procurava flertar com outra para ver se a sorte batia. Sempre foi assim e isso não impediu a nossa amizade, eu compreendia que em matéria de vontade duas vontades precisam se corresponder. Apesar disso, eu já não me sentia amigo de Leopoldo, agora. Porque essa garota não é uma garota daqueles tempos de estudante, mas uma com quem ele pretende se casar. Conhecia-me desonesto e enganador. Eu precisava abreviar aquele instante e me distanciar do casal, levar a minha lealdade e conservá-la comigo. Qualquer conselho que eu desse ao meu velho amigo já não seria seguro, por ser parcial e indecente. Talvez eu dissesse para ele aceitar a sua conterrânea como
esposa, e eu já não sei se seria sincero. Talvez eu dissesse para ele ficar com a de traços orientais só para ele me contrariar e fazer justamente o oposto, o que de certo modo não seria honesto. É que tudo o que eu dissesse no fundo haveria a ideia da possibilidade de saber a menina livre para as minhas investidas. O melhor seria não optar, deixar que ele decidisse, era a forma mais justa de acudilo, porque embevecido diante daquela juventude tão eterna quanto ageira eu já era um bêbado aconselhando um alcóolatra. Mas a perfídia não se resumia às pulsações do meu corpo, pois penso que flagrei dois ou três jeitos de olhar – um olhar feito convite – de Celine para mim. E aí me desarmei porque fiquei instigado. A questão do desejo é que o desejo não é um elemento confiável. Tudo ele distorce ou, quando não distorce, de igual forma não sabemos até que ponto se desdobra em verdade. Nunca fui homem por quem as mulheres se interessassem tão depressa, mas uma vez me disseram que há mulheres que preferem os feios. Não sei se essa chave abriria a porta dessa possibilidade, e havia que se tomar os cuidados devidos porque, quando o frenesi já invadiu, corre-se o risco de ultraar o limite do equilíbrio e do bom senso e tudo se transformar em erro. — Acho que eu preciso deixar o casal a sós. É hora de ir, anunciei. — O que é isso, meu amigo...? Hoje é um dia especial. Observe a data e esse reencontro. Daqui podemos ir beber alguma coisa, esteja conosco! Celine olhou para Leopoldo e depois para mim, aprovando o que o namorado acabara de propor. Ofereceu-me ainda um sorriso, e eu oscilei entre seguir ou ficar, o que já demonstrava que aquela era uma situação no mínimo dramática. Talvez eu pudesse impedir o tropeço que meu amigo tanto evitava. Se a oriental fosse uma garota do tipo que eu estava desconfiando, quem sabe eu pudesse dizer a ele que seria melhor aceitar Flora por esposa, pois o cálculo frio e patético com que analisava as questões do amor talvez tivesse fundamento, especialmente quando, tendo ado a vida evitando o naufrágio, um mar revolto se anunciava. — Mas antes de irmos, eu vou me molhar – falou Celine, desenrolando a canga e entregando o pano a Leopoldo. Ofertou-me novo olhar banhado de sorriso e foi saindo das pedras, seguiu para a areia e lançou-se na água, enquanto de longe a olhávamos, penitentes.
— Esse é o meu drama, mano – informou Leopoldo. — Compreensível – respondi. — Ou a garota, que poderá me deixar; ou a mulher, que comigo viverá. É que os santuários não estão isentos das profanações, e as decisões de Leopoldo, que sempre privilegiou preservar os sentimentos do que pressentia serem dores profundas, pelo visto não garantiriam a sua invencibilidade, e por isso apiedei-me dele. Não era mudando de cidade e nem fugindo das aventuras que ergueria o muro instransponível das adversidades. Elas são incansáveis e não desistem de ninguém, basta-se que se lhe abram as portas, e quando, feito ele, mantém-se os cadeados trancados, o vacilo cedo ou tarde aparece, transgressor e arrebatador. E tínhamos à nossa frente a menina de traços orientais. Flora era uma possibilidade ao norte. A distante possibilidade e a presente fascinação: uma balança em desequilíbrio. Que homem tomado por uma breve insensatez trocaria uma flor de primavera por uma flor de inverno? A linda flor de primavera banhando-se de sal e algas enquanto dois pares de olhos invadiam a água e nadavam até ela, diluindo-se em espuma sobre a pele branca da ninfeta. Então a ninfeta sorria para eles e acenava como quem dissesse que estava só começando enquanto os dois findavam. A cruel fatalidade que a própria ninfeta um dia alcançaria, exata, indesejada e sem atrasos como convém às adversidades. Saiu do mar toda molhada. Os homens na borda vigilantes a esperá-la. Eu que havia casado e descasado e depois perdido parcialmente a coragem para confiar de novo, naquele instante andava calculando que eu podia doar a Celine todo o resto de glória que me restava e, sem medo, aceitá-la até o dia em que me deixasse para se abastecer de outra potência. Não sei se demorei dentro deste pensamento e se lhe depositei um pouso mais demorado de olhar, pois logo ela tomou das mãos de Leopoldo a canga e cobriuse de novo, fagueira.
Meia hora depois estávamos na mesa de um bar perto da praia. Enquanto isso, meu velho conhecido, junto da namorada, andava calado. Ela bem humorada, eu tentando ser agradável aos dois, mas percebia nele um arranhão que não sei se era por conta da carta ou se por outra aflição. A charada é que a vida nos surpreende, e quando Celine o puxou para dançar, Leopoldo, educadamente, recusou e pediu que eu o substituísse: — Meu velho, não permita que a menina fique sem a diversão. Você sempre gostou de dançar mais do que eu, lembra dos velhos tempos? Caem os escudos e você de algum modo estremece porque no campo dos desejos o êxtase é uma dose extrema. — Venha, venha comigo. – falou mais determinando do que pedindo – Eu não vou aceitar recusa. E fomos para a dança. Enquanto eu sentia o corpo da oriental próximo do meu e conduzia os os naquela espécie de tango, eu não sabia em que realidade me amparar. Meu velho conhecido andava cismado, talvez pensasse em Flora, talvez se decidisse pela mulher que no ado abandonara por medo da juventude que ela possuía. Ele também se equiparava a ela em vitalidade e beleza, mas sucumbiu porque não podia itir perdê-la quando, como é comum no amor, chegasse a hora do adeus. A Leopoldo só importava a absoluta e inapreensível eternidade, ele que não conseguia conviver com as ameaças diárias. Mas a beleza de Flora, renunciada por excessiva, vagou pelos ares à procura de algum lugar e veio deitar no corpo desta, que agora Leopoldo ama, e que tenho em meus braços, na cama. É que as estações mudam, e quando alguém rejeita, outro aceita. Duas semanas antes, quando findamos a dança, Celine pediu licença para ir ao toalete. Leopoldo e eu, a sós, os embates e confrontos de um homem que ainda media as probabilidades: — Fizeram bonito na dança. – comentou Leopoldo, colocando as duas mãos por trás da cabeça – Mas eu queria te dizer uma coisa...
Sem ousar falar, esperei. — O amor é como uma dança. Por mais que se mude o ritmo e o o, sempre finda acabado. — Não acredito que você está com medo de investir nessa mulher. — Eu acredito que essa mulher vive a ilusão de me amar. E sinceramente eu daria tudo para estar no mesmo astral que ela. Pensar que tudo é verdade. — A verdade, Leopoldo, é a ilusão de agora. E deve ser vivida até esgotar toda a mentira da qual nasceu. Quando a mentira acabar, haverá a verdade, que é a vida sem ficção. — E uma vida sem ficção é uma vida sem sonhos, me dirá, não é, meu amigo? Perguntou e riu, ironicamente. Depois continuou: — E se dividíssemos o sonho? Ousada e não confiável a indagação do meu velho conhecido. Estaria ele em crise de ciúme? — Eu não queria ir dançar, desculpa. Mas fiquei sem jeito de dizer não, ela insistiu. — Não, meu amigo, não estou indo na direção dessa incivilidade, o ciúme. Enquanto vocês dançavam, eu pensava. Em verdade, eu já vinha pensando desde que recebi a carta. Flora espera a minha resposta, e eu adivinho que ela é o caminho mais certo para mim. Só que estou fraco, sem a força necessária para dizer porque estou profundamente envolvido com essa de agora. Mas essa de agora é o mesmo sonho e a mesma fantasia que envolvia a minha vida com Flora lá no ado. Sabe o que isso significa? Que fatalmente vai dar errado, vou viver ameaçado até o dia dos abandonos. — Mas meu amigo... — O que estou propondo é desgastar o meu sentimento até o dia que eu restabeleça a razão. Uma pessoa apaixonada é uma pessoa desequilibrada, me disse uma vez um professor, e essa é uma verdade infalível. Sei que não se pode
medir o amor pela matemática, mas eu quero a matemática em todo o amor que diz respeito a mim. Você, sinceramente, acha impossível que essa menina só porque está comigo não possa, por exemplo, te querer, ou querer a qualquer outro homem? — Não, não acho impossível – respondi prontamente. — Acontece que eu gosto dela e ela gosta de mim. Mas acontece que esse gostar não a de uma mentira vivida como verdade. Acontece que não posso sair da mentira e sofrer como da vez que deixei Flora. Acontece que eu decidi aceitar Flora em vez dessa de 23 anos. Acontece que eu preciso ir deixando essa menina aos poucos, desconstruindo o que sinto por ela. Acontece que será preciso te envolver nisso. Acontece que você é homem e deseja, eu sei que deseja, e ela não é mulher que se rejeite. Acontece que não posso simplesmente lançá-la em seus braços. Acontece que daqui a pouco ela estará de volta e você precisa envolvê-la em seu papo. O esperado é que vocês virem amantes. Acontece que eu vou fingir que não desconfio de nada. Acontece que aos poucos eu vou deixando isso de lado até que eu esteja pronto para lançar meu barco no mar de Flora. Quanto a você... depois que estiver envolvido com ela... saberá o que fazer. Como recusar tal desvario? E foi assim que meu velho conhecido depositou em minhas mãos o resplendor de uma primavera oriental. Uma Celine que, primeiro, abriu a janela, e, depois, a porta de sua casa, até que cheguei ao quarto. Uma casa em rebuliço. Depois a trouxe para a minha cama, onde ou a habitar de modo intervalado em meus braços. Ela e seu fogo-fátuo, essa glória breve. Depois fosse o fracasso. Quanto a Leopoldo, toda crença na qual sucumbira: toda a beleza e toda a calmaria, todo o conforto e toda a durabilidade de uma linda flor de inverno. Que assim seja.
PÉS DESCALçOS NA NOITE
Fazia alguns minutos que a mulher de óculos pesados estava imóvel diante da imagem. Os tons vermelhos a fascinavam. Aqueles a fascinavam ainda mais. Sim, não era coincidência: o vestido rubro fora posto com a intenção de homenagear o criador daquelas obras e de estar de alguma maneira ligada a ele e a suas pinturas. Só o conhecia por meio do nome e de uma foto vista no jornal do dia anterior quando ela leu a entrevista publicada sob o título Malard e seu Estudo em Vermelho. Parada diante do clarão, Bianca entregava-se à contemplação da imagem cujos traços e cores davam a ela a impressão de uma forma lírica tão abstrata quanto inapreensível. Era disso que ela gostava. De tentar ler o incompreensível quando o incompreensível é vítima do seu próprio paradoxo e por isso mesmo vulnerável aos sentidos. A maneira como o vermelho fora derramado sobre a tela lembrava uma hemorragia descontrolada, mas, embora o sangue escorrendo representasse uma ideia concreta, simbolizava para ela a expressividade de uma alma em desatino. — Parece que a galeria vai fechar... A voz soara próxima do seu ouvido, sentiu. Virou-se para ver quem era e ajeitou os óculos pesados. — Já são horas? Nem me dei conta. — Também gosto desse. – falou o homem aproximando-se um pouco mais – Desculpa eu ter interrompido a sua viagem visual, mas eu gosto quando as pessoas levam as coisas a sério, e essa foi a impressão que você me transmitiu ao observá-la tão concentrada. — Eu gosto muito desse pintor. Ele realmente consegue me provocar – informou Bianca, fazendo menção de se afastar. — Não, por favor, não precisa sair assim de súbito, ainda faltam quinze minutos.
Eu só fiz um alerta. Bianca conteve os os, mas já um incômodo a cutucava. Silenciaram. Ela, com o o interrompido, ele, com o olhar na tela. Essa mudez desconcertou ainda mais a mulher de cabelos contidos e vestido longo, até que a voz do homem de estatura alta, pausada e vibrante, comentou olhando para o quadro: — Exposto assim ao público é como um corpo que se vende. Então eu fico pensando que o objetivo de toda beleza é o consumo. Seja o gratuito, quando você olha e não paga nada por isso, seja o capitalista, quando você particulariza o olhar. Tudo é consumo. Porém, haveria outro modo de ser? — Eu não sei, moço... eu não sei... No fundo, ela saberia o que responder; mas quis evitar o prolongamento da conversa, por nervosismo ou receio. As sutilezas masculinas, cogitou, olhando meio de lado para o homem alto. Queria dizer algo, retribuir o contato, interagir, todavia o seu natural acanhamento diante de estranhos lhe suprimia a voz. Sim, poderia desenvolver um diálogo, mas em ocasiões assim não reagia, aquele homem podia estar com segundas intenções. Por trás de suas lentes grossas costumava ver o mundo com cuidado, orientação de seu pai, dos disfarces com que os homens se aproximam. Dos seus óculos, a visão panorâmica do mundo: concreto, perigoso, feito de verdades e mentiras. Verdades e mentiras que, misturadas como tinta, não se sabe onde começa uma cor e onde ela entra em gradiência, esse estado astigmático. Em cada esquina, a possibilidade de uma ruína. Em cada noite, luzes e esconderijos, os espaços indecifráveis entre as noturnas estrelas. Mas também havia a beleza. Havia coisas semelhantes a esse quadro que acabava de apreciar. No sentido que ela intuiu a partir das tintas misturadas, melancolia e paz, os efeitos contrários. O mundo tem efeitos contrários, é tão sólido quanto contemplativo. O homem tinha uma voz concreta, mas ela o percebia abstrato, por desconhecido e por ser homem. A voz paterna, cismada e protetora, dizendolhe das malícias, alertando-lhe que os varões se aproximariam com discurso de bondade, mas no fundo estariam acariciando a ardil inteligência. — Você está bem? – perguntou o homem ao notar um desconforto na mulher de cabelos contidos e vestido longo.
— Estou bem, sim. Acho que ainda estou envolvida com a tela. O homem alto, sorrindo para ela, depositou-lhe um olhar de compreensão: — Eu entendo. E quando ele a olhou sorrindo, Bianca quis sorrir também, mas corou, arrebatada e aflita, pois logo recordou da voz de seu pai – eco ressonante em seu pensamento –, lhe prevenindo das facilidades que levam aos desastres, das ardilosas táticas de sedução utilizadas pelos homens para, depois de conquistar uma mulher, desprezá-la. O alerta desde cedo embutido no cérebro da garota que agora era adulta, virgem e solteira. Dos poucos pretendentes que tivera, a desconfiança inibiu o simples compromisso do namoro que poderia levar ao matrimônio. Ainda assim, algumas vezes tentou quebrar a capa de proteção com que seu pai lhe cobrira o corpo, mas, apesar de o corpo pedir a carne e dos olhos míopes quererem ver mais que o permitido, não ousou ultraar a barreira do limite estabelecido pela base familiar. O mundo é assustadoramente arriscado, reforçava a mãe. Mulher é uma espécie que se aventura e quase sempre erra, e, quando decide refazer a estrada, a estrada encurtou. Bianca perambulava por essas reminiscências quando voltou a se dar conta de que devia ir embora, então resolveu falar qualquer coisa só para não parecer tão tola: — Ele é formidável – arriscou, referindo-se ao artista. — Parece que sim. — Você não concorda? — Tenho dificuldade para falar de mim. Por isso prefiro pintar, é um modo de comunicação. — Então você é o autor desses quadros?! – deslumbrou-se a mulher, ajeitando as lentes, porém, antes que o homem respondesse, ela prosseguiu ainda em espanto e mais interessada em conversar: – A foto que eu vi ontem no jornal era a de um homem barbudo. O homem ou a mão no rosto e explicou:
— Eu raspei hoje justamente por isso. — Eu nunca adivinharia. Malard é seu nome artístico ou social? Oh, meu Deus, mas antes de você me responder isso deixa eu te dizer que sou sua fã, eu tenho um quadro seu em minha casa, e eu estou tão nervosa, e eu queria te perguntar tanta coisa, mas o tempo é curto, a galeria já vai fechar, e eu não sei, eu não sei... — Respire. Acho que agora você está mais relaxada – respondeu o homem já um pouco mais à vontade também. — Nossa! Nunca pensei que... — Fosse eu? — Desculpa, é que... — Não se desculpe, você não tem obrigação de saber. Tá tudo bem, isso é sem importância. Enfim... Parece que você gostou muito dessa tela... — Ah, ela é exuberante, é maravilhosa! Todas transmitem emoção na verdade! Mas eu esbarrei nesta aqui e não consegui mais sair. Posso saber de que maneira concebeu a ideia? Ah, não, não precisa falar, já temos que ir, você veio me alertar do horário... — Se quiser, podemos sair e beber alguma coisa... aí eu te conto. — É que eu não bebo, perdoe-me. — Nem água? O artista olhou para a fã e a fã, olhando para o chão, respondeu: — Não frequento bares. — E restaurantes? — Só em algumas circunstâncias. Diante da circunstância indevida, Bianca começou a procurar alguma coisa dentro da bolsa, mas esse era um gesto automático realizado sempre que se sentia constrangida. Em seguida, fitou mais uma vez a imagem que, aureolada
pela luz, ficava ainda mais fascinante, e seguiu os os do pintor, que se retirava. Seguiram para o estacionamento na entrada da galeria. O homem quis acompanhá-la até o carro, mas ela explicou que chamaria um táxi. — Se permitir, eu a deixo em casa. — Imagine! Jamais lhe daria esse trabalho! — Eu faço questão. — Não, não precisa. Não foi ela, mas as vozes do pai e da mãe que responderam em seu lugar. Bastou negar para recuperar essa consciência, que era a consciência de um corpo indisciplinado agindo com disciplina, e, por isso, de vez em quando se odiava porque, ao contrário do abstracionismo de uma tela, os sentidos para o seu corpo eram reais e limitados. Diante do pintor de que tanto gostava, sentia grande satisfação, contudo a satisfação não se manifestou isenta de obstáculos. Sua vontade maior era a de aceitar a companhia do artista, ir com ele, conversar com ele, conhecê-lo mais a fundo, compreender o homem para além das telas. Ela tinha vontade de ser mulher, de estar em colóquio amoroso com um homem, de ser plena, ainda que errasse e sofresse as penalidades da ilusão. O pintor resolveu fazer companhia a Bianca até que o táxi chegasse. Foi nesse tempo que ela ajeitou os óculos no nariz e o encarou mais uma vez: — Você realmente está bem diferente da foto no jornal. — Aceite a minha carona. Prometo que lhe mostro o meu documento de identificação... E sorriu entusiasmado para ela. A exuberância nascendo e Bianca se asfixiando entre as paredes das vontades. O desejo e a prece contra o desejo. No turbilhão das rivalidades, ela era uma forma sem preenchimento, era como se estivesse no cume de uma montanha e, olhando
para baixo, não avistasse nada ou, quando muito, uma paisagem embaçada. Mas, no meio da paisagem embaçada, era possível ver uma mulher de óculos profundos, cabelos comedidos, de longo vestido e de corpo intocado. Como saber o que há depois se não deixar as vicissitudes transformarem as descontinuidades das coisas, por que viver para sufocar o grito? O táxi parou e o motorista se apresentou. Bianca despediu-se do pintor, mas, ao abrir a porta do carro, tornou a fechá-la. Abriu a bolsa, pegou algum dinheiro e o entregou ao taxista: — Me desculpa, moço, eu vou ficar um pouco mais. – E voltando-se para o pintor: – Eu aceito a sua carona. Convite aceito, já no carro, o homem fez menção de lhe mostrar o documento de identificação, mas ela informou-o de que não precisava. Durante o trajeto, Bianca falava mais descontraída: — Sabe, eu tinha muita vontade de conhecer um artista assim bem de perto... — O que me deixa muito feliz. E você pode me conhecer ainda mais. Eu tenho um ateliê no meu apartamento... Bianca sorriu satisfeita e, ajeitando os óculos, olhou para o pintor que, tentando manter-se atento ao trânsito, de vez em quando olhava também para ela. — Jura? Meu Deus, seria muito bom conhecer os bastidores, o seu estúdio de trabalho! — Se quiser... — Quando? — Mudo de trajeto agora mesmo... À alegria inicial somou-se uma suspeita, e o riso fácil de repente se desvaneceu. A sutilidade dos homens. Mulheres precisam adivinhar antecipadamente o sinal menos visível de desonestidade, minha filha, era a voz do pai, frequentes ecos de diálogos partidos. Aceitar que a levasse para casa, tudo bem, mas permitir-se à intimidade do
apartamento de um desconhecido era refutar todo o fundamento de sua educação. Além disso, no íntimo, tinha dificuldade em aceitá-lo com naturalidade porque seus olhos não vislumbravam naquele homem de barba feita a imagem do homem no jornal do dia anterior, mesmo que tenha se aventurado a entrar no carro dele. Tendo suprimido por tanto tempo as oportunidades de se ver como uma mulher de verdade, feita de fracassos e vitórias, não suprimiu de igual forma – por impossível – as manifestações de um corpo que sem prece ou religião não possuía outros elementos em que se amparar. Bianca experimentou um arrepio. Que mal haveria em aceitar o convite e atrever-se pelo menos uma vez ao delírio dos absurdos? Todo ser humano não é uma história imperfeita? E, por outro lado, para que serve a perfeição se a perfeição corresponde a um estado inalterado das coisas? É nos desvios que estão os caminhos, mas é preciso coragem para conhecê-los porque, se ela desistisse de aceitar a intimidade da casa do artista, poderia perder a possibilidade do paraíso. — Lá tem outros inéditos, talvez queira ver. A voz do homem interrompeu o seu raciocínio, devolvendo-a ao instante concreto. — Por quê? — Ora, por quê. Porque... porque você é fã, porque você gosta da arte, porque eu não costumo fazer isso e de repente me deu vontade, então isso pode ter a ver com destino... Acredita em coisas desse tipo? E o homem sorriu bonito outra vez. Nove horas da noite, um pouco mais talvez. Era sábado, o que custava? No continuado, seria domingo, e depois segunda, e depois terça. Nem pai nem a mãe precisavam saber da situação incomum de ar o desconhecido mundo de um suposto artista. Pisar o chão onde cores e pincéis se misturam e rascunhos de imagens se acumulam, adentrar a fábrica da arte, os objetos desorganizados, os utensílios manchados de tinta, o cheiro forte. Mais impulso de ir do que de recusar. Antes que a importunassem, desligou o celular.
— Eu aceito. Mas sem drinque. — E interrompeu a fala. Depois a retomou para justificar — Pois eu não bebo. O homem sorriu e ela leu naquele sorriso uma ironia como se ele tecesse uma teia e ela fosse o inseto a ser fisgado. Pare o carro agora, pensou. E se ele não parar?, pensou. Eu abro a porta e me lanço ainda em movimento, pensou. Vou quebrar duas ou três costelas, mas não vou morrer, pensou. Pensou, pensou, mas não se decidiu, o carro continuava rolando no asfalto a caminho da casa do pintor. Não se decidiu por constrangedor ou porque estaria de novo suprimindo uma oportunidade. Assim que Malard abriu a porta do 1.203, Bianca foi empurrada com agressividade para o interior da sala e sentiu o golpe no pescoço. Entre o desfalecimento e a consciência, sentiu que o algoz lhe rasgava o vestido ao mesmo tempo que punha a mão direita com força em seu pescoço para asfixiá-la. Incapaz de gritar, o terror era visto nos olhos arregalados e suplicantes da vítima, que nesse instante sentiu vacilar a mão que a sufocava. A mão vacilou, mas agora a boca do agressor tocava os seus seios com lascívia enquanto o nariz do homem buscava no pescoço o perfume que antes lhe instigara. Bianca intuiu que ele a mataria tão logo alcançasse a vontade momentânea. — Ei, abra os olhos, sussurrou o pintor quando o elevador parou. Bianca sentiu ímpetos de voltar quando avistou o número 1.203 pregado na madeira. Malard abriu a porta e, educadamente, solicitou que ela entrasse. Não, nem ele a empurrou e muito menos a golpeou. Não houve vestido rasgado e nem ânsias sobre ela, foi o pânico que a fez imaginar. Na luta entre o sim e o não, tentava um vago otimismo que insistia em abandoná-la e, quando se viu diante da porta aberta, ela entrou carregando o lado corrosivo das coisas. Tão logo se viu na sala, uma sensação de síncope fez com que ela pedisse água com gelo. Malard saiu para buscar a água e Bianca, abstendo-se da síncope, observou cinco quadros na parede. Cada um deles continha uma mão desenhada em posição diferente, as cores eram opacas e em muitos momentos misturadas em tons de azul, branco e dourado, bem desiguais das que avistara hora antes na galeria. Quando Malard retornou, viu que a visitante abservava as pinturas. — Estranhando? – perguntou, entregando-lhe o copo com água e gelo.
— Estou fascinada. — É uma coleção simples. Tão simples que não coloquei em exposição. — Ah, mas devia. As mãos dizem coisas. A primeira, por exemplo, parece pedir, parece implorar!, e está tão só... Você faz coisas tão diferentes! — Nessas eu utilizei a técnica do molhando no seco, é algo relativamente comum. — Tudo parece comum mas nem sempre é fácil, tenho certeza que você dedicou incontáveis horas até concluir o trabalho. — Foram inspiradas nas marcas das mãos rupestres encontradas nas cavernas da ilha de Sulawesi na Indonésia. Desde que vi as imagens daquelas mãos, eu sabia que não conseguiria deixar de repaginá-las. E, dentro do meu estilo, repaginei. — Eu nunca soube dessas mãos, mas vou pesquisar... as suas ficaram muito boas! Bianca falava, mas não bebia a água, pois nesse meio tempo, observando as telas na parede e remoendo a ideia de que no dia anterior aquele homem possuía barba, lembrou-se da mãe falando-lhe que psicopatas se escondem atrás de comportamentos gentis e sorrisos sedutores. Os psicopatas são também muito inteligentes, possuem grandes talentos, acrescentava o pai. — A água vai esquentar – falou o pintor, e Bianca agora tinha certeza de que ele estava desejando que ela bebesse o líquido certamente contaminado. Não beberia, podia conter substância alucinógena ou sonífera. Se ela bebesse e dormisse, quando acordasse provavelmente estaria amarrada ou algemada, a boca vedada. Talvez ele a mantivesse prisioneira, obrigando-a a amá-lo, talvez a torturasse, talvez nunca mais fosse vista por ninguém. — Deixa o gelo derreter que eu bebo... — Já que você não bebe álcool, vou me servir de alguma coisa. Um momento, eu já volto... Malard tornou a se afastar e Bianca observou sobre a mesinha, em um canto da sala, alguns retratos em pôsteres. Havia um homem sorrindo, o rosto em close.
Bianca apertou os olhos o mais que pôde: seria mesmo ele? Tirou os óculos, fechou os olhos, recolocou os óculos, abriu os olhos, concentrou-se novamente na fotografia. Não, não era exatamente o da foto no jornal. Definitivamente não, não se tratava da mesma pessoa, embora haja retratos que não garantem a idêntica feição da pessoa retratada. Bianca teve a ideia de observar a grafada nas telas e, ao se aproximar, viu nos cantos inferiores e do lado direito de cada quadro a letra M, que deveria corresponder ao nome do artista. Mas o conflito mais uma vez se estabelecia porque, nas imagens da galeria, não havia somente o M, mas o nome inteiro: Malard. Ouviu os, era ele que se aproximava trazendo nas mãos o copo com uma bebida vermelha. — Além da água, aceita um chá? — Sim, eu aceito – falou a mulher, não porque quisesse o chá, mas para mantêlo afastado. Antes de se levantar, Malard bebeu um pouco do campari enquanto observava aquela mulher agindo feito uma garota desconcertada. — Você está bem? Era a segunda vez que aquele homem, olhando fixo para ela, perguntava-lhe se estava bem; perguntava, mas não devia, logo Bianca ou a supor que a indagação era feita com o objetivo de perturbá-la, deixando-a vulnerável ao ataque. Querendo esquivar-se dos olhos de vampiro, Bianca quase pediu licença para ir ao toalete, mas desistiu ao julgar que o banheiro seria um lugar onde o homem podia facilmente trancá-la, tornando-a prisioneira. Malard, para descontraí-la, resolveu falar de pintores que influenciaram seu estilo, de esculturas que começara e nunca terminara e de trabalhos prontos que ele não tinha coragem de divulgar. Mas a garota parecia cada vez mais tensa, uma garota em seu estilo, bonita e tensa. Quanto mais ouvia o homem, mais Bianca imaginava o desastre. Ela pensava no perigo em que se lançara e em seu sangue escorrendo. Tanto esmero familiar para no fim ela se tornar uma desaparecida! Quem por último a teria visto? Na
intimidade do medo, o castigo pela experimentação do desejo. Um criminoso viril e uma vítima indefesa. Os quadros na parede, a mão pedindo ajuda, a outra se estendendo para ajudar, mas era pura dissimulação. — Estou te achando um pouco tensa. Eu vou preparar o seu chá e depois que você relaxar eu te mostro o meu ateliê. Malard se afastou e Bianca foi até a janela, ávida por oxigênio. Lá embaixo, o movimento de carros com seus faróis sonolentos. Da altura que estava, via-os tão pequenos, quase de brinquedo. Feito ela que, sentindo-se pequena, brincava consigo mesma. Que destino se doava? E se o homem não fosse nada do que andava a supor? E se toda a ideia da psicopatia com que presenteara o artista não asse de um exagerado engano criado pelo seu exagerado medo? Correu à mesinha de canto outra vez e de novo encarou a fotografia no pôster. Da fotografia, foi desviando o olhar para baixo e avistou uma gaveta. Ação contínua, abriu-a e um suor escorreu de sua nuca quando distinguiu o objeto. A sensação da imagem de um revólver na televisão não é igual a que se tem quando se está diante do artefato na vida real. Ela seria assassinada, pensou. Fechou a gaveta com a mesma habilidade com que abrira e, no imediatismo da ação, sentiu ímpetos de se apossar da arma e apontá-la para o seu oponente quando ele voltasse a ficar diante dela. Possuiria balas? Sem balas, ele a faria refém, já enfurecido pela atitude inimiga. Teria mãos e pernas amarradas, a boca tapada. Deu-se conta da gravidade da situação, pois ela sequer saberia manusear aquela arma. O homem certamente não era quem se dizia ser e toda aquela gentileza se devia aos doces gestos de um maníaco pronto para atacar. Não havia lugar para o desejo, apesar do desejo. A mão na parede pedindo ajuda, a outra se dando para ajudar, dissimulada. Ela – o próprio desenho da mão –, pedindo socorro porque desejava, e ele – o próprio desenho da mão –, inclinando-se para ajudar, mas não ava de um ogro. Malard voltou com a xícara de chá e, antes que ele a surpreendesse, Bianca já estava sentada no sofá. — Eu estava aqui pensando... que coisa! – isso não se faz, falou o pintor
colocando a xícara sobre a mesinha de centro – Está quente, deixa esfriar. — Desculpa, mil desculpas, foi um impulso, respondeu Bianca imaginando que ele a teria flagrado observando a arma dentro da gaveta. — Impulso? Quer dizer uma catarse? Você consegue fazer uma leitura eficiente das minhas obras, mas sem a visão técnica que a crítica faz, e é exatamente isso que eu gosto. Respirou fundo e recompôs-se, não era da arma que ele estava falando. O homem continuou: — Há um quarto naquele corredor – e apontou com o queixo o corredor que levava ao quarto – onde camuflo umas obras inacabadas. Serão sempre inacabadas, eu creio. Se acaso um dia eu cumprir o dever de concluí-las, não acredito que eu as leve para uma exposição. Há coisas que eu faço e não são para o público, entende? Ah, esqueci o açúcar! – lamentou o pintor, olhando para a xícara sobre a mesa de centro e erguendo o corpo do sofá para providenciar o adoçante. Bianca teve a impressão de que o homem, antes de dar as costas e seguir para a cozinha, deixou o olhar repousar em seu busto que, nem pequeno nem grande, se escondia sob o vestido. Ela sentiu o vestido encolher. E com o frenesi que a invadiu, queria convencer-se de que ele não era um maníaco e tudo não ava de um estonteante devaneio criado pelos limites a que desde cedo fora exposta. O homem alto era atraente, o pintor, envolvente, e Malard um mistério que a seduzia, apesar da dúvida. Quando ele se demorou em seus seios, sentiu o vestido encolher e enrubesceu porque, desarmada, talvez demonstrasse a aflição se debatendo entre a mulher educada para conter e a mulher preparada para ceder. Vontade de se entregar, de se tornar vítima só para tocar o desejo e ver de perto os olhos inflados de ânsia, ser prisioneira do ímpeto voraz de um ensandecido sádico. Vontade também de fugir dali, de abrir a porta, tomar o elevador e ganhar a rua. Mas havia a vontade de ficar, de ser abraçada, de se envolver, havia a vontade de um cálido beijo. Para quem foi buscar um pouco de açúcar, a demora prolongava-se demais.
Estaria ele preparando a cilada? Devia ter tomado o táxi, e àquela hora já estaria em sua cama, favorecida pela tranquilidade da segurança familiar. Não tirou o vestido, mas tirou os sapatos, que era para emudecer o barulho dos os. Alcançou o corredor, chegou à porta do ateliê, que estava entreaberta. Empurrou temendo que rangesse, mas não rangeu. O quarto era espaçoso e caótico, um aglomerado de objetos se entrelaçavam por entre tintas, cabos de pincel, panos, telas, cavaletes, paletas, livros, fotografias, jornais. E avistou também aquela tela inacabada... Na tela inacabada, uma mulher de joelhos – desenhada a traços – apresentava um denso corte na barriga enquanto o ombro direito sustentava a cabeça que despencara para o lado. No corte que ia de entre os seios até o umbigo, avistavase o interior do estômago com um realismo tão asqueroso que chocava. Não havia sangue, apenas a cavidade estomacal com o suco gástrico borbulhando. Bianca sentiu os pelos se eriçarem, todos os pelos em suspensão. Não havia dúvidas, ele a mataria para concluir a tela, com um bisturi rasgaria seu ventre para ver os órgãos por dentro e dar à obra o acabamento que faltava, ela estava perdida. Pelos eriçados, todos os pelos em suspensão, não havia o que avaliar: ganhou o corredor com a agilidade de uma fugitiva, alcançou a sala, viu a xícara de chá que ficaria intacta, veneno que talvez contivesse. Quando tornasse a aparecer, Malard teria uma expressão pesada, talvez um rosto vermelho de cólera, sua outra face. Com o instinto de presa ameaçada, abriu a porta sem se importar com o barulho que os metais presos ao chaveiro fizeram. Trêmula, fechou a porta atrás de si, ou a mão na testa suada e chamou o elevador. Um, dois segundos. O tempo parado como um céu sem nuvens. Três segundos à espera e o terror que não se acaba. Ele abriria a porta e, puxando-a com força, Bianca seria de novo conduzida para dentro. Quatro segundos. Para que feito uma espiã resolvera se infiltrar? Desejava, não executava o desejo. Seu desejo era uma intimidação. A voz do pai acusando-a, o tabu e a penitência. A mãe, o pai, tanto zelo, e ela aos trinta anos de idade caindo na armadilha anunciada, ela, um instante de horror e fuga. A vontade daquele homem, apesar. Sete segundos. Seu corpo não lhe pertencia somente, seu corpo era o corpo de uma trindade familiar, pai, mãe e
ela. Vontade daquele homem, vontade de tirar a roupa para que ele terminasse a tela. O homem abriria a porta, o homem sem barba escondido por trás de um nome, a letra M apenas. Dez segundos e o elevador não chega. O elevador não chegava e já devia ser tarde. Doze segundos de eternidade! O homem abriu a porta e Bianca viu o clarão da luz se reverberar. No aterrorizado do instante, a mulher de óculos profundos lançou-se na escadaria de emergência, ganhando os degraus numa descida desenfreada e temendo que Malard descesse de elevador e a alcançasse bem onde desembocaria. Acelerou e, por mais que corresse, sentia como se não atingisse a velocidade ansiada. Chegando ao saguão, não havia porteiro, mas na pilastra anterior à grade havia um interruptor, pressionou-o e o portão de entrada destravou. Puxou-o e sentiu a fulminante sensação de liberdade quando o frescor da noite roçou sua pele. Quando iniciou a travessia da pista onde, lá de cima, vira os carros trafegarem com seus faróis sonolentos, sentiu o asfalto frio sob os pés descalços. Os sapatos ficaram para trás, lá no corredor, que era para não fazer barulho. A bolsa com os documentos também. Observou ao redor, ninguém a perseguia. Inclinou o pescoço para ver o prédio à distância e, em meio a cem janelas, tentou identificar o andar do apartamento. Numa dessas janelas, parecia que existia alguém, pescoço e cabeça mirando o solo. Um carro ou e buzinou para ela. Haveria de ar um táxi, ela estenderia a mão. A brisa fria, o chão frio, seu rosto quente. O sangue quente. Outro veículo buzinou e, diminuindo a velocidade, parou um pouco mais adiante. As luzes vermelhas piscando, esperando. As luzes vermelhas esperando. Com os cabelos contidos, o vestido longo e os pés descalços, ela se aproximou para pedir carona.
CACHORROS
O casarão antigo ficava na Rua dos Perdões. Nem tão antiga quanto o casarão, a viúva diabética, hipertensa e excessivamente ansiosa – Dona Eulina – sofria de obsessão por um buldogue inglês. Conviviam os três – o casarão, o buldogue e ela – como a harmonia de partes que se encaixam, até que um dia a inquieta senhora avistou a cabeça de um cachorro morto num saco de lixo, e as coisas se tornaram dissonantes. O resto do corpo morto estava dentro do saco preto. Visível, somente a cabeça dura, cuja boca aberta, paralisada no grito de dor, mostrava os dentes ferozes. Ao flagrar a cena, Dona Eulina diminuiu os os, fixou o olhar. Voltava das compras quase diárias porque, como não tinha muito o que fazer, distraía-se indo ao supermercado várias vezes na semana. Era o lazer de quem, aposentada, cuidava de um cão e de um casarão antigo. Os dois filhos tentaram convencê-la a acompanhá-los para o estrangeiro, mas Dona Eulina apenas aceitou ir a eio, retornando dois meses depois e trazendo consigo o bichinho apelidado de Farol. Encheu-se de exageros para com o animal, um filhotinho necessitado de cuidados, uma vida que se ligou à dela. Farol foi se fortalecendo, ganhando corpo e beleza, enroscando-se na dona, compartilhando com ela outra espécie de amor. E agora aquela cabeça de cachorro indigente lançada ao lixo, sem enterro nem dignidade, incomodou-a. Uma lágrima escorreu no rosto ao recordar Farol. Por ocasião de sua morte, ele não poderia ser lançado assim aos detritos como se fosse coisa sem importância. Por antecipação, já latejava em si a angústia de perdê-lo, sentindo como mãe o infortúnio do seu cão, o fatal destino. Ao chegar em casa, o afago carinhoso e a agitação eufórica de Farol, as lambidas roubadas e ela lhe respondendo: — Eu não disse que não ia demorar? Pois já voltei.
E, depositando as compras no chão, o bicho se aproximava para cheirar. Ela ficava olhando o animal farejar os itens dentro dos sacos, investigando curiosidades. — Não tem nada para você aí. O veterinário proibiu de te dar lanches, lembra? Você está acima do peso. Conversava com o companheiro, e ele a entendia, mas aquela era uma alegria ameaçada, todo aquele amor logo seria enterrado, restando-lhe apenas a casa antiga, grande e vazia, sem latidos, sem rabo a balançar, sem lambidas e sem olhos a espreitá-la. Os seus olhos buscariam inutilmente os movimentos caninos, os brinquedos deslocados e espalhados ao longo da casa, a presença viva, nada mais haveria. E por assim crer – como a fé que dedicava aos santos –, o corpo enchia-se de dor, a pressão subia, o açúcar se descontrolava, e vinha a insônia. Farol aproximou-se amoroso, lambendo-a, ela paralisada, observando a dificuldade com que o bicho se arrastava por causa da paralisia das patas traseiras. Como seria sua vida sem aquilo? Desde que enviuvara e os filhos deixaram o país, estivera no estrangeiro para visitá-los e, ao retornar, trouxe Farol consigo, ainda pequeno, ainda mínimo. ou a dedicar seu tempo àquela coisinha inocente que nada mais fazia além de lhe retribuir amor dobrado. O amor dobrado se multiplicou por anos até que veio a enfermidade, a descoordenação motora, o descomo dos movimentos e a saúde do cachorro fora interrompida. Desde então ou a cogitar em abreviar o sofrimento do animal que arrastava as duas patas traseiras, o que significava pôr um fim ao próprio sofrimento. Mas a aflição de perdê-lo invadia-a violentamente, descobria-se debilitada como se lutasse contra uma doença degenerativa. Como se não bastasse a paralisia, o veterinário ainda lhe informou que Farol estava atingindo a idade do perigo: — Normalmente essa raça vive de oito a dez anos. Se redobrar os cuidados, talvez viva um pouquinho mais. Para Dona Eulina, um pouquinho mais não servia. Um pouquinho mais
correspondia a um pouquinho menos. Desconfiada de que Farol morreria dali a algum tempo, previu uma vida sem beleza, seus dias sem os brinquedos espalhados pelo chão, sem a ração que ao ser comida se espalhava ao redor do prato, sem os olhos que constantemente a espiavam, sem visitas ao veterinário, dias como dias de dono sem cão. Dona Eulina reabasteceu o vasilhame com o alimento canino, mas já um saudosismo a angustiava. Saudade antecipada, agonia precipitada pela morte certa e sem prorrogação. Quanto ainda restaria? Enquanto vivia para esperar o tempo que restava, as patas traseiras se arrastavam em penitência, oh, meu santo. Como podia diminuir a velocidade do tempo ou inutilizar a memória para esquecer o sofrimento do animal que, na mesma medida, era todo o seu sofrimento? O tempo progredindo era como os que vão em direção à morte e por isso os dias de Dona Eulina aram da função de amar o seu cachorro para a crise de viver a sua morte. Farol sentiu qualquer coisa de angústia e aproximou-se da dona para lhe doar presença. Aflita, ela rejeitou-o, e o cão se afastou para observá-la de um canto da sala, o focinho entre as patas, os olhos desconfiados, o rabinho parado. Depois, arrependida do gesto, Dona Eulina tentou animá-lo, mas inútil, Farol parecia descobrir a falsidade da ação. A senhora o compreendia, fiel e cúmplice. Deu-lhe as costas, foi à cozinha, pôs água com camomila para ferver, trêmula e nervosa. Farol, mantendo distância, adivinhava-a diferente. Tentando reaver a amizade e exigindo de si a coragem necessária para o enfrentamento do destino implacável, aproximou-se do animal e acariciou sua cabeça. Uma vida que findava. Qual o sentido de ter aquele amor se ele não sobreviveria a ela? Se a qualquer hora partiria igualzinho ao seu marido, certeiro como os irmãos que já habitavam cemitérios? Tudo é estupidez, egoísmo e ignorância, ponderava Dona Eulina, o mundo é imperfeito. No precipício de quem padece por antecipação não há defesas para a vida que se processa em estado de irreversibilidade. Sem Farol, o casarão antigo se tornaria ainda mais ancestral: os cômodos de madeira pesada se revestiriam de mais silêncio, a arquitetura do século ado
ganharia uma feição de abandonada, e ela, miudinha, em algum porão sufocando saudades. Viver esperando a morte ou precipitá-la. Hipertensa, diabética e nervosa, Dona Eulina trancou-se em casa por duas semanas – presa no quarto, uma hóspede no sofá da sala – até que duas vizinhas vieram procurá-la. — Ficamos preocupadas, Lina. — Foi uma indisposição, mas já estou bem. Convidou as visitantes para um café, mas sem vontade, pois desejava continuar no silêncio angustiado e cheio de espera. — Nunca mais a vimos com seu cachorro, então achamos que seria bom virmos procurá-la. — É apenas uma indisposição, o médico disse que isso a – respondeu. — Qualquer coisa que precisar, sabe que pode contar com a gente – falou a mulher de cabelos amarrados. — Beba chá de melissa três vezes ao dia – aconselhou a outra. E foram embora. Mas a indisposição se agravou e Dona Eulina necessitou de atendimento médico, a pressão andava em dezoito. — Precisa se cuidar, Dona Eulina. – orientava o médico – A senhora está preocupada com alguma coisa? — Não, nada me preocupa. – mentiu. Medicada no hospital e com receitas para tratar-se em casa, a viúva adiantou-se para estar de novo com seu cachorro paralítico e quase morto. E vendo-o se arrastar com grande sacrifício para receber o carinho, fio a fio a ideia foi se formando.
A princípio, embaçada, até que o plano se revelou, senão exato, pelo menos providencial. O seu buldogue, constatava, tornara-se a sua destruição. Dormia e acordava exausta, uma continuada palpitação na região do peito. A cabeça do cachorro morto no saco de lixo, a morte de Farol, a casa vazia, sua própria morte. Dona Eulina encolhia-se mais soturna que seu casarão. ou a beber cada vez mais chá. E agora, multiplicou as idas ao supermercado. Caminhar todos os dias ajudaria, dissera o médico. Aproveitando-se da orientação, ia pensando, voltava pensando, ia fugindo, ia planejando. Numa das idas, comprou o veneno. Dissolveria no leite, Farol beberia com inocência, era preciso matá-lo, encurtar o caminho, acabar com a paralisia, não esperar o momento do enfarto. Jamais compreenderiam sua aflição, a corrosiva ansiedade que a abatia. O cachorro se arrastando, os dias contados, essa raça vive em média de oito a dez anos, e ele tinha nove, Farol tinha nove anos, a qualquer momento uma dor súbita, uma metástase, uma parada cardíaca, como esperar? Sofrer antecipadamente a morte de Farol custava-lhe a saúde e lhe revelava a impotência de quem se via perdendo o elo de comunicação com a vida. Assassina, mataria seu cachorro para não o ver definhar pouco a pouco até o último fôlego. Decidia-se por não viver à espera do instante em que seu companheiro fosse arrebatado pela morte, isso era tão insano quanto inável, Farol lhe pertencia, Farol findaria por meio de suas mãos. Decidiu, contudo não agiu. Ainda esperou uma semana, talvez a morte não viesse assim de imediato. Enquanto isso, Farol se arrastava cada vez mais lento e paralisado, enquanto ela tentava adivinhar o instante fatal. Se pudesse predizer o exato momento, talvez sofresse menos porque o martírio residia justamente nisso, na angustiante dúvida de não saber o dia. De qualquer forma, já não podia assistir aos sofrimentos do animal, àquele arrastar de patas traseiras, a pele ralando no solo. À tormenta da viúva acresceu-se outra disparidade: e se ela morresse antes do seu bichinho de estimação? A saúde andava debilitada, o açúcar alto, a pressão alta, um estado de nervos, não era possibilidade que devia ignorar, todos os dias pessoas morrem subitamente. Caminhou até a cozinha, abriu o armário e pegou o veneno.
Decretara pena de morte a Farol – em verdade, eutanásia – e a hora da execução se aproximava. Farol, desconfiando do que não entendia e sem se dar conta do sacrifício, mostrava-se apático. Dominicalmente religiosa, Dona Eulina repetia Abraão: toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e oferece-o em holocausto. Abraão nada quis em troca, mas ela oferecia Farol e queria em troca duas saúdes, a dela e a do seu animal que, já morto, repousaria na paz da cura absoluta. Eu te renego, Farol, pensava, eu te renego, e ou a mão nos pelos do animal. Eu preciso te oferecer a morte para nos dar a vida, eu preciso de saúde e você também, e conviver com o estado em que se encontra é morremos os dois diariamente sem nunca findarmos na dor. O buldogue, manhoso, lambeu o braço de Dona Eulina, ofertando no olhar uma compreensão. Carente desde então, ela apertou o pacote de veneno entre os dedos. Farol chegaria ao seu minuto final bem bonito. Levou-o ao veterinário para um banho, pelo macio e cheiroso, não morreria feio como o bicho avistado no saco de lixo. Dessa vez, no entanto, Farol não demonstrou alegria nem agitação. Parecia abatido, pacato, um cão depressivo. Dona Eulina constrangeu-se ao julgar que ele adivinhava a assassina. Farol, perdoe-me, eu sei que você, somente você, entende essa loucura que eu chamo de amor, ninguém além de você nunca entenderá. Farol calado, parecia saber. Banho dado, pelos escovados, um osso para roer. Voltar para casa. Amarga, dissolveu o conteúdo do pacote no leite e olhou para o bichinho que se arrastava: — O veterinário não aceitou te dar a injeção que faria seu coração parar. Se tivesse aceitado, seria sem dor, perdoe-me, mas ele disse que não podia... A morte talvez fosse lenta, mas já era noite e Farol não amanheceria. Com gotas de suor na testa e o corpo mais pesado que normalmente, Dona Eulina andou
pela casa, indo de um canto para o outro, os os ecoando uns sons abafados e denunciando a mulher que estava prestes a cometer o grande crime. Enquanto andava para lá e para cá, pensava na salivação provocada pelo envenenamento, pensava em diarreia, em vômitos e convulsões. Farol gemendo, debatendo-se, gemendo, os olhos pedindo socorro. E se asse mais uma semana de alucinação? Não, não aguentaria esperar, definitivamente não aguentaria esperar. Ao lado do vasilhame com água, pôs o recipiente com o leite envenenado. Olhos em lágrimas, coçou a cabeça de Farol, beijou-o várias vezes, abraçou-o, ele estava quente. Desprendeu-se dele, Farol seguiu-a, arrastado. Ele pedia, não queria morrer. Ordenou que ele ficasse ali e foi depressa para o quarto. Na cama, o sono impontual e o corpo movimentando-se impaciente. Na escuridão, imaginava Farol bebendo o leite e depois de algumas torturas a paralisia completa, tão terrível quanto viver sofrendo sua morte certa e iminente. Quanto a ela, vivendo de não comer sal, vivendo de não comer açúcar, a carne diabética movimentando-se na cama desconfortável. Dali para a frente, tudo de novo, o casarão e ela. Não veria mais aquele ser dependente, dócil e preguiçoso. Julgou que a vida lhe armara uma cilada, o seu encontro com Farol não ou de uma cilada. Duas, três horas, quanto tempo já se teria ado? Atravessou a noite com os olhos fechados, os olhos fechados e ela escondida dentro dos olhos, acordada. E, antes que o dia clareasse totalmente, levantou. Caminhou arrastada, o corpo trêmulo, ir procurar o cão, taquicardia. Não ouvia barulho, o cachorro estaria duro, esticado no chão. Lá estava ele de cabeça baixa e quieto, olhos vigilantes, o leite intacto. Um alívio lhe aplacou o remorso, amava seu animal, um amor terrível! Não lhe deu bom dia nem lhe fez carinho, que era para não se contagiar com falsas alegrias. Em vez disso, seguiu envergonhada para o quarto e se deitou outra vez. Farol a condenava, certamente. Agora, em vez de amá-la, ele lhe tinha medo. Ainda assim, seguiu os rastros dela, vagaroso e cheio de perdão, foi reabastecer-se da felicidade diária, lamber as rugas da viúva. Três dias separaram a primeira tentativa da segunda. Bem que tentou voltar a
viver como antes, sem receios, cumprindo o ritual da vida que prossegue e anuncia com sadismo o futuro irremediável. Mas a cabeça vista no saco a perseguia, a paralisia traseira de Farol a perseguia, a idade de Farol a perseguia, não viverá muito, pode sofrer um ataque cardíaco a qualquer momento, era o médico falando, ele estava obeso, ela o alimentava demais, a paz rompida. Não podia permanecer em estado de caos, a pressão subindo, suores frios, ansiedade, confusão, mais insulina. Definitivamente, precisava de um pouco de coragem e alquimia, era imprescindível desligar a existência de Farol para a continuidade da sua própria vida. Nos tempos bons, tomaram muitos chás em companhia um do outro. Farol bebericava um pouco, depois punha a cabeça sobre as patas dianteiras e ficava a espiá-la, ouvindo suas histórias. Daí a pouco se espreguiçava, a cara manhosa; erguia-se de novo, bebia um pouco mais da erva meio amarga, ela lhe dava um biscoito, e o quadrúpede voltava à mesma posição, um companheiro. Lembrando-se disso, veio a ideia e o impulso: dissolveu o veneno no chá. Caminhou para o quarto, de manhã encontraria o corpo sem vida. A mesma ansiedade causou a mesma insônia que causou o mesmo desconforto. As pernas deram para doer. Sentindo calor, ligou o ventilador; sentindo frio, desligou o ventilador. Mil pensamentos desfilavam fragmentados dentro de mais uma noite longa: o amigo no centro de envenenamento intensivo e a viúva na sala de espera: o puro e ultrajante amor. Os primeiros raios de sol e a ida ao banheiro. Agora, ir de encontro ao corpo sem movimento, em que instante agonizou no último estertor? E lá estava o cão inativo, imóvel. Todavia, um cão de olhos bem abertos e focinho atento, o chá intocado. Com a cara amassada pela noite insone, a senhora riu calada, atormentada e dúbia, estranhamente contente. Em seguida, vieram os carinhos, o canino lambendo as canelas da viúva e perdoando-a, ela se perdoando também. Foi então que pensou na água. A água ele beberia, não haveria jeito de se safar. Naquela mesma noite tudo estaria terminado. Fez todo o ritual e seguiu para a cama, que a recebeu, mas – como sempre – não a consolou. Foi naquela noite que um pensamento surgiu feito uma salvação.
Não precisava matar, mas multiplicar amor. Ergueu-se atônita: e se Farol, exausto de resistir, houvesse ingerido a água envenenada? Adiantou-se ligeira e, pisando o chão com força e com os pés descalços, foi encontrá-lo ao lado do recipiente pronto para a morte. Ela soltou um grito estridente: - Farol, não!!! Saia já daí, seu moleque! O animal, assustado e rastejante, foi se acomodar a um canto da cozinha, distante da viúva, intrigado. Dona Eulina jogou fora a água proibida e, para distraí-lo, começou a contar-lhe histórias enquanto colocava água para ferver. — Não precisa ficar assim! Foi um gritinho de nada, para o seu bem. E o meu também... Farol virou a cara de lado, parecia profundamente magoado. Mas como as mágoas infantis não se prolongam, logo se reaproximou, foi deitar-se aos pés da dona que, sentada à mesa, agora bebia o café ado há pouco. No meio daquela manhã, Dona Eulina saiu como quem fosse às compras. Falou com as duas vizinhas que conversavam da janela, estou melhor, obrigada, até logo, até mais. Horas depois, um carro parou em frente ao antigo casarão. Dona Eulina desembarcou acompanhada por dois homens e cinco cachorros de raças diferentes, dois cães maiores e três filhotes. Farol, imperioso, rei de tudo, irmão mais velho. Quando os funcionários do Abrigo Para Animais foram embora, restaram o casarão antigo, a mulher e seis cachorros. Acomodou-os. Teria grande trabalho dali para frente: multiplicar amor para não morrer de escassez. Combateria a morte, a sua e a de Farol, deixasse ele morrer naturalmente, ainda que se arrastasse por muitos meses. Convivendo com outros irmãos de quatro patas, talvez definhasse mais feliz porque em meio à matilha agora ele era todo comunicação. Por causa da matilha, mais facilmente Dona Eulina aria a paralisia diária de Farol, que se arrastava cada vez mais devagar.
Ingenuidade doar todo o sentimento a um só animal e morrer com a sua morte já que eles vivem tão pouco! Haveria naquela casa dali por diante muito amor, amor desenfreado e multiplicado, amor de cão e amor de mãe. E sua alma reabastecida. Os meses seguintes foram tranquilos, Dona Eulina perambulando na integridade dos sentimentos, o corpo quase não doía e a pressão se estabilizara. Agradeceu devotadas vezes a Farol pela sensibilidade aguçada, a perspicácia em não ingerir o veneno. Em agradecimento, entoava cânticos aos santos de sua preferência e o batizava com água benta, até que a morte o levasse. Os que chegaram maiores tornavam-se adultos, os filhotes cresciam bem cuidados, bons cachorros. Aumentara a despesa com o veterinário, mas a harmonia dos seus dias se expandia como uma repetição. Numa dessas manhãs iguais às outras, observando os cães aglomerados entre mordidas e lambidas, viu que o mundo é formidável, o mundo dos cães. Farol não morreria indigente e sem irmãos, os caninos e ela gemeriam a sua despedida e depois tudo continuaria como uma sucessão de dias, apesar das lembranças. De noite, porém, na cama que às vezes lhe doía a coluna, o açúcar devia estar alto porque sentia muita sede e precisou ir ao banheiro mais vezes. A pressão lhe deu umas cutucadas outro dia, sendo necessário recorrer de novo à ajuda médica. E como nas madrugadas o espírito se apresenta mais vulnerável, Dona Eulina cogitou na possibilidade de sua própria morte, uma morte certa, só não sabia quando, mas, ah! se pudesse adivinhar! Recordou a cabeça do cachorro morto no saco de lixo, a boca aberta, os dentes para fora, as moscas pousando. Se ela morresse, quem cuidaria dos seus animaizinhos? Quem gastaria com eles todo o dinheiro que ela gastava? Quem faria os carinhos que ela lhes fazia? No escuro do quarto, Dona Eulina vislumbrava seis cachorros rabugentos e sem vacina, sem ração e sem brinquedos, sem ossos de couro para roer, sem petiscos, jogados na varanda ou no quintal de qualquer casa injusta, sob os descuidados de um dono injusto, ou largados nas ruas, afugentados por pedestres, famintos, farejando perto de açougues, à procura e atropelados, mortos e lançados ao lixo, as cabeças para fora, alimentando moscas. Correu à cozinha, precisava de remédio, tremia.
Ninguém amaria seus animais como ela. Ninguém daria a vida por eles. Livrouse do tormento de matar Farol, caía no abismo de desamparar seis. Foi estar com eles. Um logo se alvoroçou, lambendo-lhe as pernas. Outro se aproximou, depois outro, depois outro... Rodearam-na com os rabos balançando e alguns latidos, fizeram uma festa como sempre faziam, a qualquer momento e pelo único motivo que bastava: A sua presença.
ALUGA-SE ESTA CASA
Já faz considerável tempo que avistei o carro de mudança parado em frente da casa ao lado. Um casal e três meninos desembarcaram em outro carro que estacionou logo atrás, enquanto dois homens começaram a levar os móveis do veículo para aquela residência que até o dia anterior estampava uma placa de aluga-se. Lembro-me que naquele momento, embora eu fizesse esforço por me manter indiferente, eu sentia contentamento e curiosidade com a chegada dos novos vizinhos. O garoto mais velho devia ter a minha idade, os outros dois aparentavam menos. Tímido, eu olhava da janela. Acho que não me viram porque suas atitudes eram de euforia pela nova residência e ajudavam a conduzir caixas e outros objetos pequenos para dentro. O pai chamou a atenção do mais novo: — Cuidado! Se derrubar, apanha. O pai sabia que o reclame era só uma ameaça; e se o objeto de porcelana despencasse no chão partindo-se em mil pedaços, o perdão estaria garantido, pois a ocasião era de felicidade. Os outros dois, como formigas conduzindo alimento, continuavam o seu ir e vir em meio a gritos e correrias. Da janela eu observava – com a timidez que me era quase crônica – aquela família. A verdade é que eu tentava adivinhar se o que nos tocaria seria amizade ou apatia, se aquela gente era dada à aproximação ou se blindaria o meu frágil poder de comunicação. Mas aí o menino mais velho já estava junto à minha janela: — Você me consegue um pouco de água? Os olhos tão próximos olhando para os meus, descortinando o meu mundo de devaneio, o pedido tão natural e súbito, arrancaram-me da absorção do
pensamento e, sem palavras, me retirei, fui buscar a água. Copo entregue, matou a vontade, deu-me as costas e saiu agradecendo: — Obrigado! Na sequência, os irmãos vieram. Beberam água, também deram as costas e se foram, estabelecendo entre a gente aquele primeiro contato que pelos próximos meses seriam intensos. Quando o caminhão de mudanças se foi, eu recolhi-me no meu quarto e fiquei ouvindo as vozes que atravessavam o telhado e vinham me falar deles, eles que em meio a ordens e protestos ajeitavam os móveis na nova casa: — Ponha essa caixa aqui, Leandro! – falou a mãe. — Alguém viu a minha bola? – perguntou um dos meninos. — Isso é hora de procurar bola? – rebateu o pai. Toda criança quando vê outras crianças pensa logo em brincadeiras, e eu também pensava. Dessa forma, eu já me imaginava brincando com meus novos vizinhos, pois para alguém que está entrando na puberdade tudo o que é novidade serve e estimula, tudo é expectativa, e, se os garotos abrissem a porta para as nossas alegrias, eu ficaria satisfeito. Quando o sol quase se despedia por completo, subi alguns degraus, fui para a parte alta do quintal e olhei por entre a cerca, minha câmera secreta. Dali era possível ver o fundo da outra casa, e lá estava o mais velho comendo sopa e reclamando, lastimando-se que o alimento estava muito quente. — Pois espere esfriar – respondeu a mãe, ajeitando outros pratos na mesa. Mas ele não esperou, foi se servindo da sopa assim mesmo, bicando o alimento aos poucos depois de soprar. Acho que ele tinha pressa, queria sair para ver o bairro porque praticamente engoliu o alimento e ainda deixou parte no prato. Quando ele de súbito se levantou e seguiu para o corredor que levava à sala de entrada, eu me adiantei e, feito foguete, desci os degraus da escada, imaginando que ele fosse para a frente da casa, no que eu podia provocar um segundo encontro, a falsa coincidência.
Quando abri a porta da minha casa e pisei no eio, ele despontou no eio ao lado e veio me mostrar o objeto que tinha nas mãos: — Vamos brincar de varetas? – convidou-me. — Na sua casa ou na minha? — A minha está uma bagunça... E, com graça e naturalidade, invadiu a sala da casa onde eu morava, tão ávido quanto eu, ou talvez nem estivesse ávido e tudo não asse do simples gesto de um garoto sociável e expansivo. Depois eu descobriria que ele nem era tão extrovertido quanto demonstrou nos primeiros contatos, especificamente porque quando nos conhecemos não sabíamos o que nos tocaria. E o que nos tocou, nos intimidava. — Você é filho único? — Sim! – respondi um pouco envergonhado. – Eu queria ter mais irmãos que nem você. Por que eles não vieram? — Luciel dorme cedo e Leonardo não gosta desse jogo. — São todos com a letra L? — São todos. E o seu nome como é? — Jadiel. Cuidado, vai balançar! – alertei quando, ao tocar uma das varetas, eu senti que a outra poderia se movimentar, no que ele perderia o jogo. — Você está torcendo por mim! Não pode, você é meu rival. Eu não tinha pretensão de ganhar, só queria dedicar a minha companhia porque comecei a sentir uma estranha felicidade por estar ao seu lado. O jogo de varetas rendeu um bom tempo de diversão, sendo interrompido duas horas depois quando a mãe, da janela da casa ao lado, gritou o nome dele: — Leandro! — Já vou! – e, obediente como um soldado, saiu sem despedida.
O eco daquele nome permaneceu nos meus ouvidos como uma lembrança que eu não queria olvidar. Leandro! Olhei para as varetas; tão apressado saiu que não as levou e eu me senti contente porque o objeto esquecido já era uma segunda razão para ele voltar. Além disso, levei o objeto comigo para a minha cama, um carinho a mais. Durante o jogo nos olhamos diversas vezes com reciprocidade, pelo menos foi o que me pareceu. Otimista, às vezes eu imaginava que ele me devolvia o olhar carregado de resposta, mas no momento seguinte eu me inquietava por considerar que todos os gestos e comentários realizados por ele não avam de atitudes e palavras oportunas e comuns ao instante. Na noite daquele primeiro dia fui para a cama com o tubo de varetas e desejando o reencontro, enquanto meu pensamento era uma lembrança em repetido: durante as partidas, dois pares de olhos de vez em quando se cruzavam e, no flagrante, o jeito de quem, surpreendidos, coravam. Nós tínhamos doze anos de idade. Nós tínhamos doze anos e o gás de quando se tem essa idade. No outro dia, tão logo acordei, corri à janela. Respirei fundo e, fingindo olhar a rua, virei o pescoço para o lado esquerdo onde ficava a casa. Havia o silêncio na casa e o vazio no eio. Deduzi que estivesse dormindo, aquele era um domingo, afinal. Será que a ansiedade que me chutou da cama havia se esquecido de ir chutar o meu amigo também? Fui para o alto do quintal espiar através da cerca. De onde eu me posicionava, podia ver a mesa em que eles faziam as refeições, pois o quintal da minha casa era aladeirado e íngreme, um aclive que ia até o limite de outra rua. Quando eu iniciei a escalada àquela hora da manhã, mamãe estranhou: — Vai fazer o que lá em cima uma hora dessas, menino? – esbravejou minha mãe, tentando me persuadir a não ir, mas não dei ouvidos, eu tinha ânsias de rever aquele com quem no dia anterior me sentira feliz. Uma hora depois – talvez tenha sido menos, pois o tempo da espera sempre parece maior do que de fato se esperou – ele sentou à mesa para o café da manhã. Essa imagem eu jamais esqueci. A camiseta regata mostrando parte de
suas costas e bastante dos seus braços, ele pondo o café na xícara e comendo o pão em silêncio. A mãe ia de lá para cá, da cozinha para dentro e de dentro para a cozinha, comentando coisas da casa, planejando. Ele mastigava tranquilo e sem destino, talvez lembrasse das varetas e viesse buscá-las, mas o certo é que ele não se sabia observado, Leandro não sabia que naquele instante ele tinha por companhia um garoto de sua idade escondido atrás da cerca. Quando se levantou, ergui-me e disparei outra vez para a frente de casa, afoito por forçar um novo acaso. Só que desta vez, antes que eu alcançasse a porta da rua, ele já estava em minha janela a procurar-me. — Vamos continuar o jogo? – indagou. — Não prefere dar um mergulho? Minha sugestão foi bem recebida e como resposta ele me presenteou um sorriso. O que de melhor ou maior ele podia me dar? Flutuando, fomos para a beira de um rio e decidimos ir para dentro e mergulhamos sem roupa na água mansa do rio. Minha mãe havia proibido o banho naquelas águas – coisa de saúde pública – e certamente a mãe dele, que era enfermeira, se soubesse de tal proeza, jamais permitiria. Mas quando se tem doze anos de idade um banho de rio é algo irresistível, atraente como um doce. Só tivemos coragem porque nossa nudez foi aplacada pelo lençol aquático. Acanhados, quase não nos olhávamos. O mais que fazíamos era mergulhar, subir para respirar, submergir de novo e de novo colocar a cabeça para fora da água. Quando saímos do banho, disfarçamos nossas intimidades e ficamos sentados na areia esperando o sol nos secar porque não podíamos molhar nossas roupas. Sentados, quase não nos movíamos, não nos atrevíamos a nos encarar, as pernas dobradas, os braços sobre os joelhos. — A gente sempre muda de cidade ou de bairro. Quando começo a me acostumar, mudamos de novo. Eu não gosto disso – queixou-se. — Tomara que dessa vez vocês demorem. Meu amigo ficou olhando para a mata do outro lado do rio. Meu otimismo tornou a me invadir ao cogitar que a preocupação dele se manifestou pelo medo
de pôr um fim àquela amizade que acabamos de começar para, em seguida, o pessimismo chegar ainda maior e me dizer de interrupções e adeus. Ameaçado, eu vi o rio perder um pouco de sua graça e ficamos os dois em estado de contemplação, o que já era tristeza. Desassossegado, senti ímpetos de abraçá-lo, mas como o abraço não seria só de amizade, contive-me porque aos doze anos de idade nossas emoções são banhadas pelo susto das descobertas e nos assombramos. A mesma chama que atiça é a que reprime pelo medo. E quanto a Leandro? Sofreria daquela mesma angústia, desconfiaria dos meus desejos? Envolvidos por dúvidas e chamas, nossa incipiente amizade não nos possibilitava inferências mais precisas. Nossas intenções – se recíprocas – possuiriam algo de nefasto? A alegria da manhã foi desfeita depois quando, mais tarde, minha mãe reparou na vermelhidão dos meus olhos e no modo dos meus cabelos; logicamente compreendeu que eu estivera a descumprir ordem e as chicotadas doeram. O castigo, entretanto, deu-me a descoberta de que muito mais em mim doía a ausência daquele corpo perfumado na casa ao lado. Viciado, eu não queria a saudade, mas a alegria de estar junto. Enquanto isso, eu me contentava em sabê-lo na casa ao lado e, quem sabe, insatisfeito, desejoso de me ver. Quando a vontade era grande e só havia ausência, flertei com o aroma do sabonete de tutti-frutti com que ele se banhava e com o qual se aproximava de mim. A cada vez que o cheiro atravessava o telhado e vinha invadir as minhas narinas, eu sabia, era ele quem estava no banho, e esse acontecimento se tornou para mim um modo de comunicação. Então eu ia para a frente da casa, onde ele depois do banho geralmente vinha me ver, e eu o esperava, atraído, mas incomodado. Seria mesmo intencional? Será que durante o banho ele se aprontava para mim? Ou tudo não ava de casualidade sem nenhuma nota de maldade? Ora eu considerava que nossos encontros eram por nós dois premeditados, ora a dúvida se instalava e já não havia nada mais além de uma factual relação de amizade, tudo o que Leandro queria de mim era um companheiro com quem pudesse se divertir.
Mas quando nos encontrávamos, havia um brilho nos olhos dele – ou quem sabe fosse nos meus, que refletiam nos dele –, e esse brilho me exauria porque para cada força dessa luminosidade, a necessidade de uma compreensão maior, e compreensão já é resistência se não é entrega. Houve um dia que toquei em seu braço pela primeira vez. Foi por ocasião de uma brincadeira de correr, eu peguei em seu braço para puxá-lo e nos esconder de quem não podia nos surpreender – fazia parte da brincadeira – e, quando eu apertei o seu braço para puxá-lo, um desejo me queimou. A minha mão segurando o braço dele, a minha mão não queria soltar, e eu o surpreendi tocando a minha mão, eu o surpreendi tocando a minha mão com a quentura da sua. Ele me olhou com os olhos lúbricos de intenção e eu retrocedi, tirei a mão e desfiz o gesto. — Olha lá, ele vem vindo. Se esconde! E nos escondemos no primeiro beco mal iluminado que encontramos. Quanto mais envolvente, foi tudo mais perigoso porque um silêncio se fez e não tínhamos a coragem e nem sabíamos nada dessa longa estrada que nos leva aos pedregulhos do amor. — Você está respirando forte demais – falei, sentindo o cheiro de tutti-frutti que exalava do corpo dele. — Você também está – respondeu. Surpreendi-me com a sua observação, pois de fato eu não me dava conta de estar ofegante. No entanto, eu me dava conta de desejar a eternidade daquele instante como convém a alguém que pela primeira vez se apaixonou. Lado a lado, éramos uma harmonia tão forte quanto frágil: forte por nos querer, assim eu imaginava, e frágil pela impossibilidade do nosso sentimento. — Achei vocês – gritou o nosso companheiro de brincadeira sem saber que, ao nos achar, quebrara um fio de ilusão. Levantamo-nos ainda aquecidos, ainda querendo ficar, ainda desacreditados de que a eternidade é sempre ameaçada e dura pouco. E assim nos conservamos nos meses que se seguiram, vendo-nos para nos alimentar dos olhares que nos doávamos, vendo-nos para suprimir as vontades que se exaltavam.
Dezembro chegou e minha tia me levou para a cidade grande, eram as férias escolares. É engraçado como não somos donos de nada aos doze anos de idade, nem de nossas decisões, nem do sentimento que sentimos por alguém. Minha tia ofertoume a viagem e, feliz, eu me diverti com os eios que fizemos juntos sem, no entanto, deixar de pensar que talvez Leandro sofresse por causa da minha ausência. Era prazeroso imaginar – assim eu me sentia estimado – e só por me sentir estimado eu experimentava com antecedência o doce prazer do reencontro. Marquei cada dia no calendário. Eu regressaria e sonhava com a possibilidade de ler nos olhos dele a tristeza que sentira por ter ficado sem mim e que, no momento do reencontro, se transformaria em arregalados olhos de felicidade. Eu regressaria e, compreendendo que o mundo do meu vizinho se completava no momento da minha chegada, eu nutriria corpo e espírito com a grande alegria da certeza. Certeza que, antes de aliviar, machucaria. Porque para além da certeza era preciso agir e aos doze anos de idade toda limitação e toda sensatez se sobrepõem ao entusiasmo da coragem. Eu regressei pouco mais de um mês depois levando comigo qualquer esperança. Em cada hora transcorrida, eu o tive no pensamento, um pensamento quente, tão quente quanto aquele inesquecível toque no braço. Tremi quando o ônibus se aproximou e avistei a cidade naquele sábado do mês de janeiro de 1989. Minha tia ia comigo e, ao nos aproximar da casa de mamãe, eu só olhava para a casa de Leandro. Durante o almoço, minha mãe contou-me que ele andara a perguntar quando eu voltaria, o que me deixou em suspensão. — Vai lá falar com ele, dizer que chegou. Melhor incentivo eu não podia ter recebido, o que também entendi como uma autorização. Engoli o resto da comida sem saborear só para vê-lo, e foi o que aconteceu: ao abrir a porta de casa, dei de cara com ele, que, do lado de fora, fechava o pequeno portão da varanda de entrada. Foi um instante confuso, não sabíamos como nos comportar.
— Oi. — Oi. Em verdade, penso que pela inesperada felicidade ele conteve o riso. Por tamanha intensidade ao se deparar comigo, deixou-se abater pela timidez e sufocou a exaltação. Não sabendo como disfarçar a aflição paralisada no meio de nós, ele falou: — Eu fiz treze anos semana ada. E me olhou com aquela vontade de sorrir e me abraçar e, por isso, não resisti, fui chegando e ele chegou, e nos confortamos no abraço justificado pelo aniversário, mas que certamente era um abraço de amor. Em choque, desgrudamo-nos, alguém teria visto? Minutos depois, retomamos a amizade. A alegria perdeu a tensão e se deixou estar. Senti que ele estava mais feliz do que das outras vezes, mas também senti que apesar do reencontro alguma coisa se dissipava, especialmente porque quanto mais eu o desejava menos eu acreditava na possibilidade de nós dois. Assim descobri que a felicidade nunca vem sozinha, ela traz consigo o vazio de uma ressaca. — Eu preciso de duas damas, uma de paus e outra de espadas – disse ele durante o jogo de cartas. Jogávamos baralho e tudo era motivo para nossos olhares se buscarem. Criávamos pretexto para puxarmos a carta do outro só para tocarmos a mão do outro. A cada toque, um susto, um arrepio, uma chama e uma interrogação. A cada toque, uma esperança. Eu fantasiava a certeza da conexão que nos envolvia, tão exata quanto eu gostaria que fosse, porque era todo o meu desejo. Mas também a certeza do impossível. Para cada gota de desejo, duas gotas de renúncia por não termos a maturidade com que encarar a profunda verdade e muito menos nos amparar no delicado beijo. É engraçado como aos doze anos de idade não somos donos de nada. Nem dos nossos estranhamentos nem do que sentimos por alguém, tudo é neutralizado sob a condição de uma ordem maior, os imperativos. Nem sempre nos dão a chance de escolher e logo nos lançam na cama de outra verdade.
Os imperativos. Os pais dele deram a ordem e não havia o que reclamar. Nas férias seguintes não foi a minha tia quem veio me buscar para novo turismo. Os pais de Leandro o conduziram – a ele e aos outros irmãos – para um eio sem volta, nova casa em outra cidade. Desmontaram móveis, organizaram caixas, não havia gritos de alegria, e o caminhão de mudanças parou em frente à casa. Eu, da minha janela, olhando, igual quando chegaram. Eu era um bicho na jaula em profundo abatimento, mudo como um silêncio. Quando o veículo deu partida e Leandro esticou o braço em sinal de adeus, doou-me a lassidão dos olhos e nada me restava. Chorei como é comum em despedidas e então soube que o amor é uma pulsação que de repente se experimenta e de repente se extermina. Mas a quem interessava os meus redemoinhos? No dia seguinte, ao ar em frente à casa que ele morou, olhei para a fachada e avistei a placa: Aluga-se esta casa.
O CLAUSTRO
O olhar lascivo sobre as panquecas deu à irmã Nadine um amor. As panquecas eram o prato principal daquele jantar, e quando a freira Maria Celeste depositou sobre a mesa a bandeja com a iguaria recheada de molho vermelho salpicado de queijo derretido, a massa úmida pedindo que a comessem, a madre superiora solicitou a presença de irmã Nadine: — Irmã Nadine, me acompanhe, por favor. A monja, tendo o pensamento no molho vermelho e amarelo, seguiu irmã Loreto, que lhe intimara. Entraram no que chamavam de sala de correção e a madre superiora agora lhe falava: — Por acaso a irmã não participou dos ensinamentos de resistência ao desejo? Irmã Nadine, as mãos em sinal de oração, tinha o olhar no chão mas o pensamento na bandeja. Sabia que não devia responder, aquele era instante de apenas ouvir, no que a sua superiora continuou: — Por humano, todas sabemos que desejamos. No entanto, todas aqui aprendemos a lutar contra o pecado e o pecado está rondando o seu corpo, irmã Nadine. Irmã Nadine queria pedir desculpas pela gula, pela vontade de comer mais do que uma panqueca, pelo arrepio que sentiu ao ver o queijo amarelo misturado ao molho de tomate, mas, quando intimadas, não cabia se defender. — A senhora por acaso nunca avistou os próprios seios? Irmã Nadine, pescoço curvado para o chão em sinal de respeito, balançou a cabeça afirmativamente. — Que bom que os tenha avistado, já sabe como são. E se sabe como são, o que tanto interessa à senhora fixar os olhos e ali morar sobre o busto de irmã
Carmem? Não percebe que isso pode contaminar as outras? Irmã Nadine surpreendeu-se com a acusação e quase ergueu a cabeça para encarar a madre superiora e dizer que aquilo era um engano, mas não o fez porque a freira logo interveio: — Nem pense em erguer o pescoço, a senhora conhece muito bem as regras. Sabe que nesta casa o desejo é enxotado porta afora para ir morar com o diabo. Ora, irmã Nadine, não foi a primeira vez que observei os seus olhos de luxúria para os seios de irmã Carmem, então, desta vez... desta vez a senhora vai para o isolamento por uma semana. Sem palavras e sem panquecas, a acusada foi direto para o quarto onde ficaria exilada por sete dias, enquanto seu pensamento vagava aleatório ao redor do busto de irmã Carmem. Não sabendo que a desejava, soube que a desejava pela boca da madre superiora, que tudo sabia. Eu tenho um amor, pensou, caminhando em direção ao recinto onde só havia uma pequena cama e uma mesinha sobre a qual havia duas imagens de gesso, uma de Jesus Cristo, outra de Santa Rita de Cássia. Irmã Loreto destrancou a porta, tinha agora o tom de voz mais baixo: — A senhora sabe como proceder. Deverá alcançar a plenitude, que é a leveza do corpo ao ponto de não sentir o corpo. Para isso, devoção mental, êxtase da devoção, arrebatamento da devoção, silêncio e concentração. Quando Irmã Nadine adentrou o quarto, ouviu irmã Loreto ar a chave por fora, trancando-a. O estômago vazio deveria ser alimentado pela oração, mas era penoso não pensar na bandeja de panquecas que estava em frente à irmã Carmem. A gula é proibido, ela sabia, mas é impossível não salivar imaginando o recheio dentro da massa, as ervilhas e a cebola em meio à carne moída temperada com alho e pimenta cominho. Em vez disso, irmã Loreto deu-lhe os seios de irmã Carmem, não para amar, mas esquecer. — Eu tenho um amor. Eu tenho um amor? – perguntou a si – surpresa – antes de se ajoelhar para cumprir a penitência. Irmã Nadine nunca havia sentido ou experimentado o amor. Assim descobria que
o amor era isso, era olhar para os seios de alguém. No entanto, ao mesmo tempo que ganhara um amor, duvidava desse amor, pois somente pousou os olhos sobre o busto de irmã Carmem para fugir dos olhos vigilantes de irmã Loreto, que demonstrava desconfiança em relação a ela. A refeição era para ser comida, alimento do corpo, não era para ser cobiçada ou ganhar qualquer devoção, não era para receber olhar de gula nem boca de saliva, não era para o prazer da língua. Por isso, por medo de ser flagrada no delito da gula, o que lhe daria sete dias no quarto de reclusão, desviou o olhar para aquela à sua frente, em disfarce. Mas seus olhos, temendo olhar para qualquer outra coisa, pousaram no busto de irmã Carmem, e assim ela cometeu o crime da carne: o quarto, sete dias e lamentos. No recinto escuro, ajoelhada, ela conclamava. Toda vestida, meias e sapatos nos pés, os cabelos cobertos, pôs o véu para sussurrar libertações e derramar sobre o áspero chão as palavras que lhe caíam da boca. As palavras lhe saltavam da boca, mas significavam estranhamente. Os vocábulos não a obedeciam, ela dizia coisas, eles significavam outras, livres e arredios, então irmã Nadine descobria-se em corpo que não conduzia as próprias palavras, uma desconexão entre o corpo e ela. — Deus, perdoa-me por amar irmã Carmem, eu não sabia que a desejava... se eu deixei isso se alastrar, fazei com que eu consiga eliminar toda a gota de vontade que porventura habite em mim. Na consciência de irmã Nadine, o amor por irmã Carmem não tinha o peso que irmã Loreto dera, sequer tinha o peso de um segredo, sequer tinha o peso de uma vergonha, sequer tinha o peso de uma irredutível verdade. — Tal sentimento é heresia, eu não posso alimentar isso, eu devo seguir as regras, irmã Loreto sabe de todas as coisas, ela é sábia, eu não posso amar irmã Carmem. Eu te amo, irmã Carmem, contaram-me que eu te amo, e eu não posso odiá-la porque não se odeia ninguém, mas nós não podemos, essa loucura me pegou de surpresa. Sobre o áspero chão, outras palavras caídas e silenciadas. Os joelhos dobrados como os de uma peregrina em pedra santa para o flagelo da alma. Irmã Loreto lhe dera uma certeza tão forte e ela se desfazendo em pedido tão frágil porque no fundo a sua superior lhe ofertou uma verdade duvidosa, quando sua convicção
em verdade lhe dizia da vontade das panquecas. — Deus, perdoa-me, sinto-me como uma mulher que, não estando grávida, de repente pariu um filho. Estou balançando esse filho em meus braços só para aprender a amá-lo: eu te amo, eu te amo, eu te amo, irmã Carmem, mas não posso te amar, você não é minha, você não me pertence, eu nem sabia que te amava, eu nem sabia dos seus seios, onde eu fui buscar esse amor para te dar, por que você veio? Você é um corpo além da minha carne, eu não te sinto aqui, eu não te sinto, então eu não te amo, eu te amo? Irmã Loreto me disse que eu te amo. Irmã Loreto, por Deus, eu preciso falar com a senhora, preciso explicar que eram pelas panquecas que eu salivava, não eram por outra coisa. A voz baixa e melancólica não ultraou a parede e nem foi gemer a explicação nos ouvidos da madre superiora, a voz baixa era um latejo vibrando no corpo faminto que mataria a fome pelo caminho da sede. Se era inegável a vontade das panquecas e se duvidava da vontade dos seios, também era certo que não podia desprezar o que a irmã Loreto observou, e assim ela era um corpo dissonante sem o amor que lhe deram. — Deus, eu quero negar esse amor mas não consigo porque para negá-lo é preciso senti-lo, mas se não sinto como sabê-lo? Esse amor é um mistério para mim. Apesar do barulho por dentro, escutou o barulho lá fora, onde, pela segunda vez, pareceu-lhe que alguém puxou o galho de uma árvore e depois o soltou, típico movimento de quem estica a planta para apanhar frutas. Mas as irmãs não vão ao quintal do mosteiro naquela hora, pois se recolhem às oito e já avam das nove. No quarto em que estava, não havia janela, apenas a abertura de uma fresta protegida por uma grade, que era para a circulação do ar. Quem para ali fosse enviada, deveria conservar a escuridão durante o dia, mantendo as cortinas cerradas e o véu no rosto; enquanto à noite, as cortinas podiam ser abertas e o véu retirado, o que dava certo alívio às penitentes. Irmã Nadine estava assim, o rosto livre e as cortinas abertas, mas com a túnica, a touca rígida que cobre a cabeça e o pescoço e o escapulário, quando desconfiou de alguma presença no pomar. — Quem está aí? – inquiriu.
— Sou eu. Irmã Nadine estranhou o imediatismo com que a voz do outro lado – uma voz de mulher – logo respondeu. — Eu quem? — Uma prostituta. — O quê? – indagou, tentando compor um pensamento – O que está fazendo aí? — Fui enganada, estuprada, tenho fome e vim comer, respondeu com a boca cheia aquela que se apresentou como meretriz. — Você não pode entrar na área do convento. A mulher nada respondeu, nada retrucou. — E o que você está comendo? – perguntou irmã Nadine, olhando para a abertura no alto da parede, o pescoço inclinado como se, através da fresta, pudesse ver a pessoa do outro lado. — Sapoti. — Ah, eles são deliciosos, suculentos, macios e deslizam na boca feito uma polpa! Docinhos! — Sim, sim, eles são! – confirmou a mulher, o som da voz abafado pelo excesso da fruta que engolia. — Sabia que aí é perigoso? Outro dia dei de cara com uma cobra, dessas que ficam nas bananeiras. — Não se preocupe, não tenho medo. — Não tem medo de cobras? – estranhou a freira. — Por que você está assim sussurrando? — Por favor, fale baixo, as irmãs podem ouvir! Eu estou em penitência.
— Aí é o quarto dos castigos? Um silêncio se intercalou entre as duas mulheres separadas pela parede do quarto. — Aqui é o quarto da salvação. Se pecamos, temos de ser castigadas para o nosso crescimento espiritual. — Qual foi o pecado? – quis saber a mulher do lado de fora. Irmã Nadine tentou adivinhar para responder, mas sentiu-se confusa, não queria distorcer ainda mais as coisas. Ficou olhando para a fresta e imaginando como seria o rosto da dona que comia sapoti e ao mesmo tempo se perguntou por qual pecado estaria ela cumprindo a penitência, até que se decidiu por dois: — Gula e luxúria. Sim, eu cometi o pecado da gula e da luxúria e agora preciso me redimir – justificou como se quisesse convencer-se daquelas palavras. Lá fora, a mulher pressionou mais um galho de árvore. Pela crepitação, a força depositada fora tão robusta que partiu o galho. — Por favor, não faça barulho. Seja discreta! O que você arrancou agora? — Uma manga. — Ah, é manga rosa. Elas são dulcíssimas e corpulentas, muita carne para morder. A mulher do outro lado não devolveu resposta à freira. Quem sabe preferisse não falar para experimentar o sabor sem interferências, ela tinha fome. — Moça, você quebrou um galho grande? A moça continuava em silêncio. — Eu não ouvi seus os se afastarem, sei que está aí. Através da fresta, irmã Nadine viu o clarão proveniente da lua, fazia um céu claro, a noite devia estar fresca. Sentiu inveja daquela mulher que, solta entre árvores no meio da noite, refestelava-se.
— Ei... você está aí? — Sim, eu estou. Tentei fazer silêncio, mas você não deixa... Essa mangueira está carregadinha. — Sim, sim, está, eu sei que está, sou eu quem cuida. — Vocês am bem aqui. — Só podemos comer dois frutos por dia, um pela manhã e um pela tarde. — Que doideira! Por quê? — São regras. — Por serem freiras? Que horror! Vou comer mais uma. De dentro do quarto irmã Nadine fazia esforço para ouvir o som macio e molhado de quando se mastiga a fruta. Com certeza um suco grosso e amarelo descia pela garganta da mulher do lado de fora, mas, antes de o suco invadir o tubo que o leva ao estômago, partes da fruta se espalham sobre a língua cuja função é traduzir o gosto, e ali... ah, como a língua é um órgão interessante, como ela disseca os sabores!, ali era o doce e a vida. Como eu gostaria de uma, pensou a monja, colocando a mão sobre o estômago e lembrando do jantar, a melhor hora do dia. Irmã Celeste sabia disfarçar, fingia não estar nem aí para a comida e ainda conseguia esconder os sequilhos para os comer quando fosse ao banheiro. — A senhora quer um? — Anh? Sim, sim, eu quero. Não, não, não, não posso. Eu não posso querer. — Vou jogar por esse buraco aí, tomara que a grade não impeça. Prefere manga ou sapoti? — A manga é maior – respondeu num ímpeto. E a fruta atravessou veloz como um tiro certeiro. Pelo tombo macio, quase mudo, havia caído sobre a cama, ainda bem. Quando, em meio à escuridão,
tateou as mãos sobre o colchão para localizar a manga, eis um tombo mole ao lado dos seus pés. Era um sapoti. — Chega! Eu só pedi uma manga, e já estou descumprindo ordem. — Uma fruta para cada pecado. Não foram dois? — Por favor, dona, não jogue mais nenhuma. — Como é o seu nome? — Nadine. Irmã Nadine, e o seu? Enquanto a mulher pensava se devia responder, irmã Nadine pedia permissão a Deus: — Só dessa vez, Pai, só dessa vez, permita pela sua infinita bondade... — Ele permite. — Não se coloque no lugar Dele. — Eu já fui santa. — E agora é prostituta? – replicou a freira, mordendo com voracidade a fruta de casca castanho escura. — Fiz o caminho inverso de Maria Madalena, que do profano foi ao sagrado. — Cala-te, isso é uma blasfêmia! – exasperou-se a freira dentro do quarto. A prostituta riu sem som e indiferente à censura. Não era a primeira vez que invadia o quintal do convento, no entanto era a primeira vez que se comunicava através de uma fresta com uma freira em reclusão. — Você é mesmo prostituta? – perguntou de súbito a mulher dentro do seu hábito escuro, túnica branca e touca rígida. — Sim. E estou nua. Uma exclamação no pensamento de irmã Nadine.
— Nua? Está se tornando difícil acreditar nas coisas que me diz. Como é que uma mulher invade um convento para roubar frutas, diz que foi enganada e estuprada, afirma ser prostituta e ainda acrescenta que está nua? Por acaso você é uma tresloucada? — Todo mundo nasce santo e nu. Quando te dão a roupa é quando começam a tirar a tua santidade. Mas a criança ainda não sabe. — Ninguém anda por aí sem roupa. — Já se perguntou por quê? Irmã Nadine, que sempre se conhecera embaixo de roupas, nunca havia pensado nessa questão. E para quem sempre se apresentou embaixo de roupas, o tecido é mais pele do que a pele, o tecido não é o ornamento, o tecido é o corpo. — É que nos escondem. – falou a mulher no pomar – Dão-nos roupas e nos escondem da gente. Todo mundo se escondendo dos outros na histeria coletiva da roupa e ninguém percebe. — Como assim? – sussurrou, interessada, irmã Nadine. — O sentido de que a roupa nos defende é a aceitação de uma tola verdade porque a roupa não nos defende de nada. E nem nos iguala. A questão é: por que se espanta ao me saber nua se nua é a minha condição primeira? — Te vestiram e te trataram para ser uma pessoa melhor. — Vamos fazer um trato? — Eu não faço tratos, não sou de fazer tratos. — Apenas desta vez, depois eu juro que desapareço. — O que é? – perguntou. No fundo, não considerava que a mulher fosse louca do mesmo modo que, no fundo, não acreditava sentir por irmã Carmem o amor que lhe disseram sentir. Também duvidava daquele castigo, por injusto e não convincente. Se ao menos tivesse sido por conta das panquecas, seu corpo teria se conectado à alma, e as
preces teriam rendido súplicas e libertação, mas em tudo parecia haver erro, inclusive em sua fome, impedida e insaciada. — Tire sua roupa. — O quê?! — É isso mesmo que você ouviu. Fique nua. Que nem eu. Aí deve estar muito quente. Eu já estive em quartos assim, fechados, abafados, mofentos. A noite está ótima. Tire o vestido, a anágua, as meias, o véu, tire tudo. Deixe a genitália respirar. Deixe os seios caírem sobre o ventre se forem grandes e flácidos demais. Viva a verdade do seu corpo, não durma com as coxas molhadas de suor. Eu já fui santa, eu sei o que é isso. Sem compreender, irmã Nadine sentou na cama, inerte. — Por que você está nua? – interrogou com voz arrastada como se viesse de longo diálogo em que os argumentos não convencem. — Porque fui estuprada, já falei. Na verdade, eu tinha fome, aceitei o programa e fui com ele para uma área abandonada aqui perto. O pagamento é sempre adiantado, deve ser feito antes de começar o ato, mas ele se recusava a aceitar a minha condição, então eu neguei. Quando fiz menção de ir embora, ele me esbofeteou e se lançou sobre mim. Aí você já sabe... Depois de me violentar, ele se foi e ainda levou minhas roupas, enquanto eu permaneci no chão, parada e apática, desacreditada e impotente, uma órfã no mundo. Então caminhei até a rua principal, pedi carona, ninguém deu. Lembrei dessas frutas, eu já estive aqui antes. Cortei pela estrada de terra e vim para cá. Escalei o portão. — Oh, eu sinto muito... — Sente mesmo? — Claro que eu sinto, e sinto como mulher. — Então me ajude. Tire suas roupas e as empreste a mim. Prometo devolvê-las amanhã. A penitente mordeu o sapoti, avaliando a situação. A mulher tão próxima, elas separadas por uma parede, a dúvida, toda aquela história, a crença. Tinha
vontade de conhecer o rosto da visitante noturna, de olhar nos olhos da mulher que se vendia e tecer uma compreensão. — E se a madre vier me ver e resolver entrar? – perguntou, e já era o princípio da ajuda. A mulher não saberia responder, então irmã Nadine prosseguiu: – Essa é uma situação extremamente hipotética porque ninguém pode entrar na clausura quando existe alguém em confinamento. Mas se eu emprestar o meu hábito e você não voltar, o que há de ser de mim? — Eu voltarei. De novo um silêncio se intercalou entre as duas, só que desta vez irmã Nadine tentava encontrar no silêncio uma maneira de acreditar na promessa que ouvia. — Por que você virou prostituta? – perguntou a monja, descalçando as meias. — Porque me acusavam do que eu não fazia, e, quando eu fiz, nem perceberam. — Te deram uma mulher para amar? — Me deram homens como amantes. — Uma falsa acusação. — A princípio. Família e amigos ficaram contra mim. E já que eu levava a fama, resolvi aproveitar. Irmã Nadine não podia aproveitar a fama e se envolver com irmã Carmem, isso seria um sacrilégio. Irmã Nadine não podia desamparar aquela mulher, deixá-la andar sem roupas no meio da rua e no meio da noite. Irmã Nadine não podia se censurar por comer um sapoti e uma manga quando tinha fome. Irmã Nadine não podia guardar mágoa de irmã Loreto, que fizera um julgamento errôneo e precipitado a seu respeito. Irmã Nadine podia estar nua dentro do quarto sem suores ou meias molhadas. Irmã Nadine podia fazer uso de sua condição primeira. Tirou o vestido e ficou nua. No quarto das orações, uma forma de mulher. Abriu os braços, olhou a palma das mãos, olhou para baixo, perscrutando-se. No quarto das orações, quando era
para mais se cobrir, descobria-se, arrancava a pele. Um frescor e uma sensação. Os braços abertos, ergueu o pescoço, sentindo, respirando, o vestido e as outras peças no chão. Podia ficar assim e assim rezar, o que tinha? Não era sua condição primeira? A injustiça e os julgamentos não eram a condição primeira. Em tudo parecia haver um erro. Num ato, irmã Nadine abaixou-se, pegou o vestido e o lançou para a fresta no alto da parede. O vestido ficou preso entre as grades. — Tente puxar com aquele galho que você quebrou – falou irmã Nadine para a dona no outro lado. A dona que não disse o nome agiu conforme orientada, resgatou o hábito da freira e o vestiu. Depois, curvando o pescoço, olhou-se até os pés: nunca se sentiu tão santa. Nem quando estava nua no princípio porque, no começo, havia a inconsciência; e, quando se deu conta das roupas, já a lei a obrigava ao uso. Enquanto isso, dentro do confinamento, irmã Nadine, curvando o pescoço para ver, via-se até os pés e se irava. Inteiramente nua: nunca se sentiu tão mulher. Nunca se sentiu tão eletrizada.
CHUVA LINDA CHUVA
Foi a primeira vez que alguém me amou para, em seguida, me deixar. Este país é imenso, estamos em século avançado, mas existem lugares em que a energia elétrica é uma jovem de quinze anos e a internet ainda não se tornou novidade. Existem lugares assim, bons de encontrar um amor. É para lá que eu fui. Não para encontrar um amor. Fui por mim, o que também é uma forma de amar. Os sapos, os teiús e as cobras eram visitantes próximos. Excetuando as cobras – meu grande assombro –, acariciei sapos e alimentei teiús, espécie de comunicação estabelecida com inusitada tendência. Eu não queria a linguagem dos complexos códigos matemáticos, eu não queria os códigos habituais que te orientam e te limitam, embora eles se ramifiquem em nós e, onde quer que você vá, estão conosco e te fazem pensar sob a ótica de uma convenção. Num caminho contrário ao que eu vinha, eu desejava alguma coisa de viver plenamente. As novas descobertas. Troquei a engenharia – até então a base do meu sustento – por uma casinha na beira do mato. Aos olhos da minha família, tal decisão era a coisa de que menos poderiam se orgulhar de mim, mas não me importei porque a casa com seu terreiro na frente era tão linda quanto o vestido de chita usado naquela noite de festa. Uma vez foi assim. Costurei o vestido de chita com a ajuda da vizinha mais próxima, que morava em uma casa a cem metros da minha. O vilarejo era todo de casas distantes cem metros umas das outras. À frente delas, um terreiro integrado à moradia, geralmente cercado por tábuas e arames; e, ao fundo, plantações com as quais se temperavam comidas e se faziam chás e licores. Foi nesse cenário que me instalei. O vento era verde e a paisagem branda. Toda a alegria de uma vida impossível em meio à aglomeração de carros e comércios. Volto ao vestido.
Não houve fotografia, mas um vestido de chita nos devolve a graciosidade e simpatia que os embates e frustrações nos roubam ao longo da vida. Não me fotografei, todavia eu era uma imagem harmônica, meu sorriso era o sorriso colorido do meu vestido estampado, balançante e redondo, sorrindo na festa junina. Eu dançando, os pés descalços, a poeira subindo, a roda, o licor. As crianças, gritos divertidos, os rapazes, os fogos, as moças. E os bichos no mato emudecidos porque cá o barulho era maior. As fogueiras ardiam como os impulsos. Sobre nós, pontos cintilantes luzindo no vasto tapete escuro que se arrasta ao infinito, estrelas e pensamentos suspensos, uma conexão. A minha casa lá, sozinha. O terreiro logo à frente guardava um silêncio à minha espera. Simples e tranquila, a casinha de dois dormitórios, sala, cozinha e banheiro era a representação avessa das coisas que deixei. A saudade do mundo urbano foi uma empresa desconhecida nos cinco anos que ali ei, eu não a sentia e ainda hoje guardo resistências a ela. A engenharia tem seus encantos, e, de igual modo, o bucolismo. Sou das que pensam que às vezes é preciso colocar o pé na estrada e encontrar um modo de se olhar e estar consigo. Um amigo me supôs enveredada em estado de aniquilamento e niilismo. Quase o levei a sério, pois ao deslocar minhas crenças eu questionava o estado das coisas, mas isso tinha mais a ver com liberdade pessoal do que com desejo de mudar a tradição. Quem sabe liberdade fosse uma casinha no meio do mato. As pessoas do vilarejo, sábias nas suas ignorâncias, fisgavam em mim alguma coisa de esdrúxula carência: — Quem é a desconhecida? — Por que resolveu se instalar aqui? — Como alguém troca a cidade por esse buraco? Ao mesmo tempo, ventilava em mim a intuição de que, apesar do estranhamento, a peregrina era uma novidade aos olhos daquela gente que dificilmente se defrontava com circunstâncias novas, o que me dava a vantagem do acolhimento quando a curiosidade trazia a aproximação.
Indo de encontro a mim, fiz o melhor que pude, merecidamente. Desfiz o modo antigo de me vestir, eliminando a beleza artificial dos colares, suprimindo as cores dos lábios, abolindo o pó do rosto e não usando as roupas de grife, só para ser vilareja também. Apesar de as meninas e mulheres de lá fazerem excessivo uso de maquiagens e sapatos altos, sua grande vaidade. Sendo essa uma escolha delas, eu já não queria nem o excesso nem o moderado, eu exigia de mim o rosto sem máscara, meu ideal pretendido: assim me conheceram. A casa lá, vazia, à espera do meu corpo cansado da dança e da festa. O licor de gengibre com limão amaciou a garganta cálida. Depositei o copo sobre o balcão da barraca feita de madeira e pedi ao vendedor que me servisse outra dose. — Essa eu pago – falou o rapaz que se posicionou ao meu lado. — Não, não precisa, imagina... —Eu faço questão. – e, me olhando nos olhos, concluiu: – Se a senhora permitir. — Oh, sim, fico agradecida. Peguei a bebida e fui saindo com meu longo vestido para o pátio onde uma banda de forró animava a festa e onde me enturmei com as outras mulheres, ora falando bobagens, ora dançando. — Você não usa sapatos? – perguntou-me a menina de saia verde e unhas vermelhas. — Uso sandálias. Mas para dançar prefiro os pés descalços. — A senhora é engraçada. De vez em quando eu fadigava de tanta diversão e, num desses instantes – já era madrugada –, distanciei-me da turma e fiquei perto de uma árvore a contemplar aquele céu menos carbonizado e, por isso, mais tachonado de estrelas. Eu conseguia enxergar algumas que as luzes da cidade mantinham apagadas. Descobri ali que o morno da vida podia ser a solitária contemplação do
firmamento, o que nos devolve a parte que nos liga ao universo, o que nos devolve a nós mesmos. As noites no deserto deviam ser assim, densas como o encontro de pessoas e o cosmos, matéria e energia. Naquele instante, a mística sensação que me tomava talvez fosse saudade de mim e, favorecida pelo álcool, eu deixava se alastrar para me curar. E o corpo que se aproxima na solidão de uma noite de festa junina é como a chegada abrupta de um vendaval. Por quanto tempo ele se permite ficar, já não é possível saber. Presume-se, apenas, que esse corpo vigoroso como um forte vento repentino possua em seu interior a luminosidade breve de um pirilampo. Ilumina como a gota que se eletrifica e logo se esgota. É como quem quer ser e estar num presente contínuo e tão-somente pode ser e estar pelo abreviado momento que se esvai. E a voz rouca e firme que te assegura, numa noite perdida no tempo, ser você a mulher mais linda do mundo é a voz de uma poesia que já não mais se consome. Perambulando entre matagais e estradas poeirentas, essa voz só pode ser encontrada nos distantes vales que desistiram do progresso. — Você é a mulher mais linda deste mundo – falou sem ser convidado e bem perto de mim. Nem olhei para o lado, eu sabia que era ele. Depois do licor, os obsessivos olhos não desistiam de mim enquanto eu dançava. — Cansou de dançar? — Não, eu não estou cansada – respondi um pouco seca, mas era ansiedade. — Aceita? – e me mostrou a garrafa e um copo vazio. Era com o que eu não contava. A decisão de abandonar a cidade grande e entregar-me a um convívio mais humano foi preenchida por vontades desinteressadas de amores. Não porque o amor seja uma inconveniência, mas porque exige contiguidade e naquela fase eu estava egoísta, eu só queria a mim. Ser minha era o que eu queria. Mesmo porque o amor é sempre campo de instabilidade e meu grito gemia pela confecção de dias estáveis. Ao estender-me o copo de licor outra vez, outra vez a pontinha dos seus dedos tocaram a pontinha dos meus, e basta isso quando há desejo. Nesse frenesi, eu sabia, eu já não era mais inteiramente minha e nem os dias seriam estáveis.
Alguém soltou um balão e ele agora flutuava brilhante e gigante no céu. Olhei para o balão como se fosse ele um santo a quem eu dirigia uma prece, só para me sentir amparada, eu que nunca fora dada a contatos espirituais. Se Deus fosse como um balão, Ele seria tão intenso quanto frágil, Ele seria à minha semelhança: tão intensa quanto frágil eu sou, e ali eu era mais frágil do que intensa porque a fragilidade estabelecida diante do desejo é a fragilidade de quem não pode usar a própria intensidade para se defender por já não querer o escudo, mas a seta. O balão subindo e a voz rouca do menino de vinte anos rezando para mim, que não era santa. Eu devia estar nascendo para ele tal qual Vênus – emergindo em concha – e empurrada por Zéfiro, o vento. Eu era a mulher mais linda do mundo, ele me disse. Por galanteio. Só para mentir, como exige o que ainda não é amor. — Uma linda ruiva de pintinhas, gordinha como eu gosto – acrescentou. Achei graça naquele modo de falar com transparente e sincera inocência; sem rancores e com voz doce, pedi que tirasse o diminutivo. Ah, para que o diminutivo? Que assim fosse: gorda, linda. Não gorda, gorda. Apenas gorda. De formas onduladas, sobrepeso, uma fofa. Linda. A mulher mais linda. Nunca me senti tão amada ao que parecia sem piedade justamente porque o seu desejo se inclinava na direção das minhas formas – tão minhas! –, e pelas quais ele demonstrava interesse. O balão se indo e sumindo à medida que os primeiros raios se anunciavam. Eu, em vanglória, me sentindo amada só pela iração que aqueles olhos de vinte anos me dedicavam. Os olhos de vinte anos me entregando afabilidades e me doando o que possui de infinito, talvez por desconhecer os doces venenos impossíveis de renunciar e existentes para além do vilarejo. Quem sabe eu estivesse enganada e subestimasse a minha capacidade de atrair, quem sabe eu tivesse alcançado a compreensão de que o desejo nem sempre é previsível e o incomum não é um sótão inível. Os vilarejos não nos deixam envelhecer tão depressa. Escondem certas alquimias que nos conservam da destruição do corpo urbano. Talvez a minha súbita e excêntrica chegada tenha feito ele me enxergar como uma exótica forma de vida merecedora de amor, e ele me amou, ainda que por um instante, ainda que pelo tempo que durou da fria noite ao tépido amanhecer.
E agora não sei distinguir o que ele levou de mim, se levou alguma coisa, e se o que ficou é a sua inesgotável presença. Mas, antes dessa fumaça se instalar, eu vibrei na coragem que tive de não sentir medo quando o sol entregasse ao rapaz pela manhã a bondade de adivinhar o que a noite, embebida pelo licor, escondeu: as minhas lindas rugas. Mas por enquanto é agora: — Está amanhecendo. Vamos, eu te levo pra casa. No meio da estrada, o sol desistiu de nascer e pediu que a chuva o substituísse. Nem forte nem fraca, uma chuva graciosa, uma linda chuva abençoando o nosso primeiro e único caminhar. Íamos devagar e sem guarda-chuva, não tínhamos pressa. De uma dada distância, avistei a casa. Parada e quieta, a minha paz. — Sou velha para você. Desnecessário, mas falei. Se já me via pelo vilarejo, se desde sempre notara a minha exótica aparição. Ele estancou os os e encarou-me de frente. Os olhos profundos. Senti como se eu fosse a minha própria ameaça. Para que afrontar o sangue das verdades? Deixasse os acontecimentos despirem os medos. Pelo o que eu falei e tão somente porque falei, ele me olhou solicitando o mesmo. A chuva sobre nós. Quanto pavor de mim! Não atentamos, mas temos medos e os possuímos aos montes, porém, na mais elevada contradição, nos entregamos em coragem e violência. Vendo-me nos castanhos olhos dele, eu via nos olhos castanhos duas vibrações, a que ele tinha por mim e a que eu tinha por ele. Eu via o amor que eu tinha por mim, e o amor que eu tinha por mim era vasto e sem piedade, e por esse amor localizado em mim ele vibrava em verdade e anseio. A chuva sobre nós: água benta e batismo. O licor no sangue destilando nosso amor. O seu modo de amar era o que o levava a me amar sem choque porque, abstraindo o que era físico, restava uma ligação de espírito e ternura. — Você...
Como ele não continuasse, indaguei: — Que tem eu? — Você... Em vez de explicar, apertou-me forte e sufocado contra seu peito magro. Nesse momento, estávamos diante da casa parada e quieta, tínhamos os cabelos bastante molhados. Nós dois abraçados. Despenteados e sem futuro sob a chuva, éramos mais bonitos. E rimos porque nada disso era verdade, era tudo uma mentira para nos agradar, era tudo um instante de ilusão. No quente do abraço, a fraqueza e o pasmo, que tanto subtraía quanto doava. O fino aço que nos unia nos libertava de nós porque tudo era vasto e sem piedade no começo daquela manhã de chuva. Entramos na minha casa. Lá dentro, a cama quente. O hálito quente da pequena casa cobrindo a gente e os inventados segredos pronunciados como convinham só para morrerem ali mesmo no desgaste das horas. Eu tinha desejo e um grande medo escondido. Ele não me indagava nem sondava, ele era o instante de um pirilampo e eu não sabia. Ele se deixou ser e quis que eu fosse. Ele só queria toda a verdade da nossa limitação. A flor que eu era, era a flor que ele não era, apesar da nossa violenta entrega. Eu estava pronta para renascer, assim ele me fez sentir, se eu quisesse, e renasci nos incontáveis minutos sem o vestido de chita. Quando mais tarde, entre beijos e abraços, acordamos, a cidade veio me invadir outra vez com seus agudos impulsos, não era isso que eu fora buscar ali. Ele ficou me olhando e eu deixei que ele me olhasse, eu queria que ele me visse, era para me ver, era para me ver e olhar. Até que no meio da prolongada contemplação eu falei: — Bom dia! O sol descortina a realidade. Essa sou eu, uma forma descabelada. — Não entendo o que quer dizer. — Ontem era noite e havia o licor, você devia estar um pouco alto. A verdadeira realidade foi acobertada pelo álcool em seu sangue e você avistou uma coisa que
não existe. Você avistou uma mulher que agora é outra. — Como assim? — Não está me vendo? — Sim, estou. — Então é isso. — É verdade. É isso. E veio se enroscar de novo, líquido e vazante feito um rio, uma ausência de pensamento. Quando, lá pela tarde, ele se foi, não pedi que voltasse. Todavia, seus olhos eram uma promessa. Seus olhos e o beijo que me deu na boca sem batom e sem escovar eram uma promessa. Seus olhos e os outros beijos que me deu no pescoço e no rosto desfigurado pelo sono eram uma promessa. — Eu vou, mas eu volto logo mais. Me espera... E seguiu a estrada. Foi a primeira vez que me senti amada por alguém que não regressaria. E me tornei uma ilha perdida no mapa do espírito. Porque agora ele morreu. E trago comigo a grande fortuna de tê-lo conhecido, pois ele me deu o amor que só pode ser eternizado quando interrompido no auge da sua experimentação. O jovem rosto no caixão e os meus olhos desacreditados olhando para ele. Descrente, eu me via nele, naquele corpo estático que horas antes em minha cama era puro movimento. Senti uma latente vontade de beijá-lo só para relembrar os anteriores instantes. — O que aconteceu? – perguntou uma voz que veio chegando. — Foi atingido por um raio. – alguém explicou em meio aos olhares curiosos.
Eu não podia crer naquele raio que o atingira e lhe sugara a alma cem metros depois do instante que nos despedimos. O raio que para sempre nos uniu. A caminho do cemitério, a chuva perseverante. Triste chuva. Embora linda. As pessoas fúnebres, chorosas ou caladas porque a chuva tornava aquela hora ainda mais sofrida. Segurei em uma das alças do caixão e lá fui escutando o murmúrio daquela gente que, assim como eu, lacrimejava a fatalidade. A chuva era para eles um lamento sinistro. Para mim, sinceramente, não. Aquela chuva era irmã da outra que pela manhã nos abençoou. Ou talvez fosse maldição e eu não sabia. Sabia apenas que em meio ao que foi bênção ou maldição tivemos os cabelos despenteados como adolescentes que, tomando banho de chuva, pensam que se amam de verdade. Eu não podia culpar a chuva. Não desejei que isso tivesse acontecido, não desejei que um raio tivesse tornado inativa a vida de um menino de vinte anos, contudo, no fundo, eu sabia. Desviei o pensamento para não sentir e alimentar a semente que insistia em brotar, entretanto o pensamento já era um corpo em formação. Embora rejeitasse aquele pensamento, eu me atraía por ele e o queria, eu juro que, sem querer, eu o queria, tanto que ainda hoje o conservo. Não pela maldade que possui em relação ao garoto, mas pela bondade que possui em relação a mim. Não era para ser, eu analisava e sentenciava. O raio que o atingira me deu a garantia do amor eterno, e desde então eu posso dizer que fui amada até que a morte nos separou. De outra maneira, a vida com seus dias plurais, numerosos e invencíveis, não teria sustentado a frágil eternidade da chama porque o menino teria conhecido a dinâmica do amor. A ingrata dinâmica do amor. Com esse pensamento eu olhava para o caixão sendo coberto com a terra molhada pela chuva. Uma linda chuva.
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