Cavalo De Guerra 16j54

A FRATERNIDADE É VERMELHA EM “CAVALO DE GUERRA” Por Marco Moretti Alguns críticos andam vociferando contra o novo filme de Steven Spielberg, “Cavalo de Guerra” (War Horse, EUA, 2012), atualmente em cartaz nos cinemas da cidade e indicado para alguns Oscars, inclusive o de Melhor Filme. É verdade que esse trabalho não está à altura das grandes obras “maduras” do diretor, como “A Lista de Schindler”, “O Resgate do Soldado Ryan” e “Munique” e é um tanto decepcionante para os fãs do realizador, que certamente prefeririam um espetáculo cinematográfico menos ambicioso, ao menos intelectualmente, digamos assim. Também não deixa de ser verdade que usar o ponto de vista de um animal, e os equinos em particular, como expediente para retratar as incongruências e contradições dos seres humanos é um recurso tão antigo e tão batido quanto o cinema ou mesmo a literatura. Se nem todos os cavalos da ficção têm a capacidade de falar como o de Aquiles na “Ilíada”, muitos dispõem de uma sagacidade que às vezes supera a dos humanos, como é o caso de Rocinante, a simpática, porque sofrida, montaria de Dom Quixote. Os quadrúpedes Houyhnhnms (cujo nome é exatamente o que parece ser, a onomatopeia de um relincho), que o intrépido Lemuel Gulliver encontra em suas andanças por terras estranhas na demolidora sátira de Jonathan Swift, mostram-se tão ou mais civilizados do que os habitantes da Europa do século XVIII pareciam ser. Contudo, apesar da falta de ineditismo no tema, e mesmo da profusão de clichês que rondam a narrativa, de forma alguma “Cavalo de Guerra” é um completo desperdício de técnica e talento, como alegam alguns. Muito pelo contrário, a fábula, pois é disso que o filme se trata, deve ser apreciada pelo que é e pelo que pretende ser, e não pelo que se gostaria que ela fosse, segundo a ótica estreita de uns poucos, que preferem enxergar apenas sentimentalismo e pieguice na epopeia do cavalo que é arrebatado em um leilão pelo dono de uma pequena propriedade rural na Irlanda apenas para depois ser “recrutado” pelo

exército britânico e enviado às trincheiras do front francês da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O cavalo, aqui, é empregado mais como uma ferramenta narrativa do que como um personagem com contornos nitidamente definidos, do mesmo modo que a espingarda de “Winchester 73”, um dos mais interessantes faroestes da época áurea de Hollywood e que parece ter influenciado as escolhas estilísticas do diretor, cinéfilo como ele só, funciona como elo de ligação entre os diversos episódios que ajudam a ilustrar a cupidez, a ganância e a agressividade inerentes à natureza humana. O aspecto fabulista da narrativa, certamente presente no livro homônimo de Michael Morpurgo e em sua versão teatral, nos quais o roteiro foi baseado, não somente foi mantido como ampliado e aprofundado por Spielberg, a quem não escapou o potencial crítico e mesmo satírico que a história original contém. Esse é o terreno no qual o realizador de “ET” se sente mais à vontade, o das fábulas recheadas de emoção, otimismo e boas intenções, como as dos antigos filmes de seu mestre Frank Capra, e que a aventura do extraterrestre perdido entre as crianças da Terra serve como modelo mais acabado, a partir do qual ele elabora uma de suas mais profícuas qualidades: a capacidade de envolver o espectador com a pura evocação das imagens e sons e devolver aos adultos o sabor esquecido da ingenuidade de valores simples de um ado mítico e mistificador. Há muito dessas características em “Cavalo de Guerra”, e, em vez de amenizar, Spielberg esforça-se em enfatizar a faceta fabulista recorrendo justamente a uma obra fundamental da cultura americana e de sua própria formação, “O Mágico de Oz”. Não o livro de Frank L. Baum, claro, mas o clássico do cinema de 1939 estrelado por Judy Garland, e cuja ética dos justos já um tanto fora de moda ele gosta de emular. Toda a primeira

parte,

da

pequena

família

de

roceiros

ameaçada

pelo

inescrupuloso latifundiário que ameaça retomar as suas terras e expulsar pai, mãe e filho, chega a reproduzir quase literalmente o conflito entre os tios da jovem Dorothy e a malévola Sra. Gulch no musical da Metro. O

próprio périplo do cavalo por terras distantes e assoladas pelas batalhas, pelo morticínio e pela destruição pode ser interpretado como uma espécie de versão “dark” das aventuras de Dorothy e seus amigos na colorida Terra de Oz. Para fechar a lista de citações, é impossível não perceber que a cena final, com os prados montanhosos banhados de tons carregados de vermelho e laranja, remete tanto ao mestre John Ford, na nostálgica evocação de uma Irlanda idílica, de que “Depois do Vendaval” é o melhor exemplo, quanto a outra obra querida de Spielberg, o também clássico “...E o Vento Levou”. Influências que vão do technicolor esfuziante, à eterna moral do retorno ao lar, que o cineasta não se cansa de repetir em praticamente todos os filmes quase como um mantra e que é a sua maneira de traduzir o imaginário americano da busca da segurança e da paz. Como toda fábula, “Cavalo de Guerra” é mais profundo do que os críticos obtusos aceitam enxergar. Em primeiro lugar, nem Morpurgo nem Spielberg pretenderam, com essa história, fazer um relato da Primeira Guerra pelos olhos de um cavalo. Pois o que esses críticos não conseguem ou não querem compreender é que o filme não é sobre a guerra, muito pelo contrário. Ele diz respeito à amizade, ou melhor, à capacidade dos seres humanos em superar as diferenças que os colocam em lados opostos nos conflitos e exercitar aquilo que melhor nos define, a solidariedade. Nenhuma cena ilustra melhor isso do que o momento em que um soldado britânico e um alemão interrompem momentaneamente o combate para unir esforços com o intuito de livrar o cavalo dos arames farpados que o envolvem e imobilizam e que simbolizam todas as barreiras políticas, sociais e culturais que dividem os povos e os levam com frequência a se trucidarem. Imbuída de lirismo e ironia, não deixa de ser um momento de rara beleza, digno de um Jean Renoir, o cineasta francês que melhor soube tratar no cinema da fraternidade humana e que, não por acaso, também era irador de Spielberg em seus primeiros trabalhos.

Pouco antes dessa cena, uma outra sequência, ainda mais magistral, resume toda a temática antibelicista que pera o filme. Ela começa no instante em que o cavalo, perdido na chamada “terra de ninguém”, o espaço desolado entre as trincheiras, se depara com um tanque de guerra. Animal e máquina encenam um confronto que enfim não se resolve de maneira adequada, mas que serve como metáfora da transição entre a guerra tradicional, aquela que desde tempos imemoriais os homens travaram, escorada nas cavalarias garbosas e heroicas, e a guerra da era industrial, aquela que nos acostumamos a assistir durante todo o século XX, em que as alimárias cederam lugar às máquinas, muito mais eficientes como instrumentos de matança, na frente de combate. Após esse momento de opressiva dramaticidade, Spielberg lança mão de toda a sua mestria na construção de uma das mais contundentes, mais viscerais e vigorosas sequências da história do cinema, em que o cavalo, tomado de desespero pela “loucura humana” que presencia por toda parte ao redor, dispara, também ele em completo desvario, pelo palco de guerra, atravessando as trincheiras e acabando por se enredar nas cercas de arame farpado. Por cenas como essa, de forte teor emotivo, “Cavalo de Guerra” foi acusado de ser sentimental demais, lacrimoso em excesso. Primeiro, eu gostaria de perguntar àqueles que se apressam em erguer o dedo: qual o problema em ser sentimental? Por que um filme, uma peça de teatro, um livro, uma canção ou qualquer outra obra de arte não podem ser sentimentais? Qual é a lei bíblica que proíbe isso? Chaplin, o grande Chaplin, também foi sentimental em seus filmes, e ninguém em sã consciência o desconsideraria por isso. Portanto, não vejo problema algum no sentimentalismo, muito pelo contrário, em uma época de tanto cinismo, é muito salutar que ainda haja filmes que consigam nos emocionar. O que se pede, é claro, é que essa não seja uma emoção fabricada, postiça, pois aí, sim, ameaça-se chafurdar no lodaçal da pieguice. Esse não em absoluto o caso deste filme e da cena do cavalo em disparada em particular. Se “Cavalo de Guerra” peca por um sentimento, é o de que, ao eleger um animal como protagonista em meio

a uma das maiores barbáries empreendidas pela humanidade, talvez arrisque-se a ser, paradoxalmente, humano, demasiadamente humano.