O OLHAR INOCENTE É CEGO
Doris Clara Kosminsky
O OLHAR INOCENTE É CEGO
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
A construção da cultura visual moderna
Tese de Doutorado Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós Graduação em Design do Departamento de Artes & Design da PUC-Rio. Orientador: Prof. Dr. Alberto Cipiniuk Co-orientadora: Profa. Dra. Glaucia Villas Bôas
Rio de Janeiro Agosto de 2008
Doris Clara Kosminsky
O olhar inocente é cego
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
A construção da cultura visual moderna Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Design do Departamento de Artes & Design do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Dr. Alberto Cipiniuk Presidente/Orientador – PUC-Rio Profa. Dra. Glaucia Villas Bôas Co-orientadora – IFCS-UFRJ Prof. Dr. Washington Dias Lessa ESDI-UERJ Profa. Dra. Lígia Maria de Souza Dabul UFF Prof. Dr. Jofre Silva Faculdade Anhembi-Morumbi Prof. Dr. Luiz Antonio Luzio Coelho PUC-Rio Dr. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio Rio de Janeiro, 15 de agosto de 2008
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.
Doris Clara Kosminsky
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Graduada em Desenho Industrial e Comunicação Visual pela ESDI-UERJ (Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade Estadual do Rio de Janeiro) em 1982. Mestre em Design pelo Programa de Pós-Graduação em Design da PUC-Rio em 2003. Iniciou a atividade profissional no campo do Design Gráfico em 1981, começando a lecionar em 1987. Desde 1989 trabalha como Editora de Arte no Departamento de Arte do Jornalismo da TV Globo.
Ficha Catalográfica Kosminsky, Doris Clara O olhar inocente é cego : a construção da cultura visual moderna / Doris Clara Kosminsky ; orientador: Alberto Cipiniuk ; co-orientadora: Gláucia Villas Bôas. – 2008. 306 f. : il.(color.) ; 29,7 cm Tese (Doutorado em Artes e Design)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia
1. Artes – Teses. 2. Design. 3. Olhar. 4. Cultura visual. 5. Modernidade. 6. Modernização. 7. Tecnologia. I. Cipiniuk, Alberto. II. Boas, Gláucia Villas. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Artes e Design. IV. Título. CDD: 700
À memória dos mestres.
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Agradecimentos
Aos orientadores pelo estímulo, disponibilidade e generosidade.
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À FAPERJ pelo auxílio oferecido. Aos funcionários do Departamento de Artes e Design por sua atenção e presteza. À TV Globo, na pessoa do diretor do Departamento de Arte do Jornalismo, Alexandre Arrabal, pela concessão de licença. Às funcionárias do setor cartográfico do Museu do Itamaraty pelo o aos originais. À amiga Isabella Perrotta pelos papos. À Selma Giorgio pelas inúmeras leituras e sugestões e pela constante participação.
Resumo
Kosminksky, Doris; Cipiniuk, Alberto; Villas Boas, Glaucia. O olhar inocente é cego. A construção da cultura visual moderna. Rio de Janeiro, 2008. 306p. Tese de Doutorado - Departamento de Artes, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O momento atual traz em seu bojo uma enorme carga de excessos tecnológicos e estímulos sensoriais em uma construção simbiônica, algumas vezes percebida como ápice do projeto moderno, outras, compreendida como uma etapa posterior a este empreendimento - o pós-moderno. As novas tecnologias e suas
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mediações
são
seguidamente
apontadas
como
agentes
decisivos
nas
transformações do modo de olhar. Consideramos que apesar das tecnologias atuarem como agente catalisador de determinadas conseqüências, elas não chegam a caracterizar condição suficiente de possibilidade para que estas transformações possam se realizar em qualquer sociedade ou período. A nossa pesquisa sugere que o olhar moderno foi construído sobre um tripé formado pelas tecnologias modeladoras das relações tempo-espaço, pelas convenções que contribuíram para a sua compreensão e naturalização e por uma pedagogia que inculcou a abertura para o novo, de modo a garantir a perpetuação do modo de olhar resultante. Este trabalho volta-se para o ado, buscando localizar continuidades e contradições da cultura visual contemporânea, considerando uma construção em camadas, isto é, os modos de olhar anteriores não são simplesmente superados, mas absorvidos nos modos subseqüentes. Neste contexto, examinamos dois momentos ou modos de olhar. O olhar ciclópico ou clássico, constituído ao longo da Renascença, fundamentado com a convenção da perspectiva e divulgado pela invenção da gravura e, o segundo modo, o olhar panorâmico, construído a partir da segunda metade do século XIX, arquitetado sobre as transformações urbanas, a profusão de objetos e imagens e a compressão tempo-espaço produzida pelas novas tecnologias de transporte e comunicação. Este novo olhar, ao mesmo tempo em que criou novas possibilidades perceptivas, também necessitou de processos de fixação e padronização, o que foi realizado através do desenvolvimento de uma
pedagogia voltada para as instituições industriais e para o conceito de progresso. Neste processo, as Exposições Universais, realizadas a partir de 1851, tiveram atuação importante por tratar-se de um fenômeno basicamente visual e voltado para um público amplo. Sob este aspecto, as Exposições Universais sintetizam a experiência obtida posteriormente com outras tecnologias que se voltaram para a massa e, também, com o que foi conceituado como espetáculo.
Palavras-chave
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Design; olhar; cultura visual; modernidade; modernização; tecnologia.
Abstract
Kosminksky, Doris; Cipiniuk, Alberto; Villas Boas, Glaucia. The innocent eye is blind. Constructing the modern visual culture. Rio de Janeiro, 2008. 306p. Ph.D Thesis - Departamento de Artes, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The time in which we live is instilled with an abundance of technological excess and sensorial stimuli in a symbionic construction In this period, which at times is interpreted as the peak of the modern project and of modernist culture,
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and at other times as a cultural stage after the post-modern culture, new technologies and their mediations are identified one by one as the decisive agents in transforming our vision of the world. Despite the technologies acting as a catalyst of certain consequences, they fail to characterize a condition accessible enough so as these transformations can be executed in any society or period. Our study suggests that the modern vision was constructed on a tripod composed of the technologies which shape space-time relations, the conventions which contributed to their understanding and naturalization, and a pedagogy which inculcates the opening to the new, so as to ensure that the resulting vision is perpetuated. This study looks at the past, aiming to find continuous and contradictory aspects in relation to contemporary visual culture in a context where previous ways of seeing things are not simply overcome, but absorbed into the subsequent visions, in other words, in a layered construction. In such a context, we examined two moments or visions. Firstly, the cyclopic or classical vision, which was formed throughout the Renaissance, grounded on the convention of perspective and dispersed by printed engravings. Secondly, the panoramic vision, constructed as from the second half of the 19th century and based on urban transformations, the profusion of objects and images and the space-time compression generated by new technologies in transport and communication. This way of viewing the world, while creating new perspectives, also required a process of consolidation and standardization, which was carried out through the
development of a pedagogy directed at industrial institutions and to the concept of progress. In this action, the Universal Expositions, which began in 1851, played an important role as a basically visual phenomenon. These exhibitions were aimed at a wide audience and also synthesized subsequently acquired experience with other technologies directed at the masses so as to gain the status of a show. From the point of view of a visual culture founded on a modern past, our research identifies the latest technologies which make distances even shorter, further accelerate our communications and allow new forms of human , as part of an extensive series of other transformations, which are generating a new vision. The overriding issue is in relation to the time at which we will have the precise measure of this transformation so as to use it to formulate new structural
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possibilities.
Key-words Design, vision, visual culture, modernity, modernization, technology.
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Sumário
1.
Introdução
31
2.
O olhar ciclópico e a verdade da imagem
41
2.1.
A representação do que “é”
43
2.2.
A visão monocular
51
2.2.1. O jogo do real e do ilusório ou uma filosofia da falsa realidade
64
2.2.2. A convenção do “natural”
72
2.3.
A óptica entre o entretenimento, a ciência e a metáfora
82
2.4.
A herança ciclópica
96
3.
O olhar panorâmico e “mil coisas para ver”
100
3.1.
Tempos modernos
103
3.1.1. (R)evolução industrial
107
3.1.2. A tecnologia e o novo olhar da eletricidade
113
3.2.
123
A cidade moderna e a vida cotidiana
3.2.1. Um olhar sobre a cidade moderna
128
3.2.2. Um olhar sobre as reformas urbanas
135
3.2.3. Muralhas de impressos
143
3.2.4. O olhar para o novo / o choque do novo
159
3.2.5. O controle sobre os corpos
169
3.3.
186
Novas percepções no tempo e no espaço
3.3.1. As ferrovias
186
3.3.2. Vista e visão panorâmicas
204
3.3.3. Panoramas e espetáculos visuais
207
3.3.4. O tempo padronizado
212
4.
A pedagogia de uma nova visualidade
217
4.1.
Exposições e espetáculo
218
4.2.
Diversão pedagógica ou pedagogia do entretenimento
225
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4.3.
O Palácio de Cristal, uma Exposição para todas as nações
229
4.3.1. O Brasil nas festas da modernidade
243
4.4.
251
Arte e indústria – contradições
4.4.1. Gosto e bom gosto
262
4.4.2. Verdades e mentiras do valor e da aparência
269
4.5.
Progresso, uma missão quase sagrada
280
5.
Considerações finais
285
6.
Referências bibliográficas
292
Livros e periódicos
292
Locais e Sites de pesquisa de imagens
306
Lista de figuras
Figura 1. William Hogarth. Southwark Fair, 1733. Gravura. Disponível em
(22/07/07).
Figura 2. William Hogarth. Southwark Fair, 1730. Gravura. Detalhe
34 34
Figura 3. Edouard Manet, Le Chemin de fer, 1872. Disponível em:
(22/07/07).
35
Figura 4. Charge de Alain. Publicada em 1955 em The New Yorker Magazine. Retirada da reprodução de GOMBRICH, E. H. em Arte e Ilusão. p. 2. Figura 5. O jardim de Nebamun, c. 1400 a. C.
43 45
Figura 6. Xilogravura de Albert Dürer. De Underweysung der Messung, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
1525.
52
Figura 7. Croqui da janela de Dürer. Livro de Croquis, 1514. Bibliothèque de Dresde. Retirado de BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magie artificielle des effets merveilleux. : Olivier Perrin, 1969. p. 80
Figura 8. Dürer: De Unterweisung der Messung, 1525.
52 54
Figura 9. Giulio Parigi. A portinhola de Dürer. Afresco. Florença: Galleria degli Uffizi, Stanzino delle matematiche. Retirado de Instituto e Museo di Storia della Scienza,
(29/08/06)
54
Figura 10. Abraham Bosse, Les Perspecteurs. Gravura da Manière universelle de M. Desargues pour traiter la perspective, 1648.
Retirada de DAMISCH, H. The origin of perspective. p. 37. Figura 11. Retirado de A treatise of perspective...
55 55
Figura 12. Dürer, Il velo, rete o graticola. Homem desenhando mulher reclinada. De Unterweysung der Messung, Nuremberg, 1538.
56
Figura 13. Prospettografo. Ludovico Cardi, conhecido como Cigoli. Prospettiva pratica…, ms., ca. 1613, Firenze, Gabinetto dei Disegni e delle Stampe degli Uffizi, 1660. Retirado de Instituto e Museo di Storia della Scienza
(29/08/06)
57
Figura 14. Instrumento prospético de Jacopo Barozzi da Vignola. Le due regole della prospettiua prattica / di m. Iacomo Barozzi da Vignola ; con i commentari del ... maestro Egnatio Danti .., In
Bologna: per Gioseffo Longhi, 1682. Retirado de Instituto e Museo di Storia della Scienza,
(29/08/06).
57
Figura 15. Pespectográfo. Cigoli, Prospettiva pratica, ms., ca. 1613. Gabinetto dei Disegni e delle Stampe degli Uffizi, Florence. Retirado de CAMEROTA, Filippo. Looking for an artificial eye: on the borderline between painting and topography. Early Science and Medicine 10 (2).
57
Figura 16. Andrea Mantegna. Archers Shooting at Saint Christopher (1451-5). Fresco, Ovetari Chapel, Eremitani Church, Padua. Detalhe da flecha. Retirado de KUBOVY, M. The Psychology of Perspective and Renaissance Art. p. 2 e 3.
59
Figura 17. Las Meninas de Velazquez. Disponível em:
(29/08/06)
62
Figura 18. J-F. Niceron: anamorfose de uma cabeça, 1638. Retirado de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magie artificielle des effets merveilleux. : Olivier Perrin, 1969. p. 45.
64
Figura 19. Os Embaixadores (Hans Holbein - 1533)
65
Figura 20. Detalhe da caveira
65
Figura 21. Waterfalls. M. C. Escher.
66
Figura 22. Retirado de A treatise of perspective. Or, the art of representing all manner of objects' as they appear to the eye in all situations. ... sem referência à autoria de Niceron.
66
Figura 23. Eva Byte. Apresentadora virtual do Fantástico. Criação do Departamento de Arte do Jornalismo, TV Globo, 2005.
68
Figura 24. Sistema óptico do olho, Discours de la méthode plus la dioptrique, lês météores el la gêométrie, Leiden, 1637.
69
Figura 25. Quadro do filme “O triunfo da vontade” de Leni Riefenstahl, 1936.
75
Figura 26. Lênin e Trotsky na celebração do segundo aniversário da Revolução Russa. À direita, a mesma foto, sem Trotsky. Imagens obtidas no site Newseum, the interactive museum of news. Disponível em:
(26/11/06).
76
Figura 27. Fotografia de 1940. Stalin, acompanhado do jovem comissário Nikolai Yezhov, removido da fotografia à direita. Imagens obtidas no site Newseum, the interactive museum of news. . Disponível em:
(26/11/06).
76
Figura 28. Fotos de Evgen Bavcar . . Disponível em:
(1/08/06).
77
Figura 29. Andreas Vesalius De humani corporis fabrica libri septem. Basileae : Ex officina. Oporini, 1543.
80
Figura 30. Página do livro. Andreas Vesalius. De humani corporis fabrica libri septem. Basileae : Ex officina I. Oporini, 1543. Copyright © 2006 University of Leeds Library/
80
Figura 31. Câmera escura de Sir Joshua Reynolds, manufaturada na Inglaterra entre 1760-1780. Retirado de Science & Society Picture Library,
(29/08/06).
85
Figura 32. Mesmo modelo da figura anterior, fechado. Retirado
(29/08/06).
85
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Figura 33. Figura de Ars Magna Lucis Et Umbrae, por Athanasius Kircher em 1646. Demonstração de utilização de uma lente entre uma tela e um espelho com inscrições, que pode ter levado ao nascimento da lanterna mágica. Retirado de Science & Society Picture Library,
(29/08/06).
85
Figura 34. Camera obscura from the Encyclopedie.Disponível em:
(27/0806).87
Figura 35. Câmera escura portátil. Istituto e Museo di Storia della Scienza. Retirado de
27/0806).
87
Figura 36. Câmera escura 1770-1775. Encyclopedie Raisonnèe des Sciences, des Arts et des Metiers. . Disponível em:
27/0806).
87
Figura 37. Ilustração do telescópio gráfico e seus principios óticos. Do Magazine of Science, And School of Arts, 1840. Whipple Museum of the History of Science, University of Cambridge. Disponível em:
(29/08/06).
89
Figura 38. Diagrama da câmera lucida, que permitia cópia à luz do dia. Inventado por W. H. Wollaston em 1806. Disponível em:
(29/08/06).
Figura 39. Espelho de Claude. Inglaterra, século XVIII. Retirado de Victoria and
89
89
Albert Museum:
(29/08/06).
Figura 40. Ilustração do século XIX. Duas crianças olham uma imagem projetada pela câmera escura. De E. Atkinson's, Natural Philosophy. Retirado de
90
(29/08/06).
Figura 41. Claude Lorraine Glass. Em PIKE, Benjamin Jr: Pike's Illustrated Descriptive Catalogue of Optical, Mathematical and Philosophical Instruments. Gravuras dos aparatos vendidos pelo autor, com os preços dos produtos. New York 1856 90
Retirado de
(29/08/06).
Figura 42. Prospecto de anúncio de câmera escura, cerca de 1819. 90
Retirado de
(29/08/06).
Figura 43. Um centenário científico. Faraday (de volta). "Muito bem, Senhorita Ciência! Meus parabéns! Você conseguiu um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
progresso maravilhoso desde o meu tempo!" Punch, or The London Charivari. Vol. 100. 27 de junho de 1891. Figura 44. Terra à noite. NASA/DMSP. 27 de novembro de 2000.
109 115
Figura 45. Folha de rosto do livro An essay on electricity, 1785. London, 1799. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group.
116
Figura 46. ADAMS, George. An essay on electricity, explaining the principles of that useful science; and describing the instruments, ... Illustrated with six plates. The fifth edition, with corrections and additions, by William Jones, ... London, 1799. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group.
(2/08/06)
116
Figura 47. Anúncio do magneto elétrico do Dr. Lowder, 1890. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
117
Figura 48. Anúncio do periódico Electricity & Electrical Engineering, 1888. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
117
Figura 49. Electric breakfast, 1914. Retirado de FORTY, Adrian. Objetcts of Desire. Design & society form Wedgwood to IBM. New York: Pantheon Books, 1986. p. 187. Figura 50. Anúncio de produtos elétricos Magnet, 1914. Retirado de FORTY, Adrian. Objetcts of Desire. Design & society form
119
Wedgwood to IBM. New York: Pantheon Books, 1986. p. 186.
119
Figura 51. O Farol elétrico da Torre Eiffel, ilustração da capa para Exposition de Paris de 1889. No. 14, 1o. de junho de 1889. In: CORDULACK, Shelley Wood. A Franco-American Battle of Beams: Electriciy and the Selling of Modernity. Journal of Design History. Summer 2005; 18: 157.
120
Figura 52. Liberdade faiscando para o mundo. Le Journal Illustré de 10 de outubro de 1875. In: CORDULACK, S. op. cit. p. 149.
120
Figura 53. A estrela da esperança: uma nova ode naval. Punch, or the London Charivari, Vol. 104, 11 de fevereiro de 1893.
120
Figura 54. Recibo de luz, emitido em 1937. Arquivo museu histórico FL. In: DIAS, Renato Feliciano (coord.) Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Centro da memória da eletricidade PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
no Brasil. Rio de Janeiro, 1988. p. 97.
121
Figura 55. A cidade, 1919. Fernand Léger. Óleo sobre tela. Philadelphia Museum of Art.
126
Figura 56. Manufatura com trabalhadoras mulheres na seção de polimento de penas para canetas. Illustrated London News, 1851.
(4/06/07)
127
Figura 57. Imagem ilustrativa de um debate
127
Figura 58. Interior de fábrica com tear mecânico. Illustrated London News, 1844.
127
Figura 59. “Capital e Trabalho”. “O capitalista vive paparicado enquanto, abaixo dele, os trabalhadores labutam em terríveis condições”.
127
Figura 60. Excursão esperando pelo trem. The Illustrated London News, 4 de setembro de 1880. The Illustrated London News Picture Library.
(17/09/07)
129
Figura 61. Movimentação de bagagens na plataforma de trens. The Illustrated London News, 6 de junho de 1846. The Illustrated London News Picture Library.
(17/09/07)
129
Figura 62. Pai Tamisa (Father Thames) apresenta sua descendência à formosa cidade de Londres. Punch, or The London Charivari, 3 de julho de 1858.
(8/08/08).
130
Figura 63. E. Hull. Obras de represamento do Tamisa entre a ponte Charing Cross e Westminster, 1865. Museum of London. In: NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 54.
132
Figura 64. Seção do represamento do Tamisa mostrando (1) o metrô, (2) os esgotos, (3) Ferrovia Metropolitana e (4) Ferrovia Pneumática. Illustrated London News, 22 de junho de 1867.
(8/08/08)
132
Figura 65. Mapeamento oficial da cidade de Londres e seus arredores (Skeleton Ordnance Survey of London), 1851. Folha 20, metade direita. 66 x 97,5 cm. Sourthampton: Ordnance Map Office, 1851. NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
and images in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 20.
133
Figura 66. Londres vista de um balão. John Henry Banks and Co., 1851. Mapa dobrável, 60,8 x 102,4 cm. Guildhall Library. Corporation of London. NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 21.
134
Figura 67. Camille Pissarro, Avenue de l’Opéra, soleil, matin d’hiver, 1898.
138
Figura 68. Folheto de propaganda da máquina Minerva de impressão, 1879. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
144
Figura 69. Folheto de propaganda da copiadora Foot Lever, 1886. vanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
144
Figura 70. Folheto de propaganda da Metropolitan Printing Works, 1890. Evanion Collection of Ephemera. The British Library. Figura 71. John Parry. Cena de rua em Londres, [1835].
145 147
Figura 72. Gravura retirada do Punch, or the London Charivari, 1887. The Project Gutenberg. . Disponível em:
(25/11/07).
Figura 73. Pã, o cartaz. Pã (em tom de deboche) fala: “Ah, ah, ah!
147
Quem disse que eu estava morto e que o medo era algo do ado?”. Punch,or the London Charivari. Vol. 103. 24 de 148
setembro de 1892.
Figura 74. “O que o nosso artista tem que agüentar.... Ele viajou por toda a Inglaterra em busca de um pano de fundo para seu Vivian beguiling Merlin in the Forest of Broceliande, "- uma busca desesperançada”. Punch,or the London Charivari. Vol. 103. 3 de dezembro de 1892.
148
Figura 75. Anúncio de programas da rede CBS, carimbado em ovos distribuídos em todo o país. Retirado de STORY, Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s Likely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007.
149
Figura 76. Anúncio em bandeja de revista de bagagem em aeroporto. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Retirado de STORY, Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s Likely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007.
149
Figura 77. STORY, Anúncio de Tylenol infantil em sala de exame pediátrico. Retirado de Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s Likely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007.
149
Figura 78. Anúncio de bebida no símbolo de banheiro masculino. Retirado de STORY, Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s Likely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007.
149
Figura 79. Folheto de propaganda do periódico The Million. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
(2/12/07)
151
Figura 80. Folheto de propaganda do comics Moonshine. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
(2/12/07)
151
Figura 81. The evening times. Sete edições diárias. Penny Illustrated, 29 de outubro de 1910. The British Library.
151
Figura 82. Folheto de propaganda da Fell & Briant, impressão de rótulos, 1889. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
(2/12/07)
152
Figura 83. Anúncio de mercado, 1885. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
(2/12/07)
152
Figura 84. Anúncio da emulsão Scott com “puro óleo de fígado de bacalhau”, 1884. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
(2/12/07)
154
Figura 85. Anúncio de Freeman's Egg Powder, 1885. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
154
Figura 86. Anúncio de Bovril, 1890. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
154
Figura 87. Mellin’s Food for Infants & Invalids, 1890. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
155
Figura 88. Folheto do fermento em pó Soddy, 1887. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
155
Figura 89. Anúncio do pó para pudim Freeman, 1884. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
156
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Figura 90. Anúncio da essência de chocolate Cadbury, 1866. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
156
Figura 91. Anúncio do desinfetante Jeyes, 1879. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
157
Figura 92. Anúncio do sabão em pó Hudson, 1880. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
157
Figura 93. Anúncio do sabão em pó Hudson, 1889. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
157
Figura 94. Anúncio do sabão Price, 1880. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
158
Figura 95. Anúncio do sabão Brooker, 1889. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
158
Figura 96. Anúncio do sabão em pó Glover, 1881. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
158
Figura 97. “Cavalo estraçalha janela de bonde”. New York World, 1897. Extraído de SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular... p 123
162
Figura 98. “Quando um homem não parece estar no seu melhor momento”- n. 2. Punch, or The London Charivari. Vol. 101. 17 de outubro de 1891.
162
Figura 99. “Broadway – ado e Presente”. Life, 1900. Extraído de SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular... p 122.
162
Figura 100. Au Bon Marché, 1889. Vitrine de pequenos artefatos. In: Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona. Vol. X, n. 211, 15 de abril de 2006.
167
Figura 101. Ilustração “origin of the bon marché”. p. 2. Livreto, c. 1896. In: D. H. Ramsey Library, Special Collections, University of North Carolina at Asheville.
167
Figura 102. Cartão postal promocional Au Bon Marché, sem data. Disponível em: http://www.cardmine.co.uk
168
Figura 103. Estampa promocional Au Bon Marché, c. 1878. GORBERG, Samuel. Figurinhas: Sucesso de Marketing. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Disponível em:
(21/07/2007).
168
Figura 104. Pablo Picasso. Natureza-morta Au Bon Marché, 1913. Óleo e papel colorido sobre cartão. Coleção Ludwig, Aachen.
169
Figura 105. Rua em manhã de domingo.Illustrated London News, 1856. 170 Figura 106. “Um domingo tranqüilo em Londres; ou o Dia do Descanso”. Punch, 1886. Extraído de SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular... p. 120.
171
Figura 107. Vestimenta de jardineiro. Larmessin, c. 1695. Les Costumes Grotesques: Habits des métiers et Professions.
172
Figura 108. Vestimenta de músico. Larmessin, c. 1695. Les Costumes Grotesques: Habits des métiers et Professions.
172
Figura 109. Vestimenta de confeiteira. Larmessin, c. 1695. Les Costumes Grotesques: Habits des métiers et Professions.
172
Figura 110. Vendedora de fósforos. BURBY, Thomas Lord, gravador. Costume of the lower orders of the metropolis. London: T. B., 1820. ID: 1168475 NYPL Gallery.
(25/11/07) 173
Figura 111. Show de rua. Artista ambulante. BURBY, Thomas Lord, gravador. Costume of the lower orders of the metropolis. London: T. L. B., 1820. ID: 1168477. NYPL Gallery.
173
(25/11/07)
Figura 112. eiro. BURBY, Thomas Lord, gravador. Costume of the lower orders of the metropolis. London: T. L. B., 1820. ID: 1168476. NYPL Gallery.
(25/11/07)
173
Figura 113. Alfabeto de profissões do primo Favo de Mel (Cousin Honeycomb’s). Publicado por Dean & Son, Londres, c. 1856. The John Johnson Collection of Printed Ephemera. Bodleian Library. University of Oxford.
174
Figura 114. Nossa aldeia, um jogo de profissões. Jogo impresso em litografia, produzido por Standring & Co., Londres, 1860. The John Johnson Collection of Printed Ephemera. Bodleian Library. University of Oxford.
175
Figura 115. Frente do folheto publicitário do extrato de sabão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Hudson, 1890.
(14/12/07)
178
Figura 116. Verso do folheto publicitário do extrato de sabão Hudson, 1890.
178
Figura 117. Medida do cúbito. Foto do álbum de Alphonse Bertillon, de sua participação na World's Columbian Exposition em 1883, Chicago. National Library of Medicine (NLM).
Disponível em:
(23/09/07)
180
Figura 118. Instruções do sistema de sinalética, desenvolvido por Alphonse Bertillon, incluindo teoria e prática da identificação antropométrica.
180
Figura 119. Quadro fotográfico com tipos de orelha. Signaletic Instructions Including the Theory and Practice of Anthropometric Identification de Bertillon. Retirado de GUNNINGS, op. cit., p. 62.
181
Figura 120. Quadro de característica físicas de Bertillon. Musée des Collections Historiques de la Préfecture de Police. National Library of Medicine.
181
Figura 121. Cartão antropométrico de Alphonse Bertillon, 1892. University College London.
182
Figura 122. Ampliação de um fotograma do filme de 1904 da Biograph,
A Subject for the Rogue’s Gallery, filmado pelo cinegrafista A. E. Weed. Retirado de GUNNINGS, op. cit., p.55.
182
Figura 123. Sistema de arquivo de Bertillon. Foto do álbum de Alphonse Bertillon, de sua participação na World's Columbian Exposition em 1883, Chicago. National Library of Medicine (NLM). .
184
Figura 124. Foto do álbum de Alphonse Bertillon, de sua participação na World's Columbian Exposition em 1883, Chicago. National Library of Medicine (NLM). Disponível em:
(23/09/07)
184
Figura 125. Policial perseguindo um ciclista, "Penny Farthing". The Graphic, 1880. The Illustrated London News Picture. Library.
Disponível em:
(05/06/07)
190
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Figura 126. Anúncio de Bown's "Perfect", processo perfeito para fixação de pneumáticos de bicicletas. Sporting and Dramatic News, 1887. The Illustrated London News Picture Library.
(05/06/07)
191
Figura 127. Rainha Victoria viajando sobre a ponte Tay, Dundee. The Illustrated London News, 5 de julho de 1879.
(17/09/07)
197
Figura 128. Viaduto Brighton sobre a rodovia Preston. The Illustrated London News, 13 de junho de 1846. The Illustrated London News Picture Library.
(17/09/07)
197
Figura 129. Viaduto Blatchford em Slade, Devon, meados do século XIX. Litografia colorida manualmente. Science Museum/ Science & Society Picture Library.
197
Figura 130. Estrada de ferro du Nord. Boulogne sobre o mar. Temporada de 1889.
198
Figura 131. Estrada de ferro du Nord. Le Tréport-Mers. Temporada de 1889.
198
Figura 132. 'Cook's Tours pela Escócia e Irlanda. Capa de folheto publicitário, sem data. Thomas Cook Archive/The ILN Picture Library. < http://www.ilnpictures.co.uk> (17/09/07)
198
Figura 133. Acidente de trem em Kentish Town, na junção da linha Hampstead. The Illustrated London News, 7 de setembro de 1861. ILN Picture Library.
201
Figura 134. Acidente de trem na Ferrovia Chester, com estragos na ponte Dee. The Illustrated London News, 12 de junho de 1847. ILN Picture Library.
(17/09/07)
201
Figura 135. Anúncio de seguradora. The Sphere, 6 de janeiro de 1912. The ILN Picture Library.
(17/09/07)
202
Figura 136. Aguardando o trem da excursão. The Illustrated London News. 4 de setembro de 1880.
202
Figura 137. Trem dos correios indo de Folkestone para Londres. The Illustrated London News, 1844. The ILN Picture Library.
203
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Figura 138. Plataforma de observação do panorama com espectadores e detalhe da vista panorâmica de Constantinopla, por JulesArsène Garnier em exibição em Copenhagen. c. 1882. Gravura em madeira, C. V. Nielsen. Museu da Cidade, Copenhagen. In: COMMENT, Bernard. The Panorama. London: Reaktion Books, 1999. p. 6.
208
Figura 139. As linhas do sistema de horário das ferrovias. The Illustrated London News, 6 de junho de 1908. The ILN Picture Library
215
Figura 140. Estandes de máquinas: motores Whitworth e bomba centrifuga Appold. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford.
(7/02/08).
223
Figura 141. Máquina de envelopes no estande De la Rue’s Stationery. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford. Disponível em:
(7/02/08). 223 Figura 142. Desenhos originais do Palácio de Cristal por Joseph Paxton. 11 June 1850.
230
Figura 143. Levantando a viga mestra do corredor central. Construção do Palácio de Cristal. The Illustrated London News, 1851. Disponível em
230
Figura 144. Coluna do transepto. Construção do Palácio de Cristal. The Illustrated London News, 1851. Disponível em The Victorian Web
(17/0308).
231
Figura 145. Levantando o telhado. Illustrated London News. 11 de dezembro de 1850. In: BRIGGS, Asa. Exhibiting the Nation. History Today, January 2000. p. 18
231
Figura 146. Daguerreótipo do interior do Palácio de Cristal. John J E Mayall, 1851. Disponível em:
(2/09/07).
232
Figura 147. Vista geral do Palácio de Cristal. Dickinson's comprehensive pictures of the Great Exhibition of 1851: from the originals painted for H.R.H. Prince Albert / by Messrs Nash, Haghe, and Roberts, R.A. London: Dickinson, Brothers, 1854.
233
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Figura 148. Exterior do Palácio de Cristal com Kensington Gardens', 1851. Litografia de Augustus Butler a partir de desenho original. National Museum of Science & Industry
(2/09/07)
233
Figura 149. The Great Exhibition. Impressão em óleo por G. Baxter. Disponível em:
(17/03/08).
233
Figura 150. "Grand Panorama of the Great Exhibition of All Nations". Illustrated London News. 1851. Friends of the Library Fund, Cooper-Hewitt, National Design Museum Library. Disponível em: Smithsonian Institution Libraries.
(17/03/08)
234
Figura 151. Lenço para souvenir, com impressão de caricaturas de estrangeiros e ingleses, dentre estes o Príncipe Albert e Joseph Paxton. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford.
Disponível em:
(21/07/07).
235
Figura 152. Abridor de envelopes. Lembrança da Great Exhibition. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford. Disponível em:
(21/07/07).
235
Figura 153. Caixa para charutos. Lembrança da Great Exhibition. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford. Disponível em:
(21/07/07).
235
Figura 154. Navalha Sheffield Town. Produzida por Hawcroft & Sons para
a Exposição de 1851, com o propósito de demonstrar a habilidade dos artesãos da companhia. O Palácio de Cristal aparece reproduzido na lâmina. The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão.
235
New York: Dover Publications, 1970. p. 222
Figura 155. Palácio de Cristal de Nova York para a Exposição da Indústria de todas as Nações. Litografia, 1853. Harry T. Peters 'America on Stone' Collection, National Museum of American History, Smithsonian Institution. Disponível em: 236
(2/09/07)
Figura 156. Folheto de fabricante de gaiolas. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
Disponível em:
(17/03/08)
236
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Figura 157. Galeria superior. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte, impressão fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em:
237
Figura 158. Conjunto de esculturas. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte, imp. fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em:
(17/03/08)
237
Figura 159. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte, impressão fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em: Figura 160. Detalhe da Figura 159
237 237
Figura 161. O transepto central. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte, impressão fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em:
(17/03/08)
238
Figura 162. All the World Going to See the Great Exhibition of 1851, George Cruikshank (1792-1878), 1851. Disponível em:
(3/06/07).
240
Figura 163. Agricultores na Exibição. In: The Illustrated London News (19 July 1851): 101. Disponível em: The Victorian Web
(22/03/08)
240
Figura 164. Londres em 1851. The Great Exhibition. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford. Disponível em:
(21/06/07)
241
Figura 165. Manchester em 1851. The Great Exhibition. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford. Disponível em:
(21/06/07)
241
Figura 166. “Quadro feito a bico de agulha...” Recordações da Exposição Nacional de 1861. Reprodução do álbum de 1861. Rio de Janeiro: Confraria dos Amigos do Livro, 1977.
246
Figura 167. O Brasil na Exposição Internacional de Londres. Recordações da Exposição Nacional de 1861. Reprodução do álbum de 1861. Rio de Janeiro: Confraria dos Amigos do Livro, 1977.
246
Figura 168. Pavilhão do Brasil no Campo de Marte e Torre Eiffel. Exposição Universal de Pariz. 1889. Exposição Brazileira. Álbum da Coleção Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro.
248
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Figura 169. Vitória Régia. Pavilhão do Brasil. Exposição Universal de Pariz. 1889. Exposição Brazileira. Álbum da Coleção Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro.
248
Figura 170. Pavilhão de degustação de café. Exposição Universal de Pariz. 1889. Exposição Brazileira. Álbum da Coleção Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro.
249
Figura 171. Estante com compoteiras. Ao fundo, vitrine de mate e cestaria. Exposição Universal de Pariz. 1889...
249
Figura 172. Vitrine com itens de perfumaria. À direita, moringas e cerâmicas. Exposição Universal de Pariz...
249
Figura 173. Vitrines e estantes com pedras e minerais. À direita, peles de animais e estante com compoteiras. Exposição Universal de Pariz...
250
Figura 174. Estante e vitrines com produtos químicos e farmacêuticos. Exposição Universal de Pariz... Figura 175. Detalhe de estante com compoteiras. Exposição..
250 250
Figura 176. Vista da nave leste, Palácio de Cristal, 1851. Aquarela e guache sobre papel por John Absolon (1815-95). A estátua original em bronze, de autoria de Eugène Simonis, encontrase em frente ao Palácio Real de Bruxelas. Ao pé da cópia em
gesso, vê-se pequenas esculturas em mármore do mesmo autor. Victoria and Albert Museum, London.
252
Figura 177. Pavilhão austríaco. Ilustração do segundo volume de Dickinson's comprehensive pictures of the Great Exhibition of 1851, com trablhados de Nash, Haghe e Roberts RA, 1854. In collection of: Science Museum Library. Disponível em:
(2/09/07).
254
Figura 178. Pavilhão austríaco. Ilustração do segundo volume de Dickinson's comprehensive pictures of the Great Exhibition of 1851, com trablhados de Nash, Haghe e Roberts RA, 1854. In collection of: Science Museum Library
254
Figura 179. Ilustração do Dickinson's comprehensive pictures of the Great Exhibition of 1851, com trablhados de Nash, Haghe e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Roberts RA, 1854. Science Museum Library
255
Figura 180. Interior do Palácio de Cristal. Fotografia de um par de estereoscópio. Science Museum/Science & Society Picture Library. Disponível em:
(2/09/07).
255
Figura 181. The Great Exhibition, Main Avenue. In: History and description of the Crystal Palace, and the Exhibition of the World's Industry in 1851. Gravura em metal a partir de desenhos originais e daguerreótipos. London e New York, John Tallis and Co., 1852.
Disponível em:
(3/06/07).
255
Figura 182. Estante. Carl Keistler, Viena. The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970.
259
Figura 183. Candelabro em bronze. Mr. Pott, Birmingham. The Crystal Palace…
259
Figura 184. Espelho para toilette em prata maciça. M. Morel. The Crystal Palace… Figura 185. Vaso de porcelana de Sèvres. The Crystal Palace…
259 260
Figura 186. Copo de vidro. Mr. Conne, Londres. The Crystal Palace… 260 Figura 187. Renda. Mrs. Treadwin lacer-manufacturer, Exeter. Design Mr. C. P. Slocombe. The Crystal Palace…
260
Figura 188. Cadeira giratória. American Chair Company, Nova York. The Crystal Palace…
260
Figura 189. Mesa. Michael Thonet, Viena. The Crystal Palace…
260
Figura 190. Carruagem. Mr. Clapp & Son, Boston, Estados Unidos.
261
Figura 191. Carruagem “Light Park Phaeton”. Mrs. H. & A. Holmes, Derby, Reino Unido. The Crystal Palace… Figura 192. Espelho. Viena, 1825. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 106
261 264
Figura 193. Settee. Áustria, cerca de 1820. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 133.
264
Figura 194. Caixas de prata. Áustria, circa 1803. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 235
264
Figura 195. Pintura de Stephanie von Fahnenberg. Living Room de Alexander von Fahnenberg at Wilhelmstrasse 69. In: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
OTTOMEYER, H., op. cit. p. 155.
265
Figura 196. Sofá. Viena, 1825-1830. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 136.
265
Figura 197. Cadeira. Áustria, cerca de 1820. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 128.
265
Figura 198. Padrões de cadeiras. Copenhagen, 1826. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 143
266
Figura 199. Cadeiras. Viena, 1825-1835. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p.122
267
Figura 200. Cadeira em estilo Biedermeier fabricado, provavelmente por Josef Danha. Hofmobiliendepot. Möbel Museum Wien. Foto da autora. Arquivo pessoal.
267
Figura 201. Conjunto em estilo Biedermeier fabricado, provavelmente por Josef Danha. Hofmobiliendepot. Möbel Museum Wien. Foto da autora. Arquivo pessoal.
267
Figura 202. Fachada do prédio da Secessão, projetado em 1898 por Josef Olbrich, com a inscrição Der Zeit ihre Kunst. Der Kunst ihre Freiheit (“À época sua arte, à arte sua liberdade”). Foto da autora. Arquivo pessoal. Figura 203. Escrivaninha.Viena, cerca de 1850. In: OTTOMEYER,
268
H., op. cit. p. 84.
268
Figura 204. Console com mesa e espelho. Gutta-percha Company, Londres. The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. p. 222.
272
Figura 205. C. Sharps 4 calibre 22, primeira patente datada de 1859. O cabo é de gutta-percha. Disponível em:
(11/04/08).
272
Figura 206. Par de tinteiros em guta-percha. França, 1860-1880. Disponível em:
(11/04/08).
272
Figura 207. Day Dreamer. Poltrona em papier-mâché. Design H. Fitz Cook. Manufatura Jennings and Bettridge, Belgrave Square and Birmingham. The Crystal Palace Exhibition Illustrated PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Catalogue, London 1851. Fac-símile,
274
Figura 208. Detalhe de cadeira em papier-mâché com pintura japonesa feita sobre madeira. Manufatura Jennens & Bettridge, Birmingham, Inglaterra. Ca. 1850. Victoria and Albert Museum, London. Disponível em:
(12/04/08).
274
Figura 209. Pote para chá. Tea Caddy. Papier-mâché. Manufatura Jennens & Bettridge, Birmingham, Inglaterra. 1851. Victoria and Albert Museum, London.
(12/04/08).
274
Figura 210. Caixa para trabalhos manuais. Papier-mâché. Manufatura Jennens & Bettridge, Birmingham, Inglaterra. Ca. 1850. Victoria and Albert Museum, London. Disponível em:
(12/04/08).
274
Figura 211. Vista da nave oeste, interior do Palácio de Cristal, 1851. Aquarela e guache sobre papel de Henry Clarke Pidgeon (1807-80). Victoria and Albert Museum, London. Disponível em:
(12/04/08).
275
Figura 212. Figura e molde em barro. Museu Nacional de Antropologia, Arqueologia e História. Lima, Peru. Arquivo Pessoal.
277
The innocent eye is blind
W. J. T. Mitchell
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O OLHAR INOCENTE É CEGO
1. Introdução
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o ado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. Walter Benjamin, Sobre o conceito da história.
Para que olhar para trás, no momento em que é preciso arrombar as portas do impossível. Marinetti, Manifesto Futurista.
A presente pesquisa tem origem nos questionamentos surgidos a partir da minha dissertação de mestrado.1 Naquele trabalho, ao investigar a composição gráfica das notícias do Jornal Nacional entre os anos de 1983 e 2002, observei a ocorrência de modificações estruturais na visualidade do telejornal, não necessariamente vinculadas à temática apresentada, ao momento político do país ou à situação planetária. Alterações formais, no encadeamento e na velocidade de veiculação das matérias e “cabeças” eram evidentes e pareciam relacionadas às tecnologias empregadas. As edições, cada vez mais aceleradas e fragmentadas,
1
KOSMINSKY, Doris. A imagem da notícia: panorama gráfico do telejornal brasileiro. Análise dos selos do Jornal Nacional. Orientador: Luiz Antonio Coelho. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2004. Dissertação.
O OLHAR INOCENTE É CEGO
32
resultavam em trechos de imagem sempre mais curtos. Estas observações na dinâmica das imagens gráficas fizeram-me questionar até que ponto as transformações tecnológicas exercem influência sobre o modo que as pessoas assistem a programação e visualizam as imagens. Em outras palavras, em que medida as tecnologias influenciam o sujeito contemporâneo na sua formação de habitus2 e conseqüente mudança no modo de olhar? Seria esta influência limitada às tecnologias imagéticas? Esta tese investiga a idéia de que algumas características relacionadas aos modos de olhar do sujeito contemporâneo, como a fragmentação da identidade e o descentramento do sujeito ou “reembaralhamento do eu”3, encontram suas origens no século XIX, na experiência sucessiva de estímulos produzidos pelo ambiente crescentemente povoado por artefatos industriais. A nossa hipótese considera que
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o modo de olhar construído neste período continua exercendo influência sobre a maneira com a qual nos relacionamos com a cultura visual contemporânea. Esta pesquisa também contempla as tecnologias que provocaram mudanças nas dimensões de tempo e espaço, consideradas uma influência marcante neste processo. Não se trata de abraçar um posicionamento determinista em relação à atuação das tecnologias sobre as modificações na cultura visual, mas considerá-las como elemento atuante em um contexto de diversos outros vetores. Na época atual, as novas tecnologias digitais e a cibercultura têm sido apontadas como agentes decisivos de transformações do olhar. Em acordo com o impulso das mediações tecnológicas sobre as mudanças perceptivas e sociais, este trabalho busca localizar continuidades e contradições da cultura visual do século XIX. Estudos arqueológicos das mudanças perceptivas do observador tornaramse mais freqüentes a partir da década de 1990, com a divulgação da pesquisa
2
Para Bourdieu, habitus são estruturas mentais de percepção, através das quais os agentes apreendem e interiorizam o mundo social. As pessoas não vivem suas vidas de acordo com tomadas de decisões livres, mas ao contrário, se encontram submetidas às limitações do habitus e das condições objetivas do campo social. Assim, o habitus tende a reproduzir o sistema de condições onde é produzido. Não se trata simplesmente da ação e produção de práticas, mas, também, de um sistema de percepções e apreciações - conscientes e inconscientes - dessas práticas. Em outras palavras, as práticas convencionais são construídas socialmente, mas elas não são coerções exteriores aos sujeitos. Ao contrário, elas são desenvolvidas, ensinadas, aprendidas, codificadas e decodificadas dentro de um determinado ambiente social. Seus co-autores obedecem aos seus desígnios coletivamente ao mesmo tempo em que têm o poder de rejeitá-las ou transformá-las. Ver BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Editora Perspectiva: 2004 e O poder simbólico. São Paulo, Editora Bertrand Brasil: 2005. 3 SCHORSKE, C. E. Viena fin-de-siècle. Política e cultura. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 13.
O OLHAR INOCENTE É CEGO
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desenvolvida por Jonathan Crary sobre a utilização de aparatos ópticos na primeira metade do século XIX. O autor sugere que o observador moderno e sua competência perceptiva foram forjados através da utilização de novos instrumentos ópticos que requisitavam uma maior participação atentiva e corporal do sujeito. Deste modo, estabelece uma distinção entre espectador e observador, ressaltando sua ressonância etimológica. Ao contrário de spectare, raiz latina de “espectador”, a origem de “observar” não significa literalmente “olhar para”.4 “Espectador” é “aquele que vê qualquer ato”, o que lhe impinge ividade, enquanto o termo “observador” sugere significações mais interligadas ao sentido do olhar (“examinar minuciosamente; olhar com atenção; estudar; espiar, espreitar”) como, também, ampliações deste conceito (“cumprir ou respeitar as prescrições ou preceitos; obedecer a; praticar”). A questão da atenção é alvo de Crary e foi aprofundada em estudos posteriores.5 A nossa pesquisa não se prende PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
a esta questão e considera que o sujeito moderno, surgido a partir do século XIX, reveza sua condição de observador e espectador, na medida em que vive a dificuldade crescente de fixar o olhar sobre apenas um elemento, imagem ou objeto. Este trabalho sustenta a alternância permanente entre o olhar atento do observador e sua capacidade de compartilhar diversas experiências em uma mesma situação perceptiva, deixando-se levar por elas. É como se flâneur e badaud coexistissem nos habitantes das grandes cidades, apesar da diferença apontada por Benjamin: Não vamos, todavia, confundir o flanador com o badaud: há uma nuance... o simples flanador está sempre em plena posse de sua individualidade; a do badaud, ao contrário, desaparece absorvida pelo mundo exterior... que o impressiona até a embriaguez e o êxtase. Sob a influência do espetáculo que se oferece a ele, o badaud se torna um ser impessoal; já não é um ser humano; é o público, é a multidão.6
O presente trabalho considera, ainda, que a construção do olhar é realizada em camadas, isto é, os modos de olhar anteriores não são simplesmente superados, mas absorvidos nos modos subseqüentes. Não se trata, no entanto de uma seqüência linear e natural. Muito pelo contrário. A construção de um modo de 4
Ibid., p.5. CRARY, Jonathan. Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture. Massachusetts: The MIT Press, 2000. 6 Victor Fournel, Ce qu’on voit dans les rues de Paris (O Que se Vê nas Ruas de Paris), Paris, 1858, p. 263, (L’odyssée d’um flâneur dans les rues de Paris)”. In: BENJAMIN, Walter. O flâneur. Obras escolhidas III. Charle Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. 3ª edição. 2ª reimpressão. p. 202. 5
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olhar é submetida a inúmeras contradições além da alternância de modos de visão em um mesmo individuo. A possibilidade de coexistência de diversos modos de olhar e sua superposição na formulação de modos subseqüentes aparece justificada em um trabalho posterior de Jonathan Crary.7 O autor apresenta a gravura Southwark Fair de 1733 (Figura 1) para exemplificar a coexistência de formas pré-modernas e modernas em uma mesma cultura visual. A figura de Hogarth retrata uma feira com ares de carnaval. Em uma agitada cena de rua vêem-se artistas, antes, músicos, negociantes e até um funâmbulo. Para o autor a obra sugere uma grande mistura de modalidades sensíveis8, mas apresenta um diferencial. No canto inferior direito desta representação, dois sujeitos parecem absorvidos, um de cada lado de uma caixa, onde observam um peep show (Figura 1). Para Crary estas figuras sugerem o modelo dominante da cultura visual ocidental com evidência da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
relativa separação entre o observador e seu ambiente na observação de uma imagem. Deste modo, o sujeito ‘multifacetado’ das feiras “é transformado em um espectador individualizado e auto-regulado”.9
Figura 2. William Hogarth. Southwark Fair, 1730. Gravura. Detalhe
Figura 1. William Hogarth. Southwark Fair, 1733. Gravura. Disponível em
(22/07/07).
Em busca de uma imagem que se aproximasse do tipo de olhar que nos interessa neste estudo, chegamos à moça retratada por Manet em Le Chemin de fer de (Figura 3). A mulher seria a acompanhante da menina, a quem vemos de costas, segurando a barra de ferro, atraída pela nuvem de vapor e fumaça que, 7 CRARY, Jonathan. Géricault, the Panorama, and Sites of Reality in the Early Nineteenth Century : Grey Room (New York), v. 9, p. 5-25, Fall 2002. 8 Ibid., p. 8.
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provavelmente, indica o trem, ícone da velocidade e da modernização. No seu colo, vemos um cachorrinho que dorme e um livro aberto. A leitura parece se dar entre avanços e recuos, já que o indicador da mão direita marca um outro ponto de leitura, mais à frente. A pintura retrata um momento efêmero, o segundo em que algo ou alguém fez com que a leitura do livro fosse interrompida. Para Clark, em sua explicação criticada pelas feministas, o olhar da moça conduz ao “transeunte masculino”.10 Não nos importa quem ou o quê tenha motivado o olhar que prolonga o quadro para fora da tela. O que nos interessa é esse momento efêmero em que a moça faz uma pequena pausa da sua leitura para observar algo que lhe chama a atenção no ambiente urbano de grandes transformações. Uma pintura é, como observa Clark, um trabalho lento e feito sem pressa.11 Esta aparente contradição, a representação de um instantâneo do olhar produzida por uma técnica que demanda um processo lento, ressalta a intensidade efêmera da vida PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
urbana, sua fluidez e as acidentais troca de olhares. É um olhar entre o blasé e o curioso, um modo de olhar característico da vida moderna, como o que abordaremos na nossa pesquisa.
Figura 3. Edouard Manet, Le Chemin de fer, 1872. Disponível em:
(22/07/07).
9
Ibid., p. 11. CLARK, T. J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 22. 11 Ibid., p. 19. 10
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Nosso trabalho se constitui em uma pesquisa teórica, qualitativa e exploratória, em que foi utilizado um ângulo de abordagem histórico-cultural. De acordo com este tipo de pesquisa, buscamos elementos do ado de modo a desenvolver uma melhor compreensão dos fenômenos presentes.12 Em uma pesquisa qualitativa, há o pressuposto da existência de uma “uma relação dinâmica, uma interdependência entre o mundo real, o objeto da pesquisa e a subjetividade do sujeito”.13 Santaella observa que na medida em que o objeto pesquisado deixa de ser tomado como um dado inerte e neutro, o sujeito torna-se um elemento integrante do processo de conhecimento, capaz de atribuir significados ao que é pesquisado14. A pesquisa qualitativa, como é o caso da nossa investigação, é utilizada, de uma maneira geral, quando há uma relação entre o tema, a história de vida e de pesquisas anteriores. O enfoque crítico foi sustentado em acordo com o que Rose apresenta na sua introdução para uma metodologia PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
visual, onde considera três aspectos fundamentais a este tipo de abordagem15. Em primeiro lugar, a necessidade de dar a devida importância às imagens, analisandoas cuidadosamente. Depois, avaliar as condições sociais e os efeitos do objeto visual e, finalmente, considerar o próprio modo com o qual o pesquisador vê as imagens, na medida em que os modos de ver recebem influências históricas, culturais e sociais. Em concordância com este posicionamento crítico, estabelecemos um diálogo entre, de um lado a nossa “intuição”, formatada sobre um conhecimento prévio e, de outro, o material de investigação. A nossa pesquisa foi realizada sobre diversos tipos de documentos. Como fontes primárias, utilizamos gravuras, textos e fotografias do século XIX e do renascimento, além de imagens contemporâneas, entremeadas com teoria de diversos autores, do século XIX até o presente, de modo a contemplar os estudos de cultura visual. Os textos e ilustrações de época foram sendo descobertos ao longo da investigação. A originalidade do tema dificultou a limitação rígida do quadro teórico a um pequeno número de autores. Por este motivo, a utilização da referência bibliográfica foi ampla e se estendeu por diversos autores como John Ruskin, 12
SANTAELLA, Lucia. Comunicação e Pesquisa. São Paulo: Hacker Editores, 2001. p. 147. CHIZZOTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 1991. p. 9 apud SANTAELLA, L. op. cit., p. 143. 14 SANTAELLA, L. op. cit., p. 143. 13
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Baudelaire, Panofsky, Nelson Goodman, E. A. Gombrich, Jonathan Crary, De Certaeau e Walter Benjamin, dentre outros. A utilização da teoria foi fundamentada no diálogo entre a própria teoria e textos jornalísticos ou críticos de autores do século XIX. Apesar dos estudos sobre a visualidade remeterem diretamente às mudanças observadas nas práticas de representação artísticas, não nos fixamos metodologicamente à história da arte. Salvo por um ou outro exemplo utilizado, não empregamos especificamente autores e exemplos deste campo que consideramos bastante explorado e distante da nossa proposta. Também optamos, no estudo do século XIX, a não analisar diretamente nenhuma tecnologia produtora de imagens, como o cinema ou a fotografia de modo a determinar sua influência na construção do olhar. Em nosso ponto de vista, estas tecnologias específicas foram amplamente estudadas e fazem parte de um processo mais PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
amplo de padronização do olhar que vemos iniciado antes de sua invenção. Deste modo, os panoramas e a fotografia serão mencionados dentro de contextos particulares, o primeiro ao ser associado ao modo de olhar influenciado pelas tecnologias de compressão tempo-espaço e, a segunda, na conjuntura de tentativa de controle sobre o ambiente urbano. A nossa pesquisa estabelece dois diferentes modelos, ou momentos do olhar. Antes de abordarmos diretamente a construção destes dois modos, será interessante retomar o importante estudo da visão moderna de Jonathan Crary. Crary baseia sua hipótese no estudo dos dispositivos ópticos, originalmente desenvolvidos nos laboratórios de fisiologia das primeiras décadas do século XIX, e que migraram para as feiras populares e residências de uma crescente classe média urbana. Seu estudo compreende o conhecimento sobre um corpo cada vez mais submetido à disciplina, regulação e investigação. A visão moderna ou a cultura de uma nova maneira de olhar teria sido definitivamente atrelada a um corpo em movimento, rompendo com um modelo representado pela câmera escura. Este conceito é reforçado por uma frase de Maine de Biran, um dos primeiro filósofos do século XIX a pensar sobre a percepção: “a alma é
15
ROSE, Gillian. Visual Methodologies. London: Sagge Publications, 2001. p. 11-12.
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necessariamente encarnada, não existe psicologia sem biologia”.16 Crary considera que os estudos ópticos abalaram os modelos de representação da visão derivados da Renascença. De modo que, para compreender visão e a cultura moderna, assim como a nova cultura visual, segundo este autor, não se deve observar a pintura modernista das décadas de 1870 e 1880, mas a reconfiguração da visão ocorrida na década de 1840 quando um novo tipo de observador foi constituído.17 A expressão estética moderna é conseqüência e não causa das mudanças. A nossa compreensão do fenômeno da visualidade pretende-se mais ampla, com a conceituação do olhar moderno, consolidado a partir de um novo modo de vida urbana desenvolvido ao longo de um período de transformações fundamentais, a segunda metade do século XIX.
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Esta tese se constitui sobre dois diferentes paradigmas de construção da visualidade: o olhar ciclópico ou clássico, relacionado à fundamentação da convenção da perspectiva e construído ao longo da Renascença e o olhar panorâmico, arquitetado sobre as transformações urbanas, a profusão de objetos e imagens e a compressão tempo-espaço gerada pelas novas tecnologias de transporte e comunicação a partir da segunda metade do século XIX. Estes dois modos de olhar são analisados, respectivamente no segundo e terceiro capítulos, enquanto o quarto analisa uma pedagogia de fixação do olhar que foi construído. O capítulo dois, voltado para o olhar ciclópico, se inicia com uma discussão sobre a representação e a possibilidade de uma imagem transmitir a verdade. Em seguida, analisa a visão monocular produzida pela perspectiva, seus paradoxos e sua naturalização. Neste contexto, também consideramos a combinação entre a perspectiva e a gravura como fundamental para o desenvolvimento da ciência e das tecnologias ocorrido a partir do Renascimento. O final deste segundo capítulo aborda a utilização de alguns aparatos do olhar desenvolvidos na Renascença sob os pontos de vista do entretenimento, da ciência e da metáfora.
16
BIRAN, Maine de. Influence de l’habitude sur la faculté de penser [1803]. Paris: Ed. P. Tisserand, 1953, pp. 56-60. apud CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth century. Massachusetts: The MIT Press, 1992. p. 73. 17 CRARY, J. op. cit., p. 149.
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O terceiro capítulo, dedicado ao olhar panorâmico, que foi construído a partir da segunda metade do século XIX, se apresenta dividido em três partes. Ele se inicia com algumas considerações, voltadas para a compreensão de termos como modernidade e modernização e segue com questionamentos sobre a validade do termo “revolução industrial” em relação aos primeiros tempos da industrialização e do emprego de tecnologias resultantes de pesquisas científicas. Prosseguindo com a discussão sobre a influência das tecnologias na construção do olhar, optamos por analisar a implantação da eletricidade e alguns de seus reflexos. Na segunda parte deste mesmo capítulo, dirigimos um olhar às modificações da cidade urbana ao longo do século XIX e sua influência sobre a produção de um novo olhar. Deste modo, estudamos as reformas urbanas, o surgimento da multidão, a profusão de impressos que inunda a cidade e a própria visão do morador. Ressaltamos a idéia da permanência da novidade como forma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
de produção de choques perceptivos destinados a atrair a visão dos homens e mulheres saturados por informações. Em seguida, abordamos uma tentativa que foi empregada para o controle deste também novo ambiente urbano, organizada basicamente sobre imagens fotográficas e medidas dos moradores da cidade com a intenção de restringir e direcionar o olhar que fora aberto a um novo mundo de possibilidades. Finalmente, na última parte do terceiro capítulo, analisamos as percepções produzidas a partir do emprego de tecnologias geradoras da compressão tempo-espaço. Em se tratando de século XIX e da nossa opção por não utilizar tecnologias produtoras de representações, a tecnologia analisada é a ferrovia. É sobre ela que traçamos a construção do que chamamos de olhar panorâmico e que se explicita em um pequeno texto sobre os panoramas propriamente ditos. Este novo olhar, ao mesmo tempo em que criou novas possibilidades perceptivas, também necessitou de processos de padronização, como é o caso da estandardização do tempo, que fecha o capítulo. O quarto capítulo trata da fixação do olhar configurado ao longo do século XIX, através de uma pedagogia voltada para as instituições industriais e o conceito de progresso. Para esta análise utilizamos as Exposições Universais, sobretudo a primeira delas, realizada na Londres em 1851, por tratar-se de um fenômeno basicamente visual e voltado para um público amplo. Sob este aspecto, as Exposições Universais sintetizam a experiência obtida posteriormente com outras tecnologias que se voltaram para a massa e, também, com o que foi
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conceituado como espetáculo. A possibilidade de realizar esta análise sobre as Exposições e não sobre tecnologias de comunicação e produção de imagens, busca captar o primeiro momento da experiência de uma nova cultura visual, recentemente desenvolvida. Também consideramos que, além disso, as Exposições Universais têm o mérito de ressaltar a ascensão do campo do design, tanto a partir da exibição de produtos desenvolvidos pela indústria quanto pelas
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discussões que parecem mostrar-se, pela primeira vez, relevantes para esta área.
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2. O olhar ciclópico e a verdade da imagem
Este capítulo trata da construção do olhar clássico ou renascente. Apontamos alguns fatores que corroboraram na emergência e predomínio desse modelo, as conseqüências contemporâneas de sua ascensão e certos efeitos posteriores que evidenciam suas influências. A nossa intenção principal é expor, no olhar clássico, a formação do habitus da visualidade ocidental, fundamentada sobre a racionalização. Deste modo, levantamos algumas continuidades que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
serviram de alicerce para desenvolvimentos posteriores, predominantemente a partir da aceleração da produção de objetos manufaturados. Neste momento não será demais repetir algumas ressalvas. Em primeiro lugar, há que se ter em mente a idéia de “um olhar do período”, ou seja, um olhar mais ou menos geral, sem atribuições de gênero ou de idade, mas principalmente uma cultura visual imbuída por características específicas de determinada época e local. Em segundo lugar, e aqui buscamos apoio em Jonathan Crary e sua descrença quanto à possibilidade de uma história do olhar18: não é nossa pretensão construir uma história da visualidade do olhar, mas integrar o olhar à história das forças e regras que atuam na construção dos campos onde a percepção visual acontece. Diga-se a propósito que, uma história que pretenda incluir a visualidade deve ser em parte uma narrativa dos instrumentos visuais, suas construções, tecnologias e registros das representações e, de outra parte, suas configurações sociais e as - menos tangíveis - práticas cognitivas influentes na formulação das convenções e habitus. Deste modo, embora a constituição de uma nova forma de olhar seja geralmente associada às mudanças observadas nas práticas de representação artísticas, não nos ateremos a esta metodologia, salvo por um ou outro exemplo utilizado de forma quase metafórica. Em outras palavras, na abordagem da
18 CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth century. Massachusetts: The MIT Press, 1992. p. 6.
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constituição do olhar “clássico”, não nos ateremos predominantemente a autores e exemplos da história da arte, campo que consideramos bastante explorado e distante da nossa proposta. Além do que, como afirma o historiador da arte Martin Kemp, em relação à problemática utilização da pintura como prova de emprego da técnica: os meios são inferidos das pinturas e depois são responsabilizados por seus efeitos, de forma potencialmente circular.19 Deste modo, a utilização de exemplos da história da arte apoiará a discussão sobre a visualidade do período, sem constituírem o eixo da discussão. Em nossa opinião, os artefatos não são apenas reflexos de mudanças ocorridas em um determinado período e lugar, mas elementos ativos nas transformações sociais e agentes decisivos na construção do olhar, principalmente quando se trata de aparatos visuais. Este pensamento encontra e em Hanna Arendt, na sua compreensão da invenção do telescópio como fator fundamental de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
configuração da Era Moderna. Para Arendt, “não são idéias, mas eventos que mudam o mundo: o sistema heliocêntrico, como idéia, é tão velho quanto a especulação pitagórica e tão persistente em nossa história quanto as tradições neoplatôncias, e nem por isso jamais mudou o mundo ou a mente humana”
20
.
Apesar da consideração da autora de que “em contraposição aos eventos, as idéias nunca são inéditas”21, acreditamos que também os eventos não surgem de repente. A história é repleta de exemplos de tecnologias que se encontravam pronta há anos, quando finalmente foram implementadas. As tecnologias que moldaram a visão moderna não constituem exceção. Apesar disso, não iremos traçar o desenvolvimento histórico, apontar origens e desdobramentos de cada um destes artefatos, mas chamar a atenção para as conseqüências e influencias da utilização destas invenções e sua participação social sobre a construção do modo de olhar delineado a partir da renascença. A construção do olhar clássico será abordada a partir da formulação das tecnologias visuais desenvolvidas no período e convertidas em atores fundamentais das mudanças ocorridas na forma de organização e construção do olhar clássico. De um lado, analisamos o emprego da perspectiva e a utilização de 19 KEMP, Martin em carta para o autor. HOCKNEY, David. O conhecimento secreto – redescobrindo as técnicas perdidas dos grandes mestres. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 232. 20 ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro e São Paulo: Editora Forense Universitária, 2005. p. 285. 21 Ibid., p.271.
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outros aparatos tecnológicos da visão, como por exemplo, os pespectógrafos e a câmera escura, que utilizam princípios ópticos, na sua atuação como auxiliares da prática do desenho. Neste contexto, apontamos indícios da padronização e racionalização do olhar a partir da implementação e desenvolvimento de algumas destas técnicas e sua posterior “naturalização”. De outro, demonstramos que estes mesmos instrumentos atendiam a funções de entretenimento através da produção de “efeitos de mágica”. Deste modo, embora procuremos nos fixar sobre a influência destes artefatos na construção da visualidade da época, não podemos deixar de reconhecer sua ascendência sobre a constituição de uma cultura visual posterior, onde se insere o campo do design. No entanto, não poderíamos discutir algumas dessas tecnologias visuais sem discutir também a questão da representação e da “realidade” da imagem representada ou, se preferirem, sua
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capacidade de transmitir a verdade. Com essas questões abrimos o capítulo.
2.1. A representação do que “é”
Figura 4 - Charge de Alain. Publicada em 1955 em The New Yorker Magazine. Retirada da reprodução de GOMBRICH, E. H. em Arte e Ilusão. p. 2.
Como descrever o olhar de homens e mulheres que viveram há cinco ou dez séculos atrás? Mesmo que existissem relatos que descrevessem estes modos de visão, como seria possível “traduzi-los” de acordo com a nossa compreensão do
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olhar? Em sua deleitável história das listras, Michel Pastoureau levanta a hipótese de que o caráter depreciativo e pejorativo em relação às listras, identificado em documentos a partir do século XII, poderia ser justificado por alguma problemática visual22. De acordo com esta hipótese, a sensibilidade do homem da Idade Média era abalada pela aparência de uma estrutura onde figura e fundo pareciam indistinguíveis - o que provavelmente acontecia na observação de tecidos listrados. Para Pastoureau, o olho medieval era particularmente “atento à leitura por planos”: toda imagem lhe parecia como que recortada em camadas, dando a idéia de uma superposição de planos sucessivos. Assim, uma figura era observada pelo homem medieval a partir do plano de fundo; o olhar atravessaria todos os planos sucessivos e intermediários para terminar no plano frontal. Este modo de olhar o ambiente provocaria situações de desconforto na visualização de figuras com superfícies listradas ou axadrezadas.23 O incômodo seria causado pelo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
“diferente”, o fora do padrão. Algo tão valorizado pela arte e pelo design do nosso tempo, a varietas no latim medieval, carregava, na Idade Média, a noção de impuro, de agressivo ou imoral. Trata-se de uma concepção muito afastada da sensibilidade da nossa época que valoriza a “variedade”, sob a forma da novidade - o sempre novo inseparável da idéia de juventude. Concepção diametralmente oposta à encontrada na Idade Média, onde um bom cristão, um homem honesto não poderia ser varius. “A varietas é parente do pecado e do inferno”.24 O temor pela visão do “diferente” aparece de forma bem clara no texto de Erasmo de Rotterdam, do ano de 1523: Diversoria. Ao descrever as diferenças nas maneiras observadas em estalagens alemãs e sas, Erasmo aponta detalhes de uma hospedaria alemã. Nesta exposição ficam evidentes as dificuldades que um “estranho” encontrava ao chegar ao país. “Os outros olham-no fixamente, como se ele fosse um animal fabuloso vindo da África”.25 Não é nossa intenção, com este exemplo, afirmar que o estranhamento em relação ao diferente seja algo inexistente em nossa sociedade. Apenas temos segurança de que as coisas são mais complexas e menos absolutas em nossa época. O diferente pode tanto ser rejeitado, como aclamado. E estas duas recepções muitas vezes acontecem simultaneamente ou seqüencialmente. Apesar de pensarmos o diferente como um 22
PASTOUREAU, M. O pano do diabo. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. p. 15-16. Id. 24 Ibid., p 38-39. 23
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emaranhado contextual extremamente influente nas questões perceptivas, este não vem a ser o foco dessa pesquisa. Neste momento, é importante, apenas, ressaltar a idéia do diferente como histórica e inseparável do modo como as pessoas percebem seu ambiente.
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Figura 5 - O jardim de Nebamun, c. 1400 a. C. Retirado de GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. p. 60.
A sugestão de que as pessoas de outras épocas percebiam a natureza de um modo diferente do nosso é representada com humor no cartum de Alain (Figura 4). O chargista apresenta uma aula de modelo vivo onde estudantes egípcios retratam uma jovem modelo em pose semelhante à encontrada nas pinturas egípcias. Ernst Gombrich discute, a partir deste desenho, o que compreende como “enigma de estilo”, a existência de estilos de representação do mundo visível relacionados a diferentes épocas e lugares e dissociado da expressão de uma visão pessoal26. O desenho de Alain parece sugerir que o modo como vemos o mundo está implicado diretamente no modo como o reproduzimos. Deste modo, somos atraídos pela idéia cômica de que os egípcios viam um mundo sem profundidade, com as pessoas sempre de perfil, como o posicionamento da modelo da classe de Alain (Figura 4). Mas, Gombrich não sugere que este era o modo como os egípcios viam o mundo. Segundo este historiador da arte, os antigos egípcios não procuravam reproduzir o mundo do modo que viam, mas do modo que, para eles, suas idéias ficassem mais claras ou, ainda, do modo em que melhor conheciam o que queriam representar. Desenhavam de memória, de acordo regras estabelecidas
25 26
ELIAS, N. O processo civilizador. Vol. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. p. 84 GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p.3-4.
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e utilizando o ângulo de observação mais característico do objeto representado.27 Assim, no desenho egípcio de um jardim com árvores e um tanque com peixes e aves, vemos as árvores vistas de lado e o tanque visto de cima, embora peixes e aves estejam representados de lado (Figura 5).
W. J. T. Mitchell considera
problemática a leitura que Gombrich faz do cartum e afirma que nela se encontra implícita a sugestão de que os egípcios percebiam o mundo de um modo diferente.28 Este último autor observa, ainda, que, no cartum, os antigos egípcios são apresentados como iguais a nós: desenham do mesmo modo que em qualquer aula de modelo vivo da nossa época. Em outras palavras, os alunos egípcios do cartum de Alain fazem uso das mesmas convenções de desenho do nosso tempo, embora obtendo um resultado diferente. Apesar da discordância sugerida, Mitchell não pretende estabelecer uma oposição entre duas interpretações, uma verdadeira e outra falsa. Mas, entre duas interpretações que, embora opostas e contraditórias, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
constituem um diálogo. Não nos parece improvável que os egípcios vissem o mundo de uma forma diferente da nossa, mas isso não nos parece configurar uma explicação exclusiva para o fato de eles representarem o mundo que viam de forma própria. Rudolf Arnheim observa que a “inaturalidade” das figuras egípcias para um observador moderno ocorre porque este julga as obras egípcias por padrões diferentes dos que foram utilizados na sua realização29. Esse argumento encontra eco em Mitchell: “o estereótipo do ‘mesmo’ que projetamos nos egípcios é na verdade o reflexo de nossas convenções”.30 Deste modo, se nos parece fato que os egípcios possuíam um modo próprio de ver o mundo, isso não se ava a partir dos mecanismos sugeridos comicamente pelo cartum de Alain. As características de observação e as convenções utilizadas para a reprodução da natureza observada por uma determinada cultura e época se encontram intimamente relacionadas ao modo como esta cultura representa a sua visão de mundo. A idéia de representação está diretamente ligada a uma forma de olhar – embora o modo como esta relação se estabeleça apresente variações, principalmente a partir da segunda metade do
27
Ibid., p.60-61. MITCHELL, W. J. T. Picture Theory: Essays on Verbal and Visual Representation. Chicago: The University of Chicago Press, 1995. p.44. 29 ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1986. p.105. 30 MITCHELL, T. op. cit., p.45. 28
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século XIX. Mas, em que medida a imagem pode ser compreendida como “representação”? Nosso ponto de partida se encontra na compreensão da imagem como algo além da representação. A imagem pode não vir a ser uma representação, mas será sempre apresentação. Representações são artefatos e podem ser parcialmente definidos a partir do propósito de seus produtores, principalmente em relação ao funcionamento específico do artefato. A representação nos fala de uma identidade e seus signos, mas a vinculação direta com o olhar de sua própria época deve ser cuidadosa na medida em que sua construção material e simbólica pode estar mais relacionada ao ado do que ao contemporâneo. Indique-se a propósito, a afirmação de Crary em relação à pintura modernista dos anos 1870 e 1880 ser vista, em seu trabalho, como sintoma tardio ou conseqüência de um processo iniciado por volta de 182031. De outra maneira, a apresentação relaciona-se com PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
presença e, portanto, com o self e o tempo presente. Neste sentido, a idéia de imagem enquanto apresentação aproxima-se do olhar de um observador corporificado, sujeito e produtor de práticas e artefatos que o fazem ator.32 Outra abordagem da questão da “representação” 33 pode ser encontrada na Teoria dos Símbolos de Nelson Goodman. Para este autor, uma imagem representa alguma coisa na medida em que descreve esta coisa, como um predicado que lhe pode ser aplicado34. Segundo Goodman, a forma mais simplista de se compreender a representação é através da semelhança: algo como “A representa B na medida em que A é semelhante a B”.35 Mas, essa abordagem traduz um equívoco que pode ser exposto a partir da simples premissa de que um objeto é semelhante a si mesmo em grau máximo, mas raramente se representa. Deste modo, como observa Goodman, semelhança não é condição necessária nem suficiente para a representação. A semelhança, ao contrário da representação, é
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CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth century. Massachusetts: The MIT Press, 1992. 32 Veja a idéia de “fabricação”, a partir do conceito de tática desenvolvido por de Certeau. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. 33 A língua portuguesa coloca uma grande dificuldade na substituição do termo representação. O idioma inglês conta com a palavra representing para simbolizar, descrever, e, claro, representar. O termo picturing se coloca para descrever, mas também para sentidos mais literais como pintar, desenhar e, possivelmente, visualizar. Não encontrei nenhuma equivalência no português. Acredito que o termo “desenhar” seja bastante restritivo, não correspondendo ao “descrever” do picturing. Por este motivo, encontrei dificuldades em evitar a utilização do termo “representar” em um modo que a Teoria de Goodman repele, ou seja, a partir da semelhança. 34 GOODMAN, N. Languages of Art. Indianapolis: Hackett Publishing Co, 1976. p. 30. 35 Ibid., p.3 et seq.
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reflexiva e simétrica. B é como A, na medida em que A é como B, mas uma pintura pode representar o Duque de Wellington, enquanto o Duque não representa a pintura. Um par de sapatos apresenta semelhanças, mas um dos elementos do par não representa o outro. Embora a noção de representação figurativa tenha sido pensada a partir do conceito de semelhança desde Platão, Goodman considera que uma imagem representa um objeto na medida em que funciona como um símbolo para este objeto, está para (stand for), se refere a ele.36 A semelhança é descartada como noção de referência na medida em que quase tudo pode se assemelhar a tudo. Um quadro de um castelo será sempre mais parecido com outro quadro do que com o castelo, apesar de representar o castelo e não o outro quadro37. De que modo, então, a noção de semelhança pode ser aplicada a uma imagem que representa algo, sendo semelhante a este algo sobre certos aspectos? Neste caso, o problema apenas se desloca para a determinação de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
quais propriedades pictóricas podem ser utilizadas para a comparação através da semelhança. Diversas características pictóricas podem ser empregadas para este fim como, por exemplo, a forma, o tamanho, a cor, as texturas etc.38 Goodman considera que não existe uma fórmula que possa ser aplicada de modo universal e que cada situação deve ser estudada individualmente de acordo com os contextos específicos de criação da obra e de interpretação. Por outro lado, a questão da semelhança é, de fato, inseparável, da idéia de um ponto de vista em determinado tempo e espaço. A percepção de uma semelhança visual entre dois objetos será sempre relativa a um ponto de vista: “este objeto, visto deste ponto de vista, parece-se com aquele objeto, visto daquele ponto de vista”.39 Como devemos compreender o conceito de que uma imagem se propõe a atender a expectativa de reprodução da realidade? A partir da formulação desconcertante de que para se obter uma imagem fiel deve-se copiar o objeto “tal qual ele é”, Nelson Goodman indaga-se sobre o que constitui um objeto tal qual ele é, “porque o objeto que está diante de mim é um homem, um enxame de
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Goodman utiliza o termo “objeto” de forma indiferente para qualquer coisa que a imagem possa representar, “seja uma maçã ou uma batalha”. Do mesmo modo, o termo “símbolo” é usado em um sentido geral, incorporando letras, palavras, textos, imagens, diagramas, mapas, modelos etc., sem carregar implicações de sentidos oblíquos ou ocultos. 37 Ibid., p. 5. 38 RAMME, Noeli. Arte e construção de mundos. Rio de Janeiro, 2004. Tese (Doutorado em Filosofia) PUC-Rio. p. 32. 39 SEARLE, Joh R. Las Meninas and the paradoxes of pictorial representation. In: MITCHELL, W. J. Thomas (ed.). The Language of images. Chicago: The University of Chicago Press, c1980. p. 251.
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átomos, um complexo de células, um violonista, um amigo, um louco, e muitas outras coisas mais” 40. Se nenhum desses modos constitui o objeto, então o que o constitui? E, ao contrário, se todos eles são modos de ser do objeto, então nenhum deles será o modo de ser do objeto. Todos estes modos não podem ser copiados ao mesmo tempo e, nesta tentativa, mais nos distanciamos de uma imagem realista. A cópia, então, é feita sobre um determinado aspecto, sobre um dos modos do objeto que nos parece mais significativo ou mais neutro. De certa forma, a compreensão dos aspectos significativos e seu contexto, pode nos levar a uma maior compreensão do modo como os homens de outras épocas viam o seu mundo e esta compreensão talvez possa nos apontar a possibilidade de um olhar autônomo. Deste modo, podemos compreender como a busca de significação levava os egípcios a representarem os olhos de frente mesmo quando os personagens se encontravam de perfil. Mas, qual seria o modo de representação mais neutro à luz PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
do olhar contemporâneo? Por exemplo, como o objeto pode ser visto por um olho normal, a partir de um ângulo favorável e com uma boa iluminação, sem a interferência de afeições, animosidades, interesses ou preconceitos, e despojado de interpretações? Goodman pergunta-se, apenas para apontar a impossibilidade da resposta mais simples: o objeto deve ser copiado do modo como é visto em condições assépticas por um olho livre e neutro. Mas, não existe um grau zero do olhar. A procura de uma opticidade primária é freqüentemente citada na obra de John Ruskin como uma solução técnica para o problema da pintura no século XIX – a transposição do mundo tridimensional para uma tela plana. Na obra The Elements of Drawing, Ruskin se propõe não apenas a ensinar a desenhar, mas também a capacidade de julgar trabalhos de outras pessoas. Em uma grande ressalva, contida em uma nota de rodapé dirigida para leitores mais “incrédulos e curiosos”41, o autor coloca que uma vez que a nossa percepção de formas é relacionada à experiência, o poder da pintura depende da recuperação do “olhar inocente” (innocence of the eye)42, que significa uma percepção infantil, sem consciência prévia dos significados das formas. Uma visão imaginável apenas em uma pessoa cega que repentinamente pudesse enxergar. Mas, como afirma
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GOODMAN, N. op. cit. p.6. RUSKIN, John. The elements of drawing. London: The Waverley Book Co., [1920?]. p. 4. 42 Ibid. p. 4. 41
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Gombrich, “nunca podemos ver nossa própria retina”.43 A impossibilidade do olhar inocente é uma unanimidade entre diversos autores, como Gombrich, Mitchell e Goodman. Segundo este último: O olho se antecipa ao seu trabalho de olhar, obcecado pelo seu próprio ado, atento às insinuações do ouvido, do nariz, da língua, dos dedos, do coração e do cérebro. O olho não é instrumento que funciona sozinho, mas é membro obediente de um organismo complexo e imprevisível. Não somente o como, mas também o que ele vê é regulado pela necessidade e pelo preconceito. O olho seleciona, rejeita, organiza, discrimina, associa, classifica, analisa, constrói. O olho não atua como um espelho que capta e reflete itens sem atributo, mas registra coisas, comida, pessoas, inimigos, estrelas e armas. Nada é visto desnudado.44
Com colocações semelhantes, Arnheim antes de Goodman: “Toda experiência visual é inserida num contexto de espaço e tempo. Da mesma maneira que a aparência dos objetos sofre influência dos objetos vizinhos no espaço, assim também recebe influência do que viu antes”.45 Arnheim é cauteloso em relação às PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
influências do ado do observador e adverte que a interação entre a configuração do objeto presente e as coisas vistas no ado não é automática e ubíqua. Para Goodman o mito do olhar inocente é cúmplice do “absolutamente dado”. Ambos derivam e encorajam a idéia de que o conhecimento é um processamento do material bruto recebido pelos sentidos. Acontece que a recepção é sempre inseparável da interpretação. Não é possível distinguir entre o que foi recebido e o que foi feito com isso. Por outro lado, Goodman reconhece que a busca pelo olhar inocente pode produzir resultados positivos para os artistas, na medida em que os pode conduzir ao rompimento de padrões e, conseqüentemente, a novos encontros expressivos. Neste sentido, a idéia do olhar inocente segue sendo empregada como uma orientação para o desenho artístico, a partir da cópia.46 A questão que permanece problemática é a possibilidade contida no conceito do olhar inocente da existência de uma verdade neutra e comum a todos os seres humanos: uma consciência visual plausível de ser expressa de forma 43
Ibid. p. 272. GOODMAN, N. Languages… p.8-9. Destaque nosso. 45 ARNHEIM, R. op. cit. p. 41. 44
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unificada. O conceito do “olhar inocente” manteve-se de forma discreta sob as pesquisas que visavam a determinação de causas e efeitos, na medida em que consideram que determinada imagem ou meio é capaz de produzir determinados resultados. Os primeiros estudos de “análise de efeitos” na área de comunicação datam da Primeira Guerra e foram voltados para o impacto da propaganda. Segundo o modelo da “agulha-hipodérmica” de Harold Lasswell, a audiência é como uma massa amorfa que obedece cegamente ao esquema estímulo-resposta. Nesta hipótese, a propaganda é um mero instrumento, nem mais moral nem mais imoral que “a manivela da bomba d’água”, podendo ser utilizada tanto para bons como para maus fins.47 A idéia de um receptor “esvaziado” e que recebe influências diretas da mídia é um pensamento que encontra coerência em teorias da psicologia em voga na época.48 Neste contexto, torna-se importante a compreensão da técnica da perspectiva, que analisaremos em seguida, como um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
fator determinante de uma visualidade “universalizante”, fundamental para o desenvolvimento do habitus.
2.2. A visão monocular Se nos fosse dado um número limitado de palavras – ou imagens - para descrever o olhar do início da Idade Moderna, este olhar seria representado por um olho – um único olho - imóvel, em posição fixa em relação ao seu ângulo de observação, ao seu posicionamento espacial e à sua distância em relação ao objeto observado. “O olho da Renascença chama-se perspectiva”.49 Perspectiva: uma concepção de espaço que compreende a captação de um material bruto, existente na realidade física, pelo sentido do olhar e sua modificação a partir de uma organização sistemática, com a finalidade de reconstituir este material sobre uma 46
Veja por exemplo NICOLAÏDES, Kimon. The natural way to draw. London: André Deutsch Limited, 1979., publicado originalmente em 1941 e, mais recentemente, EDWARDS, Betty. Drawing on the right side of the brain. Los Angeles: J. P. Tarcher, Inc., 1979. Neste último, a autora sugere exercícios como, por exemplo, virar a imagem a ser copiada de ponta cabeça para “enganar” o lado esquerdo do cérebro, responsável pela “tradução” das formas observadas em signos verbais. 47 MATTELART, Armand e Michéle. História das teorias da comunicação. São Paulo: Edições Loylola, 2001. p. 37. 48 Considere-se, por exemplo, a psicologia das massas de Le Bon, o behaviorismo surgido por volta de 1914, as teorias do russo Pavlov sobre o condicionamento e ainda os primeiros estudos da psicologia social, que sustentavam que somente certos impulsos primitivos, ou instintos, poderiam explicar os atos dos homens e dos animais, vinculando o comportamento às forças biológicas.
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superfície bidimensional. O olhar da perspectiva é instituído como um ponto único e fixo. No conceito de aplicação da técnica da perspectiva há a implicação de que o mundo exterior aos sentidos pode ser captado tal como é ou, em outras palavras, que é possível construir uma exata simulação do que o olho físico vê. Na medida em que o olho físico é valorizado, também o corpo humano seria valorizado. No entanto, esta questão coloca-se de forma ambígua, uma vez que o “olho que vê” pode ser separado do corpo ao assumir pontos de vista que o distinguem do olho físico. De qualquer forma, essa alusão encontra e no
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humanismo atribuído à Renascença.
Figura 6. Xilogravura de Albert Dürer. De Underweysung der Messung, 1525. Disponível em:
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Figura 7. Croqui da janela de Dürer. Livro de Croquis, 1514. Bibliothèque de Dresde. Retirado de BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magie artificielle des effets merveilleux. : Olivier Perrin, 1969. p. 80
A palavra perspectiva tem sua origem etimológica no latim, perspicere, significando ver de forma clara, encontrando semelhança no termo grego optiké50. A língua portuguesa sugere afinidade a esta tradução na palavra perspicaz, do latim perspicace, que vê bem, que observa, penetrante. No entanto, a origem mais adotada é a que se encontra descrita em Albrecht Dürer “Perspectiva é uma palavra latina que significa ver através de”.51 A idéia do ver através tem origem provável no texto de 1435 de Leon Batista Alberti. Em De Pictura, primeiro
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BOSI, Alfredo. Fenomenologia do Olhar. In: NOVAES, Adauto et al. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 74. 50 PANOFSKY, Erwin. Perspective as Symbolic Form. New York: Zone Books, 1997. nota na p. 75. 51 Ibid., p. 27.
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tratado sobre pintura que sobreviveu e que parece ter circulado amplamente entre os humanistas52, Alberti escreve: “desenho um retângulo que para mim é uma janela aberta, através da qual vejo o que será pintado” 53. O conceito da janela de Alberti pode ser observado em gravuras da época – ou posteriores – sendo as mais conhecidas as de Albrecht Dürer. (Figura 6 e Figura 7), onde o que “será pintado” é observado através da moldura. As gravuras de Dürer (Figura 6 e Figura 12) e de Vignola (Figura 14) apresentam aparatos que demarcam a posição exata do olho do pintor. O conceito de pirâmide visual pode ser observado na Figura 8, onde vemos uma linha reta, que atravessa a janela em direção ao objeto, estabelecendo uma ligação entre o olho e um ponto específico no objeto. Uma corda é esticada entre o alaúde e a parede. Este último ponto marca o ponto de vista do pintor. O cruzamento de outras duas cordas, presas à moldura, registra PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
o ponto do alaúde que será transferido para a tela. A operação é repetida ponto a ponto até que as formas sejam definidas em um processo trabalhoso que requer a participação de duas pessoas. Estas gravuras apontam tentativas de mecanização no processo de construção de imagens. No entanto, não é possível estabelecer, de forma absoluta, se essa tecnologia visual era de fato empregada ou se a gravura apenas ilustra uma metáfora do conceito descrito por Alberti. Os noventa anos entre as publicações de Alberti e Dürer parecem ampliar esta dúvida e existem questionamentos em relação aos conhecimentos teóricos de Dürer em relação à perspectiva. Kemp aponta que uma análise mais detalhada é capaz de mostrar algumas limitações no controle da perspectiva54. William Ivins considera que Dürer, apesar de possuir conhecimento do método, não tinha domínio total de sua compreensão55. Para Ivins, foi apenas em 1630, quando o matemático Girard Desargues desenvolveu a geometria descritiva a partir da perspectiva, é que esta última, de fato, desenvolveu-se. De qualquer forma, não deixa de ser uma notável demonstração de uma tentativa - ou aspiração - de produção de artefatos visando a mecanização de um processo. Esse conceito reforça a aproximação entre arte e “cientificidade”, a partir da sugestão de uma doutrina de conhecimento do mundo 52
BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 191-192. 53 IVINS, William M. On the rationalization of sight. New York: Da Capo Press, 1975. p.22. 54 KEMP, Martin. The science of art. Optical themes in westerna art from Brunelleschi to Seurat. New Haven: Yale, 1990. p.54
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relacionada à automação, inseparável da perspectiva. A propósito, talvez não seja demais ter em mente a imbricação entre arte e ciência na atividade dos próprios “artistas-cientistas”. Quem não reconhece isso em Leonardo da Vinci? Alberti, por exemplo, era considerado um grande cientista à sua época. E como um cientista renascentista era, ao mesmo tempo, um profundo conhecedor das matemáticas, médico, especialista em perspectiva, pintura e arquitetura e também
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um prático destas disciplinas.56
Figura 8. Dürer: De Unterweisung der Messung, 1525.
Figura 9. Giulio Parigi. A portinhola de Dürer. Afresco. Florença: Galleria degli Uffizi, Stanzino delle matematiche. Retirado de Instituto e Museo di Storia della Scienza,
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O termo perspectiva é também empregado como sinônimo de óptica57 e de ponto de vista, em um sentido que cria uma espécie de metáfora a partir do ponto de observação escolhido para a construção da imagem bidimensional. Panofsky sugere dois significados para a palavra. Na primeira definição, mais ampla, perspectiva seria a “ciência da representação de objetos em uma superfície do modo como eles aparecem ao nosso olho a uma certa distância”.58 Por esta acepção, a perspectiva teria sido utilizada antes do século XV. No significado mais , ela é considerada uma técnica de representação de objetos tridimensionais sobre um plano bidimensional, a partir de algumas regras. De acordo com o esquema descrito por Alberti, na construzione legittima, termo 55
IVINS, W. op. cit.,. p.10. Texto de Cristofaro Landino, citado por BAXANDALL, M. op. cit.. p. 191. 57 JAY, Martin. Downcast Eyes. The denigration of vision in twentieth-century french thought. Berkeley: University of California Press, 1994. p. 53. 56
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utilizado pelos artistas do Renascimento, a imagem observada é uma seção planar de uma pirâmide visual imaginária cujo vértice é o olho do observador (Figura 10 e Figura 11). Os raios visuais partem deste ponto e se conectam a outros pontos dentro do espaço que será representado. O que é visto através deste traçado é reinterpretado sobre uma superfície plana. Isso, em poucas palavras, descreve a “perspectiva central” ou perspectiva artificialis.59 Deste modo, segundo Panofsky, não nos cabe falar de uma visão perspectiva do espaço se apenas considerarmos objetos isolados, como casas ou móveis, e sua representação obedecendo à redução de dimensões, mas quando toda a figura é transformada em uma “janela”
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e quando acreditamos olhar para o espaço através desta janela.60
Figura 10. Abraham Bosse, Les Perspecteurs. Gravura da Manière universelle de M. Desargues pour traiter la perspective, 1648. Retirada de DAMISCH, H. The origin of perspective. p. 37.
Figura 11. Retirado de A treatise of perspective...
Ainda em relação à origem da perspectiva, como observa Panofsky não basta perguntarmos se a arte de um determinado período ou região fazia uso dessa técnica, mas qual tipo de perspectiva era utilizada. Não há sentido em questionar se os antigos tinham conhecimento da nossa perspectiva, na medida em que eles utilizavam diferentes concepções de espaço61. Do mesmo modo Rudolf Arnheim, ao diferenciar a perspectiva isométrica da central, considera que esta última foi 58
PANOFSKY, E. op. cit., nota da p. 76. De artificiali perspectiva, livro de Viator, publicado em 1505. cf. IVINS, W. op. cit., p.14. 60 PANOFSKY, E. op. cit., p.27. 59
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descoberta em uma época e lugar específico62: no sul da Europa, mais precisamente na Itália63, no século XV. Arnheim ira a perspectiva isométrica que não trabalha sobre uma fiel imitação da natureza: “os objetos do mundo físico não são esmagados no quadro como uma abelha no pára-brisa”
64
O psicólogo
repele a distorção de tamanhos, configurações, distâncias e ângulos, que caracteriza como manipulação de objetos realizada para criar a ilusão de profundidade na obtenção de uma figura mais realista. Deste modo, afirma compreender a crítico de André Bazin que chamou a perspectiva de “o pecado
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original da pintura ocidental”.65
Figura 12. Dürer, Il velo, rete o graticola. Homem desenhando uma mulher reclinada. De Unterweysung der Messung, Nuremberg, 1538.
Como forma de garantir a racionalização de um espaço infinito, imutável e homogêneo, a “perspectiva central” adota duas premissas: a instituição da visão a partir de um olho único e imóvel e o reconhecimento da seção planar da pirâmide visual como capaz de funcionar como uma reprodução de nossa imagem óptica66. Goodman considera ainda outras condições indispensáveis à obtenção da fidelidade das imagens no uso da perspectiva: as limitações de ângulo e distância na observação através de um orifício67. Em sua opinião estas condições estranhas e anormais são uma prova de que o que é reproduzido deste modo não pode ser considerado como “realidade”.68 Em relação, por exemplo, ao olho único e
61
Ibid., p. 41-43. ARNHEIM, R. op. cit., p.271. 63 Alpers observa que a arte italiana determinou, em grande parte, o estudo da arte e de sua história e estabelece como um contraponto para a “arte do norte”, a “arte do sul”, ou seja a arte holandesa. Ela utiliza o termo albertiano para designar um modelo que criou uma tradição. Ver ALPERS, Svetlana. A arte de descrever. A arte holandesa no século XVII. São Paulo: Edusp, 1999. 64 ARNHEIM, R. op. cit., p. 252. 65 Ibid., p.247. 66 PANOFSKY, E. op. cit., nota na p. 29. 67 GOODMAN, N. Languages… p.13. 68 Id., p.19. 62
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imóvel, Goodman afirma que o olho fixo é quase tão cego quanto o olho inocente e menciona a realização de experimentos que demonstram o movimento dos olhos na observação do que é visto69. Deste modo, a varredura do olhar seria um movimento inerente ao olho, necessária à visão normal. Estes movimentos mínimos dos olhos são conhecidos como sacádicos (microsaccades). Pesquisas recentes indicam que eles constituem a base de nossa capacidade de visão e
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podem até revelar atrações e interesses inconscientes.70
Figura 13. Prospettografo. Ludovico Cardi, conhecido como Cigoli. Prospettiva pratica…, ms., ca. 1613, Firenze, Gabinetto dei Disegni e delle Stampe degli Uffizi, 1660. Retirado de Instituto e Museo di Storia della Scienza
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Figura 15. Pespectográfo. Cigoli, Prospettiva pratica, ms., ca. 1613. Gabinetto dei Disegni e delle Stampe degli Uffizi, Florence. Retirado de CAMEROTA,
Figura 14. Instrumento prospético de Jacopo Barozzi da Vignola. Le due regole della prospettiua prattica / di m. Iacomo Barozzi da Vignola ; con i commentari del ... maestro Egnatio Danti .., In Bologna : per Gioseffo Longhi, 1682. Retirado de Instituto e Museo di Storia della Scienza,
(29/08/06).
Filippo. Looking for an artificial eye: on the borderline between painting and topography. Early Science and Medicine 10 (2).
Apesar das questões levantadas em relação à compreensão das idéias de Alberti pelos artistas da época, há evidências de que elas não eram totalmente desconhecidas. O conceito dos raios que partem do olho do observador na formação da pirâmide da visão, por exemplo, pode encontrar afinidade com a
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Id., p.12. MARTINEZ-CONDE, Susana. MACKNIK, Stephen L. Windows on the mind. Scientific American. Vol. 297, Issue 2, p56-63, Aug. 2007. 70
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representação de fachos, flechas ou “raios projetantes”. Em relação a esse tema, Michael Kubovy apresenta uma imagem no mínimo desconcertante: o afresco de Andrea Mantega que mostra um homem atingido no olho por uma flecha (Figura 16). A primeira fotografia colorida deste afresco da igreja Eremitani de Pádua foi feita durante a Segunda Guerra, quando partes do desenho já se encontravam em péssimo estado. Ainda durante a guerra, a capela onde o afresco se encontrava, foi completamente destruída por um bombardeio. Para Kubovy, apesar da existência de relatos que contam o martírio de São Cristóvão atingido no olho por uma flecha, nesta obra a flecha funciona como uma metáfora da arte da perspectiva71. Em sua hipótese, o psicólogo da percepção se apóia na idéia de que durante a Renascença, a perspectiva era um conceito fundamental para os artistas e intelectuais e, também, no fato de que a maior parte das imagens de São Cristóvão feitas no período não reproduz a cena da flechada, inclusive outros afrescos do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
próprio Mantegna. Kubovy igualmente se apóia em textos contemporâneos – inclusive de Leonardo da Vinci - que utilizam a metáfora da flecha para descrever o caminho da imagem captada na direção do olho e na suposição de que esta parte do afresco seria uma homenagem a Alberti e sua janela. Mas, acima de tudo, o autor enfatiza a idéia da perspectiva como portadora de uma sugestão espiritual capaz de, à época, permitir uma experiência próxima à transcendência. Embora a idéia de transcendência nos pareça excessiva é possível imaginar que, para o olhar de um irador contemporâneo das pinturas do inicio da Renascença, a visão das imagens construídas com a utilização da perspectiva devia parecer extraordinária, algo “equivalente à visão da alma”
72
, mais do que podemos hoje
conceber como uma “reprodução do mundo visível”. O homem deste período ainda estava muito carregado do misticismo da Idade Média e não é de estranhar que esse misticismo produzisse influências sobre a sua forma de olhar.
71
KUBOVY, Michael. The Psychology of Perspective and Renaissance Art. Cambridge University Press, 1986. p. 1-14. 72 SNYDER, Joel. Picturing Vision. In: MITCHELL, W. J. Thomas (ed.). The Language of images. Chicago: The University of Chicago Press, 1980. p. 246.
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Figura 16. Andrea Mantegna. Archers Shooting at Saint Christopher (1451-5). Fresco, Ovetari Chapel, Eremitani Church, Padua. Detalhe da flecha. Retirado de KUBOVY, M. The Psychology of Perspective and Renaissance Art. p. 2 e 3.
Mas, quem era este homem renascentista irador de pinturas realizadas a
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partir de uma técnica tão recentemente implementada? Em primeiro lugar devemos excluir dos apreciadores das obras de arte do século XV uma grande parcela da população, como os camponeses e os cidadãos pobres, para nos concentrar nas pessoas cuja reação às pinturas era de importância para o artista, ou seja, a classe dos comitentes. Dentre estes encontramos “os comerciantes e os profissionais que operavam na qualidade de membros de confrarias ou individualmente, os príncipes e seus cortesãos, os membros superiores de ordens religiosas”.73 No entanto, mesmo na classe dos comitentes encontram-se variações que suplantam a individualidade, mas variações relativas a grupos ou profissões, cujo pertencimento torna-se fator influente na formulação de um determinado olhar. Um médico, por exemplo, poderia dispensar uma atenção particular às relações existentes entre os membros do corpo humano, na medida em que este tipo de observação fazia parte de suas ações de diagnóstico.74 De forma menos específica, todas as atividades desempenhadas pelo homem do século XV, o capacitavam à observação de uma pintura. Este homem tratava de negócios, freqüentava a igreja e tinha uma vida social, onde respeitava uma hierarquia e, embora pudesse ser mais ou menos brilhante nos negócios ou mais ou menos ligado à religião, todas essas atividades lhe eram influentes no sentido em que constituíam a base da cultura da época.
73 74
BAXANDALL, M. op.cit., p. 47. Id.
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Por outro lado, dentre essas pessoas havia poucas que, sendo ou não pintores tinham a capacidade de desenvolver o que hoje poderíamos chamar de observação crítica. Provavelmente devido ao raro o à pouca literatura disponível sobre arte à época, a maior parte das pessoas para quem o pintor trabalhava possuía algumas poucas categorias para qualificar os quadros: “escorço”, ultramarino a dois florins a onça, a “roupagem”75 e, talvez, uma ou outra expressão sobre as figuras religiosas representadas. Lembrando ainda que a maior parte desses termos freqüentava a “literatura” dos contratos que precediam a execução da obras. Um outro fator importante da construção da cultura renascentista era a educação comercial que constituía a base da formação escolar laica do século XV. A formação educacional secundária da época era voltada para práticas úteis no comércio, valorizando técnicas matemáticas, como métodos de medição e a regra PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
de três.76 Até o século XIX, as mercadorias não eram transportadas nem comercializadas em recipientes padronizados. Deste modo, um barril, saco ou fardo era único e seu volume deveria poder ser calculado com relativa rapidez. Aparentemente, cada região tinha os seus próprios métodos para lidar com esta questão. De qualquer forma, esta prática aponta para um tipo determinado de capacidades e para a existência de hábitos analíticos77 que, de certa forma, deve ter exercido algum tipo de influência na forma como as pessoas avaliavam a proporcionalidade pictórica de uma obra. Parece lógico que isso tenha sido compreendido – e utilizado - pelos realizadores de imagens. De fato, em uma época onde não existiam considerações sobre “criatividade” ou “novidade”, a exibição de habilidades e o emprego de técnicas eram extremamente valorizados. No entanto, todas essas evidencias de valoração “tecnicista” não podem nos ofuscar a força da cultura religiosa sobre a visualidade do período. Apesar da permanência da ligação do homem renascentista aos dogmas da Igreja e da Idade Média, a invenção da perspectiva se insere de forma complementar à estrutura de mundo do início da Idade Moderna. O universo era concebido de acordo com os mesmos padrões hierárquicos de sociedade feudal. A pirâmide feudal se encontrava centrada no imperador. O universo se situava sobre
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Ibid., p.45. Ibid., p.177. 77 Ibid., p.168. 76
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o trono de Deus. Este padrão repetia-se em todas as esferas: humana, divina e natural78. Do mesmo modo, a perspectiva também estabelecia um ponto focal único: “a perspectiva torna o olho como sendo ele o ponto de fuga do infinito. O mundo visível é organizado para o espectador assim como o Universo já foi antes organizado para Deus”.79 Por outro lado, a perspectiva também pode sugerir um deslocamento do olhar divino, ou pelo menos, algo próximo de um compartilhamento. Se antes era Deus quem tudo via, agora ao homem é dada a possibilidade de estabelecer o ponto de vista da realidade e assumir para si próprio essa construção. Deste modo, a perspectiva é a técnica que estabelece a sistematização do espaço, criando um mundo mensurável. Não obstante, a idéia de extensão do espaço “interminável” (interminatum)80 parece encaminhar para o rompimento, de um lado, com o espaço Aristotélico, onde não havia lugar para o infinito e, de outro, com a atribuição escolástica do conceito de infinito como algo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
da ordem do divino. Assim, a perspectiva parece fazer a translação do espaço psicológico para o espaço matemático, constituído por três dimensões físicas 81. Hanna Arendt traduz muito bem este contexto ao afirmar que “nada que possa ser medido pode permanecer imenso”.82 A perspectiva se estabelece, então, como prática reguladora desta visão que começa a se apartar da teologia. A existência de uma série de procedimentos capazes de reproduzir a realidade “tal como ela é” implica na experiência de “um modo correto de ver” e na existência – ou na crença de existência – de uma realidade que pode ser reproduzida. Neste sentido, a capacidade dos órgãos do sentido e, principalmente do olhar, de captar o mundo “real” irá se apoiar em um sistema de “procedimentos científicos”. A perspectiva garante a adequação da capacidade de observação, ou seja, a possibilidade de estabelecer uma relação com a verdade do que é observado - desde que certos princípios sejam adotados. Através da implementação de regras de controle, a técnica da perspectiva estabeleceu um elo entre arte e ciência – que, na entrada da era Moderna, começam a se constituir como tais. Ao pintor-cientista cabe o aprimoramento do
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HA, Arnold. Maneirismo. São Paulo: Ed. Perspectiva / Ed. Universidade de São Paulo, 1976. p. 43 BERGER, John. Modos de Ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.18. 80 Como forma de evitar o confronto com a Igreja, os filósofos,que já supunham o mundo infinito, evitavam usar este termo. KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2006. 81 PANOFSKY, E., op. cit., p.66. 82 ARENDT, H., op. cit., p.262. 79
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ato de olhar, das técnicas de representação e a compreensão das possibilidades de utilização do seu ponto de vista. A livre escolha de ponto de vista aponta para uma liberdade de ação, sugerindo também uma subjetivação, a possibilidade de um individualismo e, conseqüentemente, de uma decisão autônoma. Em relação a esta possibilidade, cabem duas colocações. Em primeiro lugar, há que se compreender a idéia de ascensão do sujeito. É claro que, como afirma Ha, sempre houve indivíduos que se distinguiam uns dos outros, mas foi a partir da Renascença que começaram a existir indivíduos cônscios do valor de sua individualidade83. Em segundo lugar, é importante aprofundar a própria questão do ponto de vista, no sentido que este compreende uma visão corporificada sob um determinado tempo e espaço e em relação ao objeto percebido. O aspecto do objeto sofre alterações de acordo com o ponto de vista. Deste modo, é certo que a escolha do ponto de vista aparece como fundamental para a construção da imagem. Como compreender, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
então, uma obra que cria um jogo pleno de paradoxos como é o caso de Las Meninas?84
Figura 17. Las Meninas de Velazquez. Disponível em:
(29/08/06)
83
HA, A. op. cit., p.36 cf. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 19-. p. 17-33, SEARLE, J. op. cit., p. 247-258 e DAMISCH, Hubert. The origin of perspective. Cambridge, London: The MIT Press, 1995. p. 425-432. 84
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Las Meninas (Figura 17) utiliza rigorosamente a perspectiva, mas a aparente precisão da sua construção esconde uma armadilha que viola as próprias convenções da perspectiva. A utilização da perspectiva implica na identidade entre o ponto de vista do pintor e do observador da obra. Em Las Meninas esta regra é demolida para dar lugar a um jogo de apostas pela descoberta do “verdadeiro” ponto de vista do pintor. Ou seria o ponto de vista da obra? O pintor é representado no próprio quadro e olha para fora dele, na direção do observador, “nosso lugar” em relação à obra. Por outro lado, o ponto de vista do observador mostra-se ocupado: no reflexo do espelho, ao fundo da sala, vemos as duas figuras reais que parecem ser o alvo do estudo do pintor. Ao observador, seria dado o ponto de vista do casal real? Mas, se é de fato o pintor quem produziu a obra, não se encontraria ele neste ponto de vista? Além disso, em que medida a liberdade de escolha de um ponto de vista PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
pode ser mais significativa do que as regras que formalizam a atitude do olhar? A perspectiva pode ser uma faca de dois gumes85, porque impõe ao fenômeno artístico as regras estáveis da matemática, ao mesmo tempo em que torna este fenômeno contingente ao indivíduo. Assim, se por um lado, as regras referem-se às condições psicológicas e físicas da impressão visual, de outro lado, a utilização dessas regras se submete à livre escolha de posicionamento do “ponto de vista” do sujeito, assinalando uma subjetivação e um jogo de paradoxos.
85
cf. PANOFSKY, E. op. cit., p. 67.
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2.2.1. O jogo do real e do ilusório ou uma filosofia da falsa realidade
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Figura 18. J-F. Niceron: anamorfose de uma cabeça, 1638. Retirado de BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magie artificielle des effets merveilleux. : Olivier Perrin, 1969. p. 45.
Os paradoxos da perspectiva tornam-se evidentes, com a utilização de seus próprios preceitos, na anamorfose (do grego: ana, de novo e morphe, forma, transformação). Nova transformação? A mesma fórmula, a partir da qual a perspectiva se esforça por normatizar e racionalizar o visível, é utilizada pela anamorfose para sistematizar sua distorção. Os mesmos pontos que garantem a “cópia perfeita”, a partir da consideração de semelhança, permitem a ilusão. A anamorfose estabeleceu- se como uma curiosidade técnica, um jogo ótico, e fez-se inseparável de uma poética da abstração, constituindo-se em um mecanismo efetivo de produção de ilusões ópticas e uma filosofia da falsa realidade.86 No auge de sua popularidade, a “parte bela e secreta da perspectiva”87 era, geralmente, empregada como forma de sugerir o valor simbólico a uma obra.
86
BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magie artificielle des effets merveilleux. : Olivier Perrin, 1969. p. 5. 87 Citado por Daniel Barbaro, em sua Pratica della Perspettiva, 1559 apud BALTRUSAITIS, J.op. cit., p.34.
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Figura 19 - Os Embaixadores (Hans Holbein - 1533)
Figura 20 – detalhe da caveira
A primeira utilização da anamorfose é atribuída a Leonardo da Vinci88 no ano de 1485, embora a palavra tenha aparecido apenas no século XVII.89 A mais comentada utilização desta técnica se encontra no quadro Os Embaixadores, de Hans Holbein do ano 1533 (Figura 19). O quadro é repleto de símbolos relacionados ao quadrivium das artes liberais (aritmética, geometria, astronomia e música). A justaposição dos vários objetos conotativos de relações entre ciência e arte (dois globos, um astrolábio, tecidos com padrões geométricos, um alaúde e livros - possivelmente, dentre eles, algum tratado com o tema da perspectiva) compõe a cena. A própria forma de representação também é eloqüente, incluindo o mais surpreendente símbolo: o de uma imagem alongada e distorcida ao pé dos dois homens vestidos de forma suntuosa. Esta figura, quando observada sob determinado ângulo, apresenta um crânio (Figura 20). Existem várias hipóteses sobre o emprego da anamorfose nesta obra. Acredita-se que seu uso procura evidenciar a inconstância da vida e da realidade, e a certeza da morte. Esse tipo de pintura alegórica recebia a denominação de memento mori ou vanitas, quando não 88 No desenho de um olho, incluído no Codex Atlanticus. Ver JAY, M. op. cit., p.48 e BALTRUSAITIS, J. op. cit. p.36 89 BALTRUSAITIS, J. op. cit., p.5.
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apresentava figuras humanas. Também existem relatos que sugerem o quadro ter sido executado visando um posicionamento específico de onde – em determinado ponto – se poderia ver o crânio em perspectiva correta.90 Baltrusaitis observa que o tratamento anamórfico dado ao crânio funciona sugerindo não uma, mas duas composições, cada uma com seu próprio ponto de vista, justapostas sobre o mesmo quadro91. A utilização de uma mesma técnica produzindo duas e diferentes ordens visuais sobre um único plano parece expressar de modo diferente a ordem espiritual e a material. Mas, por outro lado, se a caveira tivesse sido pintada do mesmo modo que os outros elementos do quadro, “sua conotação metafísica teria desaparecido: se tornaria um objeto como os demais, uma simples parte de um
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mero esqueleto, pertencente a um homem que por acaso já teria morrido”.92
Figura 21. Waterfalls. M. C. Escher. Figura 22. Retirado de A treatise of perspective. Or, the art of representing all manner of objects' as they appear to the eye in all situations. ... sem referência à autoria de Niceron
90 Veja BALTRUSAITIS, J. op. cit.. p.104-105. para a narrativa da instalação da pintura no palácio de Polisy e sua mise em scène: “Em lugar do esplendor humano, ele [espectador, visitante] vê o crânio. Os personagens e todo seus apetrechos científicos se desvanecem e em seu lugar surge o signo do Fim. A peça está terminada”. 91 Ibid. p.104 92 BERGER, J. op. cit. p.93.
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Embora a anamorfose, como descrita acima, tenha perdido sua popularidade no século XVIII93, a produção de uma falsa realidade utilizando precisão técnica é seguidamente observada em outras obras que manipulam o jogo da verdade e da ilusão. M. C. Escher ficou conhecido por suas estruturas impossíveis: escadas que sobem ou descem – dependendo de como são vistas – a água da cachoeira que faz o caminho de volta, realimentando o próprio fluxo (Figura 21). Gombrich considera que os artistas e cenógrafos do século XX aram a rejeitar os truques de ilusão, o que raramente nos coloca em situações onde, de fato, o olho é enganado.94 Provavelmente, Gombrich não chegou a ter contato com as ilusões criadas pela computação gráfica, igualmente capaz de gerar realidades perfeitamente inexistentes. Um usuário da computação gráfica, que não possua conhecimentos de história da arte irá associar a visão anamórfica do crânio às suas ferramentas de trabalho, surpreendendo-se com a sua observação em uma obra de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
cinco séculos. Por outro lado, em que medida um olhar leigo em relação ao desenvolvimento da computação gráfica poderá reconhecer a origem numérica de Eva Byte (Figura 23)? Não obstante, uma outra questão se coloca: por que criar uma apresentadora virtual tão parecida às apresentadoras de carne e osso? Talvez porque este seja o jogo da representação do real e do ilusório – com o qual brincamos desde o século XV - e ele só se coloca quando mantemos as regras e as referências do “real”. Deste modo, a anamorfose parece expressar o outro lado do olhar, desenvolvido a partir da racionalidade moderna, na medida em que evidencia a possibilidade de uma interferência subjetiva capaz de subverter as próprias regras das quais se utiliza.
93 94
JAY, M. op. cit. p.48 GOMBRICH, E. H. op.cit. p.260.
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Figura 23. Eva Byte. Apresentadora virtual do Fantástico. Criação do Departamento de Arte do Jornalismo, TV Globo, 2005.
A partir de estudos sobre pintura e geometria dos séculos XV e XVI, que citam a anamorfose, Jurgis Bartrusaitis compreende a perspectiva anamórfica como uma contrapartida visual da dúvida de Descartes.95 Bartrusaitis comenta que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Descartes freqüentava o convento dos Minimes de Paris - uma espécie de centro intelectual da época. Neste ambiente, Descartes encontrou alguns interlocutores nas questões da óptica e da geometria como o padre Jean-François Niceron, que nunca chegou a conhecer pessoalmente. A Figura 18 é de uma das obras de Niceron sobre a perspectiva. Bartrusaitis observa que por uma curiosa coincidência, no grupo dos Minimes, todos se acharam envolvidos em “perspectivas insólitas” e, de certa forma, todos tiveram algum tipo de aproximação com Descartes. As publicações contemporâneas de Descartes e dos religiosos refletem um mesmo espírito e, de certa forma, uma mesma nova filosofia. Bartrusaitis sugere que dentre as idéias comuns a esses autores, encontra-se a obsessão por mecanismos e cálculos que domina a perspectiva.96 Para Bartrusaitis é a perspectiva que sugere a Descartes a prova final da falsidade das aparências do mundo físico: “ela não é um sistema de representação exata, mas uma mentira”.97 Todas as demonstrações de Descartes que ratificam o embuste dos órgãos de percepção são atravessadas pela mesma inquietude que se encontram formuladas nas Meditações: uma doutrina do conhecimento onde intervêm as considerações sobre a visão das coisas.
95
BALTRUSAITIS, J. op. cit. p.61-70. Ibid. p.62. 97 Ibid. p.69. 96
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Figura 24. Sistema óptico do olho, Discours de la méthode plus la diptrique, lês météores el la gêométrie, Leiden, 1637.
Em suas obras, Descartes discute a geração e manipulação de ilusões ópticas, evidenciando sua fascinação pela projeção de sombras e manipulação de efeitos perspectivos.98 Na busca pela certeza ou pelo conhecimento direto, Descartes estabelece o método da dúvida radical, de onde se funda o argumento do cogito. O filósofo observa que é possível duvidar de tudo o que há no mundo sensível. Os nossos sentidos podem nos enganar e nos conduzir a toda sorte de mentiras e erros. Mesmo quando sonhamos, os sonhos podem parecer tão reais quanto as nossas vivências quando acordados, de modo a não ser possível encontrar garantias de que nossos pensamentos sejam ou não reais. Em outras palavras, mesmo os nossos pensamentos podem nos conduzir a enganos. A única coisa da qual não podemos duvidar é da própria dúvida. A dúvida garante a existência do homem na medida em que, para Descartes, a dúvida é uma forma de pensar. Deste modo, Descartes coloca-se como uma coisa pensante, ou res cogitans: [...] do fato mesmo de pensar em duvidar da verdade das outras coisas seguia-se muito evidentemente e certamente que eu existia; ao o que, se tivesse parado de pensar, ainda que o resto do que imaginara fosse verdadeiro, eu não teria razão de crer que tivesse existido; compreendi assim que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas em pensar, e que, para ser, não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de coisa material alguma.99 98 99
JUDOVITZ, Dalia. Vision, representation and technology in Descartes. p.65. DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 70.
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Os dois atributos essenciais do mundo, pensamento e extensão100, o que conhece e o que é conhecido, parecem aludir a uma relação entre o que observa e o que é observado. Massey reconhece como tentadora a criação de uma analogia entre a perspectiva e o cartesianismo.101 A noção de um sujeito que tudo vê e que tudo sabe, capaz de compreender racionalmente, e que se encontra situado no centro da matéria quantificada, sugere uma afinidade com a perspectiva, principalmente, se considerarmos os critérios visuais estabelecidos por Descartes, ou seja, a aceitação de idéias que apareçam de forma clara e distinta.102 No entanto, a formulação de um “perspectivismo cartesiano” torna-se problemática na medida em que Descartes rejeita a visão, assim como outras formas de apreensão do mundo a partir dos sentidos. Para Descartes o sentido da visão não é capaz de assegurar a realidade dos objetos, do mesmo modo que nem a imaginação nem os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
sentidos podem nos trazer nenhuma certeza sem a intervenção da razão. Por estes conceitos, paradoxalmente, a visão parece colocar-se não ao lado da clareza, mas ao lado da dúvida. O conceito de “perspectivismo cartesiano” é apresentado por Martin Jay como uma característica do regime escópico da era moderna.103 Jay considera Descartes como fundador do moderno paradigma visual e comenta seu tratado La Dioptrique. A invenção do telescópio atribuída a Jacques Métius - hoje sabemos, erroneamente – teria sido a pedra de toque da escritura de La Dioptrique, onde Descartes procura demonstrar que a visão pode ser compreendida a partir do método dedutivo, baseado na existência de idéias pré-existentes na mente. Neste texto, Descartes descreve com precisão a construção de aparatos ópticos destinados à observação de objetos distantes. Se por um lado Descartes parece apenas preocupar-se com o olho da mente, por outro ele se atém ao estudo do órgão da visão a partir da dissecação de olhos de animais e do questionamento de seu funcionamento. Jay afirma que pode ser fácil olhar para trás e apontar
100
Vale observar que, como caráter essencial dos corpos físicos, estes são dotados de três dimensões: altura, largura e profundidade. 101 MASSEY, Lyle. "Anamorphosis through Descartes or perspective gone awry.” Renaissance Quarterly 50.n4 (Winter 1997): 1148(42). InfoTrac OneFile. Thomson Gale. CAPES. 2 Aug. 2006.
. 102 DESCARTES, R. op.cit. p.54. 103 JAY, M. op. cit., p.69 et seq.
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contradições nos conceitos de visão de Descartes, principalmente se forem considerados a partir de algumas conclusões equivocadas do filósofo, como as observações a respeito da luz ou do funcionamento da glândula pineal. No entanto, para Jay, a contribuição cartesiana à dominância oculacentrista da era moderna foi profunda e a maior fonte de influência encontra-se na própria ambigüidade argumentativa de Descartes. Assim, se por um lado Descartes é aclamado pela filosofia racionalista, por outro, ele também encorajou conceitos de visão especulativos e empíricos. A própria exigência de uma visão “clara e distinta” pelo olho da mente não deixa de ser uma contradição na medida em que, ao mesmo tempo, desqualifica a visão física e utiliza suas metáforas para abordar a racionalidade. A tentadora ligação entre Descartes e a perspectiva se encontra longe de estabelecer conclusões definitivas. Para Bosi, por exemplo, Descartes “recortou da visão renascentista apenas o olho central e imóvel da perspectiva PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
geométrica” de modo a estabelecer uma “visão verdadeira” .104 Para Panofsky, a pontualidade da visão perspéctica antecipa a concepção racional de extensão infinita de espaço encontrada em Descartes.105 Mas Massey discorda, considerando que a associação entre o ponto de vista da perspectiva e o sujeito cartesiano não se configura a partir de uma leitura acurada de Descartes.106 A autora não encontra sentido na utilização da perspectiva como metáfora para a relação entre a res cogitans e a res extensa. Segundo ela, mesmo que a res cogitans tenha se associado metaforicamente ao conceito perspectivo de sujeito como “ponto de vista”, Descartes nunca postulou a res cogitans em termos de um ponto perspectivo fixo e também nunca subscreveu à noção de que a perspectiva apresenta a “semelhança” do mundo. A apreensão mental do mundo não deveria se basear no conceito de correspondência ou “semelhança” entre as imagens do mundo e a compreensão do mundo pela mente. Nos Escritos Filosóficos, Descartes afirma que a mente pode compreender certos aspectos do mundo através da linguagem e de signos de caráter arbitrário: Devemos observar que em nenhum caso uma imagem deve assemelhar-se ao objeto que representa em todos os aspectos, do contrário, não haveria distinção entre o objeto e sua imagem. É suficiente que uma imagem se assemelhe ao objeto em alguns poucos aspectos. [...] Deste modo, de acordo com as leis da perspectiva,
104
BOSI, A. op. cit., p.76. PANOFSKY, E. op.cit., p.31-36. 106 MASSEY, L. op.cit., p.3. 105
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os gravadores representam círculos por ovais de forma melhor do que se utilizassem outros círculos. 107
Em nosso ponto de vista, para além da proximidade sincrônica, o pensamento cartesiano e a perspectiva se encontram baseados sobre as mesmas influências sociais, atuando de forma semelhante sobre sujeitos - produtos da história. Além do que, as discussões que alternam a perspectiva ao longo do binômio técnico-filosófico apresentam a idade da sua origem. De acordo com Cristoforo Landino, no século XV, a perspectiva era “parte filosofia e parte geometria”.108 Analogamente, James Elkins considera que a perspectiva sempre foi “hermafrodita, parte convenção e parte invenção”109 e deve ser pensada como um campo entre a matemática, o texto e a imagem.110
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2.2.2. A convenção do “natural” A discussão pelo reconhecimento da perspectiva como uma convenção não é nova e em alguns casos se contrapõe em posicionamentos pouco claros de certos autores. Arnheim, por exemplo, reconhece que a perspectiva central surge como uma tendência do espírito europeu pela procura de uma base objetiva para a representação dos objetos visuais, “um método independente das idiossincrasias dos olhos e da mão do desenhista”
111
. Mas, por outro lado, afirma que existem
diferentes soluções para o problema da representação de objetos tridimensionais num plano bidimensional: “cada método tem suas virtudes e suas desvantagens, e o que se prefere depende das exigências visuais e filosóficas de uma época e lugar em particular”.112 Contudo, a posição menos clara e mais polemica é a de Gombrich. Este autor se opõe à idéia de que a “perspectiva é mera convenção e não representa o mundo tal como parece”.113 Afirma que “o que é convenção,
107
Id. Landino, 1529 apud ELKINS, James. The Poetics of Perspective. Ithaca and London: Cornell University Press, 1994. p. 263. 109 ELKINS, J. op. cit., p. 263. 110 Ibid. p. 265. 111 ARNHEIM, R. op. cit. p. 271. 112 Ibid. p. 105. 113 GOMBRICH, E. H. op.cit. p. 269. 108
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embora convenção útil, cômoda, é que gostamos de pintar em superfícies planas”114 e que nunca será demais insistir em que a arte da perspectiva visa a uma equação correta: pretende que a imagem pareça com o objeto e o objeto com a imagem. Tendo alcançado esse objetivo, ela faz a mesura de praxe e se retira.115
De forma menos objetiva, não abordando diretamente a questão do convencionalismo da perspectiva, Gombrich sugere que o artista não pode transcrever o que vê. “Pode apenas traduzi-lo para os termos do meio que utiliza”.116 Mitchell considera que Gombrich está comprometido com a distinção natureza-convenção, mas aponta algumas insinuações de mudança de pensamento a partir da influência de trabalhos de outros estudiosos117. Segundo Mitchelll, em trabalhos posteriores à Arte e Ilusão, Gombrich afirmaria a concordância com alguns historiadores da arte com a idéia de que, no ado, certos estilos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
imagéticos eram freqüentemente construídos com a ajuda de convenções que deviam ser aprendidas. Mitchell conclui que todas as imagens se encontram no campo da convenção, embora a finalidade da convenção possa variar (“realismo” e inspiração religiosa, por exemplo). Natureza e convenção não seriam antitéticas, mas “natureza” pode ser um dado em relação a um certo tipo de convenção. O problema, apontado por Mitchell, é que Gombrich considera a “naturalidade” da representação ilusionista, a partir da invenção da perspectiva, como uma verdade literal118. Um pouco antes de Gombrich, Erwin Panofsky procurava situar a perspectiva na formalização de um código de representação do espaço próprio de cada período histórico. Na sua compreensão, a perspectiva descrita por Alberti seria uma convenção, uma solução possível119. Em se tratando de convenção, a imagem em perspectiva, como qualquer outra, deve ser interpretada; e a habilidade para fazê-lo deve ser adquirida. Afinal, não se pode ter a expectativa de que o olhar acostumado à pintura oriental possa entender imediatamente uma pintura em perspectiva120. Em outras palavras, falamos de uma prática, através da
114
Ibid. p. 268. Ibid. p. 272. 116 Ibid. p. 39. 117 MITCHELL, W. J. T. Iconology… p.80. et. seq. 118 Ibid. p.83. 119 PANOFSKY, E. op. cit. im. 120 GOODMAN, N. Languages… p. 14. 115
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qual pode-se mesmo “acostumar” o olhar a imagens distorcidas ou projetadas sobre superfícies irregulares. Deste modo, pode-se concluir que a representação realística não depende de imitação, ilusão ou informação, mas do que foi inculcado. Ou, como afirma Goodman, se a representação é uma questão de escolha e a precisão uma questão de informação, então realismo é uma questão de hábito121. No entanto, temos toda sorte de hábitos, alguns facilmente dispensáveis, enquanto outros funcionam como uma “segunda natureza”122, mas não é isso que justifica a hegemonia do conceito de realidade da representação que é indicado pela perspectiva. Um dos maiores defensores da idéia de convencionalismo da perspectiva, John Berger, afirma:
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A convenção da perspectiva, que só se aplica à arte européia e que se estabeleceu pela primeira vez no início da Renascença, centraliza tudo no olho de quem vê. É como um facho de luz de um farol – só que ao invés de a luz se mover para fora, são as aparências que se movem para dentro. As convenções denominaram aquelas aparências de realidade.123
A perspectiva pode ser considerada um procedimento estabelecido por convenção para a representação do mundo visível, mas não é simplesmente um procedimento, ela ocupa uma posição privilegiada. Mitchell considera que o conceito de imagem como “signo natural” é como se fosse um ídolo da cultura ocidental e, como tal, deve certificar sua própria eficácia a partir do contraste com falsos ídolos de outras tribos124. A idolatria ocidental do signo natural disfarça sua própria natureza sob uma capa de iconoclasmo ritual, uma exigência de que nossas imagens, ao contrário “das deles”, seja constituída por um racionalismo desmistificado. No entanto, para nossa análise, mais importante do que discutir a capacidade da perspectiva reproduzir a realidade - que para Goodman é nenhuma (“afirmar que uma pintura parece com a natureza, apenas significa que ela parece com o modo em que a natureza é geralmente pintada”125) é compreender o efeito desta invenção, ou seja, de que modo a idéia da perspectiva pôde convencer uma civilização inteira da sua infabilidade enquanto método de representação. Para além de um sistema de representação, a perspectiva assumiu-se como um sistema
121
Ibid. p. 38. SNYDER, J. op. cit. p. 223. 123 BERGER, J. op. cit. p.18. 124 MITCHELL, T. Iconology… p.90. 125 GOODMAN, N. Languages… p.39 122
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de produção automática e mecânica das verdades do mundo material e mental.126 Para Mitchell, o maior índice da hegemonia da perspectiva se encontra no modo como sua artificialidade é negada em prol de uma aclamação pela sua naturalidade em representar a “forma como as coisas parecem”, “o modo como vemos” ou “as coisas como realmente são”.127 Associada e estimulada pela ascendência econômica e política da Europa ocidental, a perspectiva conquistou o mundo da representação sob o rótulo da razão, da ciência e da objetividade e, segundo Mitchell, nunca mais foi possível demonstrar a existência de outros modos de representar o que “realmente vemos” e de abalar a convenção de que esse tipo de imagem estabelece uma espécie de identidade entre a visão humana e o espaço
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exterior128.
Figura 25. Quadro do filme “O triunfo da vontade” de Leni Riefenstahl, 1936.
Parece que a invenção da fotografia reforçou a convicção da existência de um modo de representação natural. É interessante observar o modo como a imagem fotográfica acolhe o epíteto de imagem realística embora nem toda fotografia o seja. Esta convicção é grandemente reforçada a partir da conexão relacional ou indicial, de acordo com a abordagem semiótica. Em outras palavras, a câmera captura “traços” do objeto que se encontra fora dela, a partir de uma relação presencial que os une. Deste modo, “a imagem copia a realidade”. Contudo, há a questão da manipulação da imagem. Questão que, aliás, se desdobra em duas. De um lado, o que poderíamos tratar como uma manipulação não necessariamente forjada, em outras palavras, sem intenção de falsificação. Neste aspecto encontramos, na fotografia, as escolhas de ponto de vista, do ângulo da lente, da qualidade e tipo de impressão – se for este o caso. Por outro lado, há a manipulação que modifica ou distorce e a que subtrai ou acrescenta elementos 126 127
MITCHELL, T. op. cit.. p. 37. Id.
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onde eles nunca estiveram. É claro que a manipulação das imagens não é exatamente uma novidade. No primeiro grupo de “manipulações”, encontramos por exemplo a fotografia de Hitler no Triunfo da vontade (Figura 25), tirada debaixo, mostrando o céu acima da cabeça de um líder que, deste modo, parecia mais alto e heróico129. Do outro lado, encontram-se os exemplos anedóticos da retirada das imagens de “inimigos do comunismo” de fotos tiradas em épocas em que estes ainda não eram considerados inimigos, como foi o caso de Trotsky,
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dentre outros (Figura 26 e Figura 27).
Figura 26. Lênin e Trotsky na celebração do segundo aniversário da Revolução Russa. À direita, a mesma foto, sem Trotsky. Imagens obtidas no site Newseum, the interactive museum of news. Disponível em:
(26/11/06).
Figura 27. Fotografia de 1940. Stalin, acompanhado do jovem comissário Nikolai Yezhov, removido da fotografia à direita. Imagens obtidas no site Newseum, the interactive museum of news. . Disponível em:
(26/11/06).
Apesar da possibilidade da manipulação das imagens, que pode ser uma expressão nova, mas não é uma nova idéia, continua-se a fotografar porque se acredita que a fotografia funcione como um testemunho visual de algum evento. Diga-se a propósito que, na época atual, a possibilidade de manipulação de
128
Id. BURKE, Peter. Eyewitnessing: the uses of images as historial evidence. New York: Cornell University Press, 2001. p.73. 129
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imagem fotográfica deve funcionar como lembrete da subjetividade de construção da imagem e, conseqüentemente, da existência de uma gama de possibilidades de “leitura” de qualquer imagem. Deste modo, a idéia que reforça a “perfeita analogia” entre objeto e sua imagem indicial pode nos levar à compreensão da capacidade expressiva de um fotógrafo cego (Figura 28), mas jamais itir a existência de um pintor realista cego.
Figura 28. Fotos de Evgen Bavcar . . Disponível em:
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9/index.html e http://www.elpais.es/suple/eps/?d_date=20060416> (1/08/06).
No entanto, não seria, do mesmo modo, a fotografia uma convenção visual? Evidências encontradas no registro de alguns antropólogos que reportam a não familiaridade de grupos pesquisados em relação à fotografia, e sua conseqüente dificuldade em identificar as figuras representadas130, corroboram a nossa convicção de que a maior parte das relações travadas com as imagens é ancorada em algum tipo de convenção. O problema não nos parece ser a convenção em si, mas o privilégio assumido por uma convenção que esconde a sua origem, como é o caso da perspectiva ou, atualmente, a fotografia e as imagens jornalísticas, por exemplo. A questão da convenção da perspectiva é suplantada por William Ivins em sua obra seminal On the rationalizadion of sight. Sem ater-se propriamente às discussões sobre a questão convencional evidenciada por essa técnica, Ivins apresenta argumentos originais que não deixam dúvida em relação a este tema. O autor, que foi o primeiro curador de gravuras do Metropolitan Museum of Art, compõe suas observações, não exatamente do ponto de vista da história da arte mas, como sugere Manovitch, da cultura visual131, que se preocupa com os aspectos da visualidade ligados à construção, simbolização e imaginação das 130
ARNHEIM, R. op. cit. p.37.
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diversas formas de representação imagética132. Para Ivins, o mais importante evento ocorrido durante a Renascença foi a emergência das idéias que conduziram à racionalização do olhar133. De acordo com o autor, o esforço na direção da racionalização, traduzido pela normatização através da perspectiva em suas primeira expressões na Itália, França e Alemanha, pode ser considerado não apenas mais importante do que a queda de Constantinopla, a invenção do tipo móvel na imprensa, a descoberta da América, a Reforma ou a Contra Reforma, mas como um fator capaz de influenciar os demais eventos aos quais se atribui o surgimento da Idade Moderna. Ivins desenvolve seus conceitos a partir da demonstração da necessidade de existência de um sistema de símbolos capaz de externar o que é apreendido pelos cinco sentidos, e que contasse com regras e gramática próprias, que estabelecessem as relações entre eles. Deste modo, a ausência desses símbolos ou PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
de sua gramática dificultaria a evolução do pensamento. Analogamente, um símbolo que não pudesse ser exatamente duplicado ou que sofresse modificações de sentido ao longo de sua repetição também seria de pouca utilidade. Como também acabam sendo de uso limitado e de pouco valor para a racionalização, certos sistemas de símbolos incapazes de seguir esquemas lógicos, seja na sua inter-relação e combinação, seja na sua correspondência com fatores externos. Ainda, segundo Ivins, no início da história humana, os homens já haviam descoberto, na sua habilidade de produzir imagens, um método de simbolização de sua consciência visual. Diferentemente dos símbolos puramente convencionais, os símbolos pictóricos deveriam ser capazes de produzir enunciados acurados e precisos mesmo que – a eles próprios – faltassem definições. Mas, em lugar disso, a imagem pictórica permaneceu por muito tempo como a mais ineficiente classe de símbolos. Ivins aponta duas grandes razões para essa situação: em primeiro lugar, a duplicação exata de uma imagem era algo muito difícil e, em segundo lugar, não havia nenhuma regra ou esquema combinatório que garantisse a relação lógica dentro do sistema de símbolos pictóricos ou, ainda, uma lógica recíproca de
131
Veja a associação entre Ivins e visual culture em MANOVITCH, Lev. The Mapping of Space: Perspective, Radar, and 3-D Computer Graphics. http://www.manovich.net/TEXT/mapping.html. o em 2 de agosto de 2006 às 10:19h. 132 Manovitch utiliza o termo cultura visual aos se referir às preocupações com as técnicas e tecnologias de representação visual disponíveis em uma sociedade em determinado período, e o papel que desempenham na formulação de diversos aspectos desta sociedade. Id. 133 IVINS, W. M. op. cit., p.7 et seq.
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correspondência entre a representação pictórica das formas dos objetos e a localização desses objetos no espaço. Ao final do século XIV, assim se encontrava a capacidade do homem para simbolizar sua visão da natureza. A esta situação pode ser atribuída parte da dificuldade da ciência natural clássica e medieval. No final do século XIV ou no início do XV, “alguém em algum lugar da Europa começou a fazer gravados de madeira”.134 Inicialmente, a gravura em madeira era utilizada apenas para poupar trabalho na produção de imagens sagradas. No final do século XV, as gravuras aram também a ser produzidas a partir do entalhe em metal. A impressão de figuras permitiu, pela primeira vez, a duplicação exata de símbolos pictóricos. A invenção da gravação de figuras é considerada por Ivins como um dos mais importantes eventos da história do pensamento ocidental.135 Fez-se acompanhar por um outro evento sem precedentes que, na opinião deste autor, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
precisou de um certo tempo para ter suas implicações reconhecidas: a descoberta do esquema de perspectiva de Alberti. Para Ivins, a perspectiva pode ser vista como um meio prático de garantir uma relação métrica recíproca entre as formas dos objetos, como definidos a partir de sua localização no espaço e sua representação pictórica. Se isso parece importante para a produção de imagens, é ainda mais importante para o pensamento em geral. De acordo com Ivins, o esquema da perspectiva estabeleceu uma relação lógica dentro do sistema de símbolos empregado e a correspondência recíproca entre a representação pictórica dos objetos e suas formas localizadas no espaço. Deste modo, as características mais marcantes da representação pictórica ocidental desde o século XIV têm sido, de um lado, seu crescente naturalismo e, de outro, sua extensão lógica e matemática. Ainda segundo Ivins, o grande desenvolvimento na ciência e nas tecnologias ocorridos a partir do Renascimento deve-se à combinação destas duas técnicas: a perspectiva e a gravura em madeira. Como exemplo, ele apresenta as dificuldades encontradas pelos antigos gregos em seus estudos de botânica na medida em que não contavam com um sistema eficiente para duplicação do que era visualmente observado, apenas o emprego das palavras136. Deste modo, os campos onde os gregos obtiveram grandes avanços foram a geometria e a
134
Ibid., p.9. Id. 136 IVINS Jr., William M. Prints and Visual Communication. Cambridge: The MIT Press, 1973. p.1-20. 135
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astronomia, na medida em que, para o primeiro as palavras são suficientes e para o segundo, qualquer noite clara oferece uma imagem invariante que pode ser
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compartilhada.
Figura 29. Andreas Vesalius De humani corporis fabrica libri septem. Basileae : Ex officina. Oporini, 1543.
Figura 30. Página do livro. Andreas Vesalius. De humani corporis fabrica libri septem. Basileae : Ex officina I. Oporini, 1543. Copyright © 2006 University of Leeds Library/
Em 1543, Vesalius e John of Calcar produziram o primeiro estudo completamente ilustrado de anatomia, ou seja, a primeira “gramática” da figura humana com definições exatas de ossos, músculos e órgãos, através de imagens que permaneceram idênticas ao longo de toda a edição. Neste momento, graças à utilização de métodos que permitiram a duplicação exata de símbolos pictóricos logicamente organizados, a descrição cientifica inicia uma grande aceleração, propiciando condições para que a classificação cientifica se desenvolvesse. A extensão dos campos de uso dos símbolos pictóricos, que podem ser precisamente duplicados e seu conjunto de regras, produziram um efeito não apenas sobre o conhecimento, mas também sobre o pensamento. Em outras palavras, para Ivins, a implementação desses princípios e dessa técnica possibilitou o início da racionalização do olhar - que pode ser considerado como o mais importante evento da Renascença. As considerações de Ivins são de valor inestimável. Em primeiro lugar, nos chama a atenção o seu enfoque a partir da cultura visual, que valoriza a visualidade, contextualizando-a no mundo ocidental. Se hoje é lugar comum falar sobre uma sociedade visual, esquece-se de dizer que ela foi estruturada a partir da influência da visualidade sobre o pensamento. A nossa historicidade logocentrica
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manteve ofuscada, durante anos, as evidências de acontecimentos de extrema importância para a visualidade, como o desenvolvimento da perspectiva e seus desdobramentos na constituição do pensamento ocidental. O caráter mecânico da perspectiva através de sua capacidade de organizar o mundo e sua intenção de representação da realidade permitiu a emergência de uma consciência instrumental, desejosa de medir e enquadrar tudo e de traduzir as realidades por quantidades numéricas. A perspectiva apresenta o mundo pronto para ser dominado, consumido, colonizado – o mundo originado no olho do espectador137. Além do que, o rápido e influente avanço da perspectiva deve-se, principalmente, à sua própria natureza. Apesar de caracteristicamente pertencente ao universo da cultura ocidental ela foi velozmente disseminada por todo o planeta por duas razões principais. Uma vez que se aprende a “ver” com a perspectiva, esta forma de olhar torna-se inerente ao sujeito (daí o sentimento de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
trata-se de algo “natural”). Em segundo lugar, uma vez assimiladas e seguidas as suas instruções, os efeitos prometidos são obtidos. Com aponta Andrew, a utilização desse aparato e sua disseminação são comparáveis ao emprego do telescópio ou da arma de fogo.138 No entanto, não é nossa intenção contestar a importância dos diversos eventos da aurora da Idade Moderna, muito menos retirar da invenção da imprensa a sua influência nas mudanças subseqüentes. Desejamos ampliar a visão sobre a extensão dos diversos eventos e inventos do período, de modo a incluir as modificações geradas pelos aparatos da visualidade desenvolvidos no renascimento e suas conseqüências evidentes, mas nem sempre discutidas, sobre o desenvolvimento posterior do campo do design. Mais do que necessária, as convenções têm-se mostrado fundamentais para o campo do design. Do contrário, como poderíamos esperar que os mapas possibilitassem a orientação espacial das pessoas ou, ainda, como seria possível analisar obras artísticas e arquitetônicas ou estilos pictóricos a partir de imagens? A convenção nos permite tratar uma imagem como signo de um objeto, como substituto do objeto que se encontra representado. Não obstante, se a aceitação de uma convenção como convicção, como é o caso da perspectiva, pode ter limitado outros desenvolvimentos expressivos, sob outros aspectos essa instituição convencional mostrou-se fundamental para o 137
MANOVITCH, L. op. cit.
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posterior surgimento das atividades ligadas à produção de artefatos, dentre elas o próprio design. Arnheim já havia identificado esta ligação, mas de forma assustadora: Desde a Renascença o engodo da fidelidade mecânica tem sempre tentado a arte européia, especialmente na produção do padrão medíocre para consumo de massa. A velha noção de ‘ilusão’ como ideal artístico tornou-se uma ameaça ao gosto popular com o advento da revolução industrial.139
Na época atual, as questões da “fidelidade mecânica” ou do engodo realista permanecem presentes. Um exemplo que em tudo se aproxima da citação de Arnheim pode ser apontado nos filmes de ação “realistas” de Hollywood e seus efeitos especiais. Distanciadas da arte moderna, mas próximas do design, muitas características da perspectiva, praticamente como aparecem na descrição de Alberti, seguem sendo utilizadas em nossos dias, seja em sua forma pura – em
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desenhos à mão e ilustrações – ou em aplicações fotográficas como cinema, televisão e computação gráfica. Em outras palavras, não há dúvida que o modo “racional” de ver a imagem “objetiva” e “verdadeira” estendeu-se da Renascença até a época atual com um deslocamento no século XIX, quando sua soberania é transferida primeiramente para a fotografia, depois para o cinema, a TV e, finalmente, a computação gráfica.
2.3. A óptica entre o entretenimento, a ciência e a metáfora Uma breve consulta a Encylopaedia Britannica or a dictionary of arts, sciences, &c. On a plan entirely new, segunda edição, publicada em 10 volumes em Edinburgh entre os anos 1778-1783, nos permite traçar algumas considerações em relação aos aparatos do olhar, desenvolvidos na Renascença. Neste dicionário, a câmera escura aparece ligada à dióptrica enquanto a perspectiva se acha no campo da óptica. Se, de certa forma, a câmera escura estabelece uma relação com a luz, onde os raios do sol são “visualizados”, encaminhando as imagens para o olho do observador, a perspectiva se encontra envolvida em uma operação onde os “raios” saem do olho do observador, ou seja, de dentro para fora, para “encontrar” pontos no objeto observado.
138 139
Diga-se a propósito, que a câmera escura
ANDREW, J. Dudley. Concepts in film theory. Oxford: Oxford University Press, 1984. p. 30-31. ARNHEIM, R. op. cit., p.273.
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permaneceu por muito tempo, até o século XIX, como modelo do funcionamento da visão, de acordo com este texto do século XVIII: Os raios de luz que partem dos objetos exteriores, após entrarem na pupila e atravessarem o humor cristalino [...] prosseguem para a retina que se encontra no final do olho [...]. A conseqüência disso é que, a alma, por meios até agora para nós desconhecidos, recebe a imediata inteligência dos raios e a a ver os objetos. Mas, esta grande operação da natureza, a descoberta que foi reservada para o nosso tempo, poderia ter permanecido como uma curiosidade da física se não tivesse sido colocada a serviço do pintor. A máquina construída para este propósito é constituída por lentes e um espelho dispostos [...] de tal modo que a imagem possa ser contemplada sobre uma folha limpa de papel. Este olho artificial, chamado de câmera óptica ou escura [...] apresenta uma imagem de inexplicável força e brilho. Para não falar na exatidão de sua perspectiva e do claro-escuro.140
No entanto, apesar do afastamento no campo da física, as técnicas sugeridas pela perspectiva e, também, pela câmera escura aparecem relacionadas, de forma semelhante, na atividade artística, como é o caso do verbete pintura na mesma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
enciclopédia da citação acima. Apesar disso, a relação com a produção de imagens não se encontra na origem do aparato da câmera escura. O princípio pelo qual a luz direta ou refletida por um objeto se insere através de uma pequena abertura em uma caixa ou quarto escuro produzindo uma imagem invertida era conhecido desde a antiguidade e foi muito utilizado para a observação de eclipses solares. Entre o século X e o final do século XV a formação de imagens por este processo foi estudada pela filosofia natural árabe e latina e colaborou para a construção de uma teoria da visão que serviu de base para a invenção da perspectiva nos termos em que ela é descrita por Alberti em De Pictura. No entanto, não se encontram evidências de que os estudos deste período apontassem para a utilização do fenômeno na produção de imagens.141 Na verdade, os filósofos naturalistas nem mesmo se referiam à “imagem”, mas aos raios de luz que avam através da abertura, incidindo sobre a superfície posterior a ela.142 O nosso olhar contemporâneo, com o conhecimento que temos do funcionamento do olho e da câmera fotográfica, considera uma ligação automática entre estes “efeitos visuais” e a produção pictórica. Mas, essa relação não seria estabelecida pela mente medieval e assim, devemos situar uma distinção 140 Encyclopædia Britannica; or, a dictionary of arts, sciences, &c. On a plan entirely new: ... The second edition; greatly improved and enlarged. Illustrated with above two hundred copperplates. ... Vol. 8. Edinburgh, 1778-83. 10 vols. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group. http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO 141 SNYDER, J. op. cit., p.231. 142 Ibid., p.232.
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entre a observação do fenômeno empírico realizada ao longo de vários séculos e a construção de um aparato relacionado à produção de imagens. É possível que tenha sido necessário que o conceito de perspectiva, com sua proposição de construção de imagem realística, estivesse firmemente estabelecido para que esse fenômeno (pinhole image) pudesse ser associado a um artefato. Além disso, a criação de aparatos (como apresentados na gravura de Dürer, Figura 6) para fixar o ponto de observação também pode ter tido alguma influência na concepção da câmera escura. Estes fatores podem ter “preparado” o olho renascentista para ampliar a sua relação com as imagens. Os princípios da perspectiva na construção da figura realística, sua delineação acurada dos objetos e seu uso coerente de luz e sombra precisariam estar profundamente ancorados no olhar moderno para que a câmera escura pudesse surgir como aparato. Todos esses aparatos do olhar parecem sugerir uma mecanização do sentido. Ou como afirma Snyder, “o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
problema dos pintores pós-renascentistas era obter uma máquina que produzisse uma imagem como a de suas pinturas”.143 A distância temporal entre os eventos da perspectiva e da câmera escura pode ser autenticada pela observação das datas onde eles aparecem citados. De fato, o tratado de Alberti é de 1435, mas a primeira publicação que faz menção à câmera escura é de 1521.144 A utilização de uma lente na abertura do aparato só aparece descrita em texto de 1550, embora a invenção da câmera escura tenha sido atribuída, posteriormente, ao napolitano Giovanni Battista della Porta. É no seu livro, Magia Naturalis de 1558, onde pela primeira vez aparece a descrição da câmera escura com finalidades pictóricas.145 Entre os trabalhos de Alberti e o de della Porta aram-se mais de um século.
143
Id. Hockney sugere o seu uso a partir de 1430. Confira HOCKNEY, David. O conhecimento secreto – redescobrindo as técnicas perdidas dos grandes mestres. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 13. 145 Aparentemente, Della Porta não visava às finalidades artísticas, na medida em que sua obra é dirigida a amadores, que não sabiam desenhar. Veja SNYDER, J. op. cit., p. 233. 144
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Figura 31. Câmera escura de Sir Joshua Reynolds, manufaturada na Inglaterra entre 1760-1780. Retirado
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de Science & Society Picture Library,
(29/08/06).
Figura 33. Figura de Ars Magna Lucis Et Umbrae, por Athanasius Kircher em 1646. Demonstração de utilização de uma lente entre uma tela e um espelho com inscrições, que pode ter levado ao nascimento da lanterna mágica. Figura 32. Mesmo modelo da figura anterior, fechado. Retirado
Retirado de Science & Society Picture Library,
(29/08/06).
(29/08/06).
A câmera escura foi seguidamente empregada como modelo para a visão humana por diversos autores, pelo menos até o século XVIII, mas foi Kepler quem explicou a inversão da imagem na retina146. Este instrumento também foi utilizado para representar a relação entre um observador e um objeto no ambiente externo, em outras palavras, uma operação de individuação, a partir de um observador que é isolado em um quarto escuro147. Em certa medida, a separação entre observador e observado segue sendo um modelo até os nossos dias, mesmo com a invenção da imagem digital. No entanto, no final do século XIX, a câmera escura modifica-se vigorosamente com a introdução da química na fixação da imagem refletida. Segundo Crary, este aparato já havia entrado em decadência antes do surgimento 146
CAMEROTA, Filippo. Looking for an artificial eye: on the borderline between painting and topography. Early Science and Medicine 10 (2). Leiden: Brill Academic Publishers, 2005. p. 265.
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da fotografia e, enquanto modelo, tinha entrado em colapso entre as décadas de 1820 e 1830148. Jonathan Crary considera que a câmera escura era mais do que um instrumento ótico na medida em que, por mais de duzentos anos, subsistiu simultaneamente como metáfora filosófica, modelo da física óptica e, também, como aparato técnico utilizado em uma ampla gama de atividades culturais – amadoras e artísticas149. Segundo Crary, a utilização da câmera escura para a obtenção de desenhos a partir das imagens projetadas, era apenas uma das funções da câmera, mas não a mais importante. Através da descrição do artigo “camera obscura” na Encyclopédie, ele nos lista seus usos: Ela destaca a natureza da visão; provê um divertido espetáculo na medida em que apresenta imagens perfeitamente semelhantes aos seus objetos; representa as cores e movimentos dos objetos melhor do que qualquer outra forma de representação; com este instrumento, alguém que não sabe desenhar pode fazê-lo com extrema acurácia.150
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Apesar da observação de Crary de que o destaque para o desenho se encontra em último lugar, vale lembrar a existência de diversas obras dirigidas para artistas, onde este processo era destacado.
147
CRARY, J. op. cit., p. 27 e p. 39. Ibid., p.27. 149 Verbete retirado da Encyclopédie ou dictionnaire des sciences, des arts et des métiers, Paris, 1753. apud CRARY, J. op. cit., p. 28-29. 150 Ibid. p. 33. 148
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Figura 35. Câmera escura portátil. Istituto e Museo di Storia della Scienza. Retirado de
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27/0806).
Figura 34. Camera obscura from the Encyclopedie. . Disponível em:
(27/0806).
Figura 36. Câmera escura 1770-1775. Encyclopedie Raisonnèe des Sciences, des Arts et des Metiers. . Disponível em:
27/0806).
Os efeitos ilusórios obtidos através de experimentos com a câmera escura ou dark chamber são descritos na Encyclopaedia Britannica de 1778-1783. Neste texto, assim como em outros do mesmo período, descreve-se primeiramente a construção do aparato: “Faça um furo circular em uma persiana de uma janela de onde se tenha uma vista de campos ou de qualquer outro objeto não tão próximo”.151 A descrição detalhada do experimento (entertaining experiments) compreende a utilização de lentes, espelhos e papéis cortados em aspecto circular, mas a sua maior finalidade é a de servir de “modelo para pintores”. Algumas variações são sugeridas, como a Lanterna Mágica, uma invenção posterior que utiliza a projeção de pequenos objetos, pintados em cores transparentes sobre lâminas de vidro, sobre uma peça de tecido presa à parede. Outros textos apresentam experiências ópticas mais próximas do que hoje consideramos efeitos de mágica como, por exemplo, criar a ilusão de um homem com quatro pernas e sem cabeça ou fazer uma pessoa aparecer em um quarto e desaparecer
151
Encyclopædia Britannica; or, a dictionary of arts, sciences, &c. On a plan entirely new: ... The second edition; greatly improved and enlarged. Illustrated with above two hundred copperplates. ... Vol. 4. Edinburgh, 1778-83. 10 vols. Based on information from English Short Title Catalogue. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group. http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO. p. 2477 et seq,
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rapidamente ou, ainda, ter a sensação de que uma pessoa está “afundando” no piso.152 Apesar do sistema de operação da câmera escura ter permanecido constante, sua forma variou consideravelmente ao longo dos séculos. Em relação às variações formais, Snyder enfatiza a função de cada peça a ser produzida. O artesão ou fabricante tinha que ser informado das necessidades específicas do artista antes de projetar a câmera para seu uso. O mecanismo estava longe de ser padronizado na medida em que as lentes deveriam ser exclusivas para cada tipo de uso, sejam paisagens ou retratos. Mais ainda, uma lente própria para retratos utilizada em uma câmera pequena – e câmeras portáteis eram comuns a partir do século XVII – não poderia ser utilizada em câmeras maiores. No século XVIII, além de câmeras e lentes especialmente manufaturadas, produziam-se também
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manuais com instruções artísticas e de orientação para o emprego das lentes.153
152
SMITH, Godfrey. The laboratory; or, school of arts: containing a large collection of valuable secrets, experiments, and manual operations in arts and manufactures, ... Compiled originally by G. Smith. Sixth edition, with a great number of additional receipts, corrections, and amendments; . Vol. 2. London, 1799. 2 vols. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group. http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO. p. 168 153 SNYDER, J. op. cit., p.233.
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Figura 38. Diagrama da câmera lucida, que permitia cópia à luz do dia. Inventado por W. H. Wollaston em 1806. Retirado de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
(29/08/06).
Figura 37. Ilustração do telescópio gráfico e seus principios óticos. Do Magazine of Science, And School of Arts, 1840. Whipple Museum of the History of Science, University of Cambridge. Disponível em:
Figura 39. Espelho de Claude. Inglaterra, século XVIII. Disponível em:
(29/08/06).
Victoria and Albert Museum:
(29/08/06).
De certa forma, a insistência de Crary em isolar a câmera escura de sua participação na produção de obras de arte é abalada pela evidência do desenvolvimento do próprio artefato (diversos tipos de lente, modelos portáteis), que nos parece justificado para uma finalidade específica, ou seja, para fins artísticos – mesmo que artisticamente amadores. Em uma exposição realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo entre os anos 2003 e 2004, encontramos a evidência de que, ainda no século XIX, provavelmente depois da invenção do daguerreótipo, artistas, profissionais ou não, contavam com o auxílio de uma câmera escura portátil na composição de elementos de paisagens, em viagens pelo
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Brasil154. Estes desenhos de campo formavam em conjunto uma espécie de catálogo que era consultado posteriormente no ateliê, como um repertório de
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imagens que o artista combinava para compor a obra final.
Figura 40. Ilustração do século XIX. Duas crianças olham uma imagem projetada pela câmera escura. De E. Atkinson's, Natural Philosophy. Retirado de
(29/08/06).
Figura 41. Claude Lorraine Glass. Em PIKE, Benjamin Jr: Pike's Illustrated Descriptive Catalogue of Optical, Mathematical and Philosophical Instruments. 750 gravuras dos aparatos vendidos pelo autor, com os preços dos produtos. New York 1856, p. 193. Retirado de
(29/08/06).
Figura 42. Prospecto de anúncio de câmera escura, cerca de 1819. Retirado de
(29/08/06).
Além do mais, a câmera escura não foi o único aparato de organização da visualidade. Diversos instrumentos, desenvolvidos ao longo do século XVIII e XIX, eram destinados a auxiliar o desenho, enquanto outros se dispunham a outras funções relacionadas à arte. Dentre esses aparatos, podemos citar, por exemplo, o espelho de Claude (Figura 39) que era constituído por um espelho convexo, coberto por tinta preta. Recebeu este nome não porque se saiba que o pintor Claude Lorrain o tenha empregado, mas porque era capaz de produzir uma imagem com o mesmo estilo de sombreado e tons dourados observado nas 154
COLEÇÃO BRASILIANA FUNDAÇÃO ESTUDAR NA PINACOTECA DO ESTADO. Vistas do Brasil. São Paulo, 2003-2004. Catálogo de exposição. 1 CD-ROM
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pinturas de Lorrain.155 No auge do seu uso, entre o final do século XVIII e o inicio do XIX, o espelho de Claude era encontrado em gabinetes de curiosidade, lojas de óptica e círculos artísticos. Era utilizado porque produzia uma visão pitoresca e diferenciada. Ao contrário deste aparato, que se apoiava sobre espelhos, o vidro de Claude (Claude Lorraine Glass - Figura 41) era um conjunto de lâminas coloridas transparentes, utilizadas para a observação de eclipses, nuvens e paisagens. O vidro de Claude reforça o conceito de mono-visão surgido com a perspectiva. Em conjunto, com o espelho de Claude, parece sugerir a delimitação do campo de visão, a área que deve ser de fato observada, como na proposta da janela de Alberti. Neste sentido, ambos são colaboradores da construção de um olhar em um movimento de enquadramento, metafórico e literal, onde o campo de visão do observador é limitado a partir da intermediação entre o observador e o que é observado. Outros aparatos visuais ainda podem ser diretamente relacionados à PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
reprodução de objetos e paisagens. Neste último grupo encontramos a câmera lúcida (Figura 38) e sua variante, o telescópio gráfico (Figura 37), patenteado em 1811 por Cornelius Varley. Talvez não seja desnecessário lembrar que a câmera escura constituiu-se em uma ferramenta de trabalho e, analogamente ao que acontece hoje com a computação gráfica, o seu uso, por si só, nunca pode ter sido garantia de qualidade da obra produzida. Um desenhista medíocre não conseguiria extrair da câmera escura, ou de nenhum outro aparato óptico, uma operação miraculosa. Mas, apesar disso, o seu emprego como auxiliar na produção de imagens ou pinturas não era algo de que o artista pudesse vangloriar-se. De maneira geral, os artistas costumam ser reticentes em relação aos seus métodos, e não devem ter sido muito diferentes no ado. Esse é um dos argumentos utilizados por David Hockney na sua proposição de que os artistas “escondiam” o uso de auxílios óticos ou de seu domínio secreto, como sugere o título de seu livro: O conhecimento secreto156. Nesse livro, Hockney defende a tese de que a partir do século XV, muitos artistas usaram a óptica, ou seja, espelhos e lentes ou uma combinação de ambos, para criar projeções sobre as quais pudessem reproduzir imagens fiéis.
155
DUPRÉ, Sven. The Claude Glass: Use and meaning of the black mirror in Western Art by Arnaud Maillet. Institute for Research in Classical Philosophy and Science. Resenha. 156 HOCKNEY, David. O conhecimento secreto – redescobrindo as técnicas perdidas dos grandes mestres. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
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A partir de uma visita a uma exposição de Ingres, em 1999 na National Gallery de Londres, Hockney começou a questionar se Ingres teria “usado de vez em quando esse pequeno dispositivo óptico, então recém-inventado”.157 Esse pintor trabalhou nas primeiras décadas do século XIX, realizando desenhos de pequeno formato, mas misteriosamente “precisos”. Hockney começou a realização de experimentos práticos, a princípio com uma câmara lúcida e, depois, com uma câmara escura, ao mesmo tempo em que ou a “ver com outros olhos” as obras de artistas do ado. Para ele “a óptica não faz marcas - ela produz apenas uma imagem, uma aparência, um meio de medida. O artista ainda é o responsável pela concepção, e é necessária grande habilidade para superar os problemas técnicos e reproduzir a imagem em tinta. No entanto, tão logo se percebe a influência profunda que a óptica exercia na pintura, e o modo como era empregada pelos artistas, começa-se a observar as pinturas de um novo modo”.158 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Hockney, então, montou, em seu estúdio, um “Grande Mural” onde justapôs reproduções de quinhentos anos de trabalhos de diversos artistas, de forma a investigar a utilização dos aparatos ópticos. Durante a sua pesquisa, ele travou contato com historiadores da arte e com um opticista, Charles Falco, que lhe ofereceu apoio técnico. O problema com a hipótese Hockney-Falco, como a questão ou a ser conhecida na história da arte e das ciências, é que a utilização dos instrumentos óticos se encontra sugerida a partir da primeira metade do século XV. Hockney aponta que entre o fim dos anos 1420 e o começo dos anos 1430. ocorreu uma súbita mudança nas pinturas, rumo a um maior naturalismo. Esta transformação, evidenciada nas obras de Robert Campin e Jan van Eyck, é atribuída por Hockney ao auxílio óptico de lentes ou espelhos metálicos.159 Apesar dos tratados medievais sobre óptica demonstrarem o interesse dos estudiosos pela luz, visão, espelhos e reflexão, não existem evidências de que essa preocupação pudesse ir além da geometria dos pontos ou da utilização de espelhos cilíndricos, cônicos, côncavos e convexos para reflexão, mas não para projeção.160 De fato, não existem provas documentais da utilização de espelhos para projeção
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HOCKNEY, D. op. cit., p.12. Ibid. p. 131. 159 Ibid. p. 71-72. 160 SCHECHNER, Sara J. Between knowing and doing: mirrors and their imperfections in the renaissance. Early Science and Medicine 10 (2). Leiden: Brill Academic Publishers, 2005. 158
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antes do século XVI. Além disso, há uma grande distância entre o saber e o fazer. O conhecimento de princípios físicos não é e nunca foi garantia de existência de um sistema que se utilize dele e, como vimos anteriormente, os conhecimentos que levaram à invenção da câmera escura lhe precederam em muitos séculos. Além disso, assim como Leonardo da Vinci chegou a desenhar um helicóptero, mas nunca se pensou que ele poderia ter sobrevoado a Toscana, existia uma grande distância entre os textos sobre ótica e a produção artesanal de espelhos e lentes do final da Idade Média.161 Deste modo, embora os artistas possam ter utilizado espelhos para ajudá-los a fazer auto-retratos, na produção de desenhos em perspectiva ou, ainda, na observação de outras obras, é improvável que os tenham utilizado como equipamentos de projeção antes da invenção da câmera escura. Não existem evidências técnicas neste sentido, tanto em relação às peças sobreviventes, quanto PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
de acordo com as condições materiais e técnicas da produção de espelhos no período - impensáveis para a obtenção de uma imagem clara e realística.162 É claro que os artistas dos primeiros tempos da Idade Moderna tiraram partido do desenvolvimento dos apetrechos ópticos e do conseqüente aprimoramento da câmera escura. Mas, de fato, o aperfeiçoamento de espelhos e lentes ainda iria demorar alguns séculos, embora tenha começado a tomar impulso a partir de Galileu Galilei em sua busca por melhores imagens da lua.163 Apesar de ter seu nome associado a esse instrumento, Galileu não foi o inventor do telescópio. Antes dele, um tubo, com duas ou mais lentes, era já utilizado para divisar o inimigo à distância – com um único olho. Mas o termo telescópio foi cunhado apenas em 1611 - a partir das palavras gregas tēle, longe e scopeo, eu vejo164 - dois anos depois da “descoberta” de Galileu. O telescópio é considerado, por Hanna Arendt, como o primeiro “instrumento científico”165, apesar do termo ter surgido apenas no século XIX.166 De fato, o telescópio é um instrumento ótico que se inscreve em um sistema epistemológico substancialmente diferente dos outros aparatos do universo da 161
Id. Ibid. p. 162. 163 KEMP, Martin em carta para o autor. HOCKNEY, D. op. cit., p. 246. 164 http://brunelleschi.imss.fi.it/museum/esim.asp?c=200601 165 ARENDT, H. op. cit. 162
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Renascença. Arendt o listou entre os três eventos fundamentais que determinaram o caráter da era moderna, ao lado da descoberta da América, e subseqüente exploração de toda a Terra, e da Reforma.167 Para a teórica alemã, a invenção do telescópio ensejou o desenvolvimento de uma nova ciência que considerava a natureza da Terra do ponto de vista do universo. Observou, ainda, que os nomes ligados a estes eventos, incluindo o de Galileu, pertenciam a um mundo prémoderno, na medida em que não se encontrava entre eles a estranha sensação de novidade, a veemência com que quase todos os grandes autores, cientistas e filósofos, desde o século XVII, declaravam ver coisas que nenhum homem jamais vira antes e ter pensamentos que jamais haviam ocorrido a ninguém.168
Neste sentido, Galileu não pode ser considerado um revolucionário. Mas, foi apenas com a “visão” da imensidão do espaço que teve início uma nova ciência.
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Assim, se a invenção do telescópio é fundadora da ciência moderna e a técnica da perspectiva pode ser considerada como um elemento fundamental na constituição do olhar moderno, a câmera escura poderia ser considerada como um aparato multifuncional, ligado à concepção que temos hoje de entretenimento. Se para Jonathan Crary, a câmera escura deve ser analisada de forma distanciada da lógica evolucionária do determinismo tecnológico que a posiciona como percussora de uma genealogia que leva ao nascimento da fotografia, por outro lado, este aparato é um amálgama social “onde sua existência como figura textual e discursiva é inseparável do seu uso técnico”.169 Citando Gilles Deleuze “máquinas são sociais antes de serem técnicas”, Crary afirma que a câmera escura e a câmera fotográfica são objetos sociais que pertencem a duas organizações, de representação e de relação entre o observador e o visível, fundamentalmente diferentes. Apesar de considerar a semelhança entre os princípios estruturais de ambas, Crary observa que no inicio do XIX, a câmera escura já não era sinônimo de produção de verdade. No entanto, em sua opinião, as distinções podem ser observadas a partir de uma diferente rede de enunciados e práticas. Sem querer estabelecer uma visão teleológica do desenvolvimento dos aparatos da visão, nos
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D. J. Warner, “What Is a Scientific Instrument, When Did it Become One, and Why?” British Journal for the History of Science, 23 (1990), 83-93. Apud MALET, Antoni. Early conceptualizations of the telescope as an optical instrument. Early Science and Medicine 10 (2). Leiden: Brill Academic Publishers, 2005. p. 244. 167 ARENDT, H. op. cit., p.260. 168 Ibid. p. 261. 169 CRARY, J. op. cit., p. 30 et seq.
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permitimos discordar desta abordagem do autor que, em nossa opinião se presta a enfatizar a sua análise dos aparatos de visão utilizados no inicio do século XIX. Em nosso ponto de vista, a câmera escura não é simplesmente inseparável da pré-história fotografia, mas também dos desdobramentos subseqüentes que levaram à imagem em movimento. Apesar disso, devemos reconhecer que as condições temporais e epistemológicas da câmera escura e da fotografia são substancialmente diferentes e suas conseqüências não devem ser estabelecidas em um sentido teleológico. De certa forma, as alusões filosóficas da câmera escura remetem à idéia das sombras na caverna de Platão. Marx a utilizou como metáfora de um modelo de forças que mascara, inverte e mistifica a verdade.170 Em Freud ela é uma metáfora fotográfica para o funcionamento do inconsciente.171 Nietzsche utiliza múltiplas metáforas, fazendo uma analogia entre a câmera escura e olho do pintor.172 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
A partir de considerações sobre o emprego da câmera escura em meados do século XIX, Mitchell critica a metáfora de ideologia desenvolvida por Marx sobre este aparato.173 Segundo Mitchell, Marx emprega esta imagem para ridicularizar as ilusões da filosofia idealista no momento em que o daguerreótipo surge para preservar as “imagens perfeitas da natureza”. A câmera escura, anteriormente empregada como sinônimo de empirismo, de observação racional e de reprodução direta da visão natural, é utilizada por Marx como um mecanismo para a criação de ilusões, de “fantasmas”, “quimeras” e “sombras da realidade” que ele atribui aos seguidores da ideologia alemã. Deixando de lado a possibilidade de este emprego tratar-se de um “erro de juventude”, Mitchell atém-se ao fato de que, à época de Marx, a câmera escura e a fotografia, como seu desenvolvimento, não eram celebradas apenas por encarnar o modo natural, científico e realístico de representação do mundo visível. Ao lado da reputação de instrumento científico, a câmera escura mantinha a reputação de “lanterna mágica” e produtora de “ilusões ópticas”, como descrito acima. O fato é que Marx, provavelmente, via a invenção da fotografia como mais uma falsa “revolução” burguesa, um brinquedo para a classe abastada. Deste modo, Marx procurou ilustrar a idéia de ideologia como um
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Ibid. p. 29. KOFMAN, Sarah. Camera obscura de l’idelogie. : Éditions Galilée, 1973. p. 37. 172 Ibid. p. 47-49. 173 MITCHELL, W. J. Thomas. Iconology… p. 168-172. 171
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paradoxo a partir da inversão óptica. Em certo ponto, a inversão não produz nenhuma diferença, na medida em que a ilusão é perfeita. Mas, na verdade, o mundo aparece de cabeça para baixo, em caos, em contradições autodestrutivas.
2.4. A herança ciclópica Neste capítulo discutimos a constituição do olhar clássico, a partir da relação com os aparatos da visão criados sob a luz do Renascimento. A relação entre o olhar e as diversas tecnologias de visualização é inseparável de alguns dos marcos principais da constituição deste período. De certa forma, o olho, a partir da era moderna, transforma-se – ele próprio – em instrumento. O olho – que em combinação com as funções racionais da mente poderia garantir o “conhecimento verdadeiro” – torna-se uma ferramenta em constante aperfeiçoamento através do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
emprego de aparatos tecnológicos que melhoram o seu desempenho, na ampliação de seu alcance ou na criação de novas possibilidades. Mas, as mesmas ferramentas – provedoras da verdade – também podem oferecer ilusões. Neste jogo, o homem ganha o domínio dos códigos: pela primeira vez na história da realidade sensível há um conjunto de disposições sistemáticas que pode ser empregado para favorecer a dominação de um dos sentidos. Deste modo, não parece haver dúvida de que a perspectiva iniciou a racionalização do olhar. A compreensão desta influência unicamente sobre o campo da arte é restritiva. Praticamente, todos os campos do conhecimento foram influenciados por esta ferramenta e esta ascendência de algum modo acabou refratando sobre o próprio campo da arte.174 A instrumentalização do olhar talvez aponte o primeiro sonho mecanicista. Não importa se, em um primeiro momento, esta mecanização foi de fato materializada ou se restringiu apenas às imagens, como nas gravuras de Dürer. Estas são evidências suficientes da intenção de mecanização na produção de imagens. A partir dos aparatos tecnológicos do olhar, surgidos com o Renascimento, podemos apontar para o primeiro relacionamento homem-máquina - hoje tão evidente com a onipresença do computador. Mas, já em seus primórdios, as máquinas do olhar buscavam superar o homem, iludindo-o com a sua “naturalidade”.
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A abordagem do “olho” no singular não nos parece isenta de significado. Diga-se a propósito que a utilização de grande parte dos aparatos da primeira visualidade foi pensada em função de um único olho. Identificamos esta observação na perspectiva nos textos e gravuras da época. Para a utilização do telescópio, e mesmo dos primeiros óculos, ou monóculos, um olho deveria estar sempre ausente ou fechado. Na câmera escura esta observação é menos tangível, mas, o próprio aparato, possui um único olho: o pequeno orifício por onde entra a luz. Sabe-se que a visão humana precisa dos dois olhos para ver em profundidade, mas ao primeiro olhar moderno só lhe era dado um ponto estático. É dada a partida para a individuação do sujeito: a câmera escura, por exemplo, era voltada para a visão de um único observador, inserido em seu espaço, isolado da realidade externa e que enxergava apenas através dos raios de luz que entravam pela abertura da câmera. Igualmente, a perspectiva, com seu PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
ponto de vista unidimensional, demarca uma posição determinada também para o observador da obra. O indivíduo do olhar torna-se o sujeito humanista. Mas, se há uma sugestão de autonomia a partir da emergência do sujeito nascido com o Renascimento, esta, de fato, encontra limitações. O novo sujeito é confrontado pelas novas regras, como os preceitos da perspectiva, os novos limites do universo – que acaba de descobrir-se infinito – e por uma nova sociedade. Neste contexto, discordamos do posicionamento de Crary que desvincula a câmera escura dos desenvolvimentos posteriores. Em nosso ponto de vista, ela apresenta-se como fundamental na sua oferta de entretenimento a partir da visualidade. Deste modo, apesar da implicação de subjetividade sugerida pelo ponto de vista, o olhar ciclópico mostra-se imbricado por regras e convenções. A padronização ou racionalização do olhar que tem início com a perspectiva e o emprego da gravura irá, posteriormente, com a industrialização, incluir os objetos. Não há dúvida que o olhar que começou a ser construído no período clássico foi fundamental para a procura pela eficiência, um dos fatores que posteriormente conduziu ao desenvolvimento do design. O olhar clássico conheceu as primeiras convenções na construção da arte – e posteriormente no design – e ou a desenvolver-se a partir do convencionado.
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Este argumento é bem desenvolvido por KEMP, Martin. The science of art. Optical themes in western art from Brunelleschi to Seurat. New Haven: Yale, 1990. p.53
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Parece significativo que o termo “convenção”, criado a partir do latim, conventionem ou conventione, surja por volta de 1440 como sinônimo para “acordo”. “Convenção” no sentido de “seguir a tradição” surge apenas em 1831175, o que nos abre um outro leque de questões que serão discutidas no próximo capítulo. A esta dupla acepção da palavra, estabelecem-se suas oposições. De um lado, o convencional em oposição ao que é original e, de outro, ao que é arbitrário, ou seja, o que não foi acordado ou estabelecido dentro de uma comunidade interpretativa em determinada época. Greenberg observa que o termo “convenção” ou “convencional” aplicado à arte adquiriu uma conotação pejorativa, significando uma expressão pouco criativa e monótona.176 Por outro lado, para este autor, as convenções em arte não são permanentes nem imutáveis. Elas “extinguem-se e perecem, mas não simplesmente porque alguém resolveu que deveria ser assim”177, mas como um resultado de um processo no tecido PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
social. É importante observar que embora as convenções estejam presentes nos dois lados da fruição da arte e do design – produção e recepção – elas funcionam de maneira diferenciada em cada pólo da comunicação e chegam mesmo a caracterizar diferentemente grupos em cada um dos lados. Na produção, especialmente de um tipo de arte, a arte de vanguarda, há a necessidade de demarcar uma “nova convenção”, como assinalado acima, a partir do rompimento com a convenção anterior. Por outro lado, o produtor visual não pode abrir mão destas mesmas convenções sob pena de não se comunicar. No design, a influência das convenções é mais atuante e recíproca. Como observa Gui Bonsiepe, há uma relação de mútua influência entre o designer e a cultura material178, onde o designer atua simultaneamente, como sujeito e objeto da dinâmica cultural. Em relação à recepção das convenções, é importante destacar que as últimas constituem conjuntos de conhecimentos compartilhados por um determinado grupo ou sociedade. Deste modo, a inserção de um receptor eventual é facilitada
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Chicago Manual Style (CMS): convention. Dictionary.com. Online Etymology Dictionary. Douglas Harper, Historian.
ado em 29 de maio de 2007. 176 GREENBERG, Clement. Convenção e inovação. In: ___. Estética Doméstica. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 98 177 Ibid., p. 100. 178 Este conceito de Bonsiepe foi extraído da apresentação de Maristela Mitsuko Ono e Maria Cecília Loschiavo dos Santos da Universidade de São Paulo, na 5th European Academy of Design Conference em Barcelona entre os dias 28 e 30 de abril de 2003. As autoras não informam a procedência da citação.
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pelo domínio das convenções de domínio público, muitas vezes pensadas como percepções humanas naturais. Por outro lado, a utilização de uma convenção não é garantia de compreensão do receptor, detentor de uma subjetividade própria. Além do mais, o conhecimento das convenções necessárias para determinada fruição artística, simbólica ou estética, pode se alterar com o ar o tempo. O fundamental na avaliação deste estudo é o papel que as tecnologias acabam cumprindo na estruturação de convenções relacionadas à visualidade e como esta relação foi crescentemente sendo estruturada sobre o conceito de formas de espetáculo. Discutiremos estas questões no próximo capítulo, a partir dos eventos
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ocorridos na segunda metade do século XIX.
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3. O olhar panorâmico e “mil coisas para ver”
Este capítulo aborda algumas das modificações ocorridas no contexto das novas vivências da segunda metade do século XIX que influenciaram a construção de uma cultura visual moderna. Esta se apresenta como parte de um amplo conjunto de transformações artísticas, científicas, tecnológicas, econômicas e sociais, inclusive com o surgimento do que amos a conhecer como design. Cabe aqui como uma ressalva que a utilização do termo “moderno” não se nos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
apresenta como uma escolha simples e confortável, principalmente nestes tempos que apontam para uma sociedade pós-industrial, da informação, uma alta modernidade ou, ainda, uma pós-modernidade.179 Iniciamos este capítulo com uma discussão de cunho metodológico sobre o emprego de termos como moderno, modernidade, modernização, e revolução industrial para, em seguida, abordar a influência das tecnologias sobre a construção do olhar, a partir da análise da implantação da eletricidade e alguns de seus reflexos. Neste contexto, há uma frase esclarecedora de David Harvey. Segundo este autor “o modernismo é uma perturbada e fugidia resposta estética a condições de modernidade produzidas por um processo particular de modernização”.180 Em nosso ponto de vista, é a partir da articulação destas condições que se constrói o olhar moderno. Deste ponto em diante, o presente capítulo se desenvolve em duas direções ou eixos. O primeiro eixo é construído sobre as transformações da vida cotidiana a 179
O momento atual tem sido analisado segundo diferentes perspectivas. Há o reconhecimento de um deslocamento de processos institucionais em direção a uma centralidade na informação que parece abalar o sistema moderno, baseado na manufatura de bens materiais. Muitos autores, a partir do da idéia do fim da grande narrativa apresentada por Jean-François Lyotard em 1979, se apóiam sobre o termo “pósmodernidade” para sugerir um estado de coisas em finalização. Embora considerando que a utilização de rótulos possa ser reducionista e limitar algumas análises a partir da demarcação rígida de limites, a nossa tendência é adotar a expressão “pós-modernidade” como indicadora de um momento seqüencialmente posterior e não um momento “após” uma modernidade que, em nosso ponto de vista, não foi concluída. Neste sentido encontramos apoio na afirmação de Giddens, para quem, vivemos em um “período em que as conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes”. Para Giddens a percepção dos contornos de uma nova ordem “pós-moderna” é algo distinto do que é chamado por muitos de “pós-modernidade”. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991. p. 13. 180 HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 97.
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partir do avanço da industrialização e do surgimento da cidade moderna. O segundo eixo segue as percepções produzidas a partir do emprego de tecnologias geradoras da compressão tempo-espaço. Embora ressaltando que as tecnologias não devem ser consideradas agentes modificadores autônomos, verificamos que nos últimos vinte e cinco anos do século XIX, a área que constituiu a comunicação de massa viu surgir cinco invenções fundamentais: telefone, fonógrafo, luz elétrica, comunicação sem fio e cinema.181 Neste sentido, as tecnologias que atuam nas modificações da visualidade podem constituir ponto de partida privilegiado para uma investigação no campo da cultura visual. Neste contexto, embora a ascensão de novas tecnologias de produção, transporte e comunicação possam insinuar-se como um fator determinante, é importante destacar que as mudanças tecnológicas ocorrem em estreita ligação com as instituições sociais, políticas e econômicas de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
determinada sociedade e em um período específico. Deste modo, embora o desenvolvimento tecnológico ocorrido ao longo do século XIX, mostre-se um elemento fundamental nas modificações ocorridas na cultura visual do período, seria restritivo considerar a tecnologia como único critério de análise. A implementação de novas tecnologias esteve diretamente relacionada à emergência de um sistema de mercado atrelado aos princípios da propriedade privada, à existência de governos fortes e imperialistas e ao desenvolvimento das ciências, dentre outros fatores.182 As tecnologias de cada época devem ser articuladas às práticas de recepção e discurso e aos regimes de poder, de forma a serem compreendidas dentro do sistema em que foram construídas e se desenvolveram. Na medida em que as tecnologias, considerando-se fundamentalmente as tecnologias produtoras de imagens, se encontram entrelaçadas aos interesses econômicos de determinadas camadas da sociedade e da indústria de informação, sua força será maior sobre os modelos dominantes de visualização. Deste modo, as culturas do olhar permanecem atreladas às revoluções técnicas que, em cada época, modificam os formatos, materiais e a quantidade de imagens que uma
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Segundo Marvin, estes produtos são proto-mass media. MARVIN, Carolyn. When old technologies were new. New York: Oxford University Press, 1990. p.3. 182 HEILBRONER, Robert L. Do Machines Make History? Technology and Culture, Vol. 8, No. 3. (Jul., 1967), pp. 335-345.
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sociedade pode absorver183. Da mesma maneira que um livro de horas do século XIII, enorme, raro e pesado, não se lia como um livro de bolso dos nossos dias, uma tela de TV ou de computador exige um olhar diferente do que durante séculos foi dirigido ao retábulo de uma igreja gótica. Este enlace entre tecnologias, sociedade e poder estabelece que imagens e mídias não podem ser compreendidas como entidades fixas, mas como organismos em mudança184. Além disso, a atuação de uma tecnologia produtora de visualidade em um determinado período, dentro de uma sociedade específica, pode não encontrar correspondência em outra sociedade ou outra época. Esta visão colabora com a idéia de que as tecnologias, assim como as mídias e os modos de olhar, coexistem com modos anteriores de expressão; não deixam de existir nem são abandonadas quando surge um outro modo. Diversas tecnologias, mídias e modos de olhar coexistem e interagem em um mesmo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
período histórico. No entanto, a busca por uma determinação de causas e efeitos objetivos é hoje considerada um ranço de pesquisas ultraadas. Os primeiros estudos de “análise de efeitos” na área de comunicação datam da Primeira Guerra e foram voltados para o impacto da propaganda. Segundo o modelo da “agulhahipodérmica” de Harold Lasswell, a audiência é como uma massa amorfa que obedece cegamente ao esquema estímulo-resposta. Nesta hipótese, a propaganda é um mero instrumento, nem mais moral nem mais imoral que “a manivela da bomba d’água”, podendo ser utilizada tanto para bons como para maus fins.185 A idéia de um receptor “esvaziado” e que recebe influências diretas da mídia é um pensamento que encontra coerência em teorias da psicologia em voga na época186, mas que hoje são questionadas. Neste momento, é importante retomar como ressalva, a reflexão de que a cultura visual de um determinado período não se desenvolve simplesmente como 183
DEBRAY, Régis. Vida y muerte de la imagen. Historia de la mirada en Occidente. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1994. p. 38. 184 Pesquisas recentes mostraram que jovens bretões, entre 15 e 24 anos têm dispensado 30% menos de tempo para a leitura de jornais desde o surgimento da internet. Anunciantes e tiragens parecem minguar e há quem arrisque o ano de 2043 como data para o último suspiro do jornal impresso. Dados extraídos de The economist. Este mesmo periódico cita a data acima a partir do livro de Philip Meyer, The Vanishing Newspaper. THE ECONOMIST. Who killed the newspaper? United Kingdom: The economist group, August 26th 2006. 185 MATTELART, Armand e Michéle. História das teorias da comunicação. São Paulo: Edições Loylola, 2001. p. 37.
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substituição a uma constituição anterior. Ao contrário, uma cultura visual será sempre fruto da sedimentação de vários modos de visualidade que vão se sobrepondo. Deste modo, retomando o que já afirmamos anteriormente, a nossa análise sobre a construção de uma cultura visual considera não apenas as modificações ocorridas ao longo de um período histórico e por ele determinadas, mas também as formulações visuais anteriores sobre a qual se sedimenta. A visualidade moderna não seria uma exceção justamente na medida em que ela se alicerça sobre a racionalidade do olhar ciclópico, construído sobre a invenção da perspectiva e disseminado pela gravura impressa. As novas formas e imagens que se tornaram presentes na vida cotidiana dos moradores da cidade aram a influir diretamente na formulação de um repertório característico, mas, também na formulação de um olhar urbano. Em nosso ponto de vista, estes estímulos visuais aram a permitir que o cidadão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
urbano do século XIX constituísse um novo imaginário, sobre o qual pôde “fabricar” uma nova visualidade a partir das imagens que vivenciou.187 Assim, a produção de uma cultura visual de cada época, com a qual o receptor de imagens estabelece contato, irá influenciar diretamente nas suas “escolhas” posteriores – nas relações com o que será observado e como. A interação dinâmica entre uma forma de olhar o mundo e a própria constituição deste mundo através da organização de convenções e percepções relacionadas à cultura visual.
3.1. Tempos modernos A palavra modernité, criada por Théophile Gautier188, foi difundida por Baudelaire em seu texto O Pintor da Vida Moderna. A frase fundamental desta obra encontra-se transcrita em quase todas as abordagens do tema: “A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a
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Considere-se, por exemplo, a psicologia das massas de Le Bon, o behaviorismo surgido por volta de 1914, as teorias do russo Pavlov sobre o condicionamento e ainda os primeiros estudos da psicologia social, que sustentavam que somente certos impulsos primitivos, ou instintos, poderiam explicar os atos dos homens e dos animais, vinculando o comportamento às forças biológicas. 187 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. p. 93. 188 PEREIRA, Margareth Campos da Silva. A participação do Brasil nas exposições universais. Projeto: Revista brasileira de arquitetura, planejamento, desenho industrial, construção, n. 139, pp. 83-90, mar. 1991. p. 83.
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outra metade o eterno e o imutável”.189 A dialética contida neste conceito evidencia as dificuldades encontradas nas tentativas de compreensão e definição do conceito de modernidade. Este sentido é reforçado por Berman em sua afirmação de que ser moderno é viver em uma época que promete aventura, novos prazeres, autotransformação e transformação das coisas em redor, mas, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que somos.190 A experiência moderna é perada por uma sensação de insegurança e a crescente perda de valores, que Berman ressalta em Marx: Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de Antigüidade e veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo o que é sólido desmancha no ar.191
Segundo Berman, o mundo moderno que nos envolve como um turbilhão tem sido parte da vida de um número crescente de pessoas ao longo dos últimos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
quinhentos anos - embora cada uma delas possa sentir-se como as primeiras, e talvez as últimas, a ar por isso.192 O turbilhão que é, de fato, uma figura para definir a “modernização”193, tem sido alimentado pelas inúmeras descobertas nas ciências, pela industrialização e sua transformação de conhecimento científico em tecnologia e pela aceleração do crescimento urbano e do ritmo de vida, dentre outros fatores. O termo “modernização” é encontrado a partir do século XVIII relacionado a modificações na habitação, na ortografia, no modo de vestir e no comportamento. A partir do século XIX seu emprego se generaliza194. A sensação de efemeridade e fragmentação produzida pelas mudanças caóticas e muitas vezes abruptas, mas que se insinuavam – ainda que momentaneamente – com a certeza e a racionalidade oferecidas pelo Iluminismo, ou a expressar-se estética e culturalmente a partir do século XIX. Se a paisagem da modernização é algo que conseguimos identificar, a sua relação com a modernidade nem sempre é algo facilmente definida. De fato, moderno e modernidade não remetem a conceitos claros e fechados, nem a periodicidades definidas, como ainda parecem apresentar variações de sentido conforme o idioma 189 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: ______. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 859. O texto original foi publicado em 1863. 190 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2001. p. 15. 191 The Marx-Engels Reader. Norton, 1978. p. 475-6. apud Ibid., p. 20. 192 Ibid., p. 15-16. 193 Id.
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utilizado ou o campo em que é empregado195. Segundo Schorske, a palavra “moderno” era empregada até o fim do século XVIII com “certa ressonância de grito de guerra”, mas apenas como antítese ao “antigo”. A partir de meados do século XIX, ainda segundo este autor, o “moderno serve-nos para diferenciar nossas vidas e nossos tempos de tudo o que o precedeu”.196 A oposição ao ado é deixada de lado ante a prevalência de independência em relação ao ado. Esta formulação é sintetizada por Bayly com uma frase que, embora tautológica, parece levar clareza ao conceito: “ser moderno é pensar-se moderno”.197 Modernidade é a aspiração de estar de acordo com o seu tempo (to be up with the times).198 Segundo este autor, entre 1780 e 1914, um crescente número de pessoas qualificava-se como “modernos” ou consideravam sua própria existência em um “mundo moderno”, mesmo que esta idéia não lhes agradasse.199 Bayly considera que, em certo sentido, o século XIX pode ser creditado como a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
era da modernidade precisamente porque assim pensava um considerável número de pensadores, governantes e cientistas influentes. Este sentimento foi enfatizado, na segunda metade do século XIX, pela avalanche de ícones da modernidade industrial e tecnológica - trens, carros, aviões, telegrafo, rádio e telefone. Bayly considera ainda o surgimento de um diferencial na qualidade de percepção das mudanças deste período. Antes do século XIX, as mudanças adas seriam percebidas de modo diferente, mais próxima de “renovação”, com implicações de repetição e não de substituição, como pode ser observado no Renascimento através da retomada dos conhecimentos da antiguidade clássica.200 A demarcação de datas precisas na formulação do conceito de modernidade é dificultada pelo fato de que os diversos eventos, agentes modificadores de uma determinada situação, dificilmente ocorrem de forma sincrônica. Além disso, uma análise de uma determinada cultura visual não pode ater-se apenas aos eventos, mas deve abraçar também os discursos produzidos e as evidências registradas. As mudanças capazes de promover uma nova realidade social podem acontecer de
194
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave. Um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. p. 282. 195 COMPAGNON, Anton. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p. 15. 196 SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle. São Paulo: Ed. da Unicamp e Cia. das Letras, 1988. p. 13. 197 BAYLY, Christopher Alan. The birth of the modern world 1780-1914: global connections and comparisons. USA, UK and Australia: Blachwell Publishing, 2004. p. 10. 198 Id. 199 Datas estabelecidas pelo estudo autor em seu estudo. Id. 200 Ibid., p. 11.
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forma errática, em diferentes regiões do planeta, com influências diferenciadas em cada uma delas. Bayly chega a mencionar a existência de “múltiplas modernidades”201 para acentuar as diferenças entre a modernidade ocidental e a modernidade de países asiáticos ou africanos. Embora a construção da experiência moderna apresente uma relação estreita com a dinâmica capitalista do mundo industrial ocidental (Europa e Estados Unidos), a desigualdade entre a experiência moderna dos “avançados” e a que é observada nos habitantes de países “periféricos” nos é útil para ressaltar as descontinuidades observadas na constituição da cultura visual moderna, de acordo com o conceito de sua construção se fazer em camadas. Neste contexto, a modernidade brasileira, por exemplo, não se mostra simplesmente como um reflexo do que é ditado pelos países desenvolvidos, mas constitui uma articulação particular dentro de uma nova visualidade. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Em relação às demarcações temporais, consideramos que estas acabam sendo convencionadas de acordo com o enfoque pretendido pelo autor, embora o período compreendido, aproximadamente, da segunda metade do século XIX até o início da Primeira Guerra Mundial seja amplamente reconhecido pela ocorrência de transformações sem precedentes na história mundial. Neste contexto, as convenções em relação à demarcação temporal não apresentam variações extremas entre os diversos autores estudados. Kern202, Smil203, Hobsbawm204 e Bayly205 parecem concordar com o início da Primeira Guerra como o momento de conclusão de um período de grandes inovações, embora apresentem diferentes premissas para a determinação do marco inicial. Kern206 considera que as mudanças na tecnologia e na cultura ocorridas no período que vai de 1880 até a erupção da Primeira Guerra criaram novos modos de pensar as experiências de tempo e espaço. No entanto, seu estudo estende-se até 1918, de forma a contemplar o que nomeia de “guerra cubista”. Smil destaca o período de 1867 a
201
Ibid., p. 10. KERN, Stephen. The culture of time and space. 1880-1918. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1994. Seventh Printing. 203 SMIL, Vaclav. Creating the Twentieth Century. Technical Innovations of 1867-1914 and their Lasting Impact. New York: Oxford University Press, 2005. 204 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Editora Schwarcz, 2003. 205 BAYLY, C. A. op. cit. 206 KERN, S. op. cit., p. 1. 202
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1914207 como um período único na história, não apenas pelo âmbito extensivo das inovações, mas também pela rapidez dos avanços obtidos no período. Bayly208 inicia o mundo moderno mais cedo, em 1780, empreendendo um longo século XIX, com destaque para sua fase final entre 1890 e 1914, quando tem lugar o que ele denomina “a grande aceleração” das transformações, uma definição que relacionamos perfeitamente ao nosso estudo sobre as mudanças ocorridas na visualidade. Embora apoiando o pensamento de Tom Gunning, para quem a “modernidade” é menos um período histórico do que uma mudança na experiência209, nós compreendemos a modernidade como uma temporalidade histórica que ecoa até o presente.210 Deste modo estabelecemos como marco inicial do nosso estudo sobre as mudanças ocorridas na cultura visual moderna, o ano de 1851, quando se realizou a primeira Exposição Universal em Londres. Como detalharemos adiante, existem fatores que apontam para certa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
homogeneidade no período que se encerra com o início da primeira Guerra Mundial. Deste modo, este período, que de fato se encerra na segunda década do século XX, encontra-se ainda dentro da formulação cultural e epistemológica da segunda metade do século XIX.
3.1.1. (R)evolução industrial Os estudos históricos consideram que a expansão industrial compreende pelo menos duas etapas marcadas por tecnologias específicas. De uma maneira geral, distingue-se uma “revolução do carvão e do ferro”, de 1780 a 1850, e uma “revolução do aço e da eletricidade”, de 1850 até 1914.211 No entanto, não há consenso em relação à utilização do termo “revolução” e nem mesmo na sua efetiva existência. Em alguns círculos, por exemplo, evita-se a expressão “revolução industrial” por sugerir, acredita-se, erroneamente, a idéia de uma
207
A data de 1867 foi escolhida por Smil por ser o ano da formulação da segunda lei da termodinâmica, da criação da dinamite por Alfred Nobel - como um sinal de grande contradição - a invenção da máquina de escrever e da publicação do Capital por Karl Marx, dentre outros eventos. SMIL, V. Creating…p 10. 208 BAYLY, C. A. op. cit. 209 GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. In CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p 39. 210 BAYLY, C. A. op. cit., p. 11. 211 Esta divisão é apresentada por HENDERSON, W. O. A Revolução Industrial 1780-1914. São Paulo: Editora Verbo, Editora da Universidade de São Paulo, 1979. p. 7-8.
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ruptura com o quadro anterior, quando, de fato, observa-se que as etapas de industrialização são processos lentos e gradativos212, surgidos mais a partir de uma evolução do que de uma ou mais revoluções. Castells considera que a introdução de um novo paradigma tecnológico é capaz de instituir, com grande rapidez, uma descontinuidade nas bases materiais da economia, da sociedade e da cultura, apesar de acreditar que os novos paradigmas tecnológicos funcionam como pontuações em meio a períodos mais ou menos estáveis.213 Talvez por este motivo, este autor não se oponha à utilização do termo “revolução” para caracterizar a penetrabilidade das novas tecnologias que alteram processos nos diversos domínios da atividade humana, além de gerar novos produtos. A importância da Revolução Industrial no século XVIII vem sendo relativizada em estudos recentes e a literatura acadêmica aponta duas diferentes visões em relação a este processo.214 A narrativa mais tradicional vê a Revolução PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Industrial como produtora de uma grande mudança na economia e sociedade Britânica. Outros autores consideram que a “Revolução Industrial” foi um fenômeno localizado e que trouxe mudanças significativas para umas poucas indústrias (têxteis com utilização do algodão e do ferro), enquanto a economia Britânica permanecia tradicionalmente manufatureira.215 Há ainda questionamentos sobre a presença de embasamento científico nos avanços tecnológicos da Idade Média e dos primeiros anos da Idade Moderna. De acordo com Smil, apesar de serem baseados em observação e experimentos, estes processos não proviam conhecimento que explicasse o porquê de alguns artefatos e processos funcionarem enquanto outros simplesmente falhavam.216 Este quadro teria permanecido até as primeiras décadas da Revolução Industrial, mas apenas na segunda metade do século XIX é que se presenciaram avanços tecnológicos baseados em conhecimentos científicos sofisticados e – pela primeira vez na história – a ligação freqüente e ágil entre pesquisa, produção e comercialização foi capaz de produzir novos conhecimentos e, conseqüentemente, novos produtos. A discussão sobre a relação entre pesquisa cientifica e o desenvolvimento de novas 212
Cf. “industrialização” e “revolução” em OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1996. 213 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Vol. 1. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000. 214 TEMIN, Peter. Two views of the British Industrial Revolution. The Journal of Economic History, vol. 47, No. 1 (Mar, 1997). 215 SMIL, V. Creating…, p. 43.
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tecnologias parece ter acompanhado o desdobramento dos fatos. Um exemplo interessante deste questionamento pode ser observado na Figura 43, retirada do periódico londrino Punch da última década do século XIX. A figura mostra o cientista Michael Faraday, conhecido por suas pesquisas com o eletromagnetismo. A charge que sugere uma homenagem ao centenário do cientista, deixa claro que nesta época Faraday já não se encontrava vivo. Mas na figura, ele aparece representado em meio a diversos instrumentos científicos, utilizando o fonógrafo de Edison. Ao fundo vemos um aparelho telefônico e um cartaz com indicação dos cabos telegráficos que correm ao redor do mundo. Assim, cercado por invenções modernas, Faraday tem ao seu lado uma figura feminina, a Ciência, para quem se dirige, em congratulação pelos “maravilhosos progressos realizados desde a minha época”. É interessante observar que no período de vinte e cinco anos, entre a morte de Faraday e o desenho do Punch, tenham surgido tantos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
objetos e tecnologias relacionados, de alguma forma, à pesquisa cientifica.
Figura 43. Um centenário científico. Faraday (de volta). "Muito bem, Senhorita Ciência! Meus parabéns!Você conseguiu um progresso maravilhoso desde o meu tempo!" Punch, or The London Charivari. Vol. 100. 27 de junho de 1891. The Project Gutenberg
(21/11/07).
Apesar disso, é importante destacar que a relação entre ciência e a descoberta de novas tecnologias não pode simplesmente assinalar uma ruptura na produção de artefatos e modos de vida, uma vez que muitas das invenções do período ainda poderiam ser remetidas a descobertas casuais. Bayly acentua este 216
Ibid., p. 13.
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ponto na medida em que muitos dos efeitos e transformações ocorridos a partir da industrialização tornaram-se claros apenas em meados do século XIX.217 De fato, embora estas colocações pareçam conduzir à avaliação de que a segunda metade do século XIX constituiu um momento de amadurecimento da industrialização, é importante ter presente que as invenções nem sempre sucedem de imediato os desenvolvimentos tecnológicos que lhe deram origem. Na maioria das vezes, o momento da invenção e o período de ação da tecnologia como agente modificador, encontram-se distanciados no tempo. É este o caso, por exemplo, da televisão cuja tecnologia encontrava-se pronta antes da Segunda Guerra, que interrompeu o seu desenvolvimento e adiou a institucionalização do invento em cultura. Mais importante ainda é a compreensão de diversas descobertas ao longo do tempo atuando na formulação de uma nova tecnologia promotora de cultura, como é o caso da informática. Embora os grandes avanços nesta área tenham PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
ocorrido a partir da invenção dos semicondutores e microprocessadores, a utilização de uma fonte segura de eletricidade foi fundamental, assim como os empreendimentos ocorridos no final do século XIX voltados para a manipulação de dados estatísticos e instrumentos de cálculo218. O fato é que, onde quer que se demarquem os primeiros momentos da industrialização, eles se encontrarão diretamente relacionados ao surgimento de novas tecnologias de produção de bens e de comunicação. Diversas características mostraram-se fundamentais para a instituição deste processo, como a substituição das ferramentas manuais pelas máquinas, o início da indústria mecânica e a utilização da energia a vapor nos transportes. Também o desenvolvimento de produtos químicos em bases científicas e o início das tecnologias de comunicação, com o telefone e o telégrafo, além do aprimoramento da fotografia e o avanço de novas tecnologias de impressão que, ao lado da introdução da litografia, foram capazes de disseminar informação através de textos e imagens. Estampas, cartazes e rótulos aram a ser impressos com uma freqüência nunca vista, enquanto gravuras e impressos ilustrados eram vendidos a preços populares, dando partida ao que veio a ser chamado de indústria cultural. Uma nova organização do trabalho se sedimentou, a partir da divisão de tarefas com a inserção de diversas etapas na fabricação de um único objeto. A unidade entre trabalho criativo e 217
BAYLY, C. A. op. cit. p. 170.
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trabalho produtivo foi rompida, gerando a especialização do “projeto”, evento que contribuiu para a formação do design moderno219. A mecanização é intensificada, trazendo como conseqüência imediata uma menor variação individual entre os produtos. Observa-se um aumento nas escalas de produção com a ampliação de mercados, muitas vezes distantes do centro fabril. Para atender a estes novos mercados, dentro de uma economia de escala, as oficinas e fabricas tiveram que se expandir, recebendo maiores investimentos de capital em instalações e equipamentos. Embora a Inglaterra seja considerada o berço das primeiras indústrias, ela foi gradativamente perdendo espaço com o ar do tempo. A maior parte das transformações de caráter industrial das últimas décadas do século XIX concentrase principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha. Às vésperas da Primeira Guerra, a produção industrial da Grã-Bretanha havia diminuído em quantidade e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
seguia, em sua maioria, sendo mantida pelas indústrias de trabalho intensivo e não pelas indústrias de capital intensivo, características do que pode ser chamada de segunda revolução industrial. A explicação para esta mudança, que veio a beneficiar os Estados Unidos e a Alemanha, pode ser encontrada nas características do novo tipo de indústria voltado para as vantagens das economias de escopo e escala220. Esta nova indústria baseada na existência de um grande volume de produção, necessitava de um sistema integrado de transporte e comunicação que permitisse o deslocamento de grande quantidade de produtos por diferentes localidades. Isto significava que as ferrovias necessariamente deveriam estar integradas não apenas por bitolas e equipamentos estandardizados, mas também por procedimentos padrões. O retardamento destes processos contribuiu para que um sistema ferroviário consistente tenha demorado a se configurar. Assim, embora a ferrovia seja, muitas vezes, apontada como a principal responsável pela transformação do trabalho e da vida no século XIX221, observa-se que este acontecimento constitui parte de um processo mais amplo. A importância da padronização para a produção de massa foi assinalada pela evolução do chamado “sistema americano”, apresentado na Exposição Universal 218
A este respeito cf. SMIL, V. op. cit., p 261 et. seq. BOMFIM, Gustavo Amarante e ROSSI, Lia Mônica. Moderno e pós-moderno, a controvérsia. Design & Interiores. Ano 3, no. 19. São Paulo: Projeto Editores Associados Ltda., 1990. 220 CHANDLER Jr., Alfred D., Fin de siècle: industrial transformation. In: TEICH, M. and PORTER, R. Fin de Siècle and its Legacy. Cambridge Univ. Press. P. 28-41. 219
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de 1851, em Londres e que consistia na produção em larga escala de produtos padronizados, com partes intercambiáveis, utilizando máquinas-ferramentas, numa seqüência de operações mecânicas simplificadas. Este sistema, que havia surgido simultaneamente e de forma independente na França e na Inglaterra, mostrou-se bem sucedido posteriormente na indústria de armamentos dos Estados Unidos, provavelmente graças ao apoio governamental em uma sociedade sem tradição de corporações artesanais.222 Este processo e a existência de uma extensa variedade de partes e órios fabricados, inclusive porcas e parafusos, apontou para a necessidade de uma padronização no sistema de medidas. No decorrer da guerra com a França entre 1870 e 1871, o império prussiano observou as dificuldades de mobilização e utilização das ferrovias para fins militares. Deste modo, atentou para a importância da padronização do sistema ferroviário e estatizou as ferrovias do seu território, visando a unificação. A partir PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
de 1877, começou a produzir locomotivas padronizadas.223 Na Grã-Bretanha, a rede ferroviária, desenvolvida pela iniciativa privada, nunca se concluiu como um todo unificado, permanecendo como a soma de linhas regionais operando de forma independente e competitivamente. As dificuldades deste sistema eram bastante claras: embora houvesse linhas ligando as diversas localidades, o seu percurso envolvia mudança de trens e transferência de carga entre linhas, onerando os custos de transporte de mercadoria. Deste modo, a adoção da padronização do sistema ferroviário estabelece-se como um elemento de influência direta sobre o desenvolvimento do país. No decorrer deste capítulo veremos como a ferrovia atuou de forma revolucionária na produção do olhar moderno, a partir da compressão sobre as dimensões de tempo e espaço. Neste momento, desejamos apenas acentuar, de um lado, a proximidade das transformações tecnológicas e estruturais na reformulação do olhar e, de outro, o fato de que ambas caminham de forma não teleológica sofrendo influências, muitas vezes não previsíveis, como políticas e econômica.
221
HESKETT, John. Desenho Industrial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. p. 29. HEILBRONER, Robert L. Do Machines Make History? Technology and Culture, Vol. 8, No. 3. (Jul., 1967), p. 343. 223 HESKETT, J. op. cit., p. 70-71. 222
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3.1.2. A tecnologia e o novo olhar da eletricidade Uma análise que busque compreender as transformações da cultura visual em um período tão pleno de inovações tecnológicas, como é o caso da última metade do século XIX, terá que necessariamente considerar questões ligadas às tecnologias de comunicações da época. Ao longo de toda a modernidade, as tecnologias parecem ter despertado paixões e aversões. As instâncias teóricas que abordam o grau de influência das tecnologias e a existência de um valor intrínseco a elas constituem um vasto campo de disputa entre diferentes perspectivas. Deste modo, questiona-se em que medida uma tecnologia de comunicação trata-se da uma força determinante em uma mudança social e, em que medida ela pode ser neutra, ou seja, pode ser tão boa ou má quanto o uso que dela é feito. Apesar de considerarmos a segunda questão como um desdobramento da primeira, é dela
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que partiremos. Marshall McLuhan, que foi muito influente na década de 1960, considerava esta dúvida como fora de questão. Para ele seria equivalente a questionar se o vírus da varíola ou as armas de fogo seriam, em si mesmos, bons ou maus - seu valor dependendo da forma como seriam utilizados.224 De acordo com McLuhan todas as tecnologias de comunicação atuam diretamente na construção do nosso pensamento e de nossa percepção, independente do conteúdo e do contexto social. Em nosso ponto de vista, as conclusões de McLuhan parecem excessivamente deterministas (a mensagem seria apenas encontrada nos meios?). Sua rejeição às análises de conteúdo e às questões de recepção enfraquece e limita o seu posicionamento. Além do quê, nos perguntamos, como ficaria a sua análise sobre os meios frios e quentes a partir das mudanças, fusões e alterações que freqüentemente sofridas pelos próprios meios. A HDTV, televisão de alta definição, por exemplo, continuaria a ser considerada um meio frio como a antiga televisão em preto e branco? Apesar das nossas críticas em relação ao posicionamento de McLuhan, consideramos que o determinismo tecnológico não chega a constituir um problema na medida em que ele é matizado. Deste modo, consideramos que a presença ou implantação de uma determinada tecnologia de comunicação pode ser
224
McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Ed. Cultrix, 1969. 15a. reimpressão. p. 25.
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um agente catalisador ou facilitador de determinadas conseqüências - que podem ou não se realizar em sociedade ou períodos específicos.225 Para nós, o determinismo torna-se problemático quanto assume o enfoque evolucionista e a a considerar as mudanças sócio-culturais de acordo com uma linha evolucionária sempre em direção ao “progresso” material e, também, muitas vezes, moral – obtido a partir dos sucessivos estágios de desenvolvimento tecnológico, considerados verdadeiras revoluções. Deste modo, ao se acatar a vocação evolucionista, algumas vezes de forma inconsciente, os períodos caracterizados por uma determinada tecnologia am a ser chamados como “era da informação” ou “da imprensa”. Não é preciso dizer que esta abordagem, além de relegar a influência social a um segundo plano, tende a considerar a substituição de uma tecnologia por outra mais moderna, quando na verdade elas muitas vezes se sobrepõem: a televisão não destruiu o cinema nem parece PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
ameaçada pela internet. As diversas tecnologias não se encontram simplesmente ajustadas em linhas sucessivas em direção ao “progresso”. Em nosso ponto de vista, mais do que um agente modificador, cada tecnologia é um processo que atua na construção do ambiente e das relações sociais, econômicas, políticas e culturais, mas, também sofrendo influências destas. O conceito de tecnologia como processo procura não fixá-la como um evento detido no tempo, quando na verdade sua implantação ocorre em diversas etapas a partir da sua invenção226, ando pela sua formalização, institucionalização e absorção e, algumas vezes, descontinuidades. Deste modo, faremos algumas colocações relacionadas ao desenvolvimento da energia elétrica, uma “nova tecnologia” surgida no século XIX, com o intuito de observar o que chamamos de processo. A imagem do planisfério que vemos aqui (Figura 44) é uma montagem de fotos tiradas por satélites.227 Ela cria um desenho do nosso planeta a partir da utilização da iluminação noturna em áreas urbanas. Se uma montagem como esta pudesse ter sido produzida há duzentos anos atrás, o desenho resultante teria sido
225
FINNEGAN, Ruth. Literacy and Orality: Studies in the Technology of Communication. Oxford: Basil Blackwell, 1988. apud CHANDLER, Daniel (1995): Technological or Media Determinism http://www.aber.ac.uk/media/Documents/tecdet/tecdet.html o em 12 de fevereiro de 2008 às 16:07. 226 Embora reconheçamos grandes valores a quem são atribuídas importantes “invenções”, em nosso ponto de vista, uma tecnologia surge mais como o resultado de um longo processo de estudos científicos anteriores. Seria algo como a pessoa certa estar corretamente preparada, no lugar e na hora certos. 227 A sugestão desta imagem foi obtida a partir de SMIL, V. op. cit..
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muito diferente. De modo que, o resultado que temos em mãos nos sugere uma mudança impactante gerada pelo desenvolvimento de uma tecnologia específica a eletricidade - capaz de “imprimir” alterações na própria face da Terra.
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Figura 44. Terra à noite. NASA/DMSP. 27 de novembro de 2000. Retirado de
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A “montagem” realizada duzentos anos atrás talvez nos mostrasse um brilho pálido em alguns pontos da Europa e dos Estados Unidos. A comparação com a imagem atual geraria iração pelo desenvolvimento proporcionado pelo emprego desta tecnologia, chegando a sugerir uma verdadeira revolução. Não resta dúvida que o emprego da energia elétrica atuou de forma revolucionária na constituição do olhar moderno, minimamente, por interferir na influência natural dos tempos diurnos e noturnos, além de possibilitar energia para a utilização de diversos aparatos como o projetor de cinema. No entanto, a provisão de iluminação noturna que mudou de forma direta a vida cotidiana nas ruas e nas casas, foi iniciada com a iluminação a gás na primeira metade do século XIX. Sobre a luz a gás, Guy de Mauant chegou a afirmar que “as noites resplandecentes são mais alegres que os grandes dias de sol”.228 A partir do final do século XIX, a eletricidade foi um fator predominante para o desenvolvimento tecnológico, não somente por promover iluminação para residências e empresas, apartando o tempo da influência direta da natureza, mas também por transformar inúmeros processos de produção, particularmente nas indústrias químicas e de metalúrgicas.
228
MAUANT, Guy de. Clair de Lune, Paris, 1909, p. 222. apud BENJAMIN, Walter. A fotografia. agens. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. p. 613. [T 5,1].
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A eletricidade era conhecida desde a antiguidade, mas estudos com características científicas foram observados apenas a partir dos séculos XVII e XVIII. No entanto, como sugerem as figuras da publicação do século XVIII (Figura 45; Figura 46), apesar de estudada em laboratórios, ainda não existia uma idéia concreta do que poderia ser a sua utilização. Os experimentos se prendiam à compreensão de seus princípios enquanto sua finalidade sugeria uma proximidade
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com a área médica.
Figura 45. Folha de rosto do livro An essay on electricity, 1785. London, 1799. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group.
(2/08/06)
Figura 46. ADAMS, George. An essay on electricity, explaining the principles of that useful science; and describing the instruments, ... Illustrated with six plates. The fifth edition, with corrections and additions, by William Jones, ... London, 1799. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group.
(2/08/06)
Esta idéia ainda acompanhou o desenvolvimento da eletricidade por algum tempo. No folheto de 1890, vemos o anúncio de um magneto baseado no “poder de cura da eletricidade” e que afirmava poder sanar problemas de pele, dores de dente, ciática e até paralisias (Figura 47). Este tipo de anúncio não se trata de um caso isolado. Relatos de experimentos médicos utilizando eletricidade eram comuns em publicações especializadas229, como o Electricity and Electrical Engineering, cujo anúncio reproduzimos aqui (Figura 48). É claro que estas publicações, existentes em grande número, não eram dedicadas apenas a experimentos ou aplicações médicas, mas eram voltadas para a grande demanda de trabalhadores qualificados no setor elétrico.
229
MARVIN, Carolyn. When old technologies were new. New York: Oxford University Press, 1990. p. 129.
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Figura 48. Anúncio do periódico Electricity & Electrical Engineering, 1888. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
(2/12/07)
Figura 47. Anúncio do magneto elétrico do Dr. Lowder, 1890. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
(19/01/08)
A nova fonte de energia foi apresentada na Exposição de Paris de 1855. Segundo L’Illustration Française, a eletricidade “dá uma luz que parece uma emanação do sol; ela produziu no tratamento físico de corpos simples, efeitos que viriam deslocar todos os conhecimentos teóricos sobre a matéria”.230 Mas, foi apenas na Exposição de 1867 que a eletricidade recebeu maior atenção graças à inauguração do primeiro cabo telegráfico submarino um ano antes. Jacques Fabien, em 1863, a propósito de considerações sobre a velocidade de notícias trazidas pelo telégrafo como agente de insanidade, faz um pequeno relato do percurso de aplicação da eletricidade: A luz jorrando da eletricidade serviu primeiro para iluminar as galerias subterrâneas das minas: no dia seguinte, as praças públicas e as ruas; depois, as fábricas, as oficinas, as lojas, os espetáculos, os quartéis; e finalmente, as casas de família. Os olhos, em presença desse inimigo radiante, comportaram-se bem, mas pouco a pouco veio o deslumbramento, efêmero no início, depois periódico, e no fim, persistente. Eis o primeiro resultado.231
Na sua chegada à Inglaterra, em 1881 - para distribuição e venda - a eletricidade era utilizada exclusivamente para iluminação, o que gerou uma série
230
L’Illustration Française . Paris: 17 nov. 1855. p. 335. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições universais. Espetáculos da Modernidade do século XIX. São Paulo: Editora Hucitec, 1997. p. 90 231 FABIEN, Jacques. Paris em Songe. Paris: 1863, pp. 96-98. apud BENJAMIN, W. agens... p. 610. [T 3,1].
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de problemas.232 Por um lado, este tipo de utilização mostrou-se vantajosa em relação ao gás, graças a sua limpeza e brilho. No entanto, como a demanda exclusiva para iluminação era limitada às horas de escuridão, o fator de carga necessário à produção de energia permanecia inativo ao longo do dia. Em outras palavras, os custos de capacidade de geração de energia para o pico da carga, localizado principalmente à noitinha e no começo da manhã, faziam com que a eletricidade atingisse um alto custo, dificultando o seu consumo. A solução para este problema deixava evidente a necessidade de se criarem outros usos para ao longo do dia. Em 1895, o engenheiro da estação de força Kensington Court publicou um pronunciamento no Journal of the Institutuion of Electrical Engineers, onde afirmava a importância de se encorajar à população a fazer uso da eletricidade para o aquecimento e o preparo de alimentos; para tanto, devia-se tornar evidentes as vantagens de seu uso, desenvolvendo-se dispositivos para este PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
fim.233 Ou seja, clamava-se pela criação de artefatos que pudessem utilizar a da eletricidade. Como qualquer outro produto industrial, a energia elétrica precisava ser consumida em quantidade e por um público amplo para obter as vantagens da produção em escala. Por volta de 1900, o uso da energia elétrica era mais freqüente na indústria e tração, mas a demanda permanecia baixa à noite e nos finais de semana. Até o início da Primeira Guerra Mundial seu uso doméstico era ínfimo234 e, ao final do conflito, as mesmas dificuldades continuavam presentes. A maior parte dos produtos domésticos que conhecemos hoje foi inventada naquela época, ao lado de vários outros aparatos que devem ter se mostrado menos úteis, como chaleiras elétricas e esterilizadores de leite (Figura 49; Figura 50). Mas, o principal obstáculo para a utilização da eletricidade continuava sendo o seu alto custo. Havia um círculo vicioso: a energia elétrica era cara e por isso pouco utilizada; por ser pouco consumida, continuava cara. Além disso, havia outras dificuldades: era necessário levar cabos elétricos para dentro de casa e pelos diversos aposentos. A eletricidade encontrava terreno fértil para superstições: seus pressupostos eram pouco compreendidos, e ainda podia ser fatal em caso de mau uso. Finalmente, o gás continuava sendo mais eficiente e barato. 232 FORTY, Adrian. Objetcts of Desire. Design & society form Wedgwood to IBM. New York: Pantheon Books, 1986. p. 183. 233 Ibid., p. 184
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Figura 49. Electric breakfast, 1914. Retirado de FORTY, Adrian. Objetcts of Desire. Design & society form Wedgwood to IBM. New York: Pantheon Books, 1986. p. 187.
Figura 50. Anúncio de produtos elétricos Magnet, 1914. Retirado de FORTY, Adrian. Objetcts of Desire. Design & society form Wedgwood to IBM. New York: Pantheon Books, 1986. p. 186.
Dois recursos foram considerados para mudar este quadro: a eficiência dos artefatos, ressaltando a importância do design, e a utilização de propaganda. Neste contexto, a eletricidade chegou a ser tratada como “o maior presente da ciência para o mundo” e o “combustível do futuro”. Neste sentido, o texto de Condulack, mostra, a partir da análise de representações da eletricidade (e seus raios luminosos) em impressos das últimas duas décadas do século XIX, como esta tecnologia associou-se à divulgação de uma vida urbana moderna.235 É interessante observar em exemplos contemporâneos a continuidade de uma solução gráfica vinculada à glorificação de uma tecnologia, então, recente.
234
Ibid., p. 185 CORDULACK, Shelley Wood. A Franco-American Battle of Beams: Electriciy and the Selling of Modernity. Journal of Design History. Summer 2005; 18: 147-166. 235
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Figura 52. Liberdade faiscando para o mundo. Le Journal Illustré de 10 de outubro de 1875. In: CORDULACK, S. op. cit. p. 149.
Figura 51. O Farol elétrico da Torre Eiffel, ilustração da capa para Exposition de Paris de 1889. No. 14, 1o. de junho de 1889. In: CORDULACK, Shelley Wood. A FrancoAmerican Battle of Beams: Electriciy and the Selling of Modernity. Journal of Design History. Summer 2005; 18: 157. Figura 53. A estrela da esperança: uma nova ode naval. Punch, or the London Charivari, Vol. 104, 11 de fevereiro de 1893. The Project Gutenberg.
(21/11/07).
As noções de modernidade e progresso, sugeridas a partir da aliança com novas descobertas científicas, aram a ser aplicadas ostensivamente no design de produtos elétricos, após a Segunda Guerra, utilizando-se referências explícitas a carros e aviões. Deste modo, embora a sua utilização tenha sido praticamente “empurrada”, a energia elétrica é hoje fundamental na vida cotidiana e no desenvolvimento de qualquer país, participando ativamente na construção do olhar moderno.
No Brasil, a introdução da energia elétrica encontrou as mesmas dificuldades iniciais, mas a principal diferença pode ser observada na total inexistência de artigos elétricos, que durante muitos anos, eram importados. As primeiras experimentações aconteceram no período imperial embora a disseminação tenha ocorrido apenas nos últimos anos do século XIX, sob o
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regime republicano. No entanto, poucas companhias de eletricidade demonstraram investimentos no sentido de tentar ampliar o consumo. A Central Elétrica Rio Claro, localizada no interior de São Paulo é um destes exemplos. Esta empresa incluía em seus negócios a revenda de lâmpadas, ventiladores, fusíveis, lustres e motores. Em 1910 ou a vender campainhas de porta e ferros elétricos de engomar e, em 1920, geladeiras. A AMFORP, Companhia Central Brasileira de Força Elétrica, localizada no Espírito Santo no final da década de 1920, vendia a crédito nas dependências de seus escritórios, produtos elétricos importados. Assim, até 1930 embora se observasse um crescimento da capacidade instalada, a produção de equipamentos elétricos era virtualmente inexistente. A conta de luz de 1937 da “Companhia Douradense de Electricidade” apresenta um pequeno box com propaganda do rádio: “Encha o seu lar de alegria com o rádio General Electric” (Figura 54). Deste modo, embora o desenvolvimento da eletricidade PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
tenha encontrado no Brasil os mesmos obstáculos da Inglaterra, não se tem notícia de nenhum investimento específico na criação de produtos que pudessem expandir o consumo, muito menos de sinais do papel que o design teria a desempenhar nesse processo.
Figura 54. Recibo de luz, emitido em 1937. Arquivo museu histórico FL. In: DIAS, Renato Feliciano (coord.) Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Centro da memória da eletricidade no Brasil. Rio de Janeiro, 1988. p. 97.
Este quadro nos permite destacar a urgência ao estímulo do consumo e o processo de criação de uma necessidade. A eletricidade, isto é, uma nova tecnologia, que hoje nos parece essencial à vida moderna, necessitou de “estímulos” ao seu consumo através do desenvolvimento de objetos que funcionassem baseados neste tipo de energia. Alguns destes artefatos, em um
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primeiro momento, funcionavam melhor com outra energia ou eram mesmo completamente desnecessários. De volta à montagem das fotos noturnas retiradas por satélites (Figura 44) temos ainda algumas observações, desta vez unicamente em relação à imagem contemporânea. Nesta figura, observamos que os pontos claros que marcam a maior incidência de utilização de eletricidade parecem concentrar-se mais fortemente na Europa, América do Norte (com predomínio em sua costa leste) e Japão. Com menos intensidade, as luzes situam-se ainda na Índia e regiões costeiras da América do Sul, Ásia e Austrália. As regiões centrais da Ásia e da África parecem às escuras. Se ao pensarmos nesta mesma imagem ao longo do tempo tivemos a certeza do poder de influência desta tecnologia, o contraste luminoso entre as diversas regiões nos sugere que esta influência esteve sensível a
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outras questões, predominantemente econômicas e sociais.
Em nosso ponto de vista, a construção social da tecnologia compreende negociação e construção de significados por parte de produtores e consumidores. Considerando os estudos de comunicação, este enfoque aproxima-se da decodificação “negociada” apontada por Stuart Hall236. O modelo de Hall aponta para uma cadeia comunicativa que não opera de forma unilateral. Ele mostra que uma mensagem visual, por exemplo, é uma estrutura complexa, com várias camadas de sentido e que sua recepção não é algo perfeitamente transparente. Esta visão, que apresenta a “negociação” da recepção e a existência de múltiplos vetores de influência, pode ser utilizada para explicar, em parte, porque, em alguns casos, a tecnologia que acabou tornando-se propulsora das mudanças, encontrava-se disponível décadas antes do início de seu uso e do conseqüente processo de reconfiguração das condições sociais existentes. Em verdade, as alterações desencadeadas por uma nova tecnologia demandam, dentre outras coisas: um determinado estágio de conhecimento; um ambiente institucional e industrial específico; disponibilidade de talentos; certa mentalidade econômica e grupos sociais capazes de absorver a produção gerada. Em resumo, “a inovação
236
HALL, Stuart. Reflexões sobre o modelo de codificação/decodificação: uma entrevista com Stuart Hall. In: Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003a. p. 357.
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tecnológica não é uma ocorrência isolada”237, mas também não é “uma tempestade que nos impele irresistivelmente para o futuro”, ao qual viramos as costas.238 Ou por outro, tecnologia não é sinônimo de progresso. As tecnologias de comunicação e visualização, que fundam a cultura visual, como qualquer outra tecnologia, surgem e se modificam de acordo com os movimentos da sociedade, amparadas pelos desejos das classes dominantes, sem dúvida, mas também apoiadas ou rejeitadas pela sociedade como um todo.
3.2. A cidade moderna e a vida cotidiana O estudo das formações urbanas surgidas e modificadas com a industrialização ao longo do século XIX mostra-se fundamental para a
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compreensão da construção do olhar moderno. O olhar deste período sofreu influência da nova constituição espacial e do grande número de estímulos visuais que acompanharam este processo. No entanto, a cidade moderna não pode ser simplesmente compreendida como uma aldeia que cresceu. Ela é composta por uma entidade complexa e sujeita a influência de diversos fatores. Max Weber observa que a dimensão do aglomerado urbano não constitui atributo suficiente para analisar o conceito de cidade.239 Além disso, prossegue o autor, as características econômicas, de produção ou consumo também não facilitam a compreensão, na medida em que as cidades são normalmente constituídas por um misto de atividades e que, portanto, “não podem ser classificadas em cada caso senão tendo-se em conta seus componentes predominantes”.240 Uma cidade não pode ser simplesmente considerada como um conjunto de casas e nem mesmo como uma associação econômica com propriedade territorial própria. Para Weber, a cidade “tem que se apresentar como uma associação autônoma em algum nível, como um aglomerado de instituições políticas e istrativas especiais”.241 De maneira semelhante, Castells, ao abordar a sociedade urbana, observa que não se trata de uma questão de forma espacial, mas de um “certo sistema de valores, 237
CASTELLS, Manuel. op. cit. p. 55. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 226. 239 WEBER, Max. Conceito e Categorias da Cidade. In: VELHO, Otavio Guilherme. (org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 69. 240 Ibid., p. 73. 238
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normas e relações sociais” que possuem uma especificidade histórica e uma lógica própria de organização e transformação.242 Embora considerando a extensão da dimensão espacial na construção de um novo modelo de olhar, a nossa análise da influência da cidade moderna mostra-se inseparável de um conjunto amplo de mudanças filosóficas, sociais e ocorridas na organização do trabalho. A partir da segunda metade do século XVIII, a queda do índice de mortalidade aliada à mudança na estrutura de produção, conduziu camponeses e artesãos em direção aos empreendimentos industriais. Estes estabelecimentos concentravam-se nas proximidades dos cursos de águas e, posteriormente, com a invenção da máquina a vapor, perto das jazidas de carvão, mas, sobretudo, ao redor das cidades que aram a crescer mais rapidamente do que outras regiões.243 Se a energia mecânica para a produção necessitava de água e carvão, o processo industrial requisitava ainda de uma concentração de mão de obra PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
disponível e renovável e um mercado consumidor e a cidade poderia fornecer estas condições. Embora considerando a vinculação entre a aceleração industrial e a cidade moderna, temos a convicção de que esta relação não deva ser simplificada no sentido de tentar compreender as cidades européias sendo alçadas do seu torpor pela industrialização. De fato, o desenvolvimento industrial encontrou e em uma rede urbana construída a partir do início da Idade Moderna e que conectava diversas cidades em um sistema de interação comercial.244 Também existem referências ao emprego da palavra “cidade” na língua inglesa para distinguir as áreas urbanas das rurais a partir do século XVI245, embora tenha sido apenas no século XIX que este termo ou a ser empregado com a conotação moderna que conhecemos hoje. Por outro lado, foi apenas em meados do século XIX que a crescente industrialização, o desenvolvimento correspondente e a expansão da vida urbana fizeram da capital, Londres, o primeiro centro a fazer jus à utilização da palavra “cidade”, conduzindo a Inglaterra à primeira sociedade da história mundial a ter a maior parte de sua população vivendo em centros urbanos.
241
Ibid., p. 76. CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 127 243 BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005. p. 551. 244 DE VRIES, Jan. The industrial revolution and the industrious revolution. Journal of Economic History. Vol. 54, No. 2, (1994), p. 252. 245 WILLIAMS, R. op. cit., p. 76. 242
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No prazo de aproximadamente cem anos toda a estrutura de produção de artefatos foi modificada com a conseqüente mudança dos artesãos para as fábricas. Manchester, que em 1760 tinha 12.000 habitantes, alcançou 40.000 na metade do século XIX.246 Londres e Paris expandiram-se como grandes cidades manufatureiras. Durante a primeira metade do século XIX a população de Londres triplicou e a de Paris dobrou.247 Nos Estados Unidos, a população urbana mais do que quadruplicou entre 1870 e 1910, de menos de 10 milhões para mais de 42 milhões.248 Ao lado da expansão populacional, uma gama de novas tecnologias e produtos ou a exercer influência sobre o modo de vida dos homens e mulheres que moravam nas cidades. A partir do século XIX, o aumento na produção de bens de consumo e aumento exponencial na quantidade de informações visuais produziu marcas permanentes sobre as formas de relacionamento com o ambiente e a formação de um novo modo de ver. A cidade moderna que surge no século PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
XIX apresenta o avanço da máquina, da indústria, do excesso de estímulos e de uma nova experiência de vida, mas, também, mostra-se como personagem principal deste novo momento. Neste contexto, impõe uma certa autonomia que aos poucos vai sendo exposta em diversos tipos de representação, como é o caso da obra The City, de 1919, onde a face da cidade é retratada como uma mistura de fragmentos de elementos urbanos, antes, máquinas, textos, formas planas, ângulos, curvas, áreas escuras e luminosas (Figura 55). Embora a obra de Léger apresente influência de tecnologias que ainda não se encontravam disponíveis em meados do século anterior, sua síntese pictórica pode ser utilizada para explicitar o movimento urbano que já se mostrava evidente neste período.
246
BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005. p. 551. LOWE, Donald. History of bourgeois perception. Chicago: The University of Chicago Press, 1982. p. 36. 248 U. S. Bureau of the Census, 1980 Census of the Population, Washington, D. C..: Government Printing Office, 1980, tabela 3. apud SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p 142. 247
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Figura 55. A cidade, 1919. Fernand Léger. Óleo sobre tela. Philadelphia Museum of Art.
Apesar de representar a fragmentação e a multiplicidade da cidade, a pintura PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
de Léger não evidencia a influência direta da indústria sobre a metrópole. No entanto, esta questão aparece bem representada em imagens produzidas em meados do século XIX nos tons de cinza das gravuras da época que podem ser relacionados às cinzas que exalavam das chaminés das fabricas. Neste contexto, retratou-se insistentemente a vida miserável e insalubre dos trabalhadores das manufaturas e suas jornadas de trabalho de mais de quatorze horas diárias, extensivas a mulheres e crianças. Diversas ilustrações do século XIX mostram a uniformidade do trabalho atomizado e incessante em ambientes com perspectivas acentuadas e pontos de fuga longínquos onde a figura da mulher trabalhadora e sua ferramenta de trabalho parecem repetir-se ao infinito (Figura 56; Figura 58) A Figura 57 mostra uma “pobre jovem comerciária” que após a fadiga da semana quer apenas descansar no domingo, que ao contrário dos demais dias, “a tão rápido”. Era ainda a época em que se formulava a legislação trabalhista e as pausas do trabalho. Se discussões como estas se encontravam no escopo do trabalho desenvolvido por Marx e Engels nesta mesma época, elas também se mostravam sob os traços dos cartunistas. Deste modo, as condições terríveis dos trabalhadores, confinados no porão, apresentam-se em contraste com a vida do capitalista sendo servido no andar de cima (Figura 59).
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Figura 56. Manufatura com trabalhadoras mulheres na seção de polimento de penas para canetas. Illustrated London News, 1851.
(4/06/07)
Figura 57. Imagem ilustrativa de um debate sobre o fechamento das lojas aos domingos. Punch, or The London Charivari.Vol. 104, 8 de abril de 1893. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
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Figura 58. Interior de fábrica com tear mecânico. Illustrated London News, 1844.
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Figura 59. “Capital e Trabalho”. “O capitalista vive paparicado enquanto, abaixo dele, os trabalhadores labutam em terríveis condições”. Punch Magazine, 1843.
(4/06/07)
Um grande número de pessoas vivendo em um ambiente urbano com péssimas condições de habitação formulava o quadro das cidades na metade do
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século XIX. A partir deste período, tiveram início algumas interferências diretas sobre este ambiente. Neste contexto observa-se o aumento no suprimento de água potável e da rede de esgoto, a popularização dos conceitos de higiene, a industrialização dos modos de circulação de pessoas e bens a partir do emprego de trens, bondes e bicicletas e o desenvolvimento das comunicações. Este processo de modernização aconteceu de diferentes formas e em momentos específicos em diversas cidades ocidentais como Paris, Londres, Viena e, mais tarde, no Rio de Janeiro. Para analisar como a cidade moderna e a vida cotidiana contribuíram na formulação de uma nova maneira de olhar ateremo-nos a alguns processos que se desenrolaram em Londres e em Paris. Esta última pode ser compreendida como paradigma de um novo modelo urbano, tendo sido definida como a capital do
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século XIX por Walter Benjamin.
3.2.1. Um olhar sobre a cidade moderna Michel de Certeau estabelece um paralelo relevante para o estudo do olhar e da cultura visual, a partir da relação entre a percepção e o olhar do indivíduo em seu caminhar cotidiano pela cidade e o ponto de vista aéreo, panóptico, dos mapas e dos planejadores.249 A cidade vista de cima mostra-se organizada e legível enquanto ao nível da rua constrói-se “uma história múltipla, sem autor nem espectador, formado em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaço”.250 No espaço cotidiano traçam-se itinerários pessoais. O espaço urbano é apreendido a partir de uma “retórica da caminhada”, construída também pelos mecanismos simbólicos dos sonhos e memórias. Este espaço poético coloca-se, para de Certeau, como um espaço de resistência às cartografias do poder. Embora a oposição estabelecida por de Certeau sugira um romancear do individuo urbano a partir da sua possibilidade de transformação do ambiente, esta demarcação levanta um importante questionamento. Em que medida a cidade mapeada e legível, organizada, recortada e reconstruída para tornar-se o espaço urbano moderno por excelência a a atuar como um vetor de configuração da visualidade moderna? Como o olhar do sujeito urbano é multiplicado e ampliado 249
CERTEAU, Michel de. Práticas do espaço. In: _______. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.
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ao mesmo tempo em que se submete às convenções impostas pela racionalização das construções modernas? Iniciaremos esta discussão com a observação de duas ilustrações publicadas em periódicos londrinos da segunda metade do século XIX. A Figura 60 publicada em 1880 em The Illustrated London News mostra uma plataforma de trem do subúrbio. Segundo a legenda, quinhentos londrinos acotovelavam-se para entrar nos vagões de segunda e terceira classe, aproveitando os feriados bancários para uma excursão. As pessoas formam um emaranhado único. Adultos conversam entre si e tentam, em vão, conter as crianças. Os cartazes no muro da estação apresentam um bom sumário do que se anunciava à época: fragmentos de anúncios de chás, remédios, eventos musicais, eios e fait-divers: “acidentes de todos os tipos”. A Figura 61 também mostra uma plataforma de embarque de trens. Mas, nesta outra imagem, vêem-se menos ageiros. A aglomeração é PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
constituída pelas bagagens e seus carregadores. Malas e embrulhos misturam-se a um cachorro no lado esquerdo da imagem, enquanto do lado oposto, um funcionário parece orientar uma mulher.
Figura 60. Excursão esperando pelo trem. The Illustrated London News, 4 de setembro de 1880. The Illustrated London News Picture Library.
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Figura 61. Movimentação de bagagens na plataforma de trens. The Illustrated London News, 6 de junho de 1846. The Illustrated London News Picture Library.
(17/09/07)
Estas duas imagens sugerem o aglomerado humano e seu movimento contínuo como o signo da nova cidade moderna. A multidão, como veremos mais adiante neste capítulo, é um dos elementos fundamentais de constituição da cidade moderna e de uma nova formulação do olhar. Ela se oferece ao olhar de forma ameaçadora, ao mesmo tempo, fornecendo abrigo para o olhar indiscreto. Diversas outras ilustrações de periódicos do século XIX apontam para situações ambientais problemáticas surgidas a partir do crescimento da cidade 250
Ibid., p. 171.
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moderna. O tecido esgaçado da Londres urbana é mostrada na Figura 62 através de uma característica comum às representações da época: a personificação de entidades. No exemplo apontado, o rio Tamisa é concebido como um homem velho e sujo que apresenta os seus filhos a uma bela mulher que, por sua vez, personifica a cidade. Suas crianças - entre assustadas, doentias e ameaçadoras – têm os nomes listados abaixo de cada figura, nomes que correspondem a doenças infecciosas. Este cartum foi publicado pelo periódico Punch no período que ficou conhecido como “o grande fedor” (the great stink), que marcou um verão especialmente quente. Neste período, os dejetos lançados ao rio criaram um clima tão inóspito na cidade que as seções do parlamento tiveram que ser suspensas. A poluição do principal rio da cidade era o resultado de um sistema istrativo caótico e desregulado e seu maior problema era a coincidência entre os pontos de lançamento de detritos e de recolhimento de água potável. É desnecessário PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
salientar que o rio Tamisa era, em meados do século XIX, uma das principais fontes da problemática urbana da cidade, ao lado das ruas estreitas e obstruídas que dificultavam a circulação e melhores condições de higiene.
Figura 62. Pai Tamisa (Father Thames) apresenta sua descendência à formosa cidade de Londres. Punch, or The London Charivari, 3 de julho de 1858.
(8/08/08).
A modernização de Londres ocorreu ao longo de um contínuo processo de demolições e reconstruções em que a destruição da velha cidade caminhava de mãos dadas aos novos projetos. A implantação de um novo sistema ferroviário foi responsável por boa parte destas mudanças, mas o represamento do rio Tamisa
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significou uma obra de grandes proporções, estendendo-se por toda a década de 1860, entre projeto e construção. Dentre os requisitos principais do empreendimento encontrava-se a construção de um novo sistema de esgoto e de uma larga calçada ao longo do rio. De suas margens lamacentas surgiram avenidas, calçadas, estradas de ferro e túneis subterrâneos. Embora o Tamisa há muito figurasse entre os principais temas da pintura inglesa, as obras que mudaram seu curso e sua relação com a cidade ofereceram novas possibilidades de representação. A representação antropomórfica do rio Tamisa parece ter sido relegada ao ado na medida em que a modernização da cidade ou a receber um tratamento gráfico digno da modernidade. Neste contexto, a pintura de Hull (Figura 63), apesar de utilizar uma técnica de representação tradicional para ilustrar a intensidade da modernização que transformava a cidade, apresenta uma nova possibilidade de compreensão do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
ambiente urbano em transformação. No trabalho de Hull, a dimensão da obra reduz a proporção da figura humana a um mero conjunto de pontos integrados a terra e à madeira. A velha Londres permanece ao fundo, parcialmente oculta pela bruma, assistindo ao surgimento da nova Londres. Já a ilustração publicada no Illustrated London News (Figura 64) utiliza uma nova técnica de representação para expressar as mudanças produzidas tanto acima como abaixo da superfície da terra e da água. Nela, as obras de represamento do rio Tamisa mostram-se através de um corte de seção transversal do terreno que permite a visualização de todas as benfeitorias realizadas no período: esgotos, transportes e melhoramento estético – tudo em constante movimento. Uma locomotiva cruza a ponte Waterloo enquanto uma barca a vapor navega o Tamisa. Os cortes dos túneis desvendam o metrô em circulação. Nos tubos embaixo da terra circulam água, gás e detritos. A cidade moderna apresenta-se como um mundo devotado ao movimento constante, “habitado pelo novo cidadão ideal, o homem-locomotiva”. 251 Novas tecnologias e seu emprego na vida urbana cotidiana começam a traçar as mudanças perceptivas do homem urbano.
251
NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 54.
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Figura 63. E. Hull. Obras de represamento do Tamisa entre a ponte Charing Cross e Westminster, 1865. Museum of London. In: NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 54.
Figura 64. Seção do represamento do Tamisa mostrando (1) o metrô, (2) os esgotos, (3) Ferrovia Metropolitana e (4) Ferrovia Pneumática. Illustrated London News, 22 de junho de 1867.
(8/08/08)
As mudanças urbanas que tiveram lugar em Londres a partir da década de 1860 foram precedidas por profundas discussões políticas lideradas pelo periódico PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Illustrated London News252 que desde a década anterior exercia pressão sobre a unificação da istração municipal e a necessidade de obras de drenagem e esgotos, além da construção de pontes sobre o rio Tamisa e a abertura de grandes avenidas. Mas, foi apenas após a eclosão de duas grandes epidemias de cólera em meados do século XIX que uma mudança istrativa começou a tomar forma. Neste contexto, a execução de um mapa da cidade, que indicasse com precisão apenas as ruas principais e os cursos de água, mostrou-se imprescindível. Uma mudança nas feições urbanas só parecia se mostrar viável a partir de um planejamento efetivo, desenhado sobre um esquema preciso e detalhado. Foram necessários três anos para que em 1851, ano da primeira Exposição Universal realizada em Londres, o mapeamento oficial da cidade (Skeleton Ordnance Survey of London and Its Evirons) fosse disponibilizado, inclusive para o grande público.
252
Esta questão foi analisada por NEAD, L. op. cit., p. 15-56.
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Figura 65. Mapeamento oficial da cidade de Londres e seus arredores (Skeleton Ordnance Survey of London), 1851. Folha 20, metade direita. 66 x 97,5 cm. Sourthampton: Ordnance Map Office, 1851. NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 20.
O mapa oficial da cidade de Londres apontava para uma nova cartografia que deixava de lado a ornamentação e os elementos decorativos característicos dos mapas produzidos por particulares e distribuídos em grande escala. Este outro mapa apresentava com a precisão de uma ferramenta e enfatizava as conexões estruturais da cidade em detrimento de seus monumentos estéticos ou históricos.
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A espessura precisa do seu traçado permitia a compreensão de uma cidade que se expandia e avançava na modernização a os largos. O mapa desenvolvido pela Ordnance Survey marca a transição de uma cidade compreendida como um aglomerado estático para uma cidade concebida em contínuo movimento, possibilitando o planejamento de mudanças modernizadoras como a construção de esgotos e de novas linhas ferroviárias.253 A decisão do que deveria ser mostrado e do merecia ser exibido revelam algumas das prioridades da Londres oficial de meados do século XIX. Deste modo, a indicação dos caminhos de uma cidade dinâmica mostra-se mais importante do que a revelação do movimento das águas do Tamisa, que no mapa oficial aparece como uma grande área plana e
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desobstruída.
Figura 66. Londres vista de um balão. John Henry Banks and Co., 1851. Mapa dobrável, 60,8 x 102,4 cm. Guildhall Library. Corporation of London. NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 21.
Neste sentido, a comparação com o mapa de John Banks, produzido no mesmo ano, e que mostrava a cidade vista de um balão (Figura 66), estabelece a diferença entre dois modelos de visão contemporâneos, paralelos, mas muito diferentes. A visão panorâmica do mapa de Banks é menos um mapa funcional do que uma forma de entretenimento visual e está mais próxima da cartografia tradicional, inspirada nas vedutas, que ainda imperava no período. Ele apresenta
253
NEAD, L. op. cit., p. 21-22.
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ruas e casas de forma individual, sem garantir a manutenção da escala, de modo que nenhum projeto de engenharia poderia ser construído sobre dele. Sua força é estética e narrativa ao contrário do pragmatismo e da precisão geométrica do mapa da Ordnance Survey.254
Embora sem seguir diretamente as regras da
perspectiva, o mapa de Banks encontra-se relacionado à racionalidade desenvolvida com o olhar ciclópico porque estabelece um ponto de vista único a partir do qual a cidade pode ser observada. Um ponto de vista que planifica a cidade garantindo a manutenção de suas proporções e medidas. O mapa da Ordnance Survey divide a cidade de forma geométrica entre espaços livres e espaços construídos. A cidade perde sua dimensão tridimensional e transforma-se em uma superfície plana codificada. Não há um ponto de vista específico na medida em que ela pode ser vista, ao mesmo tempo, a partir de todos os pontos e de lugar nenhum.255 A narrativa que se desprende do mapa da Ordnance Survey é PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
muito diferente das pequenas narrativas detalhadas pelo mapa de Banks. Trata-se da grande narrativa do progresso e do desenvolvimento pretendido com a modernização, do compromisso com a seriedade desenvolvimentista. Sua acurácia elimina as convenções representativas por semelhança para requerer um modo de olhar mais abstrato e concentrado. Um olhar racional e convencional a ser compartilhado por uma população que começava a sentir-se moderna.
3.2.2. Um olhar sobre as reformas urbanas As reformas urbanas podem ser compreendidas como o grande signo da modernização, principalmente quando se considera a remodelação de Paris na última metade do século XIX. A nova feição da cidade moderna foi conduzida, em um processo muitas vezes criticado, pelo Barão Haussmann, indicado prefeito de Paris (1852-1870) pelo imperador Napoleão III. No entanto, as vozes que apontavam para o desaparecimento da antiga Paris, já podiam ser ouvidas desde a década de 1830, muito antes do início das obras de Haussmann. Esta situação pode ser compreendida de diversos modos. Se a percepção da mudança talvez indicasse um desejo oculto por esta renovação, os sinais concretos desta 254 255
Ibid., p. 22. Id.
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transformação traziam em si o temor da perda do antigo, do conhecido e do seguro: “A velha Paris está indo embora” escrevia Balzac ao final da primeira metade do século XIX. Por outro lado, independente de uma ampla reforma conduzida por um governo autoritário, a cidade, empurrada pelas modificações de ordem econômica e produtiva, vinha apresentando mudanças. Nos anos 1840, Paris estava se deslocando para o oeste com um correspondente esvaziamento do centro. Uma mania de construir “reinava como uma epidemia”256, “com os velhos bairros pobres dando lugar a prédios de apartamentos, grandes lojas e oficinas” forçando a população trabalhadora a mudar-se para as extremidades de Paris.257 A regularidade dos novos prédios e ruas foi considerada apropriada à capital “por trinta anos ou mais antes de o barão chegar ao poder”.258 Se havia um senso estético antecipando a modernidade, ele muitas vezes era acompanhado pelo desejo de reformular uma cidade medieval PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
que já não refletia as necessidades modernas. É sobre este ponto de vista que Du Camp tece seus comentários após 1848: Paris estava ameaçada de se tornar inabitável. A constante expansão da rede ferroviária... acelerava o trânsito e o crescimento populacional da cidade. As pessoas sufocavam nas antigas ruelas estreitas, sujas e tortuosas, nas quais ficavam encurraladas, pois não viam saída.259
Tendo em vista as transformações urbanas, Baudelaire escreve “Paris muda! Mas nada em minha nostalgia mudou! Novos palácios, andaimes, lajedos, velhos subúrbios. Tudo em mim é alegoria. E essas lembranças pesam mais do que rochedos”.260 A visão de uma cidade romântica com ruas estreitas que desapareciam não apenas materialmente como também moralmente261 deve ser considerada com cautela. Louis Chevalier, um dos mais importantes historiadores de Paris, comenta as dificuldades dos quartiers, os velhos bairros centrais, nas décadas anteriores à obra de Haussmann. Uma explosão demográfica se fazia
256
TEXIER, Edmond. Tableau de Pairs, 1:75, citado em Haussmann: “Préfet de Paris”, de G.-N. Lameyre apud CLARK, T. J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 71. 257 L. Marie, De la décentralisation des Halles, citado em Histoire de l’urbanisme, de Lavedan, p. 403. apud CLARK, T. J. op. cit., p. 69. 258 Id. 259 DU CAMP, Maxime. Paris, ses organes, ses fonctions et as vie dans la seconde metié du XIXe siècle. Paris, 1869, vol. 6, p. 253. apud. BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 85. 260 BAUDELAIRE, Charles. O cisne. As flores do mal. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 173. 261 CLARK, T. J. op. cit., p. 74.
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acompanhar por poucas moradias, apesar da construção de mansões de luxo e de prédios públicos. O nível de desemprego era crescente e havia alto índice de morte por desnutrição e pelas freqüentes epidemias de tifo e cólera.262 Apesar da modernização de Paris apresentar-se como uma interferência necessária e desejada, o termo “Haussmanização”, em referência ao prefeito de Paris a partir de 1859 sugere a brutalidade e a eficácia germânica com que a cidade
foi
transformada.263
As
estatísticas
indicam
a
ferocidade
do
empreendimento. Ao longo dos dezessete anos de reformas, 350 mil pessoas foram desalojadas. Em 1870, um quinto das ruas da zona central de Paris havia sido criado por Haussmann e no auge da reconstrução, um em cada cinco trabalhadores
parisienses
estava
empregado
na
obra264.
Os
bulevares
encontravam-se no centro da reconstrução na medida em que rasgavam a cidade em seu caminho para a criação de novas artérias. Mas, a Haussmanização PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
compreendia muito mais do que a abertura de novas ruas. Havia a instalação de aquedutos, a duplicação da área da cidade, a colocação da iluminação a gás, o aumento da arborização, a criação de uma rede de esgotos e ferrovias, além da construção da nova Ópera e do novo necrotério. A remodelação abriu espaço para inúmeras críticas e debates. A velha Paris queixa-se da monotonia das novas ruas; a nova Paris retruca: De que você as censura?... Graças à linha reta, circula-se à vontade, evita-se o choque com mais de um veículo, ao mesmo tempo, quem tem bons olhos desvia-se dos tolos, dos que pedem empréstimo, dos cobradores, dos chatos. Enfim, cada transeunte, agora, na rua, já de longe, ou foge ou cumprimenta seus iguais.265
O fato concreto é que a forma dos novos bulevares parecia surpreender e incomodar: “sem curvas, sem aventuras de perspectiva, implacáveis em suas linhas retas”.266 A comparação com o que se perdia permanecia constante: “Nenhuma de suas grandes vias retas tem o encanto da curva magnífica da Rue Saint-Antoine”.267 Clark sugere uma ressonância nostálgica no debate em torno da
262
CHEVALIER, Louis. Laboring Classes and Dangerous Classes: Paris in the First Half of the Nineteenth Century. New York: Howard Fertig, 1973. apud BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2001. p. 146. 263 CLARK, T. J. op. cit., p. 69. 264 Ibid., p. 77. 265 BARTHÉLEMY, M. Le Vieux Paris et le Nouveau Paris. Paris, 1861. p. 8. apud BENJAMIN, Walter. agens. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. p. 185. [E 12a,1]. 266 CLARK, T. J. op. cit., p. 74. 267 Dubech / D’Espezel. Histoire de Paris. Paris, 1926. p. 416-425. apud BENJAMIN, W. agens... p. 172. [E 5,6].
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estética de Haussmann: “Então o barão ansiava por longas linhas retas e ‘pontos de vista’ impressionantes, e seus críticos, por aventuras em perspectiva!”.268 A observação de Clark nos chama a atenção para a discussão em torno da perspectiva. Não parece haver dúvida que as avenidas parisienses trouxeram novos pontos de vista e novas perspectivas e uma grande profundidade de campo. No entanto, isso não parecia ser compreendido pelos contemporâneos forçados a ver a cidade e o mundo de outro modo. Havia perspectiva, claro, mas o morador da cidade que havia sido sujeitado a morar em um grande canteiro de obras, parecia sentir falta das pequenas perspectivas, das narrativas encontradas em cada dobrar de esquina. Talvez por isso, as vistas amplas e as perspectivas monumentais tenham demorado a mostrar-se na pintura, o que aconteceu apenas na década de 1890, ano em que Pisarro exibiu “um ponto de vista plenamente
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haussmaniano de uma ponta a outra da Avenue de l’Opéra”269 (Figura 67).
Figura 67. Camille Pissarro, Avenue de l’Opéra, soleil, matin d’hiver, 1898.
Consideramos que a rejeição às novas perspectivas encontradas na cidade aponta para uma inabilidade em lidar com novos e surpreendentes pontos de vista ou, ainda, com uma nova forma de olhar ainda não completamente estruturada. Neste processo, as piadas sobre as formas retas podem ter funcionado como auxiliares pedagógicos da formulação de uma nova cultura visual. Em uma destas 268
CLARK, T. J. op. cit., p. 75.
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piadas, o personagem de um velho militar que acompanhava as mudanças de Paris, sonhava com o dia em que o próprio rio Sena teria o seu curso corrigido, “porque suas curvas irregulares são realmente revoltantes”.270 Outra anedota sugeria que o alargamento das ruas teria sido realizado devido a crinolina.271 A sugestão de que a palavra “bulevar” seria etimologicamente ligada a bouleversement, que significa mudança e perturbação, também era citada com ironia.272 A haussmanização foi acompanhada de perto pela crítica social que relaciona diretamente o empreendimento ao deslocamento das classes operárias, que teriam sido empurradas (pelo aumento dos custos de moradia) para a periferia parisiense, rompendo o laço de vizinhança as “ligava ao burguês”.273 Este processo não é compreendido como casual, ao contrário, é relacionado à tentativa de impedir o surgimento de revoltas entre as classes mais pobres. A abertura de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
artérias sobre o tecido urbano seria um impedimento para a montagem de barricadas, além de facilitar o deslocamento do exército em caso de necessidade. A ampliação no número de empregos com a própria obra de remodelação também teria contribuído para desestimular o pensamento revolucionário. Estes motivos talvez tenham levado Le Corbusier a considerar os traçados de Haussmann como inteiramente arbitrários: “não eram soluções rigorosas de urbanismo, mas medidas de ordem financeira e militar”.274 Apesar disso, o mesmo Le Corbusier afirmou algum tempo depois: “Parecia que Paris não aria a cirurgia de Haussmann. Ora, Paris não vive hoje do que fez esse homem temerário e corajoso? ... É verdadeiramente irável o que soube fazer Haussmann”.275 Esta ambigüidade aponta para o fato, descrito por Clark, de que os propósitos de Haussmann “eram muitos e contraditórios”.276 A contra-revolução era um deles, assim como a certeza nos benefícios gerados pelas obras públicas e a urgência em modernizar a cidade. Não se deve desconsiderar também o desejo de abrilhantar uma cidade imperial para ser exibida aos estrangeiros. Walter 269
CLARK, T. J. op. cit., p. 60. ABOUT, Edmond. L’Homme à l’oreille cassée. p. 196. apud CLARK, T. J. op. cit., p. 74. 271 BENJAMIN, W. agens... p. 174. [E 5a,8]. 272 FOURNIER, Édouard. Chroniques et Légendes des Rues de Paris. Paris, 1864. p. 16. apud BENJAMIN, W. agens... p. 179. [E 9,1]. 273 LEVASSEUR, Histoire des Classes Ouvrières et de l’Industrie en , II. Paris: 1904, p. 775. BENJAMIN, W. agens... p. 164. [E 2,1]. 274 LE CORBUSIER, Urbanisme. Paris, 1925. p. 250. apud BENJAMIN, W. agens... p. 166. [E 2a,1]. 275 Ibid., p. 149. apud Ibid., p. 173. [E 5a,6]. 270
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Benjamin considera ainda a intenção do Estado em se autopromover na medida em que associava o novo urbanismo parisiense ao progresso: “Como um exemplo clássico da coisificação, os projetos de ‘renovação’ urbana tentavam criar uma utopia social mudando a disposição de edifícios e ruas – objetos no espaço – deixando intactas as relações sociais”.277 Apesar do desejo autêntico de Haussmann por ampliar o alcance da modernidade, a obtenção de lucro também se encontrava entre suas intenções e parecem explicar alguns favorecimentos na condução do processo. Por trás das críticas à estética de Haussmann havia a necessidade de compreender a nova cidade, “a cidade neutra das pessoas civilizadas”278 que vira desaparecer os “grupos, vizinhos, bairros e tradições”.279 A uniformidade do traçado das ruas e dos prédios retirara a surpresa oculta nos pequenos detalhes da velha cidade. Não existia mais a Paris desconhecida280. “A linha reta matou o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
pitoresco, o inesperado”.281 Por outro lado, a cidade mostrava uma nova face que assustava os antigos moradores: “A centralização, a megalomania criaram uma cidade artificial onde o parisiense não se sente mais em casa”.282 Pode parecer paradoxal que a nova compleição da cidade tenha destituído o inesperado ao mesmo tempo em que se apresenta como desconfortável e estranha. A cidade que se constrói com a divisão das classes entre os bairros residenciais e os subúrbios industriais e ordena e hierarquiza o trabalho e o tempo livre é a mesma que confunde o observador com o ilegível. Esta ambigüidade sugere a ascensão de uma nova ordem de significados que não se deixa decifrar facilmente. Para Clark, “a metrópole se transformou em um campo livre de signos e objetos expostos”283, onde uma enorme massa de imagens expõe-se à negociação enquanto as velhas demarcações ruíram para sempre. O flâneur é a figura paradigmática da vida na metrópole em seu exercício cotidiano de decifrar as novas imagens. Sua localização na Paris do século XIX emerge a partir do ensaio de Charles Baudelaire, O Pintor da Vida Moderna. 276
CLARK, T. J. op. cit., p. 76. BUCK-MORSS, Susan. Dialética do Olhar. Walter Benjamin e o Projeto das agens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 120. 278 Daly, “Etude générale”, p. 33. apud CLARK, T. J. op. cit., p. 84. 279 Ferry. Les Comptes fantastiques apud Id. 280 CLARK, T. J. op. cit., p. 85. 281 Charles Yriarte, “Les Types parisiens – les clubs”, em Paris-Guide 2 (1867): 929. apud Id. 282 Dubech / D’Espezel. Histoire de Paris. Paris, 1926. p. 427-428. apud BENJAMIN, W. agens... p. 169. [E 3a,6]. 277
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Neste texto, Baudelaire exalta – evitando citar seu nome – o desenhista, aquarelista e gravador Constantin Guys, artista “enamorado pela multidão e pelo incógnito”.284 De fato, como afirma Baudelaire, C. G.285 é mais do que um artista, é um homem do mundo, “homem que compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos os seus costumes” e não simplesmente um artista subordinado à sua palheta, “como o servo à gleba”.286 Baudelaire escreve: Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo.287
O flâneur caminha pelas ruas da cidade e observa incógnito o movimento da multidão, imerso na dimensão estética deste contato. Seu universo é a multidão, “como o ar é dos pássaros, como a água, o dos peixes”.288 Ele é o homem da
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multidão e dela retira sua energia e vigor. Sua anonimidade garante a liberdade e a fluidez do seu olhar. Há uma ligação intrínseca entre o flâneur e a multidão de um lado, e o interior das casas e as ruas de outro. Neste contexto, o flâneur se torna parte da multidão: “O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente agitado, que, entre os muros dos prédios, vive, experimenta, reconhece e inventa tanto quanto os indivíduos ao abrigo de suas quatro paredes”.289 Em O homem da multidão de Edgar Allan Poe, a inquietação e o incógnito têm origem no crescimento urbano iniciado no século XIX. No conto, transcorrido na Londres do século XIX, o narrador convalescente, na sua volta às ruas, vive uma excitação que é exatamente o oposto do tédio. Sente-se atraído por tudo o que lhe a à frente, “ora os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças enfumaçadas”. Como uma criança, nos lembra Baudelaire, que vê tudo como novidade290, o narrador permanece sentado à janela de um café londrino, primeiro observando a multidão que flui compacta, depois a a prestar atenção às figuras, trajes, portes e 283
CLARK, T. J. op. cit., p. 91. BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. In: Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 854. 285 A pedido do próprio Constantin Guys, Bauldeire tem a intenção de manter-lhe o anonimato, de forma que a a descreve-lo como C. G. 286 BAUDELAIRE, C. op. cit., p. 855. 287 Ibid., p. 857. 288 Ibid., p. 857. 289 BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: Obras escolhidas III. Charle Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 194. 284
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expressões. Em um jogo fisionômico, examina as faces dos antes, a partir de um breve olhar lendo-lhes a vida, “a história de longos anos”. Em determinado momento, divisa a figura de um homem de aproximadamente sessenta e cinco a setenta anos. Um impulso o move. Agarra o chapéu e a bengala e põe-se a seguir a figura decrépita e em trajes puídos. Em um caminhar que não parece ter propósito, o homem não cessa de misturar-se em meio à turba de compradores e vendedores. Na tentativa de desvendar os segredos por trás do homem em contínuo movimento, o narrador o segue ao longo de toda à noite e também do dia seguinte. Walter Benjamin hesita em reconhecer neste desconhecido o flâneur, alguém que por não se sentir seguro em sua própria sociedade, busca a multidão para esconder-se291. Ele sugere no homem da multidão a substituição do comportamento tranqüilo pelo maníaco292. O flâneur do conto de Poe refugia-se nos bazares, nas feiras e saídas de teatro. O movimento sem fim que atrai o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
narrador transfigura-o em flâneur tentando desvendar o mistério por trás do suspeito, como é caracterizado o homem da multidão em sua busca por torna-se invisível. Assim, o narrador, misturado à multidão que lhe serve de cenário móvel torna-se ele, também suspeito. O início e o final do conto de Poe trazem uma frase de um “certo livro germânico”: es lässt sich nicht lesen (não se deixa ler). Há segredos que não se permite revelar, não se pode ler. Muitos destes segredos encontram-se escondidos na multidão. Benjamin reafirma este ponto ao associar o conto de Poe à observação de Goethe, “segundo a qual todo ser humano, do melhor ao mais miserável, carrega consigo um segredo que despertaria o ódio de todos os outros se fosse descoberto”.293 A cidade moderna que se desnuda ao olhar é um ambiente que oculta muitos segredos. Segredos que o flâneur buscava entender com a sua observação ao mesmo tempo atenta e relaxada. Neste sentido deve-se compreender o flâneur não como um transeunte qualquer, mas como um observador em plena posse de sua individualidade. Sua fantasmagoria, “a partir dos rostos fazer a leitura da profissão, da origem e do caráter”.294 O flâneur caminha pela cidade concentrado na observação como um detetive amador. Mas, se ao contrário, ele “se estagnar na estupefação – nesse
290
BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. In: Obras escolhidas III. Charle Baudelaire... p. 18. Ibid. p. 45. 292 BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Obras escolhidas III... p. 121. 293 BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: agens... [M 12a,2], p. 484. 294 BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: Obras escolhidas III... p. 202. 291
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caso o flâneur se torna um basbaque”.295 O basbaque, ou badaud, tem sua individualidade absorvida pelo mundo exterior. “Sob influência do espetáculo que se oferece a ele, o badaud se torna um ser impessoal”.296 Para Benjamin, o flâneur resiste ao consumismo da cidade capitalista e de suas mercadorias e o seu movimento aparentemente errático pela constituição visual da cidade aumenta sua potência: “sempre menor se torna a sedução das lojas, dos bistrôs, das mulheres sorridentes e sempre mais irresistível o magnetismo da próxima esquina, de uma massa de folhas distantes, de um nome de rua”.297 Este homem urbano que não consegue garantir a sua individualidade paralisa-se, flutuando ao movimento da multidão. Misturando-se a ela, torna-se parte da própria imagem que observa. Com o desaparecimento das esquinas, a partir da remodelação empreendida por Haussmann, é possível compreender o esgotamento da possibilidade da flânerie. Resta saber em que medida, com isso, o observador tenha-se transformado em um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
simples badaud, fixando o olhar sobre a imagem observada, fundindo-se com ela em um conjunto de contornos neutros e suaves que já não despertam sensações ambíguas de desconforto ou paixão. O ambiente externo não deixa de ser compreendido pelo movimento do seu fluxo, mas é racionalizado e recortado dentro de um sistema de convenções visuais que facilitam a sua digestão. A cultura visual a a se reestruturar a cada nova invenção tecnológica com o objetivo de refrescar o que deve sempre ser visto como novo.
3.2.3. Muralhas de impressos A experiência vivida na metrópole, desde muito cedo, apresentou vínculos profundos com a visualidade. A influência dos impressos na produção da cultura visual moderna expande-se para além da relação direta com as formas gráficas e os novos modos de representação. Ela encontra-se ancorada nos melhoramentos técnicos obtidos no gravado e na impressão, como a cromolitografia, além do barateamento da própria imagem e do seu e, o papel. Cronistas e gravuristas foram elevados à posição de artistas: “Eles falam para o olho e sua linguagem é fascinante e impressiva. Os acontecimentos do dia ou da semana são ilustrados ou 295 296
Ibid., p. 69. Ibid., p. 202.
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descritos através do lápis”.298 Neste aspecto, a publicidade que dá os seus primeiros os com cartazes, folhetos e nas placas carregadas pelos homenssanduíches contempla uma nova qualidade de experiência na relação do sujeito com seus deslocamentos no espaço urbano e também com o seu vestir-se e alimentar-se. São centenas de novas formas ao alcance da vista que ditam novas práticas ao mesmo tempo em que atuam na construção de um novo olhar. A produção em massa de peças impressas foi grandemente favorecida por diversos fatores tecnológicos como a produção de papel em bobinas ao final do século XVIII, que barateou o custo do papel, e o desenvolvimento da litografia no início do século XIX, além da produção de máquinas de impressão de manejo mais simples como a Minerva, anunciada no folheto publicitário de 1879 (Figura 68), e a copiadora com ares de escrivaninha (Figura 69), muito popular em
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pequenas indústrias.
Figura 68. Folheto de propaganda da máquina Minerva de impressão, 1879. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
Figura 69. Folheto de propaganda da copiadora Foot Lever, 1886. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
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Segundo Walter Benjamin, com o desenvolvimento da litografia no século XIX a reprodução técnica atinge uma etapa essencialmente nova. Com este procedimento, que permitia uma maior precisão, as produções aram a 297
Ibid., p. 186. Speaking to the Eye. Illustrated London News, 24 de maio de 1851. pp. 451-2. apud NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 57. 298
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alcançar o mercado “não somente em massa, como já acontecia antes, mas também sob a forma de criações sempre novas. Desta forma, as artes gráficas adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana”299, integrando-se nela e realimentando-se em uma construção recíproca. Embora a fotografia ainda demorasse a ser empregada diretamente na reprodução de impressos, a sua utilização como referência para o desenho litográfico acelerou ainda mais o processo que inundou de imagens a percepção cotidiana. Assim, as imagens que aram a ilustrar o imaginário dos homens e mulheres da segunda metade do século XIX, por sua quantidade e variedade, exibiam detalhes que não eram propriamente comuns em figuras da época. Em nossa opinião, além de ampliar o repertório da cultura visual moderna, elas atuaram diretamente na formulação do habitus coletivo que deu origem a essa cultura, modificando e ampliando a percepção. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
A impressão tornou-se ível e ou a fazer parte da vida do cidadão urbano. Cartazes e folhetos ajudaram a concretizar a modernidade em um artefato visual. Na Figura 70 vemos o folheto de propaganda de uma gráfica Metropolitan Printing Works. Na frente, lê-se: “Quase todo mundo em algum momento precisa de impressão” e “Guarde no seu bolso” e no verso: “Todos os tipos de impressos”, “Orçamentos gratuitos”. Neste contexto, os impressos não apenas ajudaram a construir o novo ambiente da cultura visual, mas também permitiam a participação do homem comum, que em algum momento da sua vida poderia precisar de alguma impressão.
Figura 70. Folheto de propaganda da Metropolitan Printing Works, 1890. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
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299
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 166-167.
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Na efervescência da cidade, a publicidade começava a ocupar espaço com a divulgação de diversos produtos. Folhetos e cartazes eram impressos e distribuídos nas ruas ou colados nos muros das grandes cidades. As paredes da metrópole, cobertas por cartazes aram a atuar, a partir da segunda metade do século XIX, como um grande sistema de comunicação de massa. A propósito das
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revoluções que marcaram o ano de 1848, Walter Benjamin transcreve: Todos os muros estavam cobertos com cartazes revolucionários, que Alfred Delvau reproduziu alguns anos mais tarde em dois grossos volumes com o título Murailles Révolutionnaires, de modo que ainda agora se pode ter uma idéia dessa singular literatura mural. Não havia palácio ou igreja em que não estivessem afixados esses cartazes. Nunca antes se viu tal quantidade de cartazes em qualquer outra cidade. Mesmo o governo usava esse meio para publicar seus decretos e proclamações, enquanto milhares de indivíduos recorriam aos cartazes para comunicar a seus concidadãos suas opiniões pessoais sobre toda a sorte de questões. Quanto mais se aproximava a inauguração da Assembléia Nacional, tanto mais apaixonada e agressiva se tornava a linguagem dos cartazes... O número dos apregoadores públicos aumentava a cada dia. Centenas e milhares de pessoas que não tinham outra ocupação tornaram-se vendedores de jornais, que eles anunciavam aos gritos.300
Em outro trecho, Benjamin afirma que Les Murailles Révolutionnaires tratase de uma “Obra coletiva que tem como autor o senhor Todo o Mundo”301 e que a fúria da informação fazia com que os muros fossem disputados pelos coladores de cartazes, sobrepondo cartazes “uns aos outros pelo menos dez vezes por dia”.302 A ilustração de John Parry (Figura 71) mostra a efervescência deste movimento nas ruas de Londres, apoiado sobre o maior desenvolvimento da indústria de impressão, mas empurrado pela necessidade de divulgação de produtos de consumo e entretenimento dirigidos a um consumo mais amplo. Na imagem de Parry, onde também vemos outros personagens urbanos como o soldado e o ambulante, o protagonista é a informação. Nos cartazes, as chamadas de “Pompéia”, “Paris” e das “pulgas laboriosas” disputam os fragmentos da atenção do morador da metrópole e também o seu dinheiro. O periódico londrino Punch apresenta algumas gravuras que dialogam com os muros repletos de cartazes que ajudam a construir uma nova paisagem urbana. A ilustração de 1887 do Punch (Figura 72) é muito parecida com a de John Parry
300
Sigmund Engländer, Geschichte der französischen Arbeiter-Associationen, Hamburgo, 1864, vol. II, pp. 279-280. In: BENJAMIN, W. agens... p. 213. [G 3,1]. 301 BENJAMIN, W. agens... p. 215. [G 4,1]. 302 Eduard Kroloff, Schilderungen aus Paris, Hamburgo, 1839, vol II, p. 57 apud BENJAMIN, W. agens... p. 214. [G 3,3].
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(Figura 71). Em ambas vemos a movimentação das figuras urbanas: alguns antes, um soldado, etc. A de Parry é mais elaborada e nos permite ver uma construção em segundo plano (ao lado esquerdo) enquanto a do Punch é toda focada no plano da muralha de cartazes. Duas outras ilustrações publicadas pelo
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Punch também nos proporcionam reflexões.
Figura 71. John Parry. Cena de rua em Londres, [1835].
(3/06/07)
Figura 72. Gravura retirada do Punch, or the London Charivari, 1887. The Project Gutenberg. . Disponível em:
(25/11/07).
Na imagem de 1892 vemos a personificação do medo na figura de um colador de cartazes que tem os pés animalescos da entidade do pânico, Pã (Figura 73). Os cartazes que Pã cola têm mensagens alarmantes: “corrida aos bancos”, “ameaça de cólera”, “alarme de incêndio em um teatro é ameaça à vida”, “morte
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por afogamento e covardia dos espectadores”. Na legenda da ilustração, Pan se vangloria por estar vivo espalhando o medo. O “cartaz-pã” acende o medo urbano de acidentes e tragédias e nos faz recordar os jornais sensacionalistas, ou como se costumava dizer, jornais que “pingam sangue”. Deste modo, os cartazes que Pã divulga criam um vínculo com as manchetes que reluzem nas bancas de revistas. Em uma outra figura do mesmo ano vemos um artista com a sua maleta de tintas e cavalete olhando uma “floresta de cartazes” (Figura 74). Neste caso as mensagens apresentadas são publicitárias e, embora nos falte mais informação para compreender o que está representado, é possível apreender o artista paralisado em seu contato com a “floresta” de anúncios. Onde ele esperava encontrar alguma outra coisa, deu de cara um mundo de mensagens publicitárias. É interessante observar que se hoje apontamos para uma sociedade afogada em imagens, no final do século XIX, as cidades já se encontravam encharcadas por slogans e impressos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
publicitários. Neste contexto, a crítica repetitiva que acompanha a idéia da “sociedade de imagens” merece ser redimensionada.
Figura 73. Pã, o cartaz. Pã (em tom de deboche) fala: “Ah, ah, ah! Quem disse que eu estava morto e que o medo era algo do ado?”. Punch,or the London Charivari.Vol. 103. 24 de setembro de 1892.
Figura 74. “O que o nosso artista tem que agüentar.... Ele viajou por toda a Inglaterra em busca de um pano de fundo para seu Vivian beguiling Merlin in the Forest of Broceliande,"- uma busca desesperançada”. Punch,or the London Charivari.Vol. 103. 3 de dezembro de 1892. The Project Gutenberg
(24/11/07).
The Project Gutenberg
(25/11/07).
Nos dias atuais, o excesso de informação e publicidade visual se ampliou de tal modo que tem levado publicitários a exercitarem ao máximo sua criatividade de modo a encontrar espaços em branco, leia-se isentos de publicidade, onde possam aplicar a identidade visual do seu cliente – em formato publicitário patrocinado. O resultado pode ser visto em ovos carimbados com o logo de um programa de televisão da CBS (Figura 75) ou na bandeja onde o ageiro coloca
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seus objetos no momento da revista para o embarque nos aeroportos (Figura 76) ou, ainda, ao ser examinado no consultório médico (Figura 77).
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Figura 75. Anúncio de programas da rede CBS, carimbado em ovos distribuídos em todo o país. Retirado de STORY, Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s Likely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007.
Figura 76. Anúncio em bandeja de revista de bagagem em aeroporto. Retirado de STORY, Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s Likely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007.
Figura 77. STORY, Anúncio de Tylenol infantil em sala de exame pediátrico. Retirado de Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s Likely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007.
Figura 78. Anúncio de bebida no símbolo de banheiro masculino. Retirado de STORY, Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s Likely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007.
Se os olhos dos moradores da metrópole vêm sendo disputados há mais de um século e este tema questão já não constitui novidade, cabe lançar duas questões em direções opostas. De um lado, há um questionamento sobre a próxima fronteira a ser ultraada pela imagem empregada com fins publicitários. Neste caso, a mídia eletrônica e a rede mundial de computadores sinalizam a existência de novos espaços a serem preenchidos. Na outra direção, retornamos para o século XIX na tentativa de compreender o modo como o olhar contemporâneo, ainda relativamente fresco e disponível para o novo, era disputado. Seria possível deduzir o que mais atraía os olhares metropolitanos na direção dos impressos distribuídos ou colados nos muros? A que eram instigados? Que novas necessidades eram evidenciadas a partir da divulgação de
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determinados produtos? Em busca de algumas destas respostas, realizamos um levantamento na coleção British Library procurando localizar impressos da segunda metade do século XIX: peças efêmeras, de divulgação ou material jornalístico. O resultado obtido indicou um amplo e surpreendente cardápio de objetos e temas oferecidos ao olhar e ao desejo do consumidor moderno. Em primeiro lugar, destacou-se na nossa investigação, a grande quantidade de impressos jornalísticos, alguns ilustrados. As novas invenções relacionadas à reprografia e à impressão ao longo do século XIX fizeram nascer a imprensa moderna ilustrada. Ao menos vinte revistas ilustradas surgiram na Europa. Nova York tinha seis, enquanto México, Brasil, Uruguai, Canadá, Austrália e África do Sul também possuíam cada um sua publicação. Havia também os jornais satíricos como o Le Charivari de 1832 e o Punch de 1841, além da revista científica The Scientific American que começou a circular em 1845. Em Londres os periódicos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
se dirigiam a diversos segmentos da sociedade. Algumas publicações dedicadas à classe trabalhadora eram vendidas a um penny (Figura 79; Figura 80) ou mesmo meio penny (Figura 81). O grande número de títulos evidencia a popularidade deste material voltado tanto para a informação quanto para o entretenimento. Nas figuras aqui reproduzidas, vemos a reprodução de um folheto do periódico Moonshine (Figura 80) que incluía ilustrações e comentários políticos organizados de uma maneira próxima ao que hoje classificamos como comics. O anúncio publicado no Penny Illustrated (Figura 81) divulga o lançamento de um jornal com sete edições diárias ao custo de meio penny. O texto do anúncio destaca a enorme pretensão do novo jornal londrino em ser o jornal “da casa”, “dos trabalhadores”, “dos políticos”, “dos amantes do esporte”, “dos que procuram diversão”, “dos que procuram negócios”, enfim, dos que se ocupam e dos que procuram lazer.
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Figura 79. Folheto de propaganda do periódico The Million. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
Figura 80. Folheto de propaganda do comics Moonshine. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
Figura 81. The evening times. Sete edições diárias. Penny Illustrated, 29 de outubro de 1910. The British Library.
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O avanço de peças impressas em ritmo industrial sistemático e contínuo em direção ao infinito é compartilhado em diversos outros campos do cotidiano transitório do homem urbano, o que pode ser evidenciado através do exame de folhetos publicitários. Nesta parte do trabalho iremos analisar exemplos diretamente relacionados ao cotidiano da vida dos moradores urbanos e que tratam da sua alimentação e higiene. Um exemplo relevante é encontrado em um anúncio de rótulos para embalagens (Figura 82) de diversos tipos de alimentos. Os rótulos aram a ser utilizados na embalagem de produtos das grandes manufaturas, a partir da segunda metade do século XIX. Até esta data, as mercearias e lojas de alimentos realizavam o empacotamento de seus produtos em jarras ou pacotes de papel na própria loja. No mostruário reproduzido no folheto de propaganda da Fell & Briant, apesar da ausência de imagens, os rótulos de produtos diversos como pastilhas para a tosse, balas de gengibre e confeitos utilizam até três cores de impressão e uma ampla variedade de fontes tipográficas. É interessante observar que os produtos alimentícios ao deixarem de mostrar-se diretamente ao público antes de serem embalados, acabaram tendo que buscar valor no nome da marca.
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Figura 82. Folheto de propaganda da Fell & Briant, impressão de rótulos, 1889. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. Figura 83. Anúncio de The British Library.
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Anúncios e cartazes tipográficos eram bastante comuns à época: empregavam uma grande quantidade de fontes, misturadas e no maior tamanho possível. Apesar da diversificação do emprego das fontes, que em alguns casos parecem mesmo exóticas, o resultado obtido era “estático e convencional”303 como um muro que paralisa o olhar do observador. Na Figura 83 vemos um exemplo de folheto tipográfico de uma loja de alimentos que se apresenta como de “primeira classe”. Provavelmente, devia tratar-se de um pequeno mercado dirigido a um público mais abastado, na medida em que poucos moradores das regiões urbanas tinham condições de consumir produtos frescos como os anunciados. A tipografia da era industrial teve ainda que esperar quase meio século para desenvolver certo requinte na utilização de tipos. No entanto, o aprimoramento da litografia permitiu a impressão de figuras coloridas como os exemplos que apresentaremos em anúncios e folhetos de alimentos. A nossa opção por analisar impressos relacionados à alimentação é baseada na constatação da influência da industrialização neste setor, que é diretamente relacionado à vida cotidiana do morador urbano. Apesar da presença constante de ilustrações românticas, alguns anúncios utilizam termos mais relacionados às novas descobertas científicas como “hypophosphites”, supostamente presente no óleo de fígado de bacalhau (Figura
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LUPTON, Ellen. Pensar com tipos. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 23.
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84). O óleo de fígado de bacalhau era empregado há anos pelas comunidades pesqueiras para proteção do frio e ou a ser utilizado por crianças com desnutrição ou raquitismo a partir da década de 1890. No entanto, a relação entre o óleo de fígado de bacalhau e a vitamina D só foi comprovada em 1922, muito depois de ter sido recomendado como alívio para reumatismo e dores musculares. A comprovação de valor nutricional em alimentos de alto custo abriu caminho para o desenvolvimento de soluções industriais no setor alimentício. Os ovos, por exemplo, eram reconhecidos no século XIX como fonte de ferro e proteína, mas o transporte do campo para os centros urbanos fazia seu custo tornar-se proibitivo. Assim, aqueles que não tinham condições de comprar ovos frescos, podiam adquirir “pó de ovos” industrializado para usar na massa de bolo, no preparo de pudins ou ainda misturado ao leite ou à água. O anúncio do “pó de ovos” Freeman (Figura 85), alerta o consumidor para “insistir” na marca Freeman, quando for PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
“pedir pó de ovos”, o que nos permite concluir que esta não seria a única marca no ramo. Um exemplo particularmente curioso de produto para “gerar força e vigor” aparece no anúncio de Bovril, um extrato de carne criado por um açougueiro de Edinburgh. O nome foi obtido a partir da combinação de “bos”, palavra latina para boi e “vril”, termo criado por Bulwer Lytton no seu livro de ficção científica The Power of the Coming Race. A obra, publicada em 1871, tratava de uma sociedade utópica que habitava as profundezas da Terra e dominava uma misteriosa força vital. O anúncio aqui reproduzido (Figura 86) apresenta um grupo de figuras humanóides erguendo o globo terrestre. Eles têm braços e pernas, mas no lugar do tronco e da cabeça têm um frasco de Bovril. A relação com a ficção científica parece estreitar-se nas figuras dos Homens-Bovril e demonstra uma aproximação estreita entre a cultura popular e a produção industrial de alimentos. Outro dado interessante nesta peça gráfica é a utilização de letras soltas e embaralhadas no slogan do produto: “s the world” – uma utilização tipográfica com tons de ousadia.
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Figura 84. Anúncio da emulsão Scott com “puro óleo de fígado de bacalhau”, 1884. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
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Figura 85. Anúncio de Freeman's Egg Powder, 1885. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
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Figura 86. Anúncio de Bovril, 1890. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
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Anúncios como o de Bovril apresentam-se como exceções em um ambiente onde a maior parte dos anúncios encontra-se relacionado à concepção romântica contemporânea, inclusive utilizando figuras infantis ou angelicais. O emprego de ilustrações de caráter romântico, na maioria das vezes, aparece sem relação com o valor do alimento ou as características de seu preparo. Esta consideração se evidencia no anúncio litográfico do alimento artificial Mellin “para crianças e inválidos” (Figura 87). No anúncio do alimento ambiente Mellin vê-se um ambiente campestre com duas crianças de bochechas rosadas. Uma delas tem uma estrela de várias pontas brilhando sobre sua cabeça e está assentada sobre um tubo do alimento que flutua no espaço. A boca do tubo de Mellin aparece decorada por ramos de folhas. A outra criança aparece sentada entre ramos de trigo, na única alusão à composição do alimento, com os braços estendidos para receber o alimento. No canto inferior direito da imagem, um pássaro leva um pequeno ramo de folhas no bico. O pássaro em movimento forma uma espécie de com um quadro de moldura arredondada onde se vêem três pequenos pássaros de bico aberto como se esperasse o alimento. Abaixo do conjunto um toco de árvore leva o dístico beneditino “Ora et labora”, reza e trabalha.
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Figura 88. Folheto do fermento em pó Soddy, 1887. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
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Figura 87. Mellin’s Food for Infants & Invalids, 1890. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
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É interessante observar a oposição entre o utilitarismo dos alimentos industriais e a pureza, doçura ou benignidade sugerida pelas ilustrações românticas de crianças rosadas. Em alguns casos, a presença de crianças no impresso reforça a simplicidade de preparo do produto, como no calendário do fermento em pó Soddy (Figura 88). Nesta figura, uma criança prepara o alimento e a outra apresenta o resultado para o orgulho dos pais. O fato se tratarem de crianças pequenas é ressaltado em ambas as imagens. Na primeira, a criança pouco mais alta do que uma mesa carrega um bolo desproporcional para o seu tamanho. Na segunda, a jovem cozinheira faz uso de uma banqueta para alcançar a mesa onde prepara o bolo. No anúncio do pó Freeman para pudim (Figura 89), que pode ser feito em “cinco minutos”, bastando “acrescentar leite e açúcar”, vemos a figura de uma jovem com um cartaz onde se lê: “uma criança pode fazêlo”. Sobre a mesa diversos pudins, representando os sabores citados abaixo. O pudim era uma parte importante da alimentação vitoriana. Embora as classes mais baixas não tivessem o freqüente às sobremesas, estas não eram exatamente um luxo dos mais ricos. O pó de pudim facilitava o preparo a um preço ível para as classes médias, onde era muito popular.
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Figura 89. Anúncio do pó para pudim Freeman, 1884. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
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Figura 90. Anúncio da essência de chocolate Cadbury, 1866. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
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Estes exemplos apontam para a evidencia de que as publicações e suas imagens aram a ocupar espaço na construção do imaginário do morador da urbe a partir de sua atuação nos diversos campos de sua vida, como no ambiente doméstico, no vestuário e na alimentação, na formulação de uma verdadeira cultura visual. Se, por um lado, alguns exemplos são de anúncios bastante objetivos, de outro existe sutileza na existência de marcas ou ilustrações que não apresentam uma conexão direta com o produto. Este enfoque pode ser claramente observado em anúncios de sabão que, apesar de manufaturado há centenas de anos, tiveram seu consumo ampliado a partir de 1853, com a isenção de taxas. De um lado, vemos o produto em ação, seja na limpeza realizada por empregados (Figura 91; Figura 92) ou no destaque dado às características funcionais do produto (Figura 93). O anúncio da marca de sabão em pó Hudson (Figura 92) é ao mesmo tempo característico do espírito romântico que ainda paira sobre o século XIX e da funcionalidade de atuação do produto. Na sua ilustração há uma criança bem vestida que escreve na porta as informações do sabão: “lava, limpa e poli tudo”. Pela porta entreaberta vemos a doméstica lavando roupa em uma das máquinas contemporâneas.
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Figura 91. Anúncio do desinfetante Jeyes, 1879. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
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Figura 92. Anúncio do sabão em pó Hudson, 1880. Evanion Collection of Ephemera. *The British Library.
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Figura 93. Anúncio do sabão em pó Hudson, 1889. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
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Outra série de anúncios e folhetos publicitários de sabão utiliza figuras não diretamente relacionadas às características do produto ou à higiene e limpeza, simplesmente elementos ilustrativos. É o caso do anúncio da manufatura Price (Figura 94), onde o anunciante aproveita a ilustração de um barco para divulgar também a sua produção de velas para alumiar. No caso do fabricante de sabão Brooker, um macaco foi adotado para representar sua marca (Figura 95), enquanto o sabão em pó Glover, premiado na Exposição de Paris de 1878, utiliza a imagem de um galo (Figura 96).
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Figura 94. Anúncio do sabão Price, 1880. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
Figura 95. Anúncio do sabão Brooker, 1889. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
Figura 96. Anúncio do sabão em pó Glover, 1881. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
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Os impressos publicitários apresentados evidenciam o destaque vitoriano dado ao ambiente doméstico em um ambiente onde o trabalho industrial a a ditar o ritmo urbano da metrópole, inclusive com a falta de tempo que faz com que os habitantes procurem simplificar os seus modos de alimentação, moradia e higiene. A produção de impressos em grande escala ao lado da diversidade dos produtos desenvolvidos especificamente para os moradores urbanos confirmam o enorme fluxo de informações visuais sugerido pelas representações de muros cobertos por impressos e apontam, também, para o avanço da industrialização em setores tão diversos como editoração, produtos de limpeza e alimentos préprontos. As cidades saturadas de imagens colocam-se ao mesmo tempo como um “complexo de representações e um lugar de circulação de representações”; o efeito de cada um destes processos é articulado e retrabalhado sobre o outro.304 Em um mundo onde tudo e todos se movimentam surge um novo tipo de olhar a partir da dinâmica surgida entre os espaços urbanos, as novas tecnologias e sua influência sobre o aparecimento da profusão de imagens. A visão abandona a postura contemplativa e o ponto de vista único da perspectiva para tornar-se
304
TAGG, John. The Discontinuous City: Picturing and the Discursive Field. In: BRYSON, Norman, HOLLY and MOXEY (eds.). Visual Culture: Images and Interpretations. Hanover and London: Wesleyan University Press, 1994. p. 85. apud apud NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 57.
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múltipla e deslizante sobre as formas de cada objeto ou imagem. Com tantos pontos de vista possíveis, o novo observador vê-se disputado pelo excesso de estímulos e é forçado a adaptar sua forma de olhar a estas condições: com o menor esforço possível deve ser capaz de registrar o maior número de estímulos visuais. De um único relance poderá registrar um grande número de elementos individuais. Estão apontadas algumas bases da cultura visual contemporânea.
3.2.4. O olhar para o novo / o choque do novo O excesso de estímulos visuais encontra-se relacionado à “concepção neurológica da modernidade”305, expressão criada por Ben Singer, baseada em estudos de Georg Simmel, Siegfried Kracauer e Walter Benjamin que apontavam para a compreensão da modernidade como o registro de uma experiência subjetiva PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
caracterizada por choques físicos e perceptivos no ambiente urbano moderno. “A modernidade implicou em um mundo fenomenal – especificamente urbano – que era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fases anteriores da cultura humana”.306 O movimento do tráfego e das multidões, o barulho das ruas e a crescente carga de informação visual contida nas vitrines, estampas, cartazes e anúncios encontram paralelo em uma reorganização das respostas sensoriais. O novo ritmo trazido pelo transporte rápido, pelo aumento na quantidade de produtos e informações e pela premência da produção em massa acelerou essas repostas. A velocidade crescente a a influir diretamente sobre uma mudança perceptiva consciente, que Georg Simmel anos depois veio a chamar de “percepção urbana”. No ensaio “A metrópole e a vida mental” de 1902, Simmel analisa a alteração brusca e ininterrupta entre o que chama de estímulos interiores e estímulos exteriores e o modo como esta dinâmica intensifica as respostas nervosas do homem urbano.307 Para Simmel “a metrópole extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma quantidade de consciência diferente da que a
305
SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p 116. 306 Id. 307 SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otavio Guilherme.(org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro : Zahar, 1976. p. 12.
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vida rural extrai”.308 Opondo os ritmos de vida urbano e rural, observa que na última “o conjunto sensorial de imagens mentais flui mais lentamente, de modo mais habitual e mais uniforme.309 O cidadão urbano sujeito a estímulos contrastantes acaba por adotar uma atitude blasé. “Uma vida em perseguição desregrada ao prazer torna uma pessoa blasé porque agita os nervos até seu ponto de mais forte reatividade por um tempo tão longo que eles finalmente cessam completamente de reagir”.310 Esta manifestação fisiológica consiste “no embotamento do poder de discriminar”.311 Os objetos são percebidos como “destituídos de substância” e aparecem à pessoa blasé num tom uniformemente plano e fosco, sem grandes relevâncias. “Objeto algum merece preferência sobre o outro”.312 O excesso de estímulos faz como que a atitude blasé surja como uma forma de autopreservação. O resultado é que para que venha a interagir com objetos ou imagens, o homem moderno irá precisar de estímulos cada vez PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
maiores. Já em 1910 o termo “hiperestímulo” aparece associado ao novo ambiente metropolitano da modernidade.313 A teoria de Simmel ainda ecoa com bastante atualidade em nossos dias, inclusive sendo reforçada pelas modificações ocorridas na natureza e intensidade dos estímulos surgidos nas últimas décadas como conseqüência do aparecimento de novas de comunicação. Walter Benjamin, influenciado por Simmel, avalia a experiência da modernidade a partir da transformação de Erfahrung em Erlebnis314. Erfahrung trata da “experiência” relacionada à obtenção de um conhecimento sem intervenção da consciência, mas sedimentado com o tempo. Erlebnis é a vivência imediata, “do indivíduo privado, isolado é a impressão forte, que precisa ser assimilada às pressas, que produz efeitos imediatos”.315 É relacionada à impressão do indivíduo desconsiderando sua inserção na comunidade. Erfahrung pertence ao domínio do artesanal, relaciona-se à continuidade, à memória, à narrativa e a uma relação significativa com o ado enquanto Erlebnis é própria da experiência
308
Id. SIMMEL, G. op. cit., p. 12. 310 Ibid., p. 16. 311 Id. 312 Id. 313 DAVIS, Michel M. The explotation of pleasure. Nova York: Russel Sage Foungation, 1911 p. 33-36, apud SINGER, B. op. cit., p 119. 314 A questão da experiência aparece em diversos textos de Benjamin. Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire.... p. 104 a 149. 315 BARBOSA, José Carlos Martin, redator técnico, citando KONDER, Leandro. BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire... p. 146. 309
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descontínua das cidades, das sensações fragmentárias, das informações contínuas e superficiais e das existências momentâneas. “Erfahrung é o conhecimento obtido através de uma experiência que se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem...”.316 É uma construção no tempo e na história. Erlebnis é a própria experiência da modernidade, da celebração do espetáculo do “agora” e de seu parceiro - o sempre novo, filhos da metrópole capitalista surgida na segunda metade do século XIX. A cidade moderna abre espaço para a necessidade permanente do novo, o estranho e o sensacional. Ben Singer credita a este desejo o crescente número de ilustrações presentes em jornais e revistas da época que mostram desastres e pequenas tragédias urbanas, geralmente representadas no momento imediatamente anterior ao impacto. Algumas destas imagens enfatizam o choque entre o mundo moderno e o pré-moderno como vemos na figura do New York World de 1897 que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
mostra um acidente envolvendo um cavalo e um bonde (Figura 97). Na figura da Life vemos um adulto e uma criança de origem indígena em dois diferentes momentos (Figura 99). Representados no século XVI, eles am tranqüilidade: o ambiente é campestre, o adulto fuma seu cachimbo enquanto a criança parece olhar para fora do quadro, ou para o nosso olhar. O segundo momento é na Nova York do século XIX. Um bonde avança em alta velocidade sobre a mulher que resgata uma criança da frente do veículo. O chapéu do menino é lançado ao chão enquanto as tranças da mulher formam um desenho curvo em contraste com as linhas retas do bonde. O motorista tem um semblante ameaçador e sarcástico e avança sobre suas vítimas: outra criança e um homem, lançados um de cada lado do veículo. Ao fundo vemos a nossa já conhecida “paisagem” de cartazes publicitários, desta vez, anunciando “imagens em movimento”. Em uma gravura do Punch, um homem é retratado no instante em que, ao descer as escadas, é surpreendido por uma súbita freiada do bonde. De acordo com a legenda, ele não se encontra em um de seus melhores momentos (Figura 98).
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Id.
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Figura 98. “Quando um homem não parece estar no seu melhor momento”- n. 2. Punch, or The London Charivari. Vol. 101. 17 de outubro de 1891. The Project Gutenberg
(24/11/07).
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Figura 97. “Cavalo estraçalha janela de bonde”. New York World, 1897. Extraído de SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular... p 123
Figura 99. “Broadway – ado e Presente”. Life, 1900. Extraído de SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular... p 122.
Um ensaio acadêmico publicado em 1912 no American Journal of Sociology enfatiza a conexão entre a experiência moderna e o apetite por “choques intensos” no entretenimento. “Há ‘alguma coisa acontecendo a cada minuto’... Tudo isso tende a estimular uma atenção esgotada, por meio de uma
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sucessão de choques curtos e intensos que reavivam o organismo cansado para atividades renovadas”.317 Estas atividades consistiam em teatro de variedades, vaudeville, exibição de filmes em movimento, acrobacias aéreas, “aparelhos que fazem cócegas”, peep shows, gabinetes de curiosidades dentre outros capazes de suprir a necessidade por novos estímulos. Estes estímulos deveriam produzir sensações cada vez mais intensas de forma a penetrar nos sentidos atenuados para então “formar uma impressão e redespertar uma percepção”.318 Deste modo compreende-se que os entretenimentos se anunciem como algo “jamais visto”, “nunca antes...”, “o maior show do mundo”, etc. É neste contexto que Ben Singer, ao considerar que a modernidade “inaugurou um comércio de choques sensoriais”319, vê o início do cinema reforçando a tendência pela procura das sensações intensas que gravitam em torno de uma “estética do espanto”.320 É como se o ambiente caótico da modernidade tivesse sido transfigurado em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
monotonia. Há no ar uma ânsia pela novidade, já que a monotonia “se nutre do novo”.321 Walter Benjamin vê a falsa aparência da novidade como o reflexo de um espelho no outro. Para tentar entender o significado da nouveté, pergunta-se: “Por que todo o mundo comunica as últimas novidades aos outros? Provavelmente para triunfar sobre os mortos”.322 Os mortos são os sem-novidade porque não podem se aliar à velocidade mutante dos novos tempos. E prossegue: Esta temporalidade [que] não quer conhecer a morte, por que a moda zomba da morte, e como a rapidez do trânsito e a velocidade da transmissão de notícias – que faz com que as edições do jornais se sucedam rapidamente – visam a eliminar toda interrupção, todo fim abrupto, e de que maneira a morte como cesura tem a ver com a linha reta do decurso divino do tempo.323
No fundo trata-se do “mesmo” que é buscado incansavelmente com uma nova roupagem. Neste contexto, surge a moda como um fenômeno específico da modernidade capitalista, acentuando o desejo pela mudança rápida.324 Para Benjamin, “a moda é o eterno retorno do novo”325 e se coloca como um remédio
317
WOOLSTON Howard B. The Urban Habit of Mind. American Journal of Sociology. V. 17, n. 5, mar. 1912. p. 602 apud SINGER, B. op. cit., p 139. 318 Em referência a Woolston cf. SINGER, B. op. cit., p 140. 319 SINGER, B. op. cit., p 133. 320 Ibid., p 136. 321 VAUDAL, Jean, Le Tableau Noir. BENJAMIN, Walter. agens... p. 151. [D 5,6]. 322 BENJAMIN, W. agens... p. 152. [D 5a,5]. 323 Ibid. p. 89. [A 6,2]. 324 SIMMEL, Georg. Philosophische Kultur, Leipzig, 1911, p. 41. apud BENJAMIN, W. agens... p. 115. [B 7a,1]. 325 BENJAMIN, Walter. Parque Central. In: Obras escolhidas III... p. 169.
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para compensar “na escala coletiva os efeitos nefastos do esquecimento. Quanto mais efêmera é uma época, tanto mais ela se orienta pela moda”.326 A moda é o fundamento sobre o qual as lojas exercem seu poder de atração sobre o olhar do transeunte. Em um texto de 1822, reproduzido por Benjamin, lemos: Os olhos são conduzidos como que à força, é preciso olhar para cima e ficar parado até que o olhar seja restituído. O nome do comerciante ou de sua mercadoria está escrito dez vezes em tabuletas penduradas por toda parte, sobre as portas, acima das janelas, o lado externo da abóbada assemelha-se ao caderno de uma criança de 327 escola, que repete continuamente as poucas palavras a serem copiadas.
Até a segunda metade do século XIX, as lojas de varejo eram especializadas. Em geral pertenciam a um indivíduo ou família e disponibilizavam artigos produzidos artesanalmente. Os compradores se dirigiam a estes
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estabelecimentos em busca de itens específicos e, de uma maneira geral, tinham em mente o que iriam encontrar. A partir da segunda metade do século XIX, os espaços comerciais aram a se organizar em cadeias, como na Inglaterra, ou em lojas de departamento, como Le Bon Marché, Le Louvre e La Belle Jardinière328, nascidas na França. A nova dinâmica comercial foi estabelecida, principalmente, a partir da produção de artigos em massa e das transformações urbanas. Le Bon Marché era uma pequena loja parisiense, quando em 1863, Boucicaut comprou a parte dos sócios e ou a imprimir novas características ao empreendimento que até os dias de hoje se assina como “Maison Aristide Boucicaut”. Buscando caracterizar a casa por sua honestidade, qualquer compra que não satisfizesse o consumidor poderia ser trocada por outra ou ter restituído o valor pago.329 Todos os produtos tinham preço fixo, indicado sobre etiquetas. Esta inovação ousada suprimia a pechincha e a ‘venda segundo a cara do freguês’.330
326
BENJAMIN, Walter. agens... p. 104-105. [B 2,4]. Ludwig Börne, Schilderungen aus Paris, 1822 e 1823, VI (“Die Läden”), in: Gesammelte Schriften, Hamburgo / Frankfurt a. M., 1862, III, pp. 46-49. apud, BENJAMIN, W. agens... p. 99-100. [A, 12a]. 328 Benjamin aponta o nascimento das três lojas sas a partir de 1852. BENJAMIN, W. agens.. p. 89. [A 6,2]. 329 Souvenir of the Bon Marche, Paris. Impresso por The Bon Marche by Imprimerie Lahure, 9, rue de Fleures, a Paris. Lipinsky Family Collection, D.H. Ramsey Library Special Collections, UNCA, USA. In:
o em 21/07/2007 às 11:00. 330 George d’Avenel, “Le mécanisme de la vie moderne: Les grands magazins”, Revue de Deux Mondes, Paris, 1894, pp. 335-336; 124 tomos” apud BENJAMIN, Walter. agens... p. 98. [A 12,1]. 327
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O grande número de produtos disponíveis permitia uma ampla margem de escolha e também uma eventual substituição, no caso de não se encontrar o produto desejado originalmente. Finalmente, a diminuição na margem dos lucros possibilitou uma grande rapidez de reposição de mercadoria. As mercadorias também podiam ser escolhidas através de catálogos e remetidas para qualquer parte do planeta. Itens acima de 25 centavos eram enviados sem custo para diversos países da Europa: “Entregamos tão longe quanto um cavalo possa alcançar em Paris”.331 Outra grande invenção foi a liquidação de inverno criada para ajudar a “queimar” o estoque de produtos não vendido no natal e na virada do ano, reforçando a rotatividade das mercadorias Diferentemente do que ocorria em outros empreendimentos relacionados à indústria, Boucicaut e sua esposa eram reconhecidos por se preocuparem com as condições de trabalho dos empregados. Além das comissões originadas a partir PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
das vendas, os empregados contavam com assistência médica e um fundo de previdência para a aposentadoria. Recebiam refeições no local de trabalho e folgavam aos domingos. Este tratamento paternalista acontecia muito antes de qualquer obrigação trabalhista legal. As obrigações e benefícios dos empregados eram divulgados em publicações impressas que ressaltavam o papel filantrópico do empreendimento.332 Quando iniciou a construção do grande edifício da loja, em 1869, Boucicaut fez acrescentar uma placa com um pequeno texto onde deixava claro que desejava fazer da instituição uma organização filantrópica como gratidão pelos “seus esforços sempre terem sido recompensados pela Providência”.333 Qualquer um podia circular – mesmo que por pura diversão – pelos pavimentos dos grands magasins de noveauté. O espaço físico das lojas de departamento incorporava outros usos além da venda de produtos. Em Paris estes espaços se estabeleceram entre as atrações turísticas mais importantes da cidade.334 Na loja do Bon Marché havia visitas guiadas diárias, com acompanhantes em diversos idiomas, além de uma galeria para exposição de
331
LE BON MARCHÉ RIVE GAUCHE - press release new edition October 2004. p. 6. Au Bon Marché. Résumé du réglement général ; en Institutions philanthropiques en faveur du personnel / Au Bon Marché, nouveautés, Maison Aristide Boucicault,... Publication: Paris: Maison A. Boucicaut, 1894. In:
o em 25/07/2007 às 20:15. 333 History of Le Bon Marché.
o em 25/07/2007. 334 TIERSTEN, Lisa. Marianne in the market: envisionig consumer society in fin-de-siècle . Los Angeles: University of California Press, 2001. p. 26. 332
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pinturas e esculturas, onde não se aceitavam cópias.335 No século XIX, a loja de departamentos já associava compras a entretenimento, oferecendo para antes ou depois das compras uma ida ao restaurante ou ao Tea Lounge para um encontro com Orquestra Vocal. Todo este arsenal procurava fazer com que a mercadoria se mostrasse ainda mais sedutora. Para T. J. Clark os magasins se abriam como uma espécie de palco onde o comprador devia estabelecer uma nova postura: “não pechinchar, mas procurar as pechinchas, não obter uma roupa cortada sobre medida, mas escolher uma que, de algum modo, coubesse perfeitamente dentre as 54 saias-balão em exposição.336 A nova dinâmica comercial produziu um grande impacto sobre as pequenas lojas, mas, principalmente, sobre os artesãos que, na França, já atravessavam um período de mudanças intensas na sua atividade com alterações na forma de trabalhar, graças ao desenvolvimento industrial, mas também com modificações PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
no seu espaço de atuação, como resultado das reformas de Haussmann que promoveram a reestruturação da antiga comunidade com a conseqüente mudança dos trabalhadores para bairros mais distantes. Mas, acima de tudo, os artesãos foram profundamente afrontados pelo sistema de vendas que se propunha um lucro pequeno para uma qualidade plenamente aceitável.337 A estrutura comercial e de produção foi completamente reformulada. Os representantes das grandes lojas se dirigiam aos ateliês com pedidos de centenas ou milhares de unidades. Na busca pelo melhor preço, negociavam o serviço ou, se necessário, iam procurá-lo mais longe. As condições eram ofensivas não apenas pelas exigências de preço, mas também de velocidade. Deste modo, os artesãos foram aprendendo a usar o ferro mais barato e o papel mais fino e a preocupar-se menos com a qualidade permanente do resultado338. aram a trabalhar por mais tempo com o mestre, atuando como um guardião da disciplina da oficina, zelando pelos prazos. As tarefas de produção foram segmentadas e cada trabalhador executava a sua
335
Souvenir of the Bon Marché, Paris. Impresso por The Bon Marche by Imprimerie Lahure, 9, rue de Fleures, a Paris. Lipinsky Family Collection, D.H. Ramsey Library Special Collections, UNCA, USA. p. 4. In: http://toto.lib.unca.edu/findingaids/books/booklets/bon_marche/default_bon_marche.htm. o em 21/07/2007 às 11:00. 336 CLARK, T. J. op. cit., p. 101. O número citado é o de saias disponíveis no Bon Marché. 337 “The system of selling everything at a small profit and of a perfectly reliable quality”. Souvenir of the Bon Marche, Paris. Impresso por The Bon Marche by Imprimerie Lahure, 9, rue de Fleures, a Paris. Lipinsky Family Collection, D.H. Ramsey Library Special Collections, UNCA, USA. p. 3. In: http://toto.lib.unca.edu/findingaids/books/booklets/bon_marche/default_bon_marche.htm. o em 21/07/2007 às 11:00. 338 CLARK, T. J. op. cit., p. 102.
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especialidade, muitas vezes na própria casa sob o comando representante da cadeia de lojas.
Figura 100. Au Bon Marché, 1889. Vitrine de pequenos artefatos. In: Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona. Vol. X, n. 211, 15 de abril de 2006.
(21/07/07)
Figura 101. Ilustração “origin of the bon marché”. p. 2. Livreto, c. 1896. In: D. H. Ramsey Library, Special Collections, University of North Carolina at Asheville.
(21/07/07)
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As novas formas de exibir os produtos visavam vender mais do que as pessoas haviam originalmente planejado comprar e a publicidade impressa reforçava esta idéia. A influência do Le Bon Marché na construção da visualidade moderna não se restringe apenas às novidades na exposição e venda de produtos (Figura 100), mas pode ser observada na produção de produtos impressos como folhetos e estampas colecionáveis e nas artes plásticas. Por ser a primeira loja de departamento, o Bon Marché servia de referência para a criação de lojas semelhantes. A Figura 101 reproduz a primeira página de uma publicação voltada para as práticas istrativas deste modelo de loja e que foi utilizado pela família Lipinsky, proprietária da loja de departamentos Asheville, N.C. Bon Marché nos Estados Unidos. É importante observar que, apesar desta loja americana não estar diretamente ligada à matriz sa, o seu processo de desenvolvimento e modernização é destacado na ilustração (Figura 101). As estampas litográficas promocionais foram utilizadas como publicidade do Bon Marché a partir de 1878, com ilustrações diferentes, de forma a estimular o colecionamento (Figura 102; Figura 103).
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Figura 102. Cartão postal promocional Au Bon Marché, sem data. Disponível em:
(28/06/08)
Figura 103. Estampa promocional Au Bon Marché, c. 1878. GORBERG, Samuel. Figurinhas: Sucesso de Marketing. . Disponível em:
(21/07/2007).
Uma interessante referência às lojas Au Bon Marché é encontrada na natureza-morta cubista de Pablo Picasso que compartilha seu nome com a loja
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(Figura 104). O rótulo da loja de departamentos ocupa o centro da obra, mas encontra-se posicionado de forma ilusionística sugerindo uma caixa ou uma mesa em um plano perpendicular ao fundo da imagem. À esquerda há a forma de uma garrafa e à direita, um copo. Ao fundo, a figura de uma mulher é destacada de um anúncio de jornal de outra cadeia de lojas, a Samaritane.339 A pintura deixa evidente apenas partes do anúncio. Há na obra de Picasso uma referência direta ao consumo com a bebida e a mulher articulando-se neste contexto. A mulher aparece, de fato, com uma função dupla de consumidora de bens, mas também, envolvida no mundo das mercadorias, como objeto de consumo.340 Estas considerações ampliam a noção de consumo, situando-o de maneira fundamental dentro de um modo de vida construído pela modernização, onde os próprios consumidores também podem ser consumidos.
339
Esta análise da obra de Picasso foi sugerida em HARRISON, Charles et alli. Primitivismo, Cubismo, Abstração. Começo do século XX. São Paulo: Cosac & Naify E., 1998. p. 95-98. 340 POGGI, Christine. Mallarmé, Picasso and the newspaper as commodity. P. 150 apud HARRISON, Charles et alli. Primitivismo, Cubismo, Abstração. Começo do século XX. São Paulo: Cosac & Naify E., 1998. p. 97.
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Figura 104. Pablo Picasso. Natureza-morta Au Bon Marché, 1913. Óleo e papel colorido sobre cartão. Coleção Ludwig, Aachen.
O consumo entra em cena no momento em que se abre mão da permanência em favor do momento para o momento. Alexis de Tocqueville identificou o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
“consumo imediato dos produtos e igualdade, sem classes, dos consumidores” como característica do espírito da indústria norte-americana.341 A obsolescência parecia afirmar-se através da busca pela perfeição. Tocqueville ao perguntar a um marinheiro norte-americano porque os navios de seu país se construíam de forma a não durarem muito, responde sem hesitar que “a arte da navegação faz progresso diários tão grandes, que o navio mais formoso viria a ser inútil dentro muito pouco tempo, se durasse mais que alguns anos”.342 A necessidade do novo avança até os nossos dias lado a lado com o consumo. No século XIX, o olhar iniciou um diálogo com o novo, respondendo a cada estímulo, buscando o resto de inocência em cada mirada. O olhar e o novo interagem em respostas cíclicas cada vez mais aceleradas, em uma disputa que parece longe do fim.
3.2.5. O controle sobre os corpos A multidão sintetiza a imagem do “turbilhão” advindo com a modernização, um dos agentes geradores da sensação de efemeridade e fragmentação que acompanha a modernidade. Duas gravuras de periódicos 341
PLUM, Werner. Exposições mundiais no século XIX: espetáculos da transformação sócio-cultural. Bonn : Friedrich-Ebert-Stiftung, 1979. p. 125.
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londrinos do século XIX expressam este estranhamento com algumas semelhanças - apesar do distanciamento de trinta anos entre elas. Ambas retratam trabalhadores em manhãs de domingo. Na primeira, de 1856 (Figura 105), vemos um aglomerado de adultos e crianças em frente à porta fechada de uma loja de bebidas. O ambiente é de nada fazer, de vagabundagem.
Um homem fuma
encostado em um poste, outro boceja. Uma criança carrega outra menor. Seria um ambiente de tranqüilidade embora paire no ar uma tensão sutil disseminada pelo aglomerado de trabalhadores. A segunda gravura publicada em 1886 (Figura 106) utiliza a ironia ao estilo da publicação Punch, para contrastar o título “Um domingo tranqüilo em Londres; ou o Dia do Descanso” à imagem da balbúrdia. Todas as pessoas estão agitadas. Uns carregam faixas ou cartazes como se estivessem em um piquete. Chove. Animais se misturam à turba e alguns antes, mulheres com crianças, parecem assustados. Não sendo nossa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
pretensão abordar fundamentalmente o aspecto socioeconômico sugerido por estas duas imagens, nos atemos à diferenciação do ambiente urbano nos dois exemplos. No primeiro, todas as pessoas parecem se conhecer e não se percebem ameaças no ambiente. No segundo a multidão é a ameaça. A algazarra faz a rua do segundo quadro parecer pequena para tantas pessoas e a multidão parece esconder diversas “camadas” de figuras.
Figura 105. Rua em manhã de domingo. Illustrated London News, 1856.
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342
TOCQUEVILLE, Aléxis de. De la démocratie en Amérique. apud PLUM, W. op. cit., p. 126.
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Figura 106. “Um domingo tranqüilo em Londres; ou o Dia do Descanso”. Punch, 1886. Extraído de SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular... p. 120.
A ameaça desprendida do aglomerado urbano parece ter sempre estado relacionada à impossibilidade de controle e à entropia343. De Baudelaire, Benjamin destaca: “O que são os perigos da floresta e da pradaria comparados com os choques e conflitos diários do mundo civilizado? Enlace sua vítima no bulevar ou trase sua presa em florestas desconhecidas, não continua sendo o homem, aqui e lá, o mais perfeito de todos os predadores?”.344 A sensação de medo no final do século XIX, aparentemente, foi reforçada com o surgimento dos partidos trabalhistas, iniciado na década de 1870, pelo Partido Social Democrático Alemão que relacionou o conceito marxista de massas ao proletariado industrial. Nestas condições, a classe alta ou a sentir-se ameaçada em sua hegemonia com a idéia de revolução. Mas, a concepção de uma multidão anônima indiscriminada e sem rosto impõe-se como uma ameaça que independe da classe social. Novas configurações espaciais e o tráfego incessante de pessoas e veículos resultaram na incompetência do olhar para decifrar a avalanche de signos que surgia.
343
BRANTLINGER, Patrick. Mass Media and Culture in Fin-de-Siècle Europe. In Fin de Siècle and its Legacy. Ed. TEICH, M. and PORTER, R. Cambridge Univ. Press, 1990. p. 98-124. 344 Baudelaire apud BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 37.
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As mudanças vividas com a ascensão da sociedade industrial confundiram algumas referências estabelecidas anteriormente, relacionadas à hierarquia social. É neste contexto que alguns signos característicos de atividade profissional se colocaram como possível demarcador de identificação dos indivíduos dentro da multidão. De fato, referências a utensílios e vestimentas já são encontradas na representação de profissões no final do século XVII. É este o caso do léxico indumentário retratado nos Costumes grotesques de Larmessin (Figura 107, Figura 108 e Figura 109). O desenhista criou, para cada profissão, um uniforme composto por elementos extraídos oniricamente dos instrumentos utilizados na prática de cada ofício em uma harmonização que, como observa Roland Barthes, se aproxima das pinturas de Arcimboldo. “Trata-se de um pansimbolismo desbragado. [...] Nessa fantasia, o vestuário acaba por absorver completamente o homem; o trabalhador é anatomicamente assimilado a seus instrumentos”, como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
se fosse um “robô avant la lettre”.345
Figura 107. Vestimenta de jardineiro. Larmessin, c. 1695. Les Costumes Grotesques: Habits des métiers et Professions.
Figura 108. Vestimenta de músico. Larmessin, c. 1695. Les Costumes Grotesques: Habits des métiers et Professions.
Figura 109. Vestimenta de confeiteira. Larmessin, c. 1695. Les Costumes Grotesques: Habits des métiers et Professions.
A representação fantasiosa encontrada em Larmessin dá lugar, na primeira metade do século XIX, a uma classificação dos tipos da cidade, exposta em cartões, estampas e jogos, normalmente, restrita às profissões pré-industriais. A maior parte destas gravuras (Figura 110; Figura 111; Figura 112), como as publicadas em 1820 com o título “O traje das classes mais baixas da metrópole”,
345
BARTHES, Roland. Linguagem e vestuário. In: Inéditos, vol 3: imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 284-5.
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busca traduzir as atividades dos pequenos comerciantes, ambulantes ou prestadores de serviço, e não propriamente, o figurino dos cidadãos. Nas imagens aqui reproduzidas vemos a vendedora de fósforos com seu traje esfarrapado, o artista ambulante e o “eiro” que andava pela cidade para remendar potes e as. Estas profissões, comuns na primeira metade do século XIX, são representadas com clareza e simplicidade, obtendo a evidência da atividade a partir dos objetos utilizados na prática – os fósforos e uma cesta, um pequeno cenário que o artista leva nas costas, o martelo e duas as. Mas, como seria retratar as profissões relacionadas à indústria alguns anos depois, quando os objetos utilizados nem sempre pertencem àquele que os emprega? Neste novo contexto, as ferramentas permanecem no espaço de trabalho e já não servem para
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“identificar” os seus usuários.
Figura 110. Vendedora de fósforos. BURBY, Thomas Lord, gravador. Costume of the lower orders of the metropolis. London: T. L. B., 1820. ID: 1168475 NYPL Gallery.
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Figura 111. Show de rua. Artista ambulante. BURBY, Thomas Lord, gravador. Costume of the lower orders of the metropolis. London: T. L. B., 1820. ID: 1168477. NYPL Gallery.
Figura 112. eiro. BURBY, Thomas Lord, gravador. Costume of the lower orders of the metropolis. London: T. L. B., 1820. ID: 1168476. NYPL Gallery.
(25/11/07)
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Neste sentido, devemos observar uma página de um livreto ilustrado da segunda metade do século XIX que relaciona as profissões às letras do alfabeto (Figura 113). Na mesma página aparecem profissões tão diversas quanto o leiteiro, o gravador e o engenheiro projetista, em sua prancheta, “projetando a máquina a vapor”. Se a modernização fazia nascer novas profissões mais relacionadas à tecnologia, a vida tradicional da cidade persistia frente aos avanços urbanos na manutenção das antigas profissões pré-industriais, como o alfaiate, o farmacêutico, a costureira, o sapateiro, dentre outros representados no jogo de 1860 (Figura 114). Nestes exemplos, as pessoas não se encontram simplesmente
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retratadas, mas se mostram no exercício da sua atividade – o engenheiro projetando, o gravurista gravando e assim por diante. Eles não estão na rua como
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o artista ambulante, mas à exceção do leiteiro, dentro de sua oficina ou loja.
Figura 113. Alfabeto de profissões do primo Favo de Mel (Cousin Honeycomb’s). Publicado por Dean & Son, Londres, c. 1856. The John Johnson Collection of Printed Ephemera. Bodleian Library. University of Oxford.
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Figura 114. Nossa aldeia, um jogo de profissões. Jogo impresso em litografia, produzido por Standring & Co., Londres, 1860. The John Johnson Collection of Printed Ephemera. Bodleian Library. University of Oxford.
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Estas imagens nos permitem constatar que, na medida em que as profissões começam a se mostrar apenas no exercício da própria atividade, os profissionais tornam-se indiferenciados nas ruas. É neste contexto que a dificuldade de determinação visual do sujeito urbano começa a se configurar em ameaça. Walter Benjamin destaca um trecho de um relatório policial parisiense do ano de 1798: “É quase impossível manter boa conduta numa população densamente massificada, onde cada um é, por assim dizer, desconhecido de todos os demais, e
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não precisa enrubescer diante de ninguém”.346 Como destaca Benjamin, por outro lado, a massa atua protegendo o anti-social contra seus perseguidores, escondendo quem deseja esconder-se.347 Para Ben Singer, apesar de ter-se ado um século, a população ainda não se encontrava plenamente adaptada à modernidade urbana e a metrópole “ainda era percebida como opressiva, estranha e traumática”.348 A assimilação do comportamento urbano não se realizou de forma natural e alguns gêneros literários se propam a abrir este caminho. Em meados do século XIX, surgiram as “fisiologias” que compunham um gênero literário específico, em formato de bolso, onde os tipos da vida parisiense apareciam retratados. Estes fascículos descreviam de forma simplista “desde o vendedor ambulante do bulevar, até o elegante no foyer da ópera”349, tipos urbanos que eram apresentados como seres amistosos, cônscios do seu papel na sociedade. O texto sobre o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
trabalhador da indústria, por exemplo, imputa-lhe uma alegria ao trabalho, dificilmente observável, mas que – nas palavras de Benjamin – teria feito o empresário que lesse essa descrição ir descansar mais tranqüilo do que habitualmente: “A fumaça das altas chaminés da fábrica, os golpes retumbantes da bigorna o fazem vibrar de alegria. Lembra os dias felizes de trabalho guiado pelo gênio do inventor”.350 As fisiologias asseguravam que “qualquer um, mesmo aquele não influenciado pelo conhecimento do assunto, seria capaz de adivinhar profissão, caráter, origem e modo de vida dos transeuntes”.351 O interesse por estas descrições encontrava lugar nas novas circunstâncias, características da cidade moderna, repletas de situações ameaçadoras nunca antes experimentadas, e nas fantasias e desejos de seus habitantes por decifrá-las. As fisiologias estão diretamente relacionadas a um mundo de informações visuais não classificadas e à possibilidade de compreendê-las e organizá-las. As fisiologias tranqüilizadoras logo entraram em decadência, mas o avanço científico que acompanhava o processo de modernização pôde acenar com algumas possibilidades de controle sobre os componentes da massa urbana. 346
SCHMIDT, Adolphe. Tableaux de la révolution française. Leipzing, 1870. p. 337. apud BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charle Baudelaire... p. 38. 347 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charle Baudelaire... p. 38. 348 SINGER, B. op. cit., p 133. 349 BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire... p. 34. 350 In: Fisiologia da Indústria sa, de Foucauld, apud BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charle Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 37.
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É neste contexto que as descrições fisiognomônicas, desenvolvidas sobre a teoria de Cesare Lombroso, foram populares até o início do século XX. A fisiognomonia é baseada no determinismo biológico e considera possível conhecer o caráter das pessoas pelos traços fisionômicos do seu rosto. Desta forma, pretende destacar os tipos potencialmente criminosos, a partir da identificação e reconhecimento de determinados traços hereditários. Em outras palavras, considerava que o que era observado no corpo de uma pessoa exercia algum tipo de influência sobre suas atitudes. Com a análise dos traços de diversos indivíduos pretendeu-se construir um léxico para a determinação de inclinações de personalidade. A partir destes estudos, Lombroso se destacou como um pioneiro da criminologia científica, fundamentando o movimento da eugenia que iria eclodir no início do século XX. No mesmo contexto da fisiognomonia pode ser listada a pseudociência da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
frenologia que se propunha estudar o caráter e as funções intelectuais humanas a partir da conformação do crânio. O anúncio do sabão Hudson (Figura 115; Figura 116) utiliza uma ilustração do mapeamento da cabeça na publicidade do produto, em uma evidência da interpenetração entre ciência popular e consumo. Na ilustração, para cada região do cérebro responsável por alguma capacidade (refinamento, realização, rapidez), há uma descrição das características do sabão. Para Allan Sekula, a frenologia pode ser vista como um precursor bastante rude das tentativas da moderna neurologia de mapear as funções cerebrais.352 Ambas – fisiognomonia e frenologia - corroboraram na fundamentação de um conceito de progresso como um método que permitia o rápido o ao caráter de pessoas desconhecidas no congestionado e perigoso espaço urbano do século XIX. A penetração destes estudos levava os anunciantes de emprego a requisitarem análises frenológicas dos seus candidatos353, antecipando, nos Estados Unidos da década de 1840, testes que hoje são realizados na área de seleção e recrutamento.
351
Ibid., p. 36. SEKULA, Allan. The Body and the Archive. In: BOLTON, Richard (ed). The Contest of Meaning Critical Histories of Photography, MIT Press, Cambridge Mass., 1992. p. 347. 353 Ibid., p. 348. 352
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Figura 115. Frente do folheto publicitário do extrato de sabão Hudson, 1890.
Figura 116. Verso do folheto publicitário do extrato de sabão Hudson, 1890.
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Frenologia e fisiognomonia empregavam a fotografia na construção de um código visual que buscava decifrar o corpo do criminoso – um aparato de caça à “verdade”, que compunha um sistema burocrático com a organização em arquivo. A imagem deveria ser reduzida a sua instância representativa, transformando o circunstancial e o idiossincrático no típico e no emblemático, na sua “essência geométrica”.354 A imagem do corpo era organizada para funcionar como uma linguagem. O objetivo científico era identificar o “tipo criminoso” e destacá-lo da multidão que o encobria. Com estes fundamentos, os “técnicos do crime” teriam ferramentas para localizar o indivíduo criminoso. É neste ponto que se coloca uma divisão de trabalho e uma distinção terminológica entre “criminologia” e “criminalística”. A criminologia busca o corpo criminoso enquanto a criminalística caça “este” ou “aquele” corpo criminoso. No aspecto da visualidade há uma importante diferenciação neste quadro. Na busca pelo corpo do criminoso que atende a padrões de comportamento estabelecidos de acordo com suas características físicas, há uma informação visual que foi anteriormente convencionada e disponibilizada. Neste contexto, frenologia e fisiognomonia
354
SEKULA, A. op. cit., p. 352.
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buscavam abarcar toda a diversidade humana, servindo como instrumento de arquivo para o controle social. Na localização de um criminoso específico não há uma convenção particular a ser seguida, mas as próprias marcas corporais do suspeito servirão para comprovação de sua identidade. O corpo do criminoso não tem, por si próprio, nada a expressar. Marcas, cicatrizes e deformações da pele não demonstram apenas inclinação para o crime, mas a história de um corpo, suas vivências, sofrimentos e escolhas. Um indivíduo existe como indivíduo a partir do momento em que é identificado.355 Esta identidade é diretamente visual e não carrega nenhum significado intrínseco. Seu significado só pode ser construído dentro de um contexto mais amplo que localiza as marcas deste sujeito específico a referências anteriores. É nesta conjuntura que se coloca a diferença entre o sistema desenvolvido por Alphonse Bertillon dos métodos utilizados na frenologia e na fisiognomonia. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Bertillon, que era estatístico da polícia sa, desenvolveu em 1879, um método de identificação e recuperação de imagens, estruturado sobre a representação visual predominantemente fotográfica e o sistema de arquivo. Sua técnica combinava a obtenção de medidas detalhadas (Figura 117 e Figura 118) e a classificação de detalhes únicos medidos ou fotografados (Figura 119 e Figura 120) com um par de fotografias - frontal e perfil - do suspeito, retiradas de acordo com determinadas especificações de lentes e distância. As informações eram organizadas em cartões padronizados e arquivadas. Na Figura 121 vê-se o cartão antropométrico, base do sistema, com a identificação do próprio Bertillon. O método recebeu o nome de sinalética e era organizado a partir da redução de partes do corpo humano a formas mínimas articuladas, de modo a compor um signo humano. Seu funcionamento requeria que o corpo fosse dividido em partes específicas que pudessem ser comparadas como, por exemplo, orelhas (Figura 119) ou olhos. Com o sistema de Bertillon, o corpo a a ser analisado segundo outros aspectos. Ele é dividido em partes, atomizado e transformado em um artefato demonstrável o que, de certa forma, nos remete ao “sistema americano” desenvolvido neste mesmo período.356 Com a sinalética o corpo é preparado para ser observado e para entregar-se ao olhar regulador da lei e a uma vida moderna, 355
SEKULA, Allan. Op. cit., p. 362.
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fortemente influenciada pela visualidade, que precisava de novas regras e
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convenções.
Figura 117. Medida do cúbito. Foto do álbum de Alphonse Bertillon, de sua participação na World's Columbian Exposition em 1883, Chicago. National Library of Medicine (NLM). Disponível em:
Figura 118. Instruções do sistema de sinalética, desenvolvido por Alphonse Bertillon, incluindo teoria e prática da identificação antropométrica. National Library of Medicine. Disponível em:
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O “sistema americano” de fabricação, apresentado na Exposição Universal de Londres em 1851, foi desenvolvido na indústria de armamentos americana e consistia na produção em larga escala de produtos padronizados, com partes intercambiáveis.
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Figura 119. Quadro fotográfico com tipos de orelha. Signaletic Instructions Including the Theory and Practice of Anthropometric Identification de Bertillon. Retirado de GUNNINGS, op. cit., p. 62.
Figura 120. Quadro de característica físicas de Bertillon. Musée des Collections Historiques de la Préfecture de Police. National Library of Medicine. . Disponível em:
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Na sinalética, a fotografia é empregada de forma a traçar uma referência direta com o corpo do criminoso. Isso não chegava a constituir uma novidade, mas, até então, havia sempre implicado em violência. A supressão da identificação do criminoso através da marca aplicada com ferro em brasa pelas autoridades legais havia sido abolida na França em 1832 e na Inglaterra em 1824, embora alguns suplícios já viessem sendo evitados publicamente a partir da década de 1820.357 De certa forma, após este período, o conceito de uma relação indicial entre culpa e acusado ou a ser repetido na fotografia. Foucault descreve a transformação da pena em um processo mais velado, a partir do fim da punição como espetáculo público, em um período anterior, entre o fim do século XVIII e o início do XIX.358 Embora a utilização da fotografia tenha estado intimamente ligada à criminalística desde muito cedo359, esta associação não se estabeleceu com facilidade e os estudos da fotografia documental não costumam levar em conta 357 358
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2006. pp. 14. Ibid., pp. 16-17.
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seu emprego pela polícia. Esta dificuldade teve origem nas próprias características dos primeiros momentos da fotografia. As baixas velocidades de exposição requeriam que o fotografado permanecesse imóvel pelo tempo necessário para a gravação de sua imagem. Alguns acusados procuravam aproveitar esta especificidade para distorcer o próprio rosto de forma a garantir seu anonimato (Figura 122). Embora este problema, algumas vezes considerado com um ar caricatural, não tenha se prolongado por muito tempo, chama a atenção para a impossibilidade do corpo rejeitar sua entrega à captura da lente. Outro fator de dificuldade para o emprego da fotografia como agente regulador pode ser apontado no seu próprio sucesso e no desejo moderno de fazê-la arte. A fotografia ou a atuar diretamente no processo istrativo de controle. Para a criminalística foi uma invenção tão importante quanto à imprensa para a literatura360. Vestígios duradouros e inequívocos dos seres humanos puderam a ser PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
registrados em uma tentativa de demolir a incognoscibilidade da multidão nas cidades, onde “ninguém é para o outro nem totalmente nítido nem totalmente opaco”.361
Figura 122. Ampliação de um fotograma do filme de 1904 da Biograph, A Subject for the Rogue’s Gallery, filmado pelo cinegrafista A. E. Weed. Retirado de GUNNINGS, op. cit., p.55. Figura 121. Cartão antropométrico de Alphonse Bertillon, 1892. University College London. http://www.eugenicsarchive.org/html/eugenics/static/images/2005.html (23/09/07)
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A fotografia foi inventada em 1839. BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 45. 361 BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império... p. 46. 360
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As primeiras evidências do emprego da fotografia na investigação policial aparecem em 1843.362 Em meados do século XIX, as delegacias de polícia já mantinham rogue’s gallerie, coleções desorganizadas de fotografias de suspeitos e confessos, que eram muitas vezes exibidas ao público com grande sucesso. Mas, o grande volume de fotografias mostrava-se inútil na medida em que o seu manuseio não seguia nenhum método ordenado. É neste quadro que o arquivo complementa o método, impondo-se como fator de controle da visualidade. O sistema de imagem e arquivo criado por Bertillon foi empregado ao longo do século XIX, inclusive na logística das diversas Exposições Universais como na World’s Columbian Exposition, realizada na Chicago de 1893. Neste evento da modernidade, calçadas rolantes conduziam os visitantes a partir da entrada e um pequeno trem elétrico fazia a circulação do público por toda a feira. Os espaços da feira eram completamente higienizados ao final de cada dia e amplamente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
policiados numa tentativa de deixar evidente apenas os melhores legados da vida moderna. A preocupação com a proteção dos visitantes aparece em um artigo publicado na North American Review por R. W. M’Claughry, superintendente geral da polícia de Chicago e John Bonfield, chefe do serviço secreto da World’s Columbian Exposition. No texto, o superintendente comenta que as experiências adas demonstram que eventos como as exposições universais atraem “classes perigosas da sociedade”.363 Apesar disso, consegue ser tranqüilizador quando afirma que as “classes criminosas” estão sendo observadas atentamente364 através da utilização de determinados métodos. Parece claro que as “classes perigosas” eram constituídas por proletários desempregados, potencialmente considerados vagabundos e criadores de problemas. Uma das ferramentas utilizadas pela polícia e pelo serviço secreto, com o objetivo de prevenir a ação dos fora-da-lei, foi o emprego do “sistema de identificação antropométrica e classificação de criminosos” desenvolvido por “M. Alphonse Bertillon, de Paris”.365 Ainda segundo o texto, em Chicago, este sistema começou a ser aplicado aproximadamente três anos antes da realização da exposição. Diversas fotografias
362
GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. In CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p 51-52. 363 M’CLAUGHRY, R. W. Police Protection at the World's Fair. The North American review. Vol. 156, Issue 439. p. 714. http://cdl.library.cornell.edu/cgi-bin/moa/moa-cgi?notisid=ABQ7578-0156-88 364 Id., p. 711. 365 Id., p. 712.
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sugerem que o próprio Bertillon possa ter estado presente à exposição (Figura 123, Figura 124). De qualquer forma, não há dúvida que seu sistema tenha sido apresentado como uma ênfase do progresso obtido graças à ciência e às novas
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técnicas, no caso exemplificado pela fotografia e sua organização sistemática.
Figura 124. Foto do álbum de Alphonse Bertillon, de sua participação na World's Columbian Figura 123. Sistema de arquivo de Bertillon. Exposition em 1883, Chicago. National Library of Foto do álbum de Alphonse Bertillon, de sua Medicine (NLM). . Disponível em:
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Apesar do grande sucesso obtido, o método desenvolvido por Bertillon foi perdendo espaço para um outro sistema baseado na impressão digital. Durante alguns anos um modelo híbrido imperou, de modo que muitos documentos de identificação ainda mantinham, na primeira metade do século XX, o par de imagens fotográficas idealizado para a ficha de Bertillon, ao lado da impressão digital. Na sinalética, a fotografia, inventada há aproximadamente quarenta anos, coloca-se como uma aplicação prática das possibilidades do emprego da reprodução mecânica com pouca intervenção humana e muita precisão. Um conceito adequado à utilização desejada por Baudelaire que deplora a fotografia como arte, mas clama pelo cumprimento do seu verdadeiro dever: atender às artes e às ciências, servindo, por exemplo, “de secretária e bloco de notas de quem quer que necessite de uma absoluta exatidão material em sua profissão”.366 A fotografia como ferramenta ideal para a identificação de foras-da-lei se estabelece em razão de três aspectos que, segundo Gunning, encontram-se entrelaçados: sua condição
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BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 803.
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de índice que aponta para o resultado de uma exposição a uma entidade preexistente, seu aspecto icônico que remete à semelhança direta com o objeto permitindo o reconhecimento imediato e, finalmente, sua natureza destacável que lhe permite referenciar-se a um objeto ausente, distante em tempo e espaço.367 Neste contexto, a fotografia compartilha uma espécie de poder. Algo que Benjamin, sem associar diretamente à fotografia, sugere ao comparar rastro e aura: “O rastro é a aparição de uma proximidade, por mais longínquo esteja aquilo que o deixou. A aura é a aparição de algo longínquo, por mais próximo esteja aquilo que a evoca. No rastro, apoderamo-nos da coisa; na aura, ela se apodera de nós”.368 A evidência revelada na fotografia assume, como um testemunho tecnológico, uma correspondência com a verdade, na medida em que “o aparelho não pode mentir”369 e traz consigo o rastro do corpo que é examinado. É neste contexto que, na sinalética, a fotografia é empregada visando à instrumentação do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
realismo e a racionalização da visão sobre fundamentos científicos. A fotografia policial permitiu o reconhecimento do referente do mesmo modo que, como vimos anteriormente, a perspectiva e a gravura impressa haviam atuado, ampliando as possibilidades de uma cultura visual através da padronização e da estruturação das convenções visuais. A análise das configurações visuais do século XIX a partir do emprego de novas tecnologias e de uma nova configuração urbana aponta para uma aparente contradição. De um lado, possibilitando um novo modo de olhar, a recém criada configuração urbana que abre novos espaços, modifica o ambiente e as relações sociais além das novas tecnologias que interferem na compreensão do tempo e do espaço. O olhar se torna panorâmico e lhe é arbitrado o poder de absorver mil coisas. No entanto, esta abertura que o olhar obtém a partir da modernidade, também clama por limites que o organize. Surge, em paralelo uma tendência à padronização e à criação de convenções que tente estruturar, organizar e controlar o que já não tem controle. As influências do olhar são “naturalizadas”, a padronização precisa ser realimentada e o novo acena como alimento permanente para este olhar.
367
GUNNING, T. op. cit., p 45-46. BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: agens... [M 16a 4], p. 490. 369 GUNNING, T. op. cit., p 66. 368
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3.3. Novas percepções no tempo e no espaço A partir da segunda metade do século XIX pode-se observar uma crescente alteração dos conceitos de tempo e espaço em paralelo ao desenvolvimento de novas tecnologias de transporte e comunicação. A concepção temporal iluminista, recentemente formulada, começa a se desfazer370, tornando relativas as percepções de tempo e de espaço. Uma nova compreensão das distâncias a a se constituir, inclusive em relação aos eventos ocorridos em outros lugares e países. O tempo é capturado, reorganizado e disponibilizado, produzindo transformações sobre os modos de olhar. A compressão tempo-espaço, observada a partir do século XIX, ou a exercer influência sobre diversos campos da atuação humana como, por exemplo, o trabalho industrial. Em 1913, mas ainda no “espírito do século XIX”, Henry
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Ford instituiu uma outra forma de organização da produção – relacionando a aceleração do tempo à fragmentação das tarefas - na sua linha de montagem. Neste contexto, as ferrovias colocam-se como signo paradigmático da modernização do período. Neste segmento do trabalho, iremos analisar como esta nova tecnologia, apesar de não se tratar de um processo diretamente relacionado à visualidade, atuou na construção de um novo olhar – que se encontra na raiz do nosso contemporâneo modo de ver. Nossa intenção com esta agem é acentuar o modo como as tecnologias modificadoras da relação tempo-espaço atuam sobre a construção do olhar moderno, ampliando e multiplicando suas possibilidades, ao mesmo tempo em que fixam padrões e convenções que a delimitam e organizam.
3.3.1. As ferrovias Nenhuma tecnologia exerceu maior influência sobre as percepções de tempo e espaço do que a ferrovia, ao mesmo tempo produzindo mudanças na forma de olhar. A expansão das ferrovias pode ser considerada emblemática das mudanças perceptivas que definem a experiência cultural da modernidade e o trem, seu signo por excelência.
370
HARVEY, D. op. cit., p. 238.
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Apesar do trilho de madeira ser usado há séculos em minas de carvão, foi a tecnologia a vapor que possibilitou aos trens ultraarem a velocidade dos cavalos. Como afirmou Nadar, em transcrição de Walter Benjamin: “como se fosse de um mágico ou de um diretor de teatro, o primeiro apito da primeira locomotiva deu o sinal de despertar, o sinal de decolagem para todas as coisas”.371 As conseqüências imediatas da nova tecnologia foram rapidamente observadas na facilitação do transporte de bens e pessoas. Se, de um lado, as ferrovias favoreceram o surgimento de grandes indústrias e o aumento da produção de matérias-primas e mercadorias acabadas, de outro, também ampliou a circulação de pessoas e idéias, participando da criação de um novo estilo de vida baseado na compressão tempo-espaço que alicerçou a modernidade. Em 1780 uma diligência gastava de quatro a cinco dias para cobrir a distância entre Londres e Manchester enquanto, um século depois, um trem cobria o mesmo trecho em quatro ou cinco PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
horas372. Textos da primeira metade do século XIX expressavam as alterações temporais em termos de encolhimento do espaço373, relativizando os conceitos de cidade e país. Em 1850, Lardner escrevia que “as distâncias praticamente diminuem na exata proporção da velocidade de locomoção”.374 Em um artigo no Quartely Review de 1839, um autor contemporâneo considera que as nações que pareciam situar-se apartadas no espaço de maneira inalterável, iam aos poucos sendo aproximadas pela redução gradual do espaço e da distância que as havia separado. Na medida em que as distâncias iam sendo aniquiladas, a superfície do país encolhia, tornando-se não maior do que uma imensa cidade.375 De fato, como considera Wolfgang Schivelbusch, a sensação de diminuição das distâncias produzida pelos meios de transporte parece ter criado uma nova geografia que, para além de uma simples contração do espaço, sugere um processo dual onde o espaço é ao mesmo tempo reduzido e expandido. Esta dialética é observada, de um lado, pela relação entre a diminuição do espaço através do encolhimento do tempo de deslocamento e, de outro, pela expansão do espaço através da incorporação de novas áreas territoriais à rede de transportes. Deste modo, a nação 371
Nadar, Quand J’étais Photographe, Paris, p. 281, apud BENJAMIN, Walter. agens... p. 129. [C 3a,4]. LOWE, Donald. History of bourgeois perception. Chicago: The University of Chicago Press, 1982. p. 38. 373 SCHIVELBUSCH, Wolfgang. The Railway Journey: the Industrialization of Time and Space in the Nineteenth Century. Berkeley: University of California Press, 1986. p. 34. 374 LARDNER, D. Railway Economy. London, 1850 apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 33. 372
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que se contrai em uma imensa cidade, de acordo com a descrição do Quartely Review, também pode ser compreendida como uma cidade em expansão. A incorporação dos subúrbios e do campo também aparece como conseqüência da expansão das ferrovias. Em 1851, Lardner observa o fenômeno da mudança dos citadinos para áreas distantes do centro sem que isso altere a continuidade das suas atividades produtivas.376 A possibilidade de alcançar velocidades maiores e a conseqüente redução das distancias a frações do tempo anteriormente necessário para cobrir o mesmo trecho produziu novas avaliações para conceitos como “perto” e “longe”, incluindo a discussão sobre a compressão tempo-espaço. Para C. H. Greenhow, autor inglês do século XIX, as viagens de trem produziram praticamente a “aniquilação do espaço e do tempo” através da facilidade com que aram a permitir a circulação.377 “Podemos agora ar de um extremo a outro da nossa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
ilha, em menos tempo do que os nossos avôs levavam para preparar a caminhada”.378 Embora o ponto de vista de Greenhow possa parecer , na medida em que se encontra apoiado na questão do deslocamento, a sua conceituação antecipa debates posteriores que chegam até os dias atuais. Neste contexto, a discussão sobre a compressão tempo-espaço ultraa os efeitos das ferrovias para englobar as considerações sobre as novas tecnologias de comunicação nas transformações de um mundo pós-moderno. Se o telégrafo e o telefone já foram responsabilizados pelas alterações da dinâmica tempo-espaço, hoje a internet é o grande centro de debates que vão sendo ampliados com a inclusão de conceitos como fragmentação, redes e desmaterialização. Stuart Hall, ao pensar o impacto da “última fase da globalização” sobre as identidades nacionais, aponta a “compressão espaço-tempo” como uma de suas principais características. Há o reconhecimento de “que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância”.379 Esse processo de “aproximação” e aceleração parece – à vista do nosso olhar contemporâneo – ter atingido o seu extremo na época atual. Os conceitos 375
Quarterly Review, vol. 63, 1839. p. 22., apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 33. LARDNER, D. Railway Economy. London, 1850 apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 36. 377 GREENHOW, C. H. An exposition of the danger and deficiences of the present mode of railway construction with suggestion of its improvement. London: George Woodfall and son, 1846. p. 2. 378 Id. 376
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apontados por Hall mostram-se pertinentes à experiência do homem urbano do século XIX, o que nos permite imaginar este processo de aceleração como uma espiral, sobre a qual o homem vem sendo movido aos solavancos. Neste contexto, cabe antecipar uma curta reflexão sobre os efeitos da “aniquilação do espaço e do tempo” na construção da cultura visual moderna. Na medida em que compreendemos o olhar como uma atitude perceptiva atuante em conjuntura específica de tempo e espaço, que efeitos podem ser observados com a modificação deste contexto? Criamos uma metáfora visual para explicar como compreendemos os efeitos da modernização do tempo e do espaço sobre a visualidade. Imaginamos um ambiente, uma sala, por exemplo, com paredes móveis. Neste ambiente, foram dispostas algumas figuras. Para travar contato com estas imagens, o observador disporia de um tempo determinado, ao fim do qual uma campainha soaria. Em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
certo ponto do nosso experimento, amos a deslocar as paredes, aproximandoas, de forma a reduzir o espaço interno da exposição. Ao mesmo tempo, o intervalo disponível para a observação foi sendo diminuído de alguns segundos, enquanto o número de imagens permaneceu constante. Em um primeiro momento, a nossa tendência seria acreditar, na medida em que o tempo e o espaço fossem sendo restringidos, na ocorrência de uma diminuição da capacidade perceptiva. No entanto, devemos considerar que este processo não acontece de forma repentina e sim paulatina. Analogamente, as observações dos autores contemporâneos às mudanças provocadas pelas ferrovias evidenciam um processo anterior à adaptação a essas novas condições. Na medida em que estas mudanças vão sendo incorporadas como uma segunda natureza elas vão ser absorvidas dentro da nova capacidade perceptiva. No contexto criado pela metáfora acima, cremos que mais importante do que assinalar uma perda na percepção (em relação à compressão do tempo e do espaço), é considerar a construção de um novo esquema perceptivo.
379
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1992. p. 69.
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Novas percepções no ambiente dos deslocamentos Diversos meios de transporte e comunicação tiveram influência nas modificações ocorridas no tempo e no espaço ao longo do século XIX e na percepção do ambiente como, por exemplo, as viagens em balões, que permitiu à fotografia aérea mudar as percepções da superfície da terra.380 A bicicleta, redesenhada em 1886, quando ou a contar com rodas de mesmo tamanho, e em 1890 quando ganhou pneus (pneumatic tires) favoreceu uma nova percepção a partir da velocidade obtida, quatro vezes maior do que ao se caminhar. Na gravura do periódico The Graphic vemos um policial perseguindo um ciclista em sua Penny Farthing (Figura 125), por andar pelas ruas sem o emprego de um cinto [?] ou apito. Os antes parecem mobilizados pelo deslocamento de um veículo que não parece ser de simples utilização, como podemos observar no anúncio de
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pneumáticos de borracha para bicicleta (Figura 126). Uma curiosidade interessante sobre este anúncio é que, nele, o texto encontra-se em um balão de estórias em quadrinhos. Ao companheiro que caía da bicicleta, o outro homem disse: “Você deveria ter utilizado o processo Bown's ‘Perfect”.
Figura 125. Policial perseguindo um ciclista, "Penny Farthing". The Graphic, 1880. The Illustrated London News Picture Library.
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380
HARVEY, D. op. cit., p. 240.
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Figura 126. Anúncio de Bown's "Perfect", processo perfeito para fixação de pneumáticos de bicicletas. Sporting and Dramatic News, 1887. The Illustrated London News Picture Library.
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Em 1892, Sylvester Baxter observava que a bicicleta “acelerou as faculdades perceptivas dos jovens, tornando-as mais alertas”.381 Um tipo de observação que, nos dias atuais, é dirigida aos jovens que utilizam jogos eletrônicos. As questões relativas à percepção na metrópole não se limitavam ao fato de acostumar-se a dividir as ruas com veículos “velozes” ou perigosos.
Na
publicação científica Revue Scientifique, publicada em Paris no ano de 1896, um certo Du Pasquier apresenta um artigo investigativo, na área de psicologia, sobre as razões da obtenção de prazer ao utilizar a bicicleta382. Para o autor a razão deste prazer encontra-se no movimento, na sensação de liberdade do seu gesto à custa de um baixo custo de energia necessária para a obtenção da velocidade. Citando trabalhos anteriores, Du Pasquier rejeita a idéia de que o prazer de andar de bicicleta possa estar relacionado à busca e alcance do equilíbrio necessário a essa função. As observações dos contemporâneos em relação ao uso da bicicleta mostram que a preocupação com o novo não ser reduzia apenas às ferrovias, mas trata-se de um embate mais amplo entre o novo e o moderno. Os críticos dos novos meios de transporte gostavam de fazer crer que as tecnologias antigas e pré-industriais 381
BAXTER, Sylvester, Economic and Social Influences of the Bicycle, The Arena, Outubro de 1982, apud KERN, Stephen. The culture of time and space : 1880-1918. Cambridge: Harvard Univ., 1983. p. 111.
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tinham mais “alma” do que as mais recentes que pareciam, muitas vezes, desenvolver vida própria tal o modo com que produziam influência sobre a percepção humana. Em relação ao ambiente físico, as ferrovias transcendem a possibilidade de aproximação a novos lugares. Se, de um lado, elas incorporam novos espaços, antes iníveis pela distância e o tempo necessário para alcançá-los, de outro, elas suprimem os espaços entre os pontos de partida e o de chegada. A viagem torna-se uma travessia por um espaço intocado. A eliminação do espaço entre os dois pontos é observada significativamente por John Ruskin. Em um texto de 1849, Ruskin comenta que a ferrovia transforma o viajante em um “pacote vivo”383, na medida em que é levado de um lugar ao outro sem que desempenhe alguma participação neste processo. No pensamento de Ruskin, a viagem de trem deixa de acrescentar experiência ao viajante. Sua crítica encontra alguma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
sustentação na medida em que a ferrovia pode ser colocada em relação às viagens do mesmo modo que a indústria está para os objetos manufaturados. John Ruskin considerava que, indiferente ao fato da viagem de trem ser feita ou não de olhos abertos, tudo o que se podia saber sobre o lugar por onde se a é, “na melhor hipótese, sua estrutura geológica e uma visão geral sobre os modos de vestir”.384 Ao contrário de que pensava Ruskin, muitos contemporâneos consideravam que as viagens de trem produziam novas sensações mesmo avaliando uma eventual perda de controle sobre os próprios sentidos. Greenhow, por exemplo, escreveu em 1846 que “quando um corpo se move em alta velocidade ele se torna um projétil, sujeito às leis que comandam os projéteis”.385 Esta metáfora explicita o poder e a força da tecnologia ferroviária, mas, também, a ausência de controle e da participação do ageiro, além de modificações no seu relacionamento com a paisagem. De acordo com Schivelbusch, o ageiro de trem perdeu a percepção sinestésica, que incluía aromas e sons e a a ter contato apenas com as qualidades que para Newton eram as que poderiam ser
382 DU PASQUIER, Ch. Le Plaisir d’aller à bicyclette, Revue Scientifique, ser. 4, vol. 6., Paris, 1896, p. 144145. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k215125w, o em 5/6/2007 às 16:10 hs. 383 RUSKIN, John. The seven lamps of architecture. London: Adamant Media Corporation, 2005. p. 210. 384 RUSKIN, John. The works of John Ruskin. Vol 36. Longmans, Green, and co., 1909. p. 62. 385 GREENHOW, C. H. An exposition of the danger and deficiences of the present mode of railway construction with suggestion of its improvement. London: George Woodfall and son, 1846. p. 6.
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percebidas objetivamente no mundo físico: tamanho, forma, quantidade e movimento.386 No pensamento pré-industrial de John Ruskin, isto é, dentro de uma cultura pré-moderna, encontramos o que Schivelbusch387 considera próximo à uma correlação matemática negativa entre o número de objetos percebidos em determinado período de tempo e a qualidade desta percepção. De certa forma seguindo o tema do olhar inocente, Ruskin escreve sobre a superioridade do olhar da criança diante do frescor das coisas frente aos seus olhos recém abertos.388 Entre os conselhos práticos dados por Ruskin encontra-se a sugestão de contentarse com o menor número de novidades de cada vez e preservar, tanto quanto possível, as fontes de novidade.389 Em relação ao “menor número possível de novidades”, Ruskin observa que em um eio no campo, atentar para uma cabana que nunca tínhamos visto antes, seria o suficiente para recuperar o frescor PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
do novo. Observar duas cabanas já seria excessivo. Em linguagem atual, dir-se-ia tratar-se de “muita informação”. Ruskin conclui que uma caminhada tranqüila de não mais do que 10 ou 12 milhas390 por dia seria o bastante para uma viagem recreativa. “Toda viagem torna-se enfadonha na exata proporção de sua velocidade”.391 Deste modo, para Ruskin os deslocamentos de trem não poderiam ser chamados de viagens. As críticas de Ruskin pertencem a um momento de ambivalência, onde as possibilidades de uma nova tecnologia mostram-se, ao mesmo tempo, apreciadas e temidas. Deste modo, trata-se de um excesso de simplificação taxar as opiniões de Ruskin como meramente conservadoras ou contrárias ao desenvolvimento. Em um contexto semelhante, Walter Benjamin observa que “o mesmo Arago, autor do famoso parecer favorável à fotografia, tenha submetido – no mesmo ano (?), em 1838 – um parecer desfavorável à construção das ferrovias planejadas pelo governo”.392 O parecer de Arago, ao qual somaram-se outras 160 vozes, contra 90 favoráveis, argumentava, dentre outras coisas que a diferença de temperatura na entrada e na saída dos túneis provocaria calores e friagens mortais.
386
SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 55. Ibid., p. 57. 388 RUSKIN, John. Modern Painters. Vol. 3. Of many things. Adamanta Media Corp. 2000. p. 310. 389 Ibid., p. 311. 390 Entre 16 e 19 km. 391 RUSKIN, J. Modern Painters… p. 311. 392 BENJAMIN, Walter. A fotografia. agens... p. 715. [Y 1a,5]. 387
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As questões perceptivas discutidas a partir da experiência das primeiras viagens de trem originam-se fundamentalmente no tema da velocidade. Em 1841, George Stephenson, engenheiro a quem é atribuída à responsabilidade da primeira viagem de trem entre Manchester e Liverpool393, foi questionado pelo parlamento inglês sobre a capacidade do condutor de identificar obstáculos. Segundo Stephenson, se a atenção do condutor se dirigir a um objeto que se encontra à sua frente, ele poderá ter uma visão correta do obstáculo. Mas, se apenas virar-se para o objeto enquanto a por ele, sua visão será imperfeita.394 A visão do condutor não era apenas motivo de preocupação, mas seu ponto de vista também servia à inspiração e à fantasia. As imagens dos primeiros filmes que apresentavam simulacros de “eios fantasmas” - tomadas realizadas na parte dianteira de trens ou da proa de barcos,395 almejando reproduzir a sensação de movimento colocam-se como evidência da curiosidade por este ponto de vista. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
As possibilidades de visualização a partir da janela do trem também foram muito discutidas nos primórdios das ferrovias. Jacob Burckhardt escreveu em 1840 que já não era possível distinguir os objetos próximos – árvores, cabanas e outros: tão logo nos viramos para observá-los, eles se foram.396 Anos depois, em 1885, o autor de uma filosofia da mente humana escrevia que numa cabine de trem em velocidade, podemos não identificar o rosto dos antes, apenas perceber que se trata de seres humanos.397 O jornal médico The Lancet, considerava, em 1862, que o movimento constante na alternância de observação entre formas próximas e distantes resultava em fadiga para os olhos e o cérebro.398 Estas análises contemporâneas chamam a atenção para uma nova forma de visualidade sendo produzida no ambiente veloz das ferrovias. Cabia ao viajante adaptar-se a esta forma de percepção visual: compreender que os objetos mais próximos do veículo em movimento não mais se deixavam observar detalhadamente. O segundo plano se oferecia nítido em parte graças à maior
393
Railway Readings. Oxford: J. Vincent, 1848. p. 3. SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 55. 395 GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. In CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p 41. 396 SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 56. 397 BAILEY, Samuel. Letters on the philosophy of the human mind. London: Longman, Brown, Green and Longmas, 1855. 398 The Influence of Railway Travelling on Health reprinted from The Lancet. Hardwick, London. In: BIDWELL, W. H. (editor and proprietor). Eclectic Magazine for foreign literature, science, and art. vol. LX. New York: September to December, 1863. p. 424-426. 394
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estabilidade fornecida pelos trilhos. Por outro lado, a maior velocidade permitia o desfrute de um grande número de paisagens, mesmo em uma viagem curta. O próprio cansaço da alternância do movimento dos olhos entre os dois planos se mostrou, com o tempo, algo que poderia ser aprendido e gerenciado. O fato inequívoco é que uma nova percepção visual se formava. As viagens de trem têm alguma responsabilidade nesta mudança na medida em que os “os” de observação anteriores não mais se prestavam à apreensão panorâmica do que podia ser visto pela janela do trem.
O espaço para ageiros nos trens baseou-se no modelo das carruagens, com a diferença que, nestas últimas, os ageiros acomodavam-se nos acentos distribuídos em forma de “U”. Esta disposição facilitava o contato entre os viajantes, sem abrir mão da relação com o ambiente externo. Alguns romances do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
século XVIII e do início do XIX retratam o companheirismo que surgia nestas viagens que se estendiam por muitos dias. Neste contexto, a expectativa da longa convivência com outras pessoas, estimulava a criação de laços entre elas. Com o trem, esta relação foi completamente alterada. Em primeiro lugar o trem era mais democrático. Em lugar de um único compartimento, haviam diversos, além de uma grande área para a terceira classe. Os ageiros dos trens trocaram a conversa pelo embaraço. Além disso, as inúmeras paradas traziam uma sucessão de novas faces, o que também não estimulava contatos interpessoais. A conversa, praticamente, fluía apenas quando se encontravam conhecidos. A leitura nestes veículos parece ter surgido mais como uma forma de superar o desconforto da situação de estar frente a frente com desconhecidos do que uma forma de ar o tempo. George Simmel, no começo do século XX, considerou que as conseqüências da introdução de novas tecnologias de comunicação e transporte foram sentidas diretamente no surgimento de novas formas de relacionamento. Segundo Simmel, “as relações recíprocas dos seres humanos nas cidades se distinguem por uma notória preponderância da atividade visual sobre a auditiva. Suas causas principais são os meios públicos de transporte. Antes do desenvolvimento dos ônibus, dos trens, dos bondes do século XIX, as pessoas não
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conheciam a situação de terem de se olhar reciprocamente por minutos, ou mesmo por horas a fio, sem dirigir a palavra umas às outras”.399 O triunfo da regularidade mecânica sobre a irregularidade do terreno trouxe diversas conseqüências, dentre estas a alienação da natureza, na medida em que o viajante perdeu o contato direto com o ambiente externo. Esta relação é ainda mais exacerbada na agem por túneis e viadutos capazes de proporcionar, de um lado, a sensação de imersão dentro de uma montanha e, de outro, pontos de vista inéditos e assustadores. Na Figura 127, temos um exemplo de um destes pontos de vista. Na gravura do Illustrated London News, vemos a rainha Vitória debruçada para fora da janela do trem que atravessa a ponte Tay, observando o rio embaixo. A sua acompanhante parece mais temerosa e procura um modo de observar a paisagem sem expor-se para fora do trem. No mesmo ano da publicação desta gravura, a ponte Tay ruiu durante a travessia de um trem, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
resultando em 75 mortes. As Figura 128 e Figura 129 ilustram um tipo de viaduto construído em meados do século XIX. De uma maneira geral sua estrutura era feita com madeira, o que fazia com que a construção fosse barata, porém frágil e de vida curta. O viaduto de Slade (Figura 129) foi construído em 1849 e reformado em 1893, quando ganhou estrutura de pedra e tijolo. Os detalhes decorativos presentes nos arcos apontam para uma preocupação com o ornamento em um contexto onde funcionalidade e precisão são essenciais. Além disso, as enormes construções que permitem a agem do trem parecem rasgar as paisagens, abrindo espaço para a agem do progresso. No entanto, o mais significativo é imaginar a sensação de encontrar-se em movimento, a 31 metros de altura, sobre uma paisagem ampla e aberta, em outras palavras, sem o limite visual proporcionado pelas margens da estrada: suas árvores e casas. Neste contexto, estas ilustrações valorizam a grandeza e a precisão do espaço percorrido pela máquina.
399
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire... p. 36.
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Figura 127. Rainha Victoria viajando sobre a ponte Tay, Dundee. The Illustrated London News, 5 de julho de 1879.
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Figura 128. Viaduto Brighton sobre a rodovia Preston. The Illustrated London News, 13 de junho de 1846. The Illustrated London News Picture Library.
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Figura 129. Viaduto Blatchford em Slade, Devon, meados do século XIX. Litografia colorida manualmente. Science Museum/Science & Society Picture Library.
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Abordamos anteriormente como o desenvolvimento da ferrovia mostrou-se fundamental para o surgimento do que pode ser considerado como a segunda revolução industrial. Ao mesmo tempo em que as estradas de ferro podem ser explicadas como uma resposta à industrialização e à urbanização, elas também atuaram como estímulo para o crescimento das duas últimas. Até o início efetivo das linhas ferroviárias, a produção e o consumo de bens permaneciam integrados em um quadro regional, constituindo parte da identidade local. Com o transporte moderno, o lugar da produção é separado do espaço de consumo. Neste momento,
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de acordo com Marx, o produto se transforma em mercadoria.400 Wolfgang Schivelbusch relaciona a observação de Marx com o conceito de “perda da aura”, desenvolvido por Walter Benjamin. Para Benjamin, a aura é uma presença “singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”401 e este valor genuíno seria destruído pela reprodução. Segundo Schivelbusch, a ferrovia – e depois as rodovias – participam de um movimento semelhante de destruição da aura na medida em que favorecem que regiões outrora inexploradas se abram para o turismo. “Quando a distância espacial não é mais experimentada, as diferenças entre o original e a reprodução diminuem”.402 Embora a associação apresentada por Schivelbusch possa ser questionada, ela assinala o surgimento do turismo industrial como mais uma conseqüência das ferrovias. Nos dois cartazes do ano de 1889, aqui reproduzidos, (Figura 130; Figura 131) vemos exemplos de como o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
distante era trazido para o alcance do olhar do turista: “o mar do Canal da Mancha, via trem rápido, em apenas três horas e meia”, “trem expresso quatro vezes ao dia”. Ambos os cartazes trazem imagens das paisagens importantes de cada local.
Figura 130. Estrada de ferro du Nord. Boulogne sobre o mar. Temporada de 1889.
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Figura 131. Estrada de ferro du Figura 132. 'Cook's Tours pela Escócia e Irlanda. Capa Nord. Le Tréport-Mers. de folheto publicitário, sem Temporada de 1889. data. Thomas Cook
(25/09/07) Archive/The ILN Picture Library. < http://www.ilnpictures.co.uk> (17/09/07)
400
MARX, Karl. Grundisse. Apud SCHIVELBUSCH, W. The Railway Journey: the Industrialization of Time and Space in the Nineteenth Century. Berkeley: University of California Press, 1986. p. 40. 401 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era ... p. 170. 402 SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 42.
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Neste contexto surge o turismo em grande escala desvinculado da experiência única e romântica das viagens. O crítico francês Jean Cassou discute o deslocamento do sentido de “viagem” para “turismo” ocorrido a partir do final do século XIX, quando o desenvolvimento do sistema de transportes e das agências de viagem possibilitou ao grande público viajar.403 As viagens de ricos e aventureiros aparentemente surgiram a partir do século XVIII com o intuito de conhecer monumentos históricos ou entrar em contato com os costumes de outros povos e nações. Muitas obras do romantismo francês têm origem na experiência de viajantes que partiram em busca de amor, aventura, exotismo ou tudo isso ao mesmo tempo. Para Cassou, a agência de viagens desnaturalizou a experiência da viagem ao eliminar as possibilidades de novas descobertas. Na Figura 132 vemos um cartaz do primeiro agente de viagens do mundo, Thomas Cook. Embora sem data, o cartaz indica os primeiros roteiros criados pela PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
agência na década de 1840. Cook, ao constatar as dificuldades trazidas pela ausência de integração entre as vias férreas, alugou um trem para um determinado evento, vendendo diretamente. Deste modo, teve início o turismo da era industrial. O turismo de massa oferecia ao cidadão urbano um cardápio de aventuras e novas experiências. Mas, ao mesmo tempo em que fazia uso de um eio padronizado, o usuário também buscava uma experiência única, o que podia tornar problemática uma visita às “novíssimas descobertas de Pompéia” e a aquisição de “autênticos souvenirs”. Os espaços dignos de serem visitados foram rapidamente mapeados, padronizados e disponibilizados à degustação do olhar moderno em escala industrial. Apesar da padronização dos roteiros e da gradação de interesses do que deve ou não ser visitado, não se pode deixar de considerar como as visitas a outros países e culturas acrescentaram elementos à formação da cultura visual moderna, minimamente pela oferta de novas possibilidades a serem observadas. Mesmo considerando que uma viagem sempre resulta em “novas vistas”, parece evidente que o turista moderno vive uma experiência mais iva a partir da era industrial. Na maioria das vezes, viaja de acordo com um roteiro preconcebido pelo agente de viagens e que exclui a possibilidade do erro e da aventura. Ele vive as experiências que lhe são indicadas e observa o que deve ser observado. Neste sentido, sua prática encontra-se distanciada do perambular do
403
CASSOU, Jean.Du Voyage au tourisme. Communications,10(1967):25-34. apud KERN, S. op. cit., p. 352.
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flâneur e de sua observação anônima. No entanto, diversos autores consideram a semelhança entre o flâneur e o turista. Para Hall, o turista seria a contrapartida do flâneur na modernidade tardia404. Segundo Urry, o flâneur foi um precursor do turista do século XX e, particularmente, de sua atividade emblemática: a tomada de fotografias405. Antes dele, Susan Sontag, reconhecia a fotografia como “uma extensão do olho do flâneur de classe média”.406 O fotógrafo seria uma versão armada do caminhante solitário que faz o reconhecimento do inferno urbano, observando o mundo “pitoresco”. Apesar destas aproximações, a autora finaliza com uma frase que acaba por apartar definitivamente o flâneur do turista de massa: O flâneur não se sente atraído pelas realidades oficiais da cidade, mas por suas esquinas escuras e remendadas, por seus habitantes esquecidos – pela realidade não-oficial que está por detrás da fachada da vida burguesa e que o fotógrafo “apreende”, tal como o detetive captura o criminoso.407 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Neste contexto, a aproximação entre o modo de olhar do flâneur e o do turista só parece fazer sentido quando deixamos de considerar o turismo de massa e suas limitações de tempo em visitas pré-estabelecidas pelos agentes de viagem. Por outro lado, o olho aberto ao “pitoresco” segue sendo um resquício da experiência do flâneur na prática de qualquer turista, mesmo dos que respeitam o roteiro do “que deve ser observado”. Alguns posicionamentos ambivalentes aparecem em relação aos primeiros tempos do transporte ferroviário. De um lado, irava-se a facilidade, suavidade e segurança de um meio que sugeria a sensação de “estar voando”. Ao mesmo tempo, a ferrovia carregava o medo da violência e da destruição potencial. A possibilidade de acidentes e a impossibilidade de interferência no controle do veículo colaboravam com esta ansiedade. Segundo Schivelbusch, é possível estabelecer uma relação entre o grau de eficiência e desenvolvimento de uma tecnologia e sua capacidade de catástrofe e destruição em caso de colapso. Haveria uma relação direta entre a capacidade da tecnologia controlar a natureza e a gravidade dos acidentes.408 O autor justifica esta observação apontando para o fato de que na Enciclopédia de Diderot, a palavra “acidente” encontrava-se
404
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1992. p. 33. URRY, John. The tourist gaze. London: Sage Publications, 2002. p. 127. 406 SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Ed. Arbor, 1981. p. 55. 407 Ibid. p. 56. 408 SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 131. 405
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relacionada a conceitos gramaticais e filosóficos. As catástrofes da sociedade préindustriais eram predominantemente relacionadas a desastres naturais, ou seja, ligadas
a
fatos
exteriores
à
sociedade.
Com o
desenvolvimento
da
industrialização, as catástrofes começaram a vir de dentro da sociedade. A destruição produzida pelo aparato tecnológico é parte do seu poder e leva à destruição o próprio veículo no caso de um acidente. A quebra do eixo de uma carruagem no século XVIII interrompia e atrasava uma viagem enquanto a quebra de eixo de uma locomotiva que em 1842 viajava de Paris para Versalhes produziu a primeira catástrofe das ferrovias, espalhando pânico pela Europa. Dois anos após este acidente, o artigo “acidentes” na Encyclopédie des chemins de fer et des machines à vapeur tinha nove páginas.409 O fato é que a segurança do transporte ferroviário era bastante precária nos primeiros tempos e acidentes aconteciam freqüentemente por colisões entre PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
veículos, com objetos sobre os trilhos, descarrilamentos ou rompimento de pontes. Gravuras detalhadas de acidentes envolvendo trens aram a ilustrar as publicações da época. A Figura 133 mostra uma colisão. Segundo a legenda em The Illustrated London News, o condutor do trem de ageiros tentou, em vão, alertar o outro trem com a luz vermelha. Na Figura 134, o peso do próprio trem fez ceder a viga mestra. Aos poucos, a segurança ferroviária ou a ser uma preocupação.
Figura 133. Acidente de trem em Kentish Town, na junção da linha Hampstead. The Illustrated London News, 7 de setembro de 1861. ILN Picture Library.
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Figura 134. Acidente de trem na Ferrovia Chester, com estragos na ponte Dee. The Illustrated London News, 12 de junho de 1847. ILN Picture Library.
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409
SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 131.
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Os acidentes eram exaustivamente divulgados na mídia impressa do século XIX. Os freqüentes descarrilhamentos e choques de trens eram publicados em grande estilo, apresentados como um importante efeito colateral do progresso. A Figura 60 publicada em 1880 em The Illustrated London News mostra uma plataforma de trem do subúrbio. Segundo a legenda, quinhentos londrinos acotovelavam-se para entrar nos vagões de segunda e terceira classe, aproveitando os feriados bancários para uma excursão. Os cartazes no muro da estação apresentam um bom sumário do que se anunciava à época: chás, remédios, eventos musicais, eios e fait-divers: “acidentes de todos os tipos”. Outra indústria se desenvolveu em função dos acidentes de trem: a indústria de seguros. O anúncio da Figura 135 apresenta uma mistura de boas vindas ao ano novo e ameaças em relação à possibilidade de acidentes. Apresentando seis fotografias de acidentes com diversos veículos acidentados, pergunta: “Você já esteve envolvido PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
em um acidente? Não? Mas, qualquer dia destes, poderá. Você está protegido para 1912?”.
Figura 136. Aguardando o trem da excursão. The Illustrated London News. 4 de setembro de 1880. The Illustrated London News Picture Library
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Figura 135. Anúncio de seguradora. The Sphere, 6 de janeiro de 1912. The ILN Picture Library.
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Um aparato tecnológico que se tornou complementar as ferrovias, inclusive atuando diretamente sobre a segurança foi o sistema de telégrafo elétrico. Embora o telégrafo tenha se aperfeiçoado a partir do início do século XIX, foi apenas com o avanço das ferrovias que ele encontrou uma aplicação prática. Ao longo do seu desenvolvimento, as ferrovias muitas vezes eram percebidas como um conjunto
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mecânico que incluía não apenas a locomotivas, mas os seus carros e, também, as estradas férreas. Neste contexto, com o fim de evitar acidentes e choques, muitas vezes, uma ou mais pessoas tinham a tarefa de observar à frente a linha do trem para divisar obstáculos no caminho. No trem da Figura 137 vemos alguns homens imediatamente atrás da locomotiva, provavelmente cumprindo esta função. Na mesma figura do trem dos correios, vemos à direita um homem com um sinalizador luminoso. As três luzes na parte da frente indicam tratar-se de um trem expresso. Como se pode perceber a partir da simplicidade deste sistema de sinais, a sinalização ferroviária não se mostrava satisfatória. Os primeiros sistemas óticos e acústicos que foram projetados para este fim, provavam-se pouco efetivos no escuro, na neblina, em condições de ruído excessivo e, ainda, na agem por túneis.410 Foi justamente nas agens por túneis que o telegrafo apresentou a sua primeira aplicação prática. O sistema, primeiramente constituído para túneis e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
depois expandido ao longo de toda a linha, consistia na divisão da linha em “blocos”, cada um deles atendido por um transmissor telegráfico. Este transmissor sinalizava para o bloco seguinte quando a linha encontrava-se liberada. Deste modo, o condutor e seus auxiliares deixaram de ser responsáveis pela avaliação da linha, que ou a ser sinalizada por um centro telegráfico distante.
Figura 137. Trem dos correios indo de Folkestone para Londres. The Illustrated London News, 1844. The ILN Picture Library.
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Não nos interessa o aspecto funcional da aplicação do telégrafo às ferrovias, mas o seu efeito sobre a visualidade. Explicando melhor: com a instituição deste sistema de sinais, os postes telegráficos aram a acompanhar as ferrovias. Os 410
SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 30.
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postes e fios do telégrafo integraram-se como parte do conjunto mecânico das ferrovias, ocupando um campo à frente da paisagem descortinada pela janela do trem, mediando esta visão. A “agem” acelerada dos postes pela janela do trem ou a criar um ritmo visual, através do qual era possível supor a velocidade empreendida pelo equipamento.
3.3.2. Vista e visão panorâmicas Apesar das inúmeras críticas que acompanharam a implementação das ferrovias, não havia unanimidade em relação às mudanças perceptivas resultantes das transformações geradas por este meio de transporte. Nem todos viam as ferrovias como ruína e prejuízo, nem com enfado. O escritor Christian Andersen,
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por exemplo, afirmou com veemência, em meados do século XIX, uma opinião bastante positiva. Para ele a poesia sucumbia à estreiteza das viagens de diligência. O calor e a poeira incomodavam no verão, enquanto o inverno proporcionava péssimas estradas. O trem era um cavalo mágico que voava como as nuvens em uma tempestade, fazendo o espaço desaparecer.411 Para Andersen, a verdadeira oportunidade de observar a paisagem se encontrava sobre os trilhos. Esta outra interpretação ao mesmo tempo em que nos conduz a uma nova capacidade de observação também apresenta uma nova paisagem criada pela ferrovia. Os objetos modificam-se a partir do apelo da velocidade. O movimento cria novas associações entre objetos que se encontram separados no espaço. Os elementos que foram apontados por alguns com o significado de perda ou detrimento am a ser assumidos como enriquecedores. A velocidade é transformada em estímulo para a nova percepção e dá nova vida à antiga paisagem. Neste contexto, Wolfgang Schivelbusch apresenta um excelente apanhado de depoimentos e textos de autores contemporâneos através dos quais é possível constatar as respostas à experiência visual trazida pelo movimento das ferrovias no século XIX. Um viajante americano, por exemplo, escreveu em 1853 que as
411
Railway Readings. Oxford: J. Vincent, 1848. p. 8.
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belezas da Inglaterra nunca apareceram tão charmosas do que quando se precipitam sobre uma locomotiva a 40 milhas por hora .412 Nada pelo caminho requer uma observação atenta, e apesar dos objetos mais próximos parecerem rasgar-se em descontrole, os campos distantes e suas árvores dispersas não parecem determinados a iludir a observação; eles permanecem o tempo necessário sob o olhar para [que possam] deixar uma impressão eterna. Tudo é tão tranquilo, tão fresco, tão pleno e destituído de objetos proeminentes capazes de aprisionar o olho ou distrair a atenção do charme do todo, que me faz amar o sonho de navegar no ar, rapidamente, como se estivesse montado em um tornado.413
Um certo Benjamin Gastineau, cujos ensaios publicados em diversos jornais foram reunidos no ano de 1861 em um livro chamado La Vie en chemin de fer414, considera que o movimento do trem através da paisagem transfigura-se no movimento da própria paisagem. A ferrovia coreografa a paisagem. “Antes da
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criação das estradas de ferro, a natureza não criava mais; era uma Bela Adormecida no bosque...; até os céus pareciam imutáveis. A estrada de ferro animou tudo...”.415 O movimento do trem encolhe o espaço e, deste modo, exibe uma sucessão de objetos e elementos cênicos que originalmente pertenciam a diversos domínios espaciais. O viajante que observa o mundo a partir da janela do trem adquire uma nova habilidade que Gastineau chama de “filosofia sintética do relance” (la philosophie synthétique du coup d’oeil) e que consiste em perceber elementos descontínuos indiscriminadamente à medida que estes se sucedem sob a janela. Embora Gastineau não utilize a palavra “panorama”, o cenário que ele descreve corresponde a esta forma de visualização: a partir da mudança contínua de ponto de vista vêem-se, em rápida sucessão, cenas diversas - alegres ou tristes, burlescas ou brilhantes, de vida ou de morte. Todas as imagens desaparecem tão logo sejam vistas. Em outro texto contemporâneo de 1865, Jules Clarétie, jornalista e publicitário parisiense, utiliza o termo panorama para caracterizar a vista da janela do trem: uma paisagem evanescente, capaz de ser captada em sua totalidade graças à velocidade do movimento. Clarétie escreve que em poucas horas a
412
WARD, Matthew E. English Items or, Microcosmic Views of England and Englishmen. Liverpool, 1830. pp. 47-8 apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 60. 413 Id. 414 GASTINEAU, Benjamin. La Vie en chemin de fer. Paris, 1861. p. 31. apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 60. 415 Ibid., pp. 37-38. apud BENJAMIN, W. agens... p. 631 [U 10a,1].
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ferrovia pode expor à vista toda a França, desenrolando diante dos nossos olhos “um panorama infinito, uma vasta sucessão de quadros charmosos, de novas surpresas”.416 De uma paisagem podemos ver uma vista geral: “não pergunte sobre os detalhes, mas por um todo vivo. Depois de termos nos encantado com suas habilidades pictóricas, ele [o trem] repentinamente pára e, simplesmente, deixa-nos descer aonde queremos chegar”.417 Um outro autor, Dolf Sternberger, utiliza o conceito de panorama para descrever a tendência de olhar os elementos individuais e descontínuos de forma indiscriminada, um modo de percepção ocidental, predominantemente européia, surgida no século XIX. “A paisagem profundamente transformada do século XIX permanece visível até hoje, pelo menos em seus rastros. Ela foi formada pela estrada de ferro”.418 Para Sternberger, a vista das janelas da Europa haviam perdido sua profundidade e os objetos transfiguraram-se em meras partículas de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
um único mundo panorâmico que nos envolve como uma superfície pintada419. Esta visão do autor é creditada às ferrovias que “transformam o mundo de terras e mares em um panorama que pode ser experienciado”.420 Em nosso ponto de vista, a visão panorâmica não destrói de maneira alguma a experiência da tridimensionalidade. A crença nesta idéia baseia-se no fato de que as figuras que se encontram em primeiro plano, mais próximas da janela, são vistas borradas, nubladas. Embora não se possa negar este fato, há um outro fator que garante a tridimensionalidade. Trata-se da velocidade. Uma paisagem é constituída por muitos planos: árvores dispersas, casas, outros veículos, pessoas espalhadas por diversos pontos da paisagem. O movimento do trem faz com que estes diversos pontos do plano pareçam se modificar a cada momento. Deste modo, uma grande árvore que parecia ocultar uma casa, em determinado momento aparece reduzida de tamanho como a figura de um escorço, enquanto a casa avança para mostrar-se. Neste contexto, não se trata de uma paisagem apreendida como se projetada sobre um plano bidimensional o que garante a idéia da visão panorâmica, mas a separação entre o espaço de percepção e o espaço dos objetos percebidos. Na 416
CLARÉTIE, Jules. Vouages d’un parisien. Paris, 1865. p. 4. apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 61. Id. 418 STERNBERGER, Dolf. Panorama, oder Ansichten vom 19. Jahrundert, 3rd. ed. Hamburgo, 1938. pp. 3435. apud BENJAMIN, Walter. agens... p. 520. [N 12a,2]. 419 Ibid,. p. 50. apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 62-63. 417
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percepção “tradicional” os espaços são compartilhados, não há separação entre eles. Na percepção “moderna”, “o viajante de trem vê os objetos e a paisagens através do aparato que o movimenta mundo afora. O veículo e o movimento criado por ele integram-se à sua percepção visual”.421 A mobilidade da visão, que para os sentidos tradicionais de alguém como Ruskin, era vista como um agente de dissolução da realidade – torna-se pré-requisito dentro da “normalidade” da visão panorâmica. “A visão não mais experiência o movimento fluido dos objetos. A fluidez tornou-se parte da nova realidade visual”.422 A visão panorâmica, oferecida pelas janelas dos trens, já havia sido oferecida como uma ilusão nas décadas anteriores pelos panoramas e dioramas. Schivelbusch associa a vivência real nas estradas de ferro à experiência “virtual” nos panoramas e credita o desaparecimento da moda dos dioramas (por volta de 1840) ao surgimento das ferrovias423. Em nossa opinião, esta simultaneidade não é PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
o bastante para configurar a decadência da experiência panorâmica dissociada da vivência real. Considere-se a este propósito, a fase final dos panoramas, na virada do século XIX para o XX, em um momento em que a visão panorâmica já podia ser considerada completamente naturalizada.
3.3.3. Panoramas e espetáculos visuais Os
panoramas
e
sua
instituição
como
espetáculo
contribuíram
fundamentalmente para o desenvolvimento de novas características do olhar, avançando sobre a fronteira da representação ilusionística e antecipando em um século o debate em relação ao valor artístico da fotografia e, posteriormente, do cinema, vídeo e da mídia eletrônica.424 A palavra “panorama” tem origem na língua grega e significa “tudo ver”. O neologismo surgido em uma matéria do The Times, no ano de 1792, anunciava um novo espetáculo: uma pintura circular e absolutamente realista colocada sobre a parede de uma rotunda construída especialmente para este fim. O público, após subir uma escada no interior do 420
Id. Ibid., p. 62. SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 64. 422 Id. 423 As linhas de Paris para Orléans e Rouen aram a operar a partir de 1843. SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 62. 421
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panorama, atingia uma plataforma de onde se podia observar a representação, guardando uma distância que garantia a ilusão (Figura 138). A luz natural emanava do teto da construção e era suavizada por véus ou por um telhado, de modo a encobrir as bordas da pintura. As representações às vezes seguiam temas militares (batalhas) ou podiam retratar a própria cidade e, ainda, cidades distantes ou exóticas. As grandes dimensões e a necessidade de compensar o grande formato e a circularidade da tela encontravam-se entre as grandes dificuldades do meio. O trabalho de construção de um panorama era organizado como uma linha de montagem, onde especialistas assumiam partes específicas da pintura como o
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céu, paisagem de fundo, os figurinos e as armas.
Figura 138. Plataforma de observação do panorama com espectadores e detalhe da vista panorâmica de Constantinopla, por Jules-Arsène Garnier em exibição em Copenhagen. c. 1882. Gravura em madeira, C. V. Nielsen. Museu da Cidade, Copenhagen. In: COMMENT, Bernard. The Panorama. London: Reaktion Books, 1999. p. 6.
No panorama, marcando a transição da representação para a ilusão425, tudo era arranjado de modo a criar um jogo óptico e uma atmosfera ilusionista. A imagem não procurava simplesmente apresentar a natureza de forma idealizada, mas buscava substituir a realidade ao proporcionar uma experiência pessoal. O panorama era um empreendimento de custos elevados. De modo a ampliar os lucros muitas vezes uma tela, após ter sido exposta em Londres por
424
MILLER, Angela. The Panorama, the Cinema, and the Emergence of the Spectacular. Wide Angle. Summer, 1996. p. 43. 425 COMMENT, Bernard. The Panorama. London: Reaktion Books, 1999. p. 19.
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alguns anos, era vendida para outras rotundas em outras cidades inglesas, na Alemanha, França ou Holanda. Não poucas vezes, pintava-se o novo tema sobre a antiga tela. Até desaparecer em 1861, o Panorama de Londres punha em exposição uma ou duas novas mostras a cada ano, tendo exibido não menos de que 126 obras.426 Os panoramas fizeram um grande sucesso em dois períodos distintos. O primeiro período durou de sua invenção, na virada dos séculos, até 1820 e contou com uma audiência estimada entre trinta mil e cinqüenta mil visitantes por ano. A partir da década de 1820 o número de visitantes diminuiu para 15 mil por ano.427 Embora não tenhamos dados que corroborem a nossa hipótese, verificamos que este período corresponda à invenção dos aparelhos de visualização, de uso individual, que mereceram um estudo detalhado de Crary em relação às modificações ocorridas na visualidade.428 Ao longo da segunda geração de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
panoramas, no último quarto do século XIX, a média de espectadores aumentou substancialmente, para noventa mil espectadores entre os anos de 1860 e 1865, alcançando duzentos mil entre 1872 e 1885.429 Este número, que pode nos parecer excessivo, contém uma estimativa que inclui não apenas os países da Europa, mas de outras partes do mundo. Os panoramas também fizeram sucesso em diversos outros países, como o Brasil e os Estados Unidos, onde versões itinerantes percorriam várias cidades. A sua decadência sofreu influência não apenas das viagens, mas também das revistas e da ampla gama de publicações e espetáculos. O cinema realizou o golpe final. Os panoramas e suas diversas variantes surgidas ao longo do século XIX parecem resumir uma necessidade de expansão da visualidade nos sentidos físico, geográfico e histórico430. Como narra Benjamin: Havia panoramas, dioramas, cosmoramas, diafanoramas, navaloramas, pleoramas, (pleo, “eu navego”, “eios náuticos”), o fantoscópio, fantasma-parastasias, experiências fantasmagóricas e fantasmaparastáticas, viagens pitorescas pelo quarto, georamas; vistas pitorescas, cineoramas, fanoramas, estereoramas,
426
Ibid., p. 25. Ibid., p. 115. 428 CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth century. Massachusetts: The MIT Press, 1992. 429 COMMENT, B. op. cit., p. 115. 430 MILLER, A. op. cit., p. 36. 427
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cicloramas, um panorama dramático. “Em nossa época, tão rica em pano-, cosmo-, neo-, mirio-, kigo- e dioramas.”431
Havia ainda uma outra variante, o Kaiserpanorama, que surgiu em Breslau em 1880 e chegou a Berlin em 1883. Seu inventor chegou a estabelecer uma rede com algo em torno de 250 pontos através da Alemanha. O Kaiserpanorama não era de fato um panorama, mas um carrossel de estereoscópios que retratavam paisagens e cidades. Os cinqüenta espectadores postavam-se sentados em volta do aparato e cada vez que o carrossel girava tinham a oportunidade de observar uma diferente localidade. Fotógrafos eram contratados para viajar e produzir imagens para alimentar as duas diferentes seções a cada semana. Aproximadamente 125.000 imagens estereoscópicas foram produzidas para este espetáculo. Walter Benjamin em seu texto Infância em Berlin, comenta o seu contato com o
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Kaiserpanorama e o efeito incômodo da campainha que soava antes de cada mudança de imagem.432 O principal rival do panorama era o diorama, surgido em 1822. Consistia em uma tela plana ou ligeiramente curva que de acordo com as mudanças na iluminação apresentavam a mesma paisagem de dia e à noite. O efeito dependia da transparência da tela e da variação de iluminação – se pela frente ou por trás. As apresentações duravam aproximadamente quinze minutos em salas que acomodavam até 350 espectadores. Apesar de concorrer com o panorama, sua origem pode ser encontrada nas fantasmagorias ou na lanterna mágica, “que não conhecia a perspectiva, mas com a qual a magia da luz se insinuava de modo bem diferente nas habitações ainda pouco iluminadas”.433 A aproximação do diorama com a mágica e o encantamento é evidenciada no Salão de 1859 onde Baudelaire, após apontar os efeitos maléficos da fotografia, escreve: Gostaria de ser levado de novo para os dioramas cuja magia brutal e imensa sabe me impor uma útil ilusão. Prefiro contemplar alguns cenários teatrais onde encontro, expressos com arte e concentrados de forma trágica, meus sonhos mais caros. Essas coisas, porque falsas, estão infinitamente mais próximas da verdade, enquanto a maioria de nossos paisagistas são mentirosos justamente porque negligenciam mentir.434 431
M. G. Saphir no Berniler Courier, 4 mar. 1829, cit. em Erich Stenger, Daguerres Diorama in Berlin, Berlim, 1925, p. 73. BENJAMIN, Walter. Panorama. agens. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. p. 569. [Q 1,1]. 432 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 76. 433 BENJAMIN, Walter. Panorama. agens... p. 572. [Q 2,3]. 434 BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 840.
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Enquanto o diorama apresentava afinidade com a mágica, o panorama buscava ampliar a experiência a partir da crescente importância dada à percepção visual no período. Neste contexto, os panoramas em movimento com suas simulações de viagens por rios ou estradas foram muito atuantes. Nos espetáculos de panoramas em movimento os espectadores eram colocados em barcos ou carruagens com pouca iluminação ladeadas por telas que eram movidas vagarosamente. Alguns panoramas em movimento bastante sofisticados foram apresentados na Exposição de 1900, apesar de, neste período, o espetáculo já se encontrar em seus últimos estertores. Dentre estes, o Panorama Ferroviário Trans-Siberiano, que simulava a viagem de trem entre Moscou e Beijing, onde os ageiros eram instalados em três carros luxuosos dos quais podiam vislumbrar
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as paisagens através da janela. Um sistema mecânico permitia que quatro camadas sucessivas de paisagens se movessem em velocidades diferentes. O Mareorama combinava a simulação de movimento com a genuína configuração circular dos panoramas. Até 700 pessoas eram colocadas em uma enorme plataforma que se fazia ar pelo deque de um transatlântico. As gigantescas telas simulavam o movimento do navio. O vento ando por uma camada de algas marinhas sugeria a brisa e o cheiro do mar. Era um show imersivo, uma obra de arte total, sinestésica. O apelo dos panoramas encontrava-se, sobretudo, no seu aspecto de substituição da realidade, onde os espectadores poderiam vivenciar a experiência do estrangeiro e do exótico sem os inconvenientes da viagem.435 A natureza espetacular do novo meio oferecia a um público em formação, experiências normalmente fora do seu alcance, mas de forma editada e domesticada. O espaço real (da rotunda) era transformado em um outro espaço, onde os traços da realidade eram ocultados. Arquitetura e pintura atuavam juntas para articular a experiência. O continuum espaço-temporal dos panoramas rompeu a doutrina Ut Pictura Poesis que segregava em diferentes dimensões as artes irmãs, pintura e poesia. Com os panoramas, as distinções entre tempo e espaço, visual e verbal, foram destituídas das artes. Apesar disso, o status artístico desta representação foi muito contestado como sucedeu posteriormente com a fotografia, o cinema e a 435
MILLER, A. op. cit., p. 41.
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mídia eletrônica. Como entretenimento popular, o panorama ofereceu um amplo o à informações visuais, mas, ao contrário de outras formas de arte, ele não requeria nenhum conhecimento especializado anterior, assim como nenhuma expertise estética. Justamente pela oferta de ilusão pictórica, além da total aproximação com a natureza, o panorama era desprestigiado como arte. “A arte encanta porque relembra, não porque engana”.436 Neste contexto, a imitação da realidade constituiu a base do prazer popular da classe média do século XIX – um prazer alicerçado na experiência dos sentidos.437 J. A. Eberhardt em suas críticas aos panoramas, escritas em 1807, descreve o terror, a vertigem e a náusea que os espectadores poderiam padecer:
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Nem o conhecimento da proximidade com o ponto de vista, nem a luz do sol, nem o contraste com a vizinhança imediata são capazes de me resgatar deste sonho terrível, do qual tenho que me forçar contra minha inclinação. Deste modo, alguém pode por um fim à ilusão no momento em que ela se torna desagradável; mas a técnica não se encontra ao alcance de todos os espectadores do panorama.438
Bernard Comment em The Panorama, além de considerar a ética deste tipo de representação, analisa nesta agem a distinção entre representação e ilusão.439 Em nosso ponto de vista, ela aponta para uma pulsão escópica que em nossos dias é mais evidente na dificuldade de afastar o olhar das telas de TV encontradas em locais públicos. Do mesmo modo, a resistência a este tipo de impulso, requer um autodomínio que talvez não se encontre ao alcance de todos. Neste sentido, é importante destacar a força com que algumas tecnologias são capazes de se infiltrar sobre o olhar.
3.3.4. O tempo padronizado A compressão tempo-espaço resultante da aceleração produzida pelas novas tecnologias de transporte e comunicação produziram uma modificação concreta na forma como o tempo é compreendido e utilizado de maneira coletiva. Embora o relógio mecânico já existisse desde o século XIII e o relógio de pêndulo desde o
436
In: RHODE, Eric. A History of the Cinema: From its origins to 1970. New York: Hill and Wang, 1976. p. 8. apud MILLER, A. op. cit., p. 44. 437 MILLER, A. op. cit., p. 44. 438 EBERHARDT, J. A., Handbuch des Aesthetik, 1807. apud COMMENT, B. op. cit., p. 97. 439 COMMENT, B. op. cit., p. 97.
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XVII, foi apenas no século XIX que eles aram a ser produzidos em massa e com peças intercambiáveis.440 A utilização cada vez mais utilitária do mecanismo, mais do que uma necessidade da época evidencia a crescente importância de um tempo objetivo e impessoal sobrepondo-se ao tempo pessoal e subjetivo do indivíduo. O historiador alemão Karl Lamprecht observou nas últimas décadas do século XIX um crescente aumento na produção e importação de relógios de bolso (ele estima 12 milhões de relógios importados para uma população alemã de aproximadamente 52 milhões). Ao mesmo tempo, as pessoas aram a prestar maior atenção aos pequenos intervalos de tempo.441 A crescente utilização de relógios é ao mesmo tempo causa e conseqüência do aumento do senso de urgência, de um maior desejo de velocidade através de uma maior compreensão da
pontualidade.
Já
em
1900,
Simmel
afirmava
que
“pontualidade,
calculabilidade, exatidão são introduzida à força na vida pela complexidade e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
extensão da existência metropolitana e não estão apenas muito intimamente ligadas à sua economia do dinheiro e caráter intelectualístico”.442 A idéia de um tempo heterogêneo pertence ao terreno das subjetividades, aos novelistas, psicólogos e outros estudiosos interessados em examinar as diferentes formas que os indivíduos se relacionam com o tempo. Em O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde aponta para um tempo que a, ou melhor, que não a para o protagonista, enquanto o seu retrato, escondido no sótão, vai registrando as mudanças que deveriam estar no corpo e no rosto de Dorian. Para Proust foi um pequeno bolo “curto e rechonchudo", uma madaleine, que o fez viajar no tempo em um processo que o autor ou a chamar de memória involuntária, levando-o a concluir que o ado encontrar-se-ia “em um objeto material qualquer, fora do âmbito da inteligência e de seu campo de ação”. Em qual objeto, isso não se sabe, e é mesmo uma “questão de sorte se nos deparamos com ele antes de morremos ou se jamais o encontramos”.443 Uma importante conseqüência direta da influência das ferrovias foi a instituição do World Standard Time que representou a implantação de um tempo homogêneo, público e unificado. Em outras palavras, a transformação do tempo
440
LOWE, D.,op. cit., p. 35. KERN, S. op. cit., p 110-111. 442 SIMMEL, G. op. cit., p. 15. 443 PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Vol. I: No caminho de Swann. Rio de Janeiro: Ediouro, 1992. p. 55-56. A tradução reproduzida aqui é a de BENJAMIN, ibid., p. 106. 441
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em uma categoria social.444 Ao mesmo tempo, a instituição de um tempo unificado tem como conseqüência a perda da identidade temporal regional. Com um tráfico regional lento, as diferenças temporais não tinham importância alguma. Em 1840, as diversas companhias ferroviárias inglesas fizeram uma primeira tentativa de padronização do tempo, mas não houve um empenho coletivo e a hora era acertada por cada companhia diariamente. Neste quadro, permaneceram as disparidades de horário. Apesar dos argumentos científicos e militares em prol de um tempo universal, foram as companhias ferroviárias que finalmente o instituíram445 e mesmo quando estas decidiram adotar em conjunto o tempo indicado pelo Observatório Real de Greenwich, foi preciso esperar até que este tempo fosse amplamente incorporado. Até 1879, um viajante que partisse de Washington com destino a São Francisco com a intenção de acertar o seu relógio em cada lugarejo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
que asse, deveria fazê-lo mais de duzentas vezes446. Algumas regiões da França apresentavam quatro horários diferentes. Por outro lado, já em 1890 havia máquinas que registravam o horário de entrada e saída dos seus empregados de forma a determinar o tempo trabalhado e o pagamento a receber447. Deste modo, a industrialização também foi fundamental para a necessidade de implantação de um tempo coletivo, com precisão de menores segmentos e que dispensasse a referência do mundo natural. Em 1880, o “tempo ferroviário” foi adotado como padrão na Inglaterra, seguido pela Alemanha em 1893. Na Exposição Universal de Paris, realizada em 1889, um dos congressos internacionais realizados discutiu a unificação do tempo.448 Neste mesmo ano, os Estados Unidos foram divididos em quatro zonas de tempo ligadas às ferrovias, o que já era uma excelente padronização para quem, trinta anos antes, possuía 80 diferentes horários relacionados às ferrovias. Apenas em 1918, estas zonas aram a ser compreendidas como faixas de horário seguidas até os nossos dias. A fotografia de 1908 da Figura 139 ilustra o funcionamento do sistema de horário das ferrovias. Cada seção do representa uma hora, subdividida em intervalos de
444
Um conceito desenvolvido por Durkheim. Ver em KERN, S. op. cit., p. 19. KERN, S. op. cit., p. 12. 446 KERN, S. op. cit., p. 12. 447 Kern descreve um artigo de 1893 na Scientific American que descreve esta máquina. KERN, S. op. cit., p. 15. 448 SCHROEDER-GUDEHUS, Brigitte et RASMUSSEN, Anne. Les fastes du progrès. Le guide des Expositions universelles 1851-1992. Paris: Flammarion, 1992. p. 118. 445
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cinco minutos. A linha horizontal indica a distância entre as estações. Um fio é estendido do ponto de partida até o ponto de chegada de cada trem. O importante é que nenhum destes fios se cruze para que não haja acidentes. A complexidade
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do processo parece oferecer poucas garantias de sucesso deste intento.
Figura 139. As linhas do sistema de horário das ferrovias. The Illustrated London News, 6 de junho de 1908. The ILN Picture Library
(17/09/07)
Neste segmento do trabalho, apresentamos como as modificações resultantes das novas relações tempo-espaço, predominantemente originadas no contexto de influência de novas tecnologias, produziram influências na formulação de um novo modo de observar o mundo e de uma nova cultura visual moderna. Harvey observa, a partir de Bourdieu, “se as experiências espaciais e temporais são veículos primários da codificação e reprodução de relações sociais, uma mudança no modo de representação daquelas quase certamente gera algum tipo de modificação nestas”.449 A natureza da mudança gerada pelas experiências espaciais e temporais assumiu grande evidência com o advento da arte moderna no final do século XIX e início do XX. Hall engrandece esta discussão ao lembrar que tempo e espaço constituem as coordenadas básicas de todos os sistemas de representação. Apesar de, como assinala o autor, diferentes épocas culturais estabelecerem diferentes formas de combinar estas coordenadas450, elas
449 450
HARVEY, D. op. cit., p. 225 HALL, S. op. cit., p. 70.
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encontram-se traduzidas em todos os meios de representação que envolva imagens
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estáticas ou em movimento.
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4. A pedagogia de uma nova visualidade
Em nossa investigação sobre as continuidades e contradições que moldaram, ao longo do tempo, o olhar contemporâneo, identificamos dois diferentes modos de olhar. Os dois modelos ou momentos do olhar apontados neste trabalho não se colocam um em substituição ao outro, mas como uma base, sobre a qual, modos de olhar posteriores são construídos. No capítulo anterior analisamos como as novas tecnologias e sua influência sobre as dimensões de tempo e de espaço, ao PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
lado das condições de um novo ambiente urbano assentado sobre as mudanças ocorridas a partir da industrialização, mostraram-se fundamentais na construção de uma nova cultura visual. O presente capítulo prossegue com esta análise, desta vez, tratando da fixação deste processo. O novo modo de olhar que tomou forma a partir de meados do século XIX dependia de uma ampla participação da população. Ou seja, este modo de olhar deveria ser fundamentalmente compartilhado. É neste contexto que, no presente capítulo, utilizaremos como ponto de partida as Exposições Universais que se realizaram diretamente vinculadas à urbanização, às novas formas de comunicação e, principalmente, às questões específicas da industrialização: produção em massa e pré-fabricação. A escolha de uma análise da visualidade a partir das Exposições, realizadas na Europa desde 1851, em detrimento, por exemplo, de diversas tecnologias relacionadas à imagem e que surgiram neste mesmo período deve-se a diversos fatores. Em primeiro lugar, as Exposições encontram-se francamente associadas ao processo industrial da segunda metade do século XIX. Elas constituíram empreendimentos de grande porte, nos quais governos e empresas investiram imensas somas de dinheiro, atraindo quase todos os países do mundo na busca pela modernização. Além disso, trata-se de um fenômeno basicamente visual e voltado para um público amplo. Deste modo, as Exposições Universais sintetizam a experiência obtida posteriormente com outras tecnologias que se voltaram para a massa. A
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possibilidade de realizar esta análise sobre as Exposições e não sobre estas tecnologias, busca captar o primeiro momento da experiência de uma nova cultura visual, recentemente desenvolvida. As Exposições Universais colocam-se como um elemento fundamental na estruturação de uma cultura moderna, apoiada sobre a modernização da segunda metade do século XIX. Se por um lado surgem como conseqüência do mesmo conjunto de processos que gerou a nova percepção urbana, por outro, elas também se colocam como um fator atuante no desenvolvimento de uma pedagogia desta cultura visual. Além disso, as Exposições Universais têm o mérito de ressaltar a ascensão do campo do design, tanto a partir da exibição de produtos desenvolvidos pela indústria quanto pelas discussões que parecem mostrar-se, pela primeira vez, relevantes para esta área. Sobre estas questões, Greenhalgh observa que o ano de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
1851, data da primeira Exposição Universal, é considerado ponto de partida para a história do design, quando, de fato, deveria ser o ponto de partida para uma história crítica do design na medida em que o que era discutido era mais interessante e novo do que o que era apresentado.451 De qualquer forma, a ligação entre as Exposições e o campo do design amplia a consideração de Bürdek de que estas mostras eram capazes de revelar o estágio de desenvolvimento do design à época.452 Além da oportunidade dada às pessoas comuns de conhecer máquinas em funcionamento e produtos produzidos industrialmente, a primeira Exposição permitiu que designers, artistas, críticos e industriais tivessem o ao estado da arte do que era produzido em diversos países. Se isto não era traduzido em muitas inovações formais, certamente ressalta discussões capazes de fundamentar uma crítica do ornamento e do design, o que aponta para mudanças na forma de olhar o que era produzido.
4.1. Exposições e espetáculo As Exposições, que se realizaram em diversos pontos do planeta, entre meados do século XIX e as primeiras décadas do XX, foram moldadas a partir dos 451
GREENHALGH, Paul. Ephemeral Vistas: The Expositions Universelles, Great Exhibitions and World’s Fairs, 1851-1939. Manchester: University Press, 1994. p. 143. 452 BÜRDEK, Bernhard E. História, Teoria e Prática do Design de Produtos. São Paulo: Ed. Edgard Blücher, 2006. p. 21.
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exemplos da Inglaterra, França e Estados Unidos, onde eram chamadas, respectivamente de Great Exhibitions, Expositions Universelles e World’s Fairs. No entanto, exibições artesanais e industriais de caráter nacional tinham sido freqüentes na França e na Inglaterra a partir do século XVIII e, mesmo antes, na Idade Média, geralmente relacionadas a festividades religiosas. Com o ar do tempo, elas foram aumentando em importância e em itens exibidos. Uma destas se realizou em 1798, no Campo de Marte em Paris. Na Inglaterra, na década de 1830, diversas exibições ligadas a institutos de tecnologia chegaram a atrair públicos de até trinta mil pessoas.453 A primeira Exposição considerada de caráter universal foi realizada em Londres em 1851. Embora esta palavra não constasse do seu nome, The Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations, a pretensão encontrava-se profundamente arraigada. Para o historiador Asa Briggs, a Exposição de 1851 foi o ponto culminante de uma longa e entrelaçada história, e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
não um evento surpreendente.454 De forma análoga, consideramos que a história das Exposições Universais encontra-se profundamente relacionada à construção da cultura visual moderna. As Exposições Universais atuaram como difusores de valores, mas em um posicionamento mais amplo do que é freqüentemente sugerido em estudos recentes455, onde elas aparecem como veículos de propaganda de massa. Em nosso ponto de vista, os valores modernos transmitidos nas Exposições e sua ascendência sobre o sentido visual da sociedade burguesa do século XIX são demarcadores da construção de um habitus coletivo que definiu a visualidade no período. As próprias exposições podem ser analisadas como representações visuais456, já que são compreendidas “como modelos de mundo materialmente construídos e visualmente apreensíveis”.457 Para Barbuy, trata-se de um “veículo para instruir (ou industriar) as massas sobre os novos padrões da sociedade industrial (um dever-ser de ordem social)”.458 De forma semelhante, Reberieux
453
KUSAMITSU, Toshio. Great Exhibitions before 1851. History Workshop. n. 9. (Spring 1980): 70-89. apud The Books of the fairs. p. 5. http://microformguides.gale.com/Data/Introductions/10020FM.htm. o em 25 de fevereiro de 2007 às 12:57h. 454 BRIGGS, Asa. Exhibiting the Nation. History Today, January 2000. p. 18 455 Cf. PLUM, Werner. Exposições mundiais no século XIX: espetáculos da transformação sócio-cultural. Bonn : Friedrich-Ebert-Stiftung, 1979. e REBERIOUX, Madeleine. Approches de l’histoire de expositions universelles à Paris du Second Empire a 1900. Bulletin du Centre d’histoire économique et sociale de la région lyonnaise, n. 1, pp. 1-17, 1979. 456 BARBUY, Heloisa. A exposição universal de 1889 em Paris. São Paulo: Edições Loyola, 1999. p. 24. 457 Ibid., p. 17. 458 Id.
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considera que as Exposições são criações do mais alto grau de representações mentais e de imaginários coletivos.459 As grandes feiras privilegiavam a exibição e aquisição de conhecimentos sobre tecnologias, lugares e sociedades distantes, divulgando um saber com pretensões enciclopédicas e ideais evolucionistas. Mas, ao mesmo tempo, atuavam com propósitos de entretenimento e espetáculo. As Exposições ofereciam o deslumbre que a tecnologia podia proporcionar, de um olhar para o ado a partir do ponto de vista privilegiado do homem moderno, senhor de sua superioridade sobre a natureza, mas também de um olhar para o futuro a partir das possibilidades sugeridas pelos novos inventos e descobertas. Neste contexto, as Exposições amplificaram o mito do novo e o conceito de “sociedade do espetáculo”
460
, baseado na indústria moderna, onde o “desenrolar é tudo”.461
Apesar de Guy Debord ter demarcado a década de 1920 como o início do que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
conceituou como sociedade do espetáculo462, em nosso ponto de vista este processo é anterior. Iniciou-se no século XIX, predominantemente na sua segunda metade, com as mudanças urbanas e com o início das Exposições Universais. Nossa convicção encontra apoio em textos de Walter Benjamin e T. J. Clark. Para Benjamin, foi a partir das exposições universais que o valor de troca das mercadorias ou a ser idealizado, relegando o valor de uso para o segundo plano. Neste momento, inaugura-se uma “fantasmagoria a qual o homem se entrega para divertir-se”.463 Clark, considerando as dificuldades de definição dos conceitos de “espetáculo” e “sociedade do espetáculo”, aponta as origens do termo para a década de 1960 nos estudos teóricos do grupo Internacional Situacionista, interessado em “regular ou suplantar a esfera do pessoal, do privado, do cotidiano”.464 Para Clark, embora reconhecendo a impossibilidade de uma temporalidade precisa, a origem do espetáculo coincide com o modernismo. As novas formas de vida e lazer encaminhavam “um movimento em direção ao mundo dos grands boulevards e grands magasins, bem como das grandes
459
REBERIOUX, M. op. cit. p. 3. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2004. 461 Ibid., p. 17. 462 DEBORD, Guy. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2004. p. 168-169. 463 BENJAMIN, Walter. Paris, a capital do século XIX. <Exposé de 1935>. In: agens. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. p. 44. 464 CLARK, T. J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 42-43. 460
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indústrias que vinham com eles, do turismo, da recreação, da moda e da exibição”.465 A questão do fundamento social do espetáculo é rechaçada por Michel Foucault. O estudo das modalidades de poder da sociedade moderna leva Foucault a afirmar que “nossa sociedade não é de espetáculos, mas de vigilância”.466 Como observa Tony Bennett, Foucault chega a esta conclusão ao analisar o momento em que a punição deixa de ser aplicada como um espetáculo de exibição de poder. Para Bennett, este enfoque limita uma visão mais ampla de uma retórica do poder que deveria também se apoiar no complexo exibicionário – um poder que se manifesta em sua habilidade de organizar e coordenar “uma ordem das coisas” e um lugar para as pessoas em relação a esta ordem.467 A combinação entre vigilância e espetáculo, leva Bennett a apresentar, não sem críticas, a sugestão de Graeme Davison de que, se o panóptico é a representação arquitetônica do poder, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
o Palácio de Cristal, palco da primeira Exposição Universal, reverte o princípio do panóptico na medida em que fixa os olhos da multidão sobre um fascinante conjunto de mercadorias. “O Panóptico foi projetado de um modo que todos pudessem ser vistos; o Palácio de Cristal foi desenhado de modo que todos possam ver”.468 Para Bennett, a peculiaridade do complexo exibicionário não deve ser procurada na reversão dos princípios do Panóptico, mas na incorporação de certos aspectos deste princípio (e também do panorama), na formação de uma tecnologia da visão que sirva não para atomizar ou dispersar a multidão, mas para regulá-la. Deste modo, a multidão torna-se visível para si própria, constituindo parte do próprio espetáculo. Neste contexto, o autor reproduz uma instrução do texto “Short Sermon to Sightseers” da Exposição Pan-Americana de 1901: “Por favor, ao ar por estes portões, lembre-se de que você é parte deste show”.469 A interatividade antecipada sugere que não há espetáculo sem a mediação do
465
Ibid. p. 43-44. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2006. p. 178. 467 BENNETT, Tony. The Exhibitionary Complex. In: DIRKS, N. B., ELEY, G. e ORTNER, Sherry B. (ed.) Culture / Power / History. New Jersey: Princeton University Press, 1994. p. 130. 468 DAVISON, Graeme. Exhibitions. Australian Cultural History (Canberrra: Australian Academy of the Humanities and the History of Ideas Unit, A. N. U.), no. 2 (1982/3) 7. apud BENNETT, T. op. cit., p. 128. 469 Citado por HARRIS, Neil . Museums, merchandising and popular taste: The struggle for influence. In QUIMBY, I. M. G. (ed) Material Culture and the Study of American Life. New York: W. W. Norton, 1978. p. 144. apud BENNETT, T. op. cit., p. 132. 466
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espectador.470 O olhar torna-se porta de entrada da experiência moderna e sua formulação algo que pode ser aprendido. Ampliando as articulações institucionais de poder estudadas por Foucault, Bennett observa que há uma ampla gama de outras instituições – museus de história e ciências naturais, dioramas e panoramas, exibições nacionais e internacionais, além de galerias e lojas de departamento – que serviram de espaço para o desenvolvimento e circulação de novas disciplinas e, também, para o desenvolvimento de novas tecnologias de visão.471 Deste modo, sugere Bennett, um complexo disciplinar e de relações de poder seria formado a partir das instituições
de
exibição,
em 472
desenvolvido por Foucault.
justaposição
ao
“arquipélago
carcerário”
Para Bennett, as instituições que compõem o
complexo exibicionário atuam na transferência de objetos e corpos de espaços privados e fechados para arenas públicas onde se constituem em veículos para a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
inscrição e divulgação de diferentes mensagens de poder para toda a sociedade.473 O olhar a a ser compreendido em sua dimensão participativa. A exposição ao olhar garante a participação e a interação do homem moderno. Sob este ponto de vista, as Exposições Universais, iniciadas na Londres em 1851, teriam atuado na ordenação de objetos para a inspeção pública e, simultaneamente, na ordenação do público que os inspeciona. A exibição da produção industrial oferecia contrapartida à instrução de uma nova experiência visual. Neste contexto, cabe chamar a atenção para o destaque dado à questão da visualidade. No espaço das Exposições, as mercadorias e máquinas encontravamse organizadas de forma a serem vistas, “contempladas como ícones dos novos tempos e do poder de criação e inventiva da indústria humana e não para serem um mercado de compra ou intercâmbio desses mesmos produtos”.474 Apesar de se tratarem de modelos bastante simples, na Exposição de Londres em 1851 (Figura 140), foram expostas praticamente todas as máquinas existentes, muitas em operação, para a iração do público. A gravura de C. T. Dolby (Figura 141) mostra a máquina de dobrar envelopes desenvolvida por Edwin Hill and Warren
470
MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. 471 BENNETT, T. op. cit., p. 123. 472 Id. 473 Ibid. p. 124. 474 NEVES, Margarida de Souza. As vitrines do progresso. Rio de Janeiro: Centro de Ciências Sociais PUCRio, 1986. (datilografado). p. 26.
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de la Rue e exibida na Exposição de Londres de 1851 para o encantamento dos visitantes que podiam assistir o processo e ter o ao seu resultado: 2700 envelopes por hora. Até então os envelopes eram dobrados manualmente e uma boa produção garantia apenas 2000 peças por dia.
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Figura 140. Estandes de máquinas: motores Whitworth e bomba centrifuga Appold. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford. Disponível em:
(7/02/08).
Figura 141. Máquina de envelopes no estande De la Rue’s Stationery. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford. Disponível em:
(7/02/08).
No texto original que acompanha a gravura do estande de máquinas lê-se: “quanto mais podemos diminuir o trabalho do homem, que Deus pretendia como seu castigo, mais próximos estamos de retirar a sua maldição, e mais nos aproximamos da nossa perfeição original”. Esta agem justifica, em parte a iração pela máquina, que aqui é retratada como salvadora. O deslumbramento frente às máquinas acompanhou praticamente todas as Exposições realizadas. Na Exposição Universal de 1889 em Paris, os olhares foram assombrados pela
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aparente infinita variedade de modelos e aplicações. Nas palavras de um autor contemporâneo: Há rodas que giram tão rápido que nada mais se distingue de sua forma. O batimento cadenciado das correias de transmissão não cansa os ouvidos, os olhos têm mil coisas para ver; é o poema do ferro, desenrolando-se em estrofes feéricas. E que variedade!475
Benjamin, ao descrever como as multidões aram a conhecer o prazer a partir do espetáculo com as Exposições Universais, observa como este deslumbramento era voltado para a visualidade: “tudo olhar, nada tocar”.476 Sem dúvida, há nesta idéia a evidência de uma nova constituição perceptiva onde o sentido da visão é privilegiado e reverenciado como porta de entrada de uma nova formulação social para a qual se buscava amplo apoio. As Exposições Universais apresentam-se como um campo de formação da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
cultura visual, seja na arquitetura – construída especialmente para o evento ou como parte de uma exibição específica - na ornamentação e no design dos produtos expostos, na organização dos produtos exibidos, e, por fim, nas discussões contemporâneas que acompanharam estas exibições caracterizando, muitas vezes, a pedagogia de uma nova visualidade onde todos os elementos anteriores mesclam-se em uma ampla formulação. Para Siegfried Giedion as Exposições Universais aproximavam-se a Gesamtkunstwerke – obras de arte total: Todas as regiões, e mesmo, em uma retrospectiva, todas as épocas. Da agricultura e mineração, da indústria e das máquinas, mostradas em funcionamento, até as matérias-primas e o material manufaturado, até a arte e o artesanato. Há nisso tudo uma necessidade singular de síntese prematura, que é própria do século XIX também em outros domínios – pensemos na obra de arte total.477
A comparação de Giedion parte da intensidade da nova experiência visual, onde se combinam as maquinarias tecnológicas com a arte, os artefatos de guerra com os produtos de moda e os negócios com o prazer e o entretenimento.478 Deste modo, consideramos que as Exposições Universais iniciadas no século XIX
475
DUMAS, F. G. (org.); FOUCARD (red.). Revue de l’Exposition universelle de 1889. Paris: Motteroz/ Baschet, 1889. v. 1. p. 222. apud BARBUY, H. op. cit., p. 70. (grifo nosso) 476 BENJAMIN, W. agens... p. 236. [G 16,6]. 477 GIEDION, Sigfried. Bauen in Frankreich. Leipzig e Berlim, 1928. p. 37. apud BENJAMIN, W. agens... p. 211. [G 2,3]. 478 BUCK-MORSS, Susan. Dialética do Olhar. Walter Benjamin e o Projeto das agens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 116.
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constituem um palco privilegiado para a observação da construção e pedagogia de uma cultura visual a partir do processo de modernização do ocidente.
4.2. Diversão pedagógica ou pedagogia do entretenimento O fato de compreendermos as Exposições Universais como difusores de valores ou, ainda, como inculcadores simbólicos479 de uma cultura visual moderna, permite-nos sugerir, em relação à cultura visual, a existência de um “projeto pedagógico”, ou pelo menos, uma intenção instrucional por parte dos expositores, homens de negócios e poderes públicos. Este pensamento busca reforço na afirmação de Reberioux de que as exposições colocavam-se como uma tentativa de fazer itir a industrialização a uma sociedade majoritariamente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
rural.480 Em outras palavras, buscava-se “educar” as massas em relação a um modelo de vida fundamentado na sociedade industrial e esta intenção encontravase completamente baseada no estímulo a uma cultura visual nascente. Barbuy observa que os organizadores e cronistas das Exposições Universais, em muitos momentos, “referem-se a suas funções instrutivas”.481 As mostras específicas sobre história do trabalho, história da habitação, técnicas de higiene e, também, sobre as nações colonizadas, de fato, poderiam referir-se, respectivamente, à história das técnicas de produção industrial e demonstrações das mais recentes tecnologias, como o ferro na arquitetura, mas, também, à apresentação de modos de vidas atrasados – dos colonizados, considerados atados à pré-modernidade – como forma de estabelecer contraste e valorizar o homem moderno. O princípio pedagógico das exposições era baseado no conceito de “expor idéias para uma audiência ignorante em uma linguagem que ela pudesse entender de modo a exercer influência sobre este público”.482 As primeiras Exposições seguiam vários objetivos: aprimorar o gosto da classe média, apresentar opções de melhoramento às manufaturas, e educar e moralizar a classe operária.483 Em 1874,
479
BOURDIEU, Pierre et ERON, J. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. p. 121. Os autores mencionam violência simbólica e inculcação em contraponto à noção de um aprendizado intuitivo e ingênuo. 480 REBERIOUX, M. op. cit., p. 10. 481 BARBUY, H. op. cit., p. 54. 482 GREENHALGH, P. op. cit., 19. 483 Id.
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por exemplo, o guia oficial da Exposição de Londres afirmava que o objetivo das exposições não era simplesmente atrair as massas, mas promover “a instrução do público em arte, ciência e manufatura” através da exposição de objetos selecionados.484 A preocupação com a educação, presente em todas as exposições, apontava em diversas direções. De um lado, o caráter didático-pedagógico de formar, instruir, levar ao novo, aproximar das descobertas técnicas e científicas e incutir ideais de cidadania, trabalho e modernidade. De outro lado, surgia também a preocupação com a habilidade técnica e o aprimoramento do profissional da indústria. Em paralelo a este último ponto, buscava-se também o direcionamento do gosto do público no sentido de um “refinamento”, assim como também dos designers e dos demais envolvidos no processo industrial a partir da visualização em termos comparativos com o que era produzido em todo o planeta. O elemento educacional que apoiava a realização das Exposições favoreceu PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
a ocorrência de diversos congressos e conferências paralelas, algumas acadêmicas e outras direcionadas para a elaboração de propostas e sugestões de caráter convencional e regulador. Já nas primeiras Exposições surgiram proposições como o plano francês de um sistema geral de pesos e medidas, a discussão sobre uma moeda universal, as sugestões para um esquema internacional de cores e uma nomenclatura científico-tecnológica universal.485 Estas propostas evidenciam sinais de uma globalização crescente e, de fato, algumas delas surtiram efeito anos depois como, por exemplo, a implantação de um sistema de medidas, adotado em 1875 na Convenção Métrica Internacional. A partir da Exposição Universal de 1878, realizada em Paris, os congressos internacionais especializados aram a ser considerados parte integrante das Exposições. Em paralelo ao evento deste ano, realizaram-se 32 congressos que tratavam de assuntos tão diversos como demografia, arquitetura, higiene, homeopatia e propriedade industrial.486 Alguns anos depois, na Exposição Universal de 1889 em Paris, os 69 congressos realizados reuniram 20.000 pessoas.487 Dentre estes, chama-nos a atenção a realização do Congresso Internacional de Fotografia. O relatório e as atas deste encontro evidenciam os 484 London International Exhibition 1874. Official Guide (Illustrated). London, J. M. Johnsons and Sons, 1874. apud GREENHALGH, P. op. cit., p. 19. 485 PLUM, W. op. cit., p. 85. 486 SCHROEDER-GUDEHUS, Brigitte et RASMUSSEN, Anne. Les fastes du progrès. Le guide des Expositions universelles 1851-1992. Paris: Flammarion, 1992. p. 100.
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esforços para aproximar a fotografia de bases cientificas a partir de discussões relacionadas aos efeitos da luz, às questões relativas à propriedade dos negativos e das reproduções e à uniformização da nomenclatura.488 Decisões tomadas neste encontro levaram à supressão de alguns termos como “gliptografia” e “fototipia” e à determinação do emprego do termo “foto”, por sua associação com a ação da luz, aliada à terminação “grafia”. Entre estas duas palavras, deveria ser incluído o vocábulo correspondente ao procedimento, o que resultava em nomes como “fotocromatografia”.489 O esforço pela adoção de convenções em áreas de recente desenvolvimento tecnológico, como é o caso da fotografia na Exposição de 1889, sugere, além da visão de um mundo que se pretende globalizado, a compreensão da utilização de novas tecnologias como um elemento fundamental e indispensável na atualização do capital. Mas, acima de tudo, parece demonstrar a necessidade de convenções e acordos simbólicos para o sucesso de implantação PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
desta tecnologia. Apesar das Exposições realizadas a partir de 1851 apresentarem um viés instrutivo, este não era pensado de forma dissociada do entretenimento: a proposta era “ensinar divertindo”.490 Ou seja, o aprendizado deveria ser naturalizado ou estilizado de forma a ocultar as intenções instrutivas, que por sua vez encontravam-se diretamente relacionadas às novas formulações produtivas. A dualidade entre instrutivo e recreativo esteve em grande evidência na Exposição de 1889. De acordo com Barbuy, comentava-se que a exposição parisiense anterior, de 1878, havia sido excessivamente séria, de modo que, na de 1889, o objetivo era “menos instruir os cientistas do que maravilhar os leigos”.491 O aspecto de entretenimento é evidenciado por Benjamin, para quem o objetivo das exposições era o divertimento das classes trabalhadoras.492 Ao longo do tempo, o espírito enciclopédico foi cedendo espaço ao lúdico e ao espetáculo nas Exposições Universais. Pesavento questiona se estas modificações refletiam a influência do público sobre os organizadores ou se os empresários, homens de ciência e burocratas rendiam-se, “vencidos nos seus propósitos pedagógicos e cientificistas, pela força irresistível da indústria do lazer, 487
Ibid., p. 117. BARBUY, H. op. cit., p. 34. 489 Id. Cf menção ao relatório do Congresso. 490 Ibid., p. 54. 491 L’Exposition de Paris, 1889, v. 3/4:98. apud BARBUY, H. op. cit., 54. 488
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do lucro fácil da opereta e do parque de diversões”.493 Em nossa opinião, dificilmente se poderá chegar a uma explicação consistente para os desdobramentos e modificações que foram acontecendo no escopo das Exposições Universais. Além do que, o espetáculo parece se encontrar na raiz das Exposições, desde as primeiras mostras, assim como de outros eventos voltados para as massas. O “lazer eminentemente didático” das Exposições é compatível com outras formas urbanas que surgiram no mesmo período, como os parques públicos e de diversões, museus e exposições de curiosidades. Os laços de lazer e entretenimento que envolviam as Exposições não eram isentos de crítica por parte dos contemporâneos que consideravam o principal intuito do espaço a instrução: “este lado divertido e pueril, esta mistura de bazares, de espetáculos e de barracas forâneas que não atraem a turba senão a desviando de todo pensamento de estudo e que lhe dá uma sedução vulgar [...]”.494 Apesar PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
disso, diversas atrações voltadas para a pura diversão eram encontradas em paralelo às finalidades pedagógicas e de divulgação científica das Exposições. Na Exposição Universal de Paris de 1867, havia os cafés-concerto e restaurantes que serviam comidas típicas de várias partes do mundo com jovens garçonetes vestidas com roupas tradicionais. Havia ainda uma rede de bateaux-mouches que conduzia a eios no Sena.495 O espaço para a diversão era principalmente um espaço social, onde surgiam as oportunidades para ver e ser visto. As caricaturas da época sugerem que entre os produtos expostos encontrava-se “variado número de moças casadoiras, devidamente acompanhadas por uma conveniente ‘tia’ mais idosa”.496 Embora as Exposições, assim como as vitrines dos grandes magasins, encontrem-se diretamente relacionadas à busca por “novidades”, as primeiras, como observa Buck-Morss, não eram uma meta financeira em si mesma. Assim, o comércio de mercadorias era menos significativo do que o negócio de entretenimento de massas497, ou, se preferirmos, da divulgação pedagógica de uma
492
BENJAMIN, Walter. Paris, a capital do século XIX... p. 44. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições universais. Espetáculos da Modernidade do século XIX. São Paulo: Editora Hucitec, 1997. p. 178. 494 Le Correspondant. Paris, 25 jul. 1867, p. 621. apud PESAVENTO, S. op.cit., p. 129. 495 ALTWOOD, John. The Great Exhibitions. Londres, Studio Vista, s. d., p. 34. apud PESAVENTO, S. op. cit., p. 129. 496 L’Illustration Française. Paris, 24 abr. 1867, p. 264. apud PESAVENTO, S. op. cit., p. 129. 497 BUCK-MORSS, Susan. Dialética do Olhar. Walter Benjamin e o Projeto das agens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 118. 493
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nova cultura visual. Além disso, abria-se espaço para a diversão como uma nova espécie de consumo, fundamentada na visualidade. É neste contexto que se compreende porque a organização de exposição de Nova York, de 1853, tenha sido entregue a Phineas Barnum, que havia se tornado conhecido a partir de seus shows de variedade e, principalmente, do circo.498 De fato, o entretenimento de massas mostrou-se logo um grande negócio. A Torre Eiffel, em menos de um ano, já havia pagado os seus custos de construção e começava a dar lucro.499 É com esta moldura, formulada a partir da contradição entre o educacional e o lúdico, que devemos analisar a participação das Exposições Universais na fixação de uma cultura visual moderna construída ao longo do século XIX.
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4.3. O Palácio de Cristal, uma Exposição para todas as nações A primeira Exposição Universal foi realizada em Londres em 1851 embora, segundo Henry Cole, figura chave do empreendimento, esta idéia tivesse sido sugerida por M. Buffet, então ministro do comércio francês.500 Cole, que havia anteriormente trabalhado na organização das exposições nacionais inglesas, obteve o apoio da Rainha Vitória e do Príncipe Albert para organizar The Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations, uma exposição de “todas as nações”. Uma comissão de construção foi constituída para organizar o evento e estabeleceu os princípios que deveriam nortear o projeto do prédio da Exposição. Ele deveria compreender em seu espaço algumas das maiores construções existentes no mundo, ser resistente ao fogo e favorecer a entrada de luz a partir do teto. Além disso, deveria poder ser construído em poucos meses com baixo custo por metro quadrado. Aumentando as dificuldades existentes, considerou-se, ainda, a necessidade da construção abrigar quatro grandes olmos existentes no Hyde Park. Em certo sentido, como afirma Greenhalgh, o escopo da proposta
498
BENJAMIN, Walter. agens... p. 224. [G 9,1]. Ibid. p. 220. [G 6a,2]. 500 WAINWRIGHT, Clive. The making of the South Kensington Museum II. Collecting modern manufactures: 1851 and the Great Exhibition. Journal of the History of Collections. 14. no. I (2002). London: Oxford University Press. p. 26 499
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praticamente definiu o tipo de prédio.501 De modo que não constituiu surpresa o fato da maior parte das propostas apresentadas sugerir o uso de ferro e vidro. No entanto, nenhuma das soluções foi considerada pelo comitê de construção que se pôs a trabalhar sobre um projeto que não satisfazia às suas próprias condições. Neste contexto, entra em cena Joseph Paxton. A história usualmente apresenta Paxton como o jardineiro-chefe do duque de Devonshire, para quem havia construído uma estufa de ferro e vidro. Embora provavelmente este cargo significasse a sua sobrevivência, a simplicidade da condição parece destacar uma genialidade solta no tempo e no espaço: como um jardineiro, ainda que chefe, pode ser capaz de criar uma das mais importantes construções do século XIX? De fato, Paxton, além de seu envolvimento com paisagismo, era um atento observador dos avanços obtidos nas construções com ferro e vidro e um grande
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conhecedor de estruturas e solucionador de problemas técnicos de arquitetura.502
Figura 142. Desenhos originais do Palácio de Cristal por Joseph Paxton. 11 June 1850. Disponível em: The Victorian Web
(17/03/08)
Figura 143. Levantando a viga mestra do corredor central. Construção do Palácio de Cristal. The Illustrated London News, 1851. Disponível em
(17/03/08)
O projeto de Paxton, cujos esboços foram preservados (Figura 142), não se encontrava entre os 233 apresentados à comissão de construção, mas obteve apoio público após ser divulgado no Illustrated London News. Sua proposta gerou uma 501
GREENHALGH, P. op. cit., p. 150-151.
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impressão favorável pela segurança contra fogo, claridade, rapidez de montagem e baixo custo.503 Como observa Walter Benjamin, “a primeira exposição universal e a primeira construção monumental de vidro e ferro!”.504 De fato, a própria construção do Palácio de Cristal representava o modo de produção do século XIX. Ele foi pré-fabricado, produzido em partes padronizadas por fornecedores locais e montado em tempo recorde. Embora a comissão de construção não tivesse especificado claramente a existência temporária do prédio, a possibilidade de desmontagem rápida ao final do evento era bem vista.505 A construção do Palácio de Cristal foi acompanhada pelo público, principalmente através da imprensa. As etapas eram ilustradas no The Illustrated London News: o levantamento da viga mestra puxada por cavalos (Figura 143), o transepto (Figura 144), o telhado
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(Figura 145), etc.
Figura 144. Coluna do transepto. Construção do Palácio de Cristal. The Illustrated London News, 1851. Disponível em The Victorian Web
(17/0308).
Figura 145. Levantando o telhado. Illustrated London News. 11 de dezembro de 1850. In: BRIGGS, Asa. Exhibiting the Nation. History Today, January 2000. p. 18
Em termos formais e construtivos, pode-se afirmar que o Palácio de Cristal era absolutamente avançado para a sua época, tendo sido considerado um triunfo da lógica principalmente pela sua completa independência de antigas tradições 502 The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course material by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 51-53. 503 BENJAMIN, W. agens... p. 213. [G 2a,8]. 504 Ibid. p. 212. [G 2a,7]. 505 A garantia de retirada do prédio ao final do evento, buscava atender às queixas e petições impetradas contra a localização do evento em uma área exclusivamente residencial da cidade.
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arquitetônicas.506 Na visão da imprensa contemporânea, o enorme número de unidades padronizadas507 deveria funcionar como um “mecanismo perfeito”508: também a arquitetura já era vista um pouco como máquina. O princípio da préfabricação, que tornou possível o empreendimento, foi capaz de produzir um novo efeito estético, a partir da associação entre uniformidade e monumentalidade. Além disso, o contraste entre a malha modular de vidro e ferro e a organicidade da folhagem das árvores também era impactante. Um daguerreótipo realizado à época da Exposição (Figura 146) sugere a dimensão do que poderia ser experienciado pelos contemporâneos: a monumentalidade opressiva e contagiante
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das formas modernas experenciadas pela primeira vez.
Figura 146. Daguerreótipo do interior do Palácio de Cristal. John J E Mayall, 1851. Disponível em:
(2/09/07).
As novas tecnologias de impressão possibilitaram inúmeras representações do pavilhão. Diversas aquarelas e reproduções litográficas do Palácio de Cristal eram produzidas para representar a grandeza da construção (Figura 147 e Figura 148). Algumas reproduções, além de trazerem diferentes pontos de vista, utilizam técnicas novas ou pouco empregadas anteriormente. É o caso da vista do Palácio 506 PEVSNER, Nicolaus. High Victorian Design. A study of the Exhibits of 1851. London: Architectural Press, 1951. p. 15. 507 Segundo Pevsner, baseado em uma palestra dada por Paxton no inverno de 1850-1851, foram 6.024 colunas de 15 pés de comprimento, 3.000 vigas de sustentação das galerias, 1.245 vigas em ferro forjado e 1.073.760 pés quadrados de vidro. PEVSNER, N. op. cit., p. 15.
233
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de Cristal e seu entorno o Hyde Park (Figura 149). George Baxter, autor do trabalho, obteve a patente do processo que utilizava tinta a óleo sobre blocos de madeira ou metal em relevo. A seqüência de impressão era realizada sobre uma base pré-gravada em metal ou litografia. No exemplo aqui reproduzido, foram utilizados dez blocos de tinta. As reproduções eram vendidas em um estande na
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própria Exposição.509
Figura 147. Vista geral do Palácio de Cristal. Dickinson's comprehensive pictures of the Great Exhibition of 1851: from the originals painted for H.R.H. Prince Albert / by Messrs Nash, Haghe, and Roberts, R.A. London: Dickinson, Brothers, 1854. Disponível em: National Museum of Science & Industry
(2/09/07)
Figura 148. Exterior do Palácio de Cristal com Kensington Gardens', 1851. Litografia de Augustus Butler a partir de desenho original. National Museum of Science & Industry
(2/09/07)
Figura 149. The Great Exhibition. Impressão em óleo por G. Baxter. Disponível em:
(17/03/08).
Outro exemplo interessante de material impresso é encontrado no rolo de quase nove metros de comprimento, desenvolvido pela equipe do Illustrated London News, com diversas cenas da Exposição (Figura 150). Ao contrário das peças anteriores, as ilustrações do Grand Panorama of the Great Exhibition of All
508
Journal of Design and Manufactures, vol. 4, 1850/1851, p. 30 apud PEVSNER, N. op. cit., p. 15. Crystal Palace http://spencer.lib.ku.edu/exhibits/greatexhibition/fairy.htm. o em 18 de março de 2008 às 10:47h. 509
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Nations não se propunham a ser afixadas como um quadro, mas proporcionar uma visão panorâmica do evento para quem se propusesse a desenrolar a peça.
Figura 150. "Grand Panorama of the Great Exhibition of All Nations". Illustrated London News. 1851. Friends of the Library Fund, Cooper-Hewitt, National Design Museum Library. Disponível em: Smithsonian Institution Libraries.
(17/03/08)
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Muitas reproduções do Palácio de Cristal eram vendidas como souvenirs, embora o cartão postal viesse a surgir apenas em 1869, na Áustria.510 Diversos objetos recebiam estampas ou ilustrações de modo a servir a este mesmo fim, como, por exemplo, lenços ilustrados (Figura 151), abridor de envelope (Figura 152) e caixa para charutos com imagem do Palácio de Cristal (Figura 153). A diversidade e profusão deste tipo de artefato sinalizam dentro de uma moderna cultura visual urbana, a reprodução de massa e os tímidos avanços do turismo. Serviam também como comprovar a participação no evento (o que Barthes posteriormente atribuiu à fotografia como um “estive lá”), fazendo este acontecimento prolongar-se para além do seu tempo. Além disso, os souvenirs forneciam evidência para o que Benjamin chama de “compensação pelo desaparecimento de vestígios da vida privada na cidade grande”511, podendo ser interpretados como “dispositivos para registrar e conservar rastros”.512 Segundo Benjamin, para romper a anonimidade da vida urbana, buscam-se rastros de individualidade “entre quatro paredes”: “É como se fosse questão de honra não deixar de se perder nos séculos, se não o rastro dos seus dias na Terra, ao menos o dos seus artigos de consumo e órios. Sem descanso, tira o molde de uma multidão de objetos; procura capas e estojos para chinelos e relógios de bolso, para termômetros e porta-ovos, para talheres e guarda-chuvas”.513 510
ALMEIDA, Cícero Antônio F. de, VASQUEZ, Pedro Karp. Selos postais do Brasil. São Paulo: Metalivros, 2003. p. 30. 511 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charle Baudelaire... p. 43. 512 BENJAMIN, Walter. agens... p. 261. [I 7,6]. 513 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charle Baudelaire... p. 43.
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Figura 152. Abridor de envelopes. Lembrança da Great Exhibition. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford. Disponível em:
(21/07/07).
Figura 151. Lenço para souvenir, com impressão de caricaturas de estrangeiros e ingleses, dentre estes o Príncipe Albert e Joseph Paxton. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford. Disponível em:
(21/07/07).
Figura 153. Caixa para charutos. Lembrança da Great Exhibition. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford. Disponível em:
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(21/07/07).
Figura 154. Navalha Sheffield Town. Produzida por Hawcroft & Sons para a Exposição de 1851, com o propósito de demonstrar a habilidade dos artesãos da companhia. O Palácio de Cristal aparece reproduzido na lâmina. The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. p. 222
O evento da Exposição de 1851 produziu forte impacto nos contemporâneos e os impressos e souvenirs atuaram de forma simbólica na sua divulgação. Estruturas similares foram construídas em feiras de Dublin, Nova York (Figura 155), Munique e Amsterdã e sua forma, durante muito tempo, serviu de inspiração para artefatos de diversos tipos, como a gaiola que vemos reproduzida no folheto publicitário (Figura 156).
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Figura 155. Palácio de Cristal de Nova York para a Exposição da Indústria de todas as Nações. Litografia, 1853. Harry T. Peters 'America on Stone' Collection, National Museum of American History, Smithsonian Institution. Disponível em:
(2/09/07)
Figura 156. Folheto de fabricante de gaiolas. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library. Disponível em:
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A presença destes objetos e reproduções nas casas contemporâneas irradiava efeitos bem longe do Palácio de Cristal. Benjamin cita um autor alemão contemporâneo que apresenta a dimensão do sonho sugerido pelas novas possibilidades da vida material: “Eu mesmo me lembro de quando, em minha infância, a notícia do Palácio de Cristal chegou até nós na Alemanha, como as reproduções eram pregadas nas paredes de salas burguesas em longínquas cidades provincianas. Tudo aquilo que imaginávamos de antigos contos de fadas com suas princesas em caixões de cristal, com suas rainhas e elfos que habitavam casas de cristal, tudo isto se materializou... e estas impressões duraram décadas”.514
Em meio à profusão de imagens produzidas para retratar a modernidade do Palácio de Cristal há poucas evidências fotográficas. Esta tecnologia, criada em 1839, ainda não encontrava condições favoráveis de reprodução, sendo usada muitas vezes apenas como base para a criação de uma gravura. Apesar disso, apenas quatro anos depois do evento, em 1855, durante a remontagem do Palácio de Cristal em Sydenham ao sul de Londres, o fotógrafo Philip Henry Delamotte produziu importantes imagens que retratam não apenas a grandiosidade do prédio de Paxton, mas também alguns detalhes surpreendentes. As fotos que acentuam as perspectivas (Figura 157, Figura 158), ressaltam sua magnitude. A delicadeza dos
514
Julius Lessing, Das halbe Jahrhundert der Westausstellungen, Berlim, 1900, pp. 6-10 apud BENJAMIN,. agens... p. 219-220. [G 6; G 6a,1].
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ornamentos utilizados indica um esmero dentro da simplicidade (Figura 159, Figura 160) As fotografias de Delamotte apresentam uma outra dimensão do Palácio de Cristal, inclusive, em sua relação com a figura humana (Figura 159). Parece que ao expor a remontagem do edifício, com vigas de ferro espalhadas pelo chão e as estátuas ainda não posicionadas, as entranhas da construção moderna se fazem evidentes – longe dos drapeados e dos objetos excessivamente ornamentados que
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eram vistos na exibição.
Figura 157. Galeria superior. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte, impressão fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em:
Figura 158. Conjunto de esculturas. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte, imp. fotográfica, 1855. The British Library Board.
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Disponível em:
(17/03/08)
Figura 160. Detalhe da Figura 159
Figura 159. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte, impressão fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em:
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As fotografias de Delamotte ressaltam a natureza proto-moderna de um dos mais importantes prédios do século XIX (Figura 161), deixando evidente a sua influência sobre as construções e eventos posteriores. Neste contexto, é importante destacar que sua forma foi obtida a partir das necessidades apresentadas e sem vínculos históricos com estilos anteriores. No entanto, nem todos consideravam a construção uma maravilha do mundo moderno e o prédio foi muito criticado em sua própria época. Profecias macabras espalhavam ameaças: o vento poria o prédio abaixo, a vibração do movimento das pessoas destruiria a construção e a expansão do ferro, com o calor do sol, aniquilaria o empreendimento. O arquiteto e teórico Augustus Welby Northmore Pugin chamou o Palácio de Cristal de “monstro de vidro”. Para Carlyle era uma “enorme bolha de sabão” e para Ruskin uma “estrutura de pepino”515 ou ainda, apenas uma “estufa”.516 A crítica maldosa de Ruskin carregava um elemento de verdade já que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Joseph Paxton havia anteriormente construído imensas estufas para o Duque de Devonshire. Entre os arquitetos que escreviam no Journal of Design and Manufactures sobre o Palácio de Cristal em 1851, alguns se mostravam chocados com o padrão de gosto demonstrado: “a ausência de qualquer princípio de design ornamental é evidente” e “o gosto dos produtores não é educado”.517
Figura 161. O transepto central. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte, impressão fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em:
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515
Apud PEVSNER, Nicolaus. Origens da arquitetura moderna e do design. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 13. 516 http://spencer.lib.ku.edu/exhibits/greatexhibition/sydenham.htm. o em 22/7/2002 às 9:45 h. 517 Apud PEVSNER, N. Origens... p. 11.
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O final do evento foi acompanhado por uma grande discussão em relação ao que deveria ser feito com a estrutura em ferro e vidro. Alguns exaltavam a permanência do prédio no local da Exposição. Autoridades americanas sugeriam seu translado para os Estados Unidos e um arquiteto apresentou um projeto de reaproveitamento do material em uma torre de mais de 300 metros, a ser construída com o auxílio de elevadores a vapor. Em 1854, o Palácio de Cristal foi reinaugurado em Sydenham como um espaço de eventos e concertos tendo sido destruído por um incêndio em 1936. Ao tomar conhecimento do processo de transferência do prédio, John Ruskin escreveu um artigo onde criticou a apoteose do ferro e do vidro e o excesso de devoção à mecânica da construção. Para este autor, embora estas obras mereçam iração, não se trata do mesmo tipo de iração devotada à poesia e à arte.518
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As críticas não afastaram o público que comparecia em massa garantindo o lucro do investimento. Em 1851, atraídas por agens e acomodações íveis, pessoas que nunca haviam antes viajado lotaram o Palácio de Cristal. Todo mundo corria para ver a primeira Exposição Universal (Figura 162). Além disso, como mencionamos anteriormente, algumas manufaturas estimulavam a visita de seus empregados com o intuito pedagógico de ampliação dos conhecimentos práticos relacionados aos processos e materiais industriais, mas, também de forma sub-reptícia de “convencimento das virtudes do capitalismo”.519 As visitas eram incentivadas para todas as camadas da população. Para isso, de um lado, se impam restrições – bebidas alcoólicas e animais eram proibidos – e dias de preços especiais (shilling days). Os cartunistas dos jornais da época se deliciavam em exibir a iração de pessoas mais simples e de áreas rurais com o mundo novo que se abria à sua frente (Figura 163).
518
RUSKIN, John. The opening of the Crystal Palace. In: SCHARF, Aaron et al. (ed.). Industrialisation and Culture. 1830-1914. London: The Open University Press, 1970. p. 298. 519 PESAVENTO, S. op. cit., p. 120.
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Figura 162. All the World Going to See the Great Exhibition of 1851, George Cruikshank (1792-1878), 1851. Disponível em:
(3/06/07).
Figura 163. Agricultores na Exibição. In: The Illustrated London News (19 July 1851): 101. Disponível em: The Victorian Web
(22/03/08)
Estima-se que seis milhões de pessoas aram pela primeira Grande Exposição de Londres ao longo de cinco meses e meio, embora apenas 1% destes teriam vindo de outros países, predominantemente da França.520 As gravuras abaixo ilustram esta enorme movimentação. Enquanto a Figura 164 mostra uma rua de Londres apinhada de pessoas onde quase nada se vê além da multidão, a Figura 165 apresenta uma Manchester deserta. Todo mundo estava indo ver a
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grande exposição, como na gravura de George Cruikshank (Figura 162) onde um aglomerado de pessoas caminha na direção do Palácio de Cristal. O público afluía em massa às exposições para se maravilhar com as novidades do mundo dos bens:
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“A Europa se desloca para ver mercadorias”, afirma Taine em 1855.521
Figura 164. Londres em 1851. The Great Exhibition. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford. Disponível em:
(21/06/07)
Figura 165. Manchester em 1851. The Great Exhibition. John Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford. Disponível em:
(21/06/07)
520
Museum of London. World city. Did people visit the Great Exhibition? http://www.museumoflondon.org.uk/archive/exhibits/worldcity/level4.asp?i=sm&shop=5&sub=95&baseqs=i %3Dsm 521 Hippolyte Adolphe Taine (1828 - 1893), crítico e historiador francês em citação apresentada por BENJAMIN, Walter. Paris, a capital do século XIX... p. 43
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Trinta e oito anos depois, uma outra construção em ferro pré-fabricado, desta vez para a Exposição Universal de Paris em 1889, também atraiu a mesma onda de críticas. Tratava-se do projeto da Torre Eiffel, um monumento arquitetônica e simbolicamente voltado para a racionalidade e o progresso científico. Em 14 de fevereiro de 1887, o periódico Le Temps trouxe uma carta aberta assinada por diversos artistas como Charles Gounod, Victorien Sardou, Alexandre Dumas, François Coppée , Leconte de Lisle, Guy de Mauant, Sully Prudhomme, Eugène Guillaume, dentre outros.522 Este texto expressava a indignação contra a Torre Eiffel que, segundo seus signatários, ignorava o gosto e a história ses em nome de uma “inútil e monstruosa Torre Eiffel”, já batizada de “torre de Babel”. Os artistas procuravam alertar contra a construção de uma “gigantesca e negra chaminé de usina” que viria a esmagar, com seu volume bárbaro, a Notre-Dame, a Sainte-Chapelle, a Torre Saint-Jacques [...] “todos os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
nossos monumentos humilhados, todas as nossas arquiteturas diminuídas”. Na mesma publicação, Gustave Eiffel apresentou sua defesa. Em primeiro lugar, formalizou sua crença na beleza e harmonia das formas da sua construção para levantar a questão de que, na medida em que este era um projeto desenvolvido por engenheiros, acreditava-se que a beleza não seria uma preocupação. Eiffel rebatia perguntando se “nas nossas construções, ao mesmo tempo em que fazemos o sólido e o duradouro, também não nos esforçamos para fazê-las elegantes?”.523 Para Eiffel, o primeiro princípio estético da arquitetura trata da determinação de suas linhas essenciais a partir da adequação à sua destinação, no caso da Torre, sua resistência contra o vento. Eiffel prosseguia afirmando que uma vez pronta, a Torre viria a ser a mais alta estrutura construída pelo homem e que, também por isso, seria motivo de iração e nunca de vergonha como sugeriam os artistas. Para finalizar, Eiffel considera que era chegada a hora de mostrar que a França não era apenas o país do divertimento, mas também dos engenheiros e construtores que edificavam os monumentos da indústria moderna. O periódico questiona quem tem razão: “artistas ou engenheiros”? Apesar de alguns signatários terem se rendido posteriormente aos encantos da Torre, ainda pairam algumas questões sobre esta disputa. A primeira pergunta que fazemos é se realmente os artistas encontravam-se dissociados dos “avanços modernos”. 522
Le Temps. Paris, 14 février 1887.
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Haveria uma descontinuidade entre a modernização industrial e a cultura moderna? Se respondermos afirmativamente a esta primeira questão, em que medida, isto teria dificultado uma aproximação entre arte e indústria? Se considerarmos que cabe aos artistas uma forma de “antecipação” da realidade através da arte, esta divergência parece criar uma clivagem definitiva, uma separação de caminhos entre arte e “arte aplicada” onde, mais tarde, alinhou-se o design. Neste momento, no entanto, a presente questão sugere uma contradição da modernidade que ressalta a discussão sobre os contrastes que acompanham a formulação do olhar moderno, um dos motes da nossa tese.
De um lado a
eficiência da máquina, do ferro, das formas limpas e precisas. De outro, a ebulição de uma cultura fragmentada e efervescente, caótica e entrópica. O olhar moderno se constrói através dos rápidos movimentos sacádicos entre estas duas
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formulações.
4.3.1. O Brasil nas festas da modernidade Embora o Brasil tenha iniciado sua participação oficial nas Exposições Universais apenas em 1862 na Exposição de Londres524, houve uma modesta participação já na Primeira Exposição de 1851 com quatro expositores.525 Na Exposição realizada em Paris, em 1855, independente da participação oficial, o Brasil, ao lado do Paraguai e das Repúblicas do Prata, exibiu matérias-primas minerais, vegetais e animais, em uma atuação incipiente onde, segundo um membro da comissão brasileira encarregada de avaliar a exposição parisiense, “teria sido mais acertado e prudente proibir-se que se mandasse um só produto que lembrasse o nome do Brasil; ao menos não teríamos este desprazer e teríamos brilhado pela ausência”.526 Ao receber uma comunicação da exposição de objetos da indústria que aconteceria em Londres no ano de 1862, o Brasil iniciou negociações para a participação no evento. Ficou decidido que se realizariam exposições regionais preparatórias de uma exposição nacional, para só então selecionar os produtos que 523
Id. PEREIRA, M. op. cit., p. 84. 525 SCHROEDER-GUDEHUS, B. op. cit., p. 60. 524
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representariam a nação brasileira em Londres.527 A morosidade das negociações e os entraves burocráticos adiaram as exposições provinciais para novembro de 1861 e a Primeira Exposição Nacional aconteceu no mês seguinte no prédio da Escola Central do Largo de São Francisco. O evento contou com a presença da família real e a execução da Marcha da Indústria, composta especialmente pelo maestro Antonio Carlos Gomes.528 Apesar disso, lamentou-se a “quase total ausência de inventos” na Exposição Nacional do Rio de Janeiro, a primeira a ser realizada em um país em desenvolvimento. A idéia de levar o Brasil a participar das festas da modernização e do progresso aparecia como uma possibilidade de, mesmo correndo o risco de expor suas fraquezas às nações avançadas, atrair a atenção de investidores estrangeiros. De forma contraditória, pairava um desejo de mudança e inovação, lado a lado com a manutenção de um regime escravista voltado para a exportação de produtos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
agrícolas. Pesavento observa que, na medida em que a agricultura era o principal fundamento da riqueza do país, era nela que a nação investia. A cultura moderna pretendida era voltada para o desenvolvimento de base agrícola529, deste modo, a busca pela renovação tecnológica voltava-se para métodos, fabricação de instrumentos e máquinas para a agricultura. De fato, empreendimentos como a agricultura e a criação de gado eram considerados indústrias, assim como as atividades extrativas ou de coleta. À época, o sentido do termo indústria era amplo e compreendia “toda e qualquer forma de atividade humana, independente do grau de beneficiamento, do emprego de tecnologia ou das relações sociais subjacentes”.530 Deste modo, no Brasil, o desejo de melhoramento dos “processos industriais” desconsiderava questões como a divisão de tarefas e produção em massa, levando em conta a produção de café e açúcar. Além disso, o fato do Brasil contar com um reduzido mercado de mão-de-obra livre reforçou uma série de diferenças em relação às Exposições européias como, por exemplo, a preocupação em seduzir a elite local para “os novos caminhos que se abriam com o progresso técnico e que reverteriam em vantagens econômicas concretas”.531 Em outras
526
Auxiliador da Indústria Nacional, n. 23, jul. 1855 – jan. 1856, p. 320. Nota 1. apud PESAVENTO, S. op. cit., p. 97. 527 PESAVENTO, S. op. cit., p. 99. 528 Ibid., p. 100. 529 Ibid., p. 102. 530 Ibid., p. 105. 531 Ibid., p. 107.
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palavras, a participação do Brasil nas Exposições procurava, em primeiro lugar, dirigir a atenção da elite local e, em segundo lugar, atrair a participação da economia estrangeira. Das intenções educativas que permeavam as Exposições Universais, não há sinais. No Brasil, a cultura moderna era ministrada apenas às elites. A Exposição Nacional do Rio de Janeiro de 1861 não cumpriu com sucesso o seu papel de selecionar produtos para a Exposição londrina do ano seguinte. O Rio Grande do Sul, por exemplo, não conseguiu enviar os seus produtos em tempo hábil para a Exposição da Corte.532 Como observa Pesavanto, os nomes dos expositores da Exposição Nacional não remetem à manufaturas, mas às estâncias ou fazendas onde se realizavam trabalhos manuais sem fins lucrativos. De uma maneira geral, o beneficiamento destes produtos era “obra do trabalho manual e da virtualidade técnica de um artesão, integrado a uma atividade primária PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
dominante”.533 As raras exceções eram encontradas em alguma pequena manufatura de couro ou no processo de conservação de carne e, definitivamente, não foram estes tímidos esforços que marcaram a participação do Brasil na Londres de 1862. As máquinas descritas foram apresentadas em “estampas photographicas” porque não havia espaço para acomodar os artefatos no local destinado aos produtos do Brasil.534 O país se fez representar por objetos como “um quadro feito a bico de agulha sobre o fundo de um prato de porcelana branca, enfumaçado a luz de um candeeiro, feito e exposto pelo Sr. C. Schlapritz, provincia de Pernambuco” (Figura 166). Uma ilustração do estande do Brasil em Londres apresenta peles de animais, redes, chapéus e botas (Figura 167). Deste modo, frente ao avanço técnico e científico exposto pelas nações européias, é compreensível que ao Brasil coube a identificação com o “exótico”.
532
Ibid., p. 108. Ibid., p. 109. 534 Catálogo dos productos nacionaes e industriaes remetidos para a Exposição Universal de Londres. In: Recordações da Exposição Nacional de 1861. Rio de Janeiro, Confraria dos amigos do livro, 1977. p. 125 533
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Figura 166. “Quadro feito a bico de agulha...” Recordações da Exposição Nacional de 1861. Reprodução do álbum de 1861. Rio de Janeiro: Confraria dos Amigos do Livro, 1977.
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Figura 167. O Brasil na Exposição Internacional de Londres. Recordações da Exposição Nacional de 1861. Reprodução do álbum de 1861. Rio de Janeiro: Confraria dos Amigos do Livro, 1977.
Em 1873 uma outra exposição nacional foi realizada com o mesmo objetivo
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de selecionar produtos para a Exposição Universal, desta vez a ser realizada neste mesmo ano em Viena. Este evento deixou claro que mesmo a Exposição Nacional não refletia a realidade do que era produzido no país. Se, por um lado, a pequena indústria não encontrava estímulo para participar do evento, de outro lado, a maior parte dos produtos expostos jamais era encontrada no mercado e pareciam ser produzidos unicamente para a exposição.535 Neste contexto, as Exposições Universais aparentam vincular-se mais ao imaginário da indústria do que à própria indústria. As excentricidades da participação do Brasil nas Exposições Universais atingem seu ápice em 1889, na Exposição Universal de Paris. A comemoração dos cem anos da Revolução sa e de seus valores de liberdade, igualdade e fraternidade, levou o Império do Brasil, assim como as demais monarquias, à recusa em uma participação oficial. No entanto, isso não excluiu uma participação oficiosa com a iniciativa privada recebendo subsídios financeiros.536 Mas, isso não significa que a decisão de levar o Brasil à Exposição tenha sido simples. Ao contrário. De um lado, argumentava-se que esta participação seria um luxo desnecessário, envolvendo grandes gastos para um evento que privilegiava maquinarias, técnicas e produção fabril, setores incipientes no Brasil. De outro,
535
PESAVENTO, S. op. cit., p. 143. GOMES, Angela de Castro. O 15 de novembro. In: GOMES, A. C.; PANDOLFI, D. C.; ALBERTI, V. A (coord.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, DOC, 2002. p. 25. 536
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argumentos favoráveis defendiam a necessidade de fazer o país conhecido e respeitado internacionalmente, de modo a atrair investimentos estrangeiros. Desde suas primeiras participação nas primeiras Exposições, o parque fabril brasileiro havia crescido e aperfeiçoado alguns de seus processos, aproximando o país do que era considerada “civilização ocidental”.537 A participação do Brasil na Exposição Universal de 1889 tinha a pretensão de evidenciar a existência de “produtos nitidamente industriais, compatíveis com os fins do encontro internacional, e que atestassem o desenvolvimento que o país atravessava”.538 Um concurso para a escolha do pavilhão do Brasil optou por um edifico “nada exótico na sua fachada exterior”539 de inspiração espanhola. O interior era de ferro aparente e sobre ele assentava uma cúpula envidraçada com pintura interna em ouro. O Brasil instalou-se um pouco depois da abertura da Exposição no Campo de Marte, bem ao lado da Torre Eiffel. Esta proximidade, que em um primeiro PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
momento pareceu uma vantagem, acabou por tornar acanhado o pavilhão brasileiro diante da monumentalidade da Torre.540 Uma observação atenta da planta do Campo de Marte incluída no álbum de fotografias da participação do Brasil dedicado pela Comissão Geral a sua Alteza Imperial541, que hoje faz parte da Coleção Iconográfica do Museu do Itamaraty no Rio de Janeiro, nos permitiu algumas considerações. De fato, a área do pavilhão brasileiro encontra-se ao lado do pilar oeste da Torre Eiffel. A área construída e que aparece na maior parte das fotos e ilustrações (Figura 168) parece, na planta, ocupar menos de um terço do tamanho dos pavilhões do México e da Argentina que se encontram nas proximidades. Mas, há um pequeno detalhe. A área ocupada pelo Brasil expandese para além do prédio principal. Havia ainda um quiosque para degustação de café ao lado de um lago artificial mantido a 30 graus para a exibição da exótica vitória-régia e que acabou sendo o grande destaque da participação do Brasil. No canto esquerdo da foto do lago (Figura 169) vemos alguns utensílios, como louças e bules, provavelmente utilizados na degustação do café. 537
PESAVENTO, S. op. cit., p. 189. Ibid., p. 191. 539 LES MERVEILLES DE L’EXPOSITON DE 1889. Paris: Librairie Illustrée, 1890. p. 483. 540 GOMES, A. op. cit., p. 26. 541 As fotografias aqui reproduzidas foram tomadas pela autora no Palácio do Itamaraty. As manchas de envelhecimento das mesmas foram reproduzidas do mesmo modo que foram captadas. A autora optou por não realizar nenhum tipo de restauro no material, tendo usado apenas um filtro que acentuasse o contraste. No entanto, algumas fotografias que apresentavam partes muito comprometidas foram cortadas em um enquadramento que favorecesse a visualização dos itens expostos. 538
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Figura 168. Pavilhão do Brasil no Campo de Marte e Torre Eiffel. Exposição Universal de Pariz. 1889. Exposição Brazileira. Álbum da Coleção Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro.
Figura 169. Vitória Régia. Pavilhão do Brasil. Exposição Universal de Pariz. 1889. Exposição Brazileira. Álbum da Coleção Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro.
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Figura 170. Pavilhão de degustação de café. Exposição Universal de Pariz. 1889. Exposição Brazileira. Álbum da Coleção Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro.
Figura 171. Estante com compoteiras. Ao fundo, vitrine de mate e cestaria. Exposição Universal de Pariz. 1889...
Figura 172. Vitrine com itens de perfumaria. À direita, moringas e cerâmicas. Exposição Universal de Pariz...
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Figura 173. Vitrines e estantes com pedras e minerais. À direita, peles de animais e estante com compoteiras. Exposição Universal de Pariz...
Figura 174. Estante e vitrines com produtos químicos e farmacêuticos. Exposição Universal de Pariz...
Figura 175. Detalhe de estante com compoteiras. Exposição..
A presença do Brasil foi marcada por 838 expositores que receberam 579 prêmios.542 A grandeza territorial era exaltada com imponentes estátuas que representavam os rios do Império, dispostas em volta do pavilhão. Uma pequena galeria conduzia a uma coleção de orquídeas. Os três andares do prédio apresentavam, além do café, borracha, cacau, madeiras de construção e tintura, pedras minerais, prata e diamante, mate, frutas e cereais. Também se exibiam algodão, esponjas, produtos farmacêuticos, móveis, quadros e aquarelas de paisagens pitorescas do Brasil. Um enorme bloco de ferro e níquel em forma de
542
SCHROEDER-GUDEHUS, B. op. cit., p. 114.
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tartaruga reproduzia o meteorito Bendengó caído em território baiano no ano de 1784. Havia um grande esforço para realçar as manufaturas. O tabaco era apresentado em sua forma natural, mas também manufaturado. As fotografias (Figura 171 à Figura 175) mostram conservas alimentares, bebidas, perfumarias. Produtos químicos e farmacêuticos ocupavam fileiras e fileiras de potes e garrafas sugerindo uma produção em massa que, de fato, não existia. Algumas vitrines mostram meias, chapéus, livros e artigos de papelaria. Mas, a Exposição brasileira em 1889 não apresenta sinais de produtos pré-fabricados nem produzidos em massa, como também não há sinal de algo que poderia receber o nome de “design”. De uma maneira geral, a participação do Brasil aproxima-se mais do exótico, do paradisíaco e do luxuriante do que de uma nação moderna, industrial e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
progressista. Por outro lado, reflete uma cultura moderna que não se mostra homogênea, uridida por transformações lentas e indefinidas. Neste contexto, a constituição de uma cultura visual moderna soa distante do que é vivido no Brasil, situando-se de maneira bastante restrita a uma pequena parcela da população. As implicações e conseqüências desta questão mereceriam uma análise específica que foge ao escopo deste trabalho. No entanto, é importante ressaltar que, apesar da modernização ainda desenvolver-se longe do território brasileiro, é evidente a atração que produzia e que levou o Brasil a participar destas Exposições, na busca por adquirir um pouco desta dimensão moderna.
4.4. Arte e indústria – contradições Com o objetivo de valorizar a indústria, a organização da Exposição de Londres em 1851, estabeleceu uma série de regras em relação à participação da arte no evento que aponta para mudanças na própria forma de se pensar a arte. Buscava-se reforçar a ligação entre indústria e progresso e, deste modo, a arte deveria apresentar compatibilidade com este ideal. As artes visuais incluídas na mostra deveriam necessariamente apresentar um elemento cientifico, tecnológico ou industrial. Havia restrição a produtos que não apresentassem conexão com processos mecânicos.
No contexto da Exposição de 1851, as obras de arte
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deveriam demonstrar uma técnica particular ou o emprego de um novo material que justificasse a sua participação. A pintura foi deliberadamente excluída da mostra por não ser considerada “compatível com as preocupações do mundo industrial”543, à exceção de uma ou outra que atendesse a esta restrição como a aerial tinting, que corresponderia a um tipo de pintura realizada com aerógrafo ou
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spray, e que não apresenta nenhum sinal de ação da mão humana.544
Figura 176. Vista da nave leste, Palácio de Cristal, 1851. Aquarela e guache sobre papel por John Absolon (1815-95). A estátua original em bronze, de autoria de Eugène Simonis, encontra-se em frente ao Palácio Real de Bruxelas. Ao pé da cópia em gesso, vê-se pequenas esculturas em mármore do mesmo autor. Victoria and Albert Museum, London. Disponível em:
(12/4/08).
As seções devotadas à impressão e à gravura garantiam sua presença graças às inovações técnicas. As mostras relacionadas à arquitetura eram poucas e encontravam-se ligadas a estratégias de construção e ao emprego de materiais, como nas habitações populares. As esculturas eram menos uma categoria própria do que um meio de harmonização e decoração de prédios, praticamente restringindo-se as que decoravam o espaço do Palácio de Cristal545 (Figura 176). Em suma, a questão utilitária era tão proeminente em sua intenção de afastar as chamadas “artes não-utilitárias” que o comitê da Exposição de Dublin, dois anos
543
PEREIRA, Margareth Campos da Silva. A participação do Brasil nas exposições universais. Projeto: Revista brasileira de arquitetura, planejamento, desenho industrial, construção. n. 139, mar. 1991. p. 86. 544 The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. p. 61. 545 Para uma visão geral das esculturas como elemento decorativo, ver daguerreótipo da Figura 146.
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depois, resolveu rever os critérios utilizados anteriormente. Considerando a dificuldade de se negar que as belas artes poderiam ter seu próprio valor utilitário e o prazer de olhar o que é “bonito em forma e cor, ainda que não essencial à mera existência”, o comitê resolveu itir trabalhos não utilitários, “no sentido comum da palavra”.546 Apenas em 1855, na primeira Exposição Universal realizada em Paris é que o papel das belas-artes foi modificado. Procurando, ao mesmo tempo, firmar-se como um proeminente centro artístico e elevar a arte a uma posição de destaque, Paris realizou uma gigantesca exposição de arte que reuniu mais de 5.000 obras de arquitetura, escultura, gravura e pintura. O conceito de uma arte capaz de espelhar e estimular os progressos no campo do bom gosto fundamentava-se na “conexão próxima entre a melhoria do desenvolvimento das manufaturas e as belas artes”.547 Para Greenhalgh, se a Grande Exibição de 1851 serviu de padrão para os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
eventos seguintes, a partir de 1867 e até o início da Primeira Guerra, o modelo a ser seguido é parisiense548. As feiras americanas poderiam ser monumentais, mas, definitivamente, era Paris quem ditava a moda. Foi a França que demoliu a noção de um pavilhão gigantesco em favor de numerosos prédios, incluindo alguns construídos pelos países participantes. A construção do Palácio de Cristal representou um grande o na direção de uma revolução das formas: “o estilo construtivo contraposto ao estilo histórico tornou-se a palavra de ordem do movimento moderno”.549 No entanto, as linhas modernas observadas nas ilustrações e fotografias do Palácio de Cristal não encontravam eco no que era visto em seu interior. O prédio e o conteúdo da exibição parecem ter sido produzidos em períodos diferentes. Em primeiro lugar é importante mencionar que, apesar da monumentalidade sugerida pela modulação em ferro, os elementos construtivos, ao nível da visão, encontravam-se muitas vezes excessivamente “decorados”, encobertos ou disfarçados, como se buscassem ocultar a nudez da estrutura. A propósito de uma série de aquarelas pintada por Joseph Nash para o Príncipe Albert, comenta Walter Benjamin: 546
The Official Catalogue of the Great Industrial Exhibition, Dublin 1853. Dublin, 1853. apud GREENHALGH, P. op. cit., p. 13 547 Reports on the Paris Universal Exhibition, 3 Volumes, presented to both Houses of Parliamente, 1856, apud GREENHALGH, P. op. cit., p. 14 548 GREENHALGH, P. op. cit., p. 15
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“Descobre-se com espanto nessas aquarelas como se estava empenhado em decorar esse colossal espaço interior à maneira dos contos de fadas orientais, e como, ao lado dos depósitos de mercadorias sob as arcadas, os gigantescos pavilhões eram preenchidos por grupos monumentais de bronze, estátuas de mármore e chafarizes”.550
As aquarelas que integram a publicação de 1854 sobre a Exposição de 1851 em Londres ratificam a grandeza e a suntuosidade do evento, mas também o seu excesso de ornamento. Tomemos como exemplo, os drapeados que adornam o conjunto da cama na seção austríaca (Figura 177) ou que criam um ambiente para a exposição das estátuas (Figura 178). Em ambos os casos aparentam mesmo saídos de contos de fadas. As dobras do tecido parecem servir para ocultar a frieza da construção em ferro, criando um ambiente mais aconchegante. Na verdade, o sem número de objetos seriam mais do que suficiente para constituir um ambiente que se destacasse da geometria do ferro, como vemos em outra figura do mesmo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
álbum que ilustra a principal avenida da Exposição. Neste exemplo há uma sugestão de contraste entre a regularidade dos elementos construtivos do prédio (e sua perspectiva) com um grande número de objetos, incluindo uma fonte e um refletor mecânico (Figura 179). A detalhada gravura em metal (Figura 181) reproduz os mesmos artefatos a partir de um outro ângulo e de um ponto de vista mais alto. É muito provável que esta figura tenha sido produzida tomando por base uma imagem de natureza fotográfica como a destinada à visualização através do estereoscópio (Figura 180).
Figura 177. Pavilhão austríaco. Ilustração do segundo volume de Dickinson's comprehensive pictures of the Great Exhibition of 1851, com trablhados de Nash, Haghe e Roberts RA, 1854. In collection of: Science Museum Library. Disponível em:
Figura 178. Pavilhão austríaco. Ilustração do segundo volume de Dickinson's comprehensive pictures of the Great Exhibition of 1851, com trablhados de Nash, Haghe e Roberts RA, 1854. In collection of: Science Museum Library Disponível em:
(2/09/07).
(2/09/07).
549 550
BENJAMIN, Walter. agens... p. 219. [G 6; G 6a, 1]. BENJAMIN, Walter. agens... p. 212-213. [G 2a,7].
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Figura 179. Ilustração do Dickinson's comprehensive pictures of the Great Exhibition of 1851, com trablhados de Nash, Haghe e Roberts RA, 1854. Science Museum Library
Figura 180. Interior do Palácio de Cristal. Fotografia de um par de estereoscópio. Science Museum/Science & Society Picture Library. Disponível em:
(2/09/07).
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Disponível em:
(2/09/07).
Figura 181. The Great Exhibition, Main Avenue. In: History and description of the Crystal Palace, and the Exhibition of the World's Industry in 1851. Gravura em metal a partir de desenhos originais e daguerreótipos. London e New York, John Tallis and Co., 1852. Disponível em:
(3/06/07).
A questão da dessemelhança visual, formal e de estilo entre o Palácio de Cristal e os objetos exibidos não é algo que possa ser explicado de forma conclusiva principalmente porque, em nosso ponto de vista, uma cultura visual não estabelece uma equivalência temporal absoluta. Em se tratando de um período marcado por grandes mudanças técnicas capazes de produzir variações de natureza visual, o descomo coloca-se como uma possibilidade concreta. Neste contexto, Greenhalgh observa que as mudanças produzidas pelo processo de
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modernização da indústria atingiram as diversas áreas da cultura, com predomínio da arquitetura e do design, áreas onde nenhum fator do processo criativo permaneceu constante. Sejam os meios de produção, os materiais utilizados na manufatura, o número de objetos produzidos, a velocidade de produção ou o público consumidor, todos estes fatores sofreram algum tipo de modificação neste período.551 Segundo este autor, os poetas românticos ingleses podiam questionar os valores da sociedade industrial ou dos avanços científicos utilizando o mesmo tipo de prosa e versos que sempre utilizaram. Embora o conteúdo de sua arte tenha se modificado, o mesmo não ocorreu com as premissas de sua criação. A poesia pôde ser crítica sem ter que, ela própria, transformar-se. O designer não conta com esta possibilidade. De acordo com Greenhalgh, os produtos industriais não podem abarcar uma crítica sem, ao mesmo tempo, questionar o seu próprio sentido de existência.552 Este é um paradoxo que acompanha o design desde o seu PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
surgimento no início do processo de industrialização. Além disso, há uma característica que diferencia enormemente o prédio dos objetos. Como vimos, o Palácio de Cristal foi construído visando atender uma série de requisitos e funções estabelecidas por homens ligados à cultura e à arte. Neste sentido, foram utilizadas as mais avançadas tecnologias construtivas e a crítica não influiu na sua realização. Em relação aos objetos exibidos, ava-se algo muito diferente. Havia a expectativa de agradar o maior número de consumidores, apesar dos objetos não se encontrarem expostos para a venda direta. Neste contexto, podemos colocar, de um lado, os objetos e seu excesso de ornamentos - aparentemente, adequado ao gosto do público, ou do que se imagina ou imaginava conhecer dele – e de outro lado, a crítica da época em textos que discutem utilidade, adequação de materiais, a relação entre design e ornamento e a formação do bom gosto. Alguns destes textos mantêm-se ainda muito atuais e podem colaborar no desdobramento contemporâneo de questões significativas para a cultura visual, ampliando a questão da disparidade estética entre prédio e Exposição. Na Exposição de 1851, os objetos eram expostos em estandes, organizados pelos próprios fabricantes de acordo com quatro categorias que refletiam o ciclo de produção: matéria-prima, maquinaria e invenções mecânicas, manufaturas e, 551
GREENHALGH, P. op. cit., p. 142.
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por último, esculturas, modelos artísticos, mosaicos, esmaltes, etc. Os produtos industriais eram exibidos tendo em vista a possibilidade de virem a influenciar o gosto do público.553 Mas, de acordo com a opinião contemporânea de Richard Redgrave, membro da Academia Real e, posteriormente, diretor do museu de South Kensington554, os mais de 100.000 itens em exposição nem sempre refletiam exatamente o que era produzido à época, na medida em que o objetivo dos fabricantes era atrair atenção e prêmios.555 Por este motivo, muitos objetos eram protótipos de demonstração e não se mostravam comercialmente viáveis, enquanto muitos outros se propunham modelos de uma série que nem sempre chegava a existir. Apesar disso, o conjunto destas peças participa da construção de uma nova cultura visual, a partir da efervescência produtiva, em meados do século XIX, das novas possibilidades dos materiais utilizados e das funções utilitárias, estéticas e simbólicas ansiadas para estes objetos. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Neste contexto efervescente, os visitantes da Exposição eram apresentados a itens tão variados556 quanto um mobiliário de navios (cujas partes, em caso de naufrágio, se converteriam automaticamente em um salva-vidas flutuante), excêntricos como o “manequim expansível” (indicado para alfaiates e constituído por 7000 peças interligadas que manipuladas reproduziriam as medidas exatas do cliente ausente) e assustadores (ou vergonhosos) como a enorme seleção de grilhões, algemas e correntes para pernas, geralmente exportada para países da América do Sul.557 Havia também material impresso em grande quantidade, a maior parte composta por livros ligados à religião e à espiritualidade, com cópias em mais de cem idiomas. Acima de tudo, os visitantes eram confrontados com artefatos adornados em ferro, relógios ornamentais, peças de lareira, objetos de decoração, serviços de chá e de jantar, uma grande variedade de tecidos, peças em couro e em vidro, móveis, cerâmicas, trenós, carruagens, instrumentos musicais,
552
Id. REDGRAVE, Gilbert R. Manual of design. Compiled from the writings and addresses of Richard Redgrave, R. A. London: Chapman and Hall, 1890. p. 6. 554 O Museu Victoria e Albert (VAM) foi fundado como Museu de South Kensington em 1852, abrigando muitos dos objetos expostos na Exposição de 1851. É hoje considerado o maior museu de arte decorativa e design do mundo. 555 REDGRAVE, G. op. cit., p. 7. 556 The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course material by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 59-60. 557 É interessante observar um aparente contraste entre a indústria e “missão civilizadora” inglesa no seu posicionamento na luta contra a escravatura e pela abolição do comércio de escravos, demonstrado na Exposição com a exibição de esculturas de escravos algemados. Cf. PLUM, W. op. cit., p. 135. 553
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jóias e o que mais se possa imaginar.558 O catálogo oficial ilustrado foi impresso em três grossos volumes. A maioria dos objetos observados no catálogo do Art Journal559 nos parece excessivamente ornamentado e formalmente distante da construção em vidro e ferro do Palácio de Cristal. Em alguns casos, a abundância de ornamentos e o emprego de elementos da natureza (animais, flores e plantas) chegam a dificultar a nossa apreensão visual do objeto, ainda mais se considerarmos que esta rápida análise é feita a partir de gravuras da época. O estilo no ornamento seria a expressão de certa individualidade e do gosto de cada época ou nação, mesmo que sobre influência externa. Sob este ponto de vista, o texto de Ralph Nicholson Wornum, “A Exposição como uma lição de gosto”, que recebeu a premiação do Art-Journal de melhor ensaio sobre o evento, coloca que, apesar das inúmeras variedades de estilo existentes, as características PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
principais permitiam estabelecer nove variações que influenciaram a civilização européia: três antigos (egípcio, grego e romano); três da Idade Média (bizantino, sarraceno e gótico) e três modernos (renascentista, Cinquecento e Luís XIV)
560
.
Na visão historicista de Wornum, um posicionamento comum à época e que permaneceria praticamente inalterado até o final da Primeira Guerra, todos os estilos existentes seriam uma cópia ou combinação destes descritos. Em sua análise da Exposição de Londres de 1851, Wornum considera que não havia nada novo em termos de “design ornamental” e estende suas considerações sobre a inferioridade das peças inglesas – voltadas para a produção em escala – principalmente em relação às sas – mais luxuosas e, em geral, vistas como exemplo a ser seguido. A não observância à utilidade do produto, o excesso de detalhes e a irregularidade de execução também são listadas como itens problemáticos. Não temos a intenção de nos aprofundar sobre as discussões de estilo, no entanto, optamos por reproduzir aqui algumas das peças, dentre as analisadas por Wornum que se encontram no catálogo da Exposição, como forma de explicitar o contraste dos objetos expostos às formas proto-modernas do Palácio de Cristal, 558 The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course material by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 61. 559 The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970.
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como mencionado anteriormente. Assim, observamos alguns móveis austríacos que atraíram a atenção do público, dentre estes, uma estante em cujo dossel vemos esculpido um grupo de Putti (Figura 182). Também são exemplos pertinentes o candelabro em bronze (Figura 183), o espelho para toilette em prata maciça (Figura 184), as porcelanas de Sèvres (Figura 185), as peças em vidro (Figura
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186) e as rendas (Figura 187).
Figura 182. Estante. Carl Keistler, Viena. The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970.
Figura 183. Candelabro em bronze. Mr. Pott, Birmingham. The Crystal Palace… Figura 184. Espelho para toilette em prata maciça. M. Morel. The Crystal Palace…
560
WORNUM, Ralph Nicholson. The Exhibition as a Lesson in Taste. The Crystal Palace Exhibition Art Journal Issue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. p. II***.
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Figura 185. Vaso de porcelana de Sèvres. The Crystal Palace…
Figura 186. Copo de vidro. Mr. Conne, Londres. The Crystal Palace…
Figura 187. Renda. Mrs. Treadwin lacermanufacturer, Exeter. Design Mr. C. P. Slocombe. The Crystal Palace…
Preocupado com as questões relacionadas ao ornamento e a superioridade
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relativa de cada uma das nações européias, Wornum talvez tenha deixado de observar alguns itens descritos no catálogo como “novidade”, tais como as cadeiras giratórias produzidas pela American Chair Company de Nova York (Figura 188). Também ou desapercebida a importância da mesa com pé de madeira vergada criada pelo designer austríaco Michael Thonet (Figura 189). O texto do catálogo do Art Journal detalha o caráter decorativo do tampo da mesa e acrescenta que os pés foram dobrados a partir de uma peça sólida. Ninguém pareceu atentar para a estrutura criada por Thonet e que iria revolucionar a indústria de móveis, mantendo-se em evidência por muitas décadas.
Figura 188. Cadeira giratória. American Chair Company, Nova York. The Crystal Palace…
Figura 189. Mesa. Michael Thonet, Viena. The Crystal Palace…
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Nenhum dos diversos tipos de carruagens que constam do catálogo da Exposição é comentado por Wornum, mas a legenda das figuras sugere algumas observações interessantes. Sobre a carruagem americana (Figura 190), o catálogo comenta que apesar de “nossos amigos americanos demonstrarem um aparente desinteresse por pompa e ostentação, eles não são insensíveis ao luxo e ao conforto.”561 Sobre um modelo de carruagem, um veículo inglês, que de fato é “menos pomposo” que o americano, o catálogo o descreve como possuidor de linhas elegantes, leve e de construção simples, livre de ornamentos e entalhes desnecessários, além de apresentar manutenção barata e facilidade de limpeza. Observados em conjunto, estes dois exemplos nos parecem apontar para a visão que os europeus tinham sobre os americanos: práticos e, talvez, um pouco
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rústicos.
Figura 190. Carruagem. Mr. Clapp & Son, Boston, Estados Unidos. The Crystal Palace…
Figura 191. Carruagem “Light Park Phaeton”. Mrs. H. & A. Holmes, Derby, Reino Unido. The Crystal Palace…
O que chama a nossa atenção na análise tão elogiada de Wornum é o fato do crítico, que deveria ter um olhar mais “afiado” do que a maioria dos visitantes, não tenha atentado para novidades tão marcantes quanto foram a cadeira giratória e os pés de mesa em madeira curvada de Thonet. Em relação a esta questão
561
The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. p. 166.
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devemos primeiramente considerar as diferenças nos modos de olhar da época e o nosso modo atual. É possível que hoje os móveis de escritório sejam mais comuns do que eram no século XIX. Ou, há, ainda, a possibilidade que a grande discussão da época, relacionada à ornamentação, tenha conduzido a observação do crítico, “ocultando” estas peças. Estas possibilidades levantam a inexistência do olhar inocente. Em qualquer contexto, o olhar se alimenta dos registros do ouvido e da mente, da necessidade e dos preconceitos. Nada é visto em sua estrutura geral, isto é, simplesmente moderna, mas sempre coberto por uma camada de seleções, discriminações, análises e interpretações.
4.4.1. Gosto e bom gosto
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Havia à época da Exposição Universal de 1851 uma discussão sobre a questão do gosto e a possibilidade desta qualidade, ou pendor, poder ser aprendida. Neste contexto, Ralph Nicholson Wornum discute como as manufaturas, presentes à Exposição, poderiam atuar no desenvolvimento do bom gosto.562 Partindo da questão do ornamento, Wornum estabelece que este se coloca sob o domínio da visualidade: “o ornamento é uma necessidade da mente que encontra gratificação a partir do olhar”. Em 1851, o bom gosto era discutido no seio da profusão de formas exuberantemente decoradas. Para Greenhalgh, a inobservância a demandas de natureza simbólica levou a equívocos em relação à compreensão da nova estética industrial como uma simples questão de gosto, estabelecendo uma correlação entre a produção mecânica e a feiúra das formas.563 Neste contexto, o bom gosto era uma questão a ser estimulada, algo que deveria ser ensinado juntamente com a maestria artesanal.564 Comentando a tendência observada na Exposição de 1851 para a utilização de ornamentos baseados em elementos naturalísticos, Richard Redgrave chega a afirmar a importância de se ensinar o “modo correto de ver e de utilizar as formas da natureza em representações”.565 O “modo correto” de ver encontrava-se diretamente relacionado à simetria e à geometria encontradas na
562
WORNUM, R. op. cit., p. I***. GREENHALGH, P. op. cit., p. 144. 564 REDGRAVE, G. op. cit., p. 17. 565 Ibid., p. 18. 563
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natureza e às restrições ao ornamento, exemplificadas pelos pequenos detalhes observados na vida natural, como por exemplo, nos pontos salientes que criam contraste com as folhagens. Deste modo, para Redgrave, o propósito de cada objeto ou edifício deveria ser sempre a primeira coisa a ser considerada: “a utilidade sempre precedendo o ornamento”.566 Além disso, considera Redgrave, a sua época era a dos novos materiais e processos para os quais tornava-se necessário um novo design – mais consistente e apropriado para cada material.567 O crítico inglês procura deixar claro que design e ornamento são coisas distintas. “Design” inclui construção e ornamento, sendo que este último deve ser alcançado naturalmente a partir do emprego apropriado de materiais e da decoração. “Design” relaciona-se com a construção de um objeto para uso ou apreciação estética, compreendendo, deste modo, também a ornamentação. “Ornamento” implica apenas na decoração de um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
objeto construído anteriormente. Assim, o ornamento será sempre secundário. Do contrário, o objeto não seria um trabalho ornamentado, mas um mero ornamento.568 Na compreensão desta diferenciação se encontraria o caminho para o bom gosto.569 A discussão sobre o ornamento na indústria não se restringiu apenas ao período da Exposição de 1851, mas estendeu-se até o final do século, fundamentando o movimento Arts and Crafts no final do século XIX e, depois, já no início do século XX, com o grito de guerra, “ornamento e crime”.570 Mas, há um importante precedente anterior, geralmente relegado pelos estudos históricos: o esetilo Biedermeier. O Biedermeier floresceu nos países de língua alemã a partir de 1815, ano do Congresso de Viena que pôs fim às guerras napoleônicas até 1848 e o início das revoluções européias. Sua estética, que pode ser observada em móveis construídos a partir 1818571, apresenta um ideal de beleza que valoriza a simplicidade e a qualidade do material utilizado, realçado pela ausência de ornamentos. O
566
Ibid., p. 36. Ibid., p. 34. 568 Ibid., p. 56. 569 REDGRAVE, Gilbert R. Manual of design. Compiled from the writings and addresses of Richard Redgrave, R. A. London: Chapman and Hall, 1890. p. 38. 570 “Ornamento e crime” é um texto de 1908 escrito por Adolf Loos que considera o ornamento incompatível com a evolução cultural. LOOS, Adolf. Ornamento e Crime. Lisboa: Edições Cotovia, 2004. pp. 223-234. 571 OTTOMEYER, H. ; ALBRECHT, K. A.; WINTERS, Laurie. Biedermeyer. The invention of simplicity. Milwaukee, Vienna, Berlin: Hatje Cantz Publishers, 2006. p. 52 567
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Biedermeier foi desenvolvido até 1848 em diversas outras áreas além do mobiliário: desenho de superfície, pinturas, objetos em vidro, prata, porcelana e cerâmica. Mas, enquanto as pinturas detalhadas de paisagens e de personagens com rostos rosados não causam surpresa, os móveis, utensílios, padrões de tecido e papéis de parede, parecem muito distante da idéia que se tem das formas da primeira metade do século XIX, predominantemente do estilo Império e do que se expôs no Palácio de Cristal. Onde foram parar o rebuscamento e o excesso de detalhes que escondiam os veios da madeira? Como explicar a geometria e a simplicidade das formas em objetos diversos como espelhos, cadeiras, sofás, bules
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e talheres?
Figura 193. Settee. Áustria, circa 1820. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 133.
Figura 192. Espelho. Viena, 1825. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 106
Figura 194. Caixas de prata. Áustria, circa 1803. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 235
A primeira utilização do termo aparece em 1855, quando já não se produziam mais obras neste estilo. O termo “Biedermeier” tem origem em um personagem ficcional de uma revista satírica de Munique, Weiland Gottlieb Biedermaier. A expressão vem a ser uma corruptela do que pode ser traduzido como “homem comum”: “Bieder” significa convencional e “Maier” ou “Meyer” se encontram entre os sobrenomes comuns de língua alemã. É interessante observar a sugestão depreciativa produzida por esta associação e que pode explicar, em parte, a aura mítica que ligou este estilo à classe média ascendente durante todo o século XX. No entanto, foi apenas no final do século XIX que o termo “Biedermeier” ou a ser utilizado para nomear o estilo de décadas adas. Somente na década de 1980 é que surgiram estudos que contestavam a
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noção de que a arte Biedermeier seria voltada para a classe média e, por isso, realizada rapidamente e com baixo custo.572 Ao contrário, suas peças foram encomendadas por membros da corte e da aristocracia e apresentam, na sua pureza formal, uma simplicidade refinada. Segundo Ottomeyer, o culto da simplicidade desenvolveu-se à época como princípio de beleza e em contraste ao estilo luxuoso do século XVIII.573 Este ideal estético de refinamento marca também o momento de ascensão de uma cultura ligada à domesticidade. Os espaços domésticos começaram a ser vistos como lugar de refúgio e eixo da vida pessoal e familiar. “O século XIX, como nenhum outro, tinha uma fixação pela moradia”.574 O Biedermeier é um estilo voltado para a casa e o individualismo do lar em oposição
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aos espaços coletivos ou públicos.
Figura 196. Sofá. Viena, 1825-1830. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 136.
Figura 195. Pintura de Stephanie von Fahnenberg. Living Room de Alexander von Fahnenberg at Wilhelmstrasse 69. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 155.
Figura 197. Cadeira. Áustria, cerca de 1820. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 128.
No entanto, a existência de uma classe média ascendente, crescentemente voltada para o doméstico em oposição aos espaços coletivos ou públicos, não representa uma prova de que o Biedermeier seja um estilo “da burguesia”. O fato é que embora a burguesia vienense ganhasse força ao longo da primeira metade do século XIX, a corte e a aristocracia continuavam a ditar o tom dominante na vida cultural e social.575 A associação entre o estilo Biedermeier e a burguesia ascendente é fruto provável da visão posterior dos valores burgueses. De fato,
572
Estes estudos foram realizados por Christian Witt-Dörring e Hans Ottomeyer, enquanto trabalhavam de forma independente, respectivamente, em Viena e Munique. Cf. OTTOMEYER, H.op. cit. p. 37. 573 Ibid. p. 83 574 BENJAMIN, Walter. agens… p. 225. [I 4,4]. 575 GODSEY, apud OTTOMEYER, H.op. cit. p. 62.
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refletem mudanças de valores no mundo aristocrático e sua busca pela separação entre as esferas pública e privada. O estilo decorativo Império abriu espaço para a simplicidade do Biedermeier na esfera privada. A evidência desta separação em ambientes da aristocracia pode ser confirmada através de pinturas (Zimmerbilder) que retratam quartos e outros ambientes domésticos a partir de 1820. A busca da aristocracia por espaços domésticos, praticidade e informalidade familiar a a coincidir, a partir de determinado ponto, com a recém-enriquecida classe ligada ao comércio. Vale ainda lembrar que recentes estudos apresentam provas de encomendas realizadas pela aristocracia vienense, como por exemplo, o Arquiduque Charles que por volta de 1822 encomendou ao jovem Josef
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Danha a modernização de seu palácio.
Figura 198. Padrões de cadeiras. Copenhagen, 1826. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 143
Danha foi o mais importante designer e produtor de móveis no estilo Biedermeier e sua fábrica, em Viena, chegou a contar com 350 empregados. A empresa de Josef Danha obteve permissão para produzir móveis a partir de 1814 e, deste ano até 1830, os seus clientes eram das classes mais altas, predominantemente membros da família imperial austríaca. Logo Danha ou a produzir móveis e objetos segundo normas e padrões estandardizados, e não mais apenas sob encomenda, seguindo o conceito de que a decoração é geralmente completada ao longo de anos e que, por este motivo, os clientes retornam para comprar peças suplementares. Deste modo, também a burguesia ou a constituir sua clientela, adquirindo predominantemente móveis no estilo Biedermeier. Ao lado da grande variedade de modelos, a fabricação das peças de Danha era bem documentada, existindo cerca de 2500 desenhos técnicos
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preservados, ordenados de acordo com o tipo de móvel, como em um catálogo. Graças a estes desenhos, muitas formas do período puderam ser recuperadas. A simplicidade das formas e a utilização de elementos geométricos, característicos do Biedermeier praticamente desapareceram do design da Europa Central após as três primeiras décadas do século XIX, para ressurgir na modernidade de 1900. Mas, ao contrário do espírito dos modernos, o estilo Biedermeier sempre esteve voltado para a sua própria época. A simplicidade formal de sua linguagem dirigia-se à vida cotidiana e não a um modelo utópico de mundo melhor, como sonhavam os modernos, e nem para o ado aristocrático, como se colocava o estilo Império, seu predecessor e contemporâneo, considerado
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como o representante do estilo decorativo oficial da época.
Figura 199. Cadeiras. Viena, 1825-1835. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 122
Figura 200. Cadeira em estilo Biedermeier fabricado, provavelmente por Josef Danha. Hofmobiliendepot. Möbel Museum Wien. Foto da autora. Arquivo pessoal.
Figura 201. Conjunto em estilo Biedermeier fabricado, provavelmente por Josef Danha. Hofmobiliendepot. Möbel Museum Wien. Foto da autora. Arquivo pessoal.
Mas, se as formas encontradas no estilo Biedermeier podem ser consideradas proto-modernas, foi somente com a modernidade vienense, na virada do século XIX para o XX, que elas foram redescobertas. Apesar de toda sua exuberância cultural, Viena recebia influência direta de movimentos que aconteciam em outros pontos da Europa. O movimento inglês Arts and Crafts exerceu forte ascendência através da sua dimensão moralizante que enfatizava a questão da dignidade do indivíduo e do trabalho. Assim, sob a exaltação de valores pré-industriais instaurou-se o desejo de eliminar a separação de uma arte mais elevada e criativa das artes aplicadas, com o conseqüente resgate dos métodos manuais na produção. A Secessão, fundada por dezenove artistas,
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dentre eles Gustav Klimt, Koloman Moser e o arquiteto Josef Hoffman, encarava como prioritária esta união das artes que, em última instância, mantinha a tradição aristocrática e seu desejo por luxuosos objetos artesanais. Deste modo, observa-se uma conexão seqüencial entre a Secessão e a Wiener Werkstätte (Oficinas de Viena), fundada em 1903 por Josef Hoffmann e Koloman Moser, então professores da Vienna Kunstgewerbeschule (Escola de Artes Aplicadas). A companhia estabeleceu o padrão da nova arte vienense através da produção e
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venda de modernos artigos têxteis, móveis e, eventualmente, roupas.576
Figura 202. Fachada do prédio da Secessão, projetado em 1898 por Josef Olbrich, com a inscrição Der Zeit ihre Kunst. Der Kunst ihre Freiheit (“À época sua arte, à arte sua liberdade”). Foto da autora. Arquivo pessoal.
Figura 203. Escrivaninha.Viena, cerca de 1850. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 84.
Na Secessão e na Wiener Werkstätte, a renovação era perseguida através da forma, e não de seu conteúdo ou função - de maneira diametralmente oposta ao que era praticado pelos modernistas Adolf Loos e Otto Wagner.577 Para estes arquitetos, o senso estético era definido pela função. Segundo Wagner, “o que não é prático, não pode ser bonito”.578 Loos, que embora tenha sido atuante na arquitetura vienense, obteve um maior reconhecimento através dos seus textos 576
HOUZE, Rebecca. From Wiener Kunst im Hause to the Wiener Werkstätte: Marketing Domesticity with Fashionable Interior Design. In: Design Issues: Massachusetts Institute of Technology. Volume 18, Number 1 Winter 2002. p. 1. 577 OTTOMEYER, H. op. cit. p. 63 578 A frase completa, de 1894, é "O único ponto de partida possível para a criação é a vida moderna. Todas as formas devem estar em harmonia com as novas exigências do nosso tempo. Nada que não seja prático poderá ser belo”.
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reflexivos onde criticava acidamente o excesso de decoração do design vienense e os produtos da Secessão. Um dos seus textos mais importantes, Ornamento e Crime publicado em 1908, tornou-se um manifesto cultural do modernismo. Apesar da rivalidade que apartava a obra destes designers, credita-se a eles a primeira redescoberta do Biedermeier por volta de 1900, que veio a estabelecer nas origens do ideal burguês de funcionalidade os princípios estéticos da modernidade.579 Otto Wagner e seus alunos de então, dentre estes Josef Hoffmann e Josef Olbrich, faziam uso do estilo Biedermeier por sua simplicidade formal e linhas limpas, assim como sua associação com a naturalidade da vida doméstica. De qualquer forma, o resgate do Biedemeier atendeu à busca por uma expressão nacional (austríaca) com características próprias que a distanciasse dos Arts and Crafts ingleses, cujos móveis foram ostensivamente apresentados na Exposição Jubilar de 1898 em Viena.580 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Nesta parte do trabalho observamos as contradições entre as formas protomodernas da construção do Palácio de Cristal e os objetos excessivamente ornamentados expostos em seu interior. A existência de estilos tão diferentes e a variação na própria compreensão do sentido do “bom gosto” observada no século XIX apontam para a coexistência de diversos modos de olhar em um mesmo período.
4.4.2. Verdades e mentiras do valor e da aparência A maior parte dos produtos apresentados na Exposição de 1851 carregava um excesso de ornamento que, na opinião de Richard Redgrave, os fazia assemelhar-se a bolos excessivamente decorados, não para serem consumidos, mas para chamar a atenção dos consumidores.581 Aparentemente havia uma questão simbólica que fazia com que a classe média e as classes trabalhadoras dessem preferência aos produtos excessivamente decorados e coloridos por considerarem serem estes representativos do gosto de uma camada superior. Para http://www.museuhistoriconacional.com.br/mh-e-401.htm - o em 17/5/2006 579 A sugestão de que Loos, Moser e Hoffmann acreditaram ter descoberto o ideal burguês de funcionalidade na simplicidade do estilo de quase um século atrás, é encontrada no texto introdutório do da exposição “Biedermeier. The Invention of Simplicity”, realizada no Museu Albertina de Viena em 2007. 580 Ver a crítica de Loos à exposição realizada em homenagem aos 50 anos de governo do Imperador Francisco José. LOOS, Adolf. Ornamento e crime. Lisboa: Edições Cotovia, 2004. p. 24-33.
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a indústria, o excesso de ornamento não era algo problemático, na medida em que não implicava em aumento de custos. Se um conjunto de cutelaria demandava meses de trabalho de um ourives, aumentando o custo de acordo com a complexidade das peças, o oposto se ava com as peças moldadas pelo processo da galvanoplastia.582 Neste caso, o custo não aumentava pelo excesso de detalhes, ao contrário, poderia ser menor na medida em que os objetos decorados utilizam menos matéria prima do que as peças lisas. Esta avaliação em relação ao ornamento nos leva a rever com atenção o conceito desenvolvido por Thorstein Veblen em 1899 no texto Pecuniary Canons of Taste.583 Veblen aponta para uma ligação intrínseca entre a estética e o valor de um objeto: quanto mais ostensivamente caro um produto possa parecer, ainda que menos adaptado ao uso, mais ele teria a preferência dos consumidores. Ao analisarmos o catálogo da Exposição Universal de Londres publicado pelo Art PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Journal, observamos que todos os objetos reproduzidos estabelecem uma profunda associação simbólica com a aristocracia européia ao mesmo tempo em que correspondem ao retrato da produção industrial da época. Em outras palavras, embora a maioria dos objetos produzidos dentro do sistema industrial alcançasse custos menores, o que se vendia era a aparência de produtos caros e rebuscados. Até aqui, as evidências parecem ajustar-se ao pensamento de Veblen: as pessoas dariam preferência aos objetos excessivamente decorados que em seu imaginário corresponderiam ao que era utilizado pela aristocracia e, portanto, teriam aparência de produtos caros. É importante destacar que a primazia seria dada pela aparência de valor, que não necessariamente corresponderia ao valor real. A questão complica-se quando Veblen sugere a valorização de pequenas imperfeições como evidência de um objeto produzido artesanalmente. Como vimos, o progresso técnico à época da Exposição de 1851 já permitia a produção em massa de produtos com ornamentos extremamente detalhados, em um nível que já não seria possível – devido ao alto custo – de forma artesanal. Acontece que, muitos destes objetos produzidos industrialmente necessitavam de um acabamento manual.584 Deste modo, o artesão continuava sendo incluído na
581
REDGRAVE, G. op. cit., p. 7. GREENHALGH, P. op. cit., p. 143. 583 VEBLEN, Thorstein. The theory of the leisure class. New York: Penguin Books, [1899] 1994. p. 115-166. 584 The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course material by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 28. 582
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produção, embora de outra forma, não mais produzindo o objeto do início ao fim. Neste contexto, as imperfeições do objeto produzido manualmente, de que fala Veblen, além de não prestar-se como garantia de um produto totalmente artesanal, parece mais corresponder aos desejos de uma cultura aristocrática que vinha sendo acuada pela ascensão de uma nova cultura, a cultura moderna. Entenda-se aqui que as aspirações aristocráticas não se referem exatamente aos desejos de galgar uma determinada classe social, mas a uma condição simbólica que relaciona gostos, anseios e padrões a um ideal almejado. É no contexto deste jogo simbólico que se colocam questões relacionadas ao emprego de materiais que, apesar de não serem exatamente novos, utilizavam uma mecânica de produção capaz de alcançar resultados muito diferenciados. Dentre os materiais identificados nos objetos da Exposição de 1851 encontram-se a gutapercha, o papier-mâché e o próprio ferro. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
A guta-percha é uma espécie de látex assemelhado à borracha, mas sem a sua elasticidade, obtida a partir da seiva da Isonandra Gutta, árvore nativa do arquipélago malaio. Extremamente versátil, seu emprego se estendeu da manufatura de recipientes e barcos a puxadores de porta, encadernação de livros e elementos decorativos. Extremamente moldável com o calor, transforma-se em um objeto rígido com o resfriamento, quando então pode receber diversos tipos de acabamento. Deste modo, é capaz de reproduzir peças, simulando diferentes materiais como madeira entalhada, ferro fundido e metal, a partir de moldes obtidos por eletrotipia. Um objeto em guta-percha que simulasse a madeira entalhada, usualmente, era muito mais barato do que a mesma peça em madeira. Na Figura 204 vemos a gravura de um móvel exposto em 1851, um console composto por mesa e espelho. A figura nos permite observar os detalhes ornamentais criados com a guta-percha: na moldura uma composição de frutas, flores e folhas, enquanto os painéis da mesa apresentam escudos antigos. No entanto, a gravura não é capaz de demonstrar as características do material utilizado como as fotografias de objetos produzidos no século XIX também em guta-percha (Figura 205; Figura 206). Estas peças demonstram a plasticidade do material, o detalhamento dos elementos decorativos em relevo e sua capacidade de simular outros materiais, como também sua possibilidade reprodutiva: a partir de um objeto original, podiam se produzir inúmeras outras cópias. Deste modo, à época da Exposição de 1851, praticamente todos os ramos da indústria inglesa
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haviam encontrado alguma utilidade para a guta-percha. O uso predatório e em larga escala deste recurso natural quase o levou à extinção, inviabilizando a utilização comercial em finais do século XIX.
Figura 205. C. Sharps 4 calibre 22, primeira patente datada de 1859. O cabo é de guttapercha. Disponível em:
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(11/04/08).
Figura 204. Console com mesa e espelho. Guttapercha Company, Londres. The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. p. 222.
Figura 206. Par de tinteiros em guta-percha. França, 1860-1880. Disponível em:
(11/04/08).
Outro material que se mostra com destaque na Exposição de 1851 é o papier-mâché, utilizado desde o século XVIII, mas que sofreu um grande impulso a partir do emprego das prensas a vapor. Entre seus atributos, encontram-se a robustez, durabilidade, versatilidade, extrema leveza e facilidade de limpeza. Sua enorme plasticidade permitiu o emprego em inúmeros produtos e ornamentos produzidos em massa com baixo custo. Assim como a guta-percha, era capaz de simular outros materiais. Com o acabamento adequado, uma peça em papiermâché poderia sugerir madeira trabalhada, metal ou gesso. Um exemplo de destaque do papier-mâché na Exposição de 1851 é a poltrona com o sugestivo nome de Day Dreamer (Figura 207). A descrição da peça no catálogo oficial exalta os significados simbólicos dos elementos decorativos: as figuras aladas
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representam sonhos alegres; o duende Puck mostra-se adormecido abaixo do braço da poltrona, enquanto a esperança é representada pela figura do sol na parte de baixo do assento.585 Infelizmente, a reprodução em gravura é insuficiente para que possamos imaginar uma peça de mobiliário neste material. Exemplos contemporâneos reproduzidos fotograficamente são mais representativos das características do papier-mâché, ilustrando a variedade de emprego e acabamento. Na Figura 208 podemos ver os detalhes de relevo e pintura de uma cadeira que à primeira vista poderia ser percebida como produzida em madeira, assim como a caixa da Figura 210, um exemplo de item utilitário doméstico produzido em grande escala com este material. Já o pote para folhas de chá (Figura 209) aparenta-se à porcelana pintada. Em todos os exemplos observa-se um grande apuro no acabamento, no brilho e na pintura. Todas as peças foram produzidas pela manufatura Jennens & Bettridge de Birmingham que participou da Exposição PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
de 1851 com outros produtos além da poltrona Day Dreamer. A delicadeza do acabamento das peças nos permite compreender a sua exibição dentro de vitrines no Palácio de Cristal. Na aquarela de Pidgeon (Figura 211), vemos uma vitrine poligonal, no canto direito da imagem, que guarda objetos em papier-mâché da manufatura Spiers & Son de Oxford. Esta forma de exibição confirma a idéia de uma mostra “apenas para os olhos” onde o público não tinha a possibilidade de tocar os objetos de uso diário, exibidos como obras de arte da indústria.
585
The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course material by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 28.
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Figura 207. Day Dreamer. Poltrona em papiermâché. Design H. Fitz Cook. Manufatura Jennings and Bettridge, Belgrave Square and Birmingham. The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. p. xi.
Figura 208. Detalhe de cadeira em papiermâché com pintura japonesa feita sobre madeira. Manufatura Jennens & Bettridge, Birmingham, Inglaterra. Ca. 1850. Victoria and Albert Museum, London. Disponível em:
(12/04/08).
Figura 209. Pote para chá. Tea Caddy. Papiermâché. Manufatura Jennens & Bettridge, Birmingham, Inglaterra. 1851. Victoria and Albert Museum, London. Disponível em:
Figura 210. Caixa para trabalhos manuais. Papier-mâché. Manufatura Jennens & Bettridge, Birmingham, Inglaterra. Ca. 1850. Victoria and Albert Museum, London. Disponível em:
(12/04/08).
(12/04/08).
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Figura 211. Vista da nave oeste, interior do Palácio de Cristal, 1851. Aquarela e guache sobre papel de Henry Clarke Pidgeon (1807-80). Victoria and Albert Museum, London. Disponível em:
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(12/04/08).
A possibilidade de se obter de forma barata uma duplicata exata de um objeto esmeradamente trabalhado em madeira assume ares de falsificação no pensamento de John Ruskin. Para Ruskin é fundamental que qualquer trabalho saiba extrair as peculiaridades do material escolhido. Em um texto de 1859, Ruskin sugere que “quando não se desejam as qualidades da substância empregada, deveria se empregar uma outra. [...] Se você não quer massa e solidez, não utilize o mármore. Se você quer leveza, escolha a madeira. Se quiser liberdade, use o gesso. Se quiser ductilidade, escolha o vidro. Não tente esculpir penas, árvores, redes ou espuma em mármore. Antes, use-a para esculpir membros brancos e peitos largos”.586 Mas, os tempos de meados do século sugeriam outros caminhos e Ruskin reconhece que estes princípios, por ele apresentados, são diretamente contrariados por “nós modernos”.587 De fato, o que parecia estar acontecendo é que, com o surgimento de novos materiais e suas combinações, novos conceitos de utilização de materiais iriam se impor sem limitações para a inventividade. A questão da simulação de um material por outro aparece em um texto de Benjamin como uma característica dos primórdios da técnica:
586 587
RUSKIN, John. A economia política da arte. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004. p. 126-127. Id.
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“Cada industrial imitava o material e a forma do outro, imaginando ter realizado um milagre de bom gosto se conseguisse fabricar xícaras de porcelana como se feitas por um toneleiro, copos parecendo porcelana, jóias de ouro lembrando correias de couro, mesas de ferro imitando vime etc. Nesta arena lançava-se também o confeiteiro, esquecendo totalmente o domínio próprio e os critérios de sua arte, e tentando ascender a escultor e arquiteto”. Jacob Falke, Geschichte des modernen Geschmacks, p. 380. Essa falta de critérios advinha, em parte, da abundância de procedimentos técnicos e de novos materiais com os quais fomos presenteados da noite para o dia. À medida que se tentava adquirir uma familiaridade mais profunda com eles, vieram a ocorrer desacertos e experimentos malogrados. Por outro lado, essas tentativas são os testemunhos genuínos do quanto a produção técnica em seus primórdios estava mergulhada em sonhos. (Também a técnica, e não só a arquitetura, é em certas fases o testemunho de um sonho coletivo.)”.588
A abundância de novas técnicas surgidas em um curto espaço de tempo pode ter sido, como aponta Benjamin, responsável por alguns “desacertos”. No entanto, não resta dúvida de que a espiral da técnica aliada à idéia de progresso,
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constituiu-se na matéria prima dos mais diversos sonhos, principalmente o sonho de uma vida melhor graças às novas possibilidades materiais distribuídas de forma mais ampla. Em relação à questão específica dos simulacros gerados pelos diversos materiais não há como precisar a recepção do público, mas é possível imaginar como pode ter sido intrigante o conhecimento de que a aparência de um determinado material não correspondia, de fato, à sua verdade. Neste jogo, o homem coloca-se como senhor, capaz de manipular o mundo e sua própria percepção dos objetos à sua volta.
Algumas das tecnologias que, no século XIX, permitiam a simulação de um material por outro, também ressaltam outra questão importante: a da reprodutibilidade da obra de arte. Cópias de obras de arte e de esculturas eram empregadas pelos incas no Peru, antes da chegada do europeu ao continente americano (Figura 212). No entanto, os processos industriais trouxeram novas possibilidades de reprodução de produtos e imagens em quantidades antes impensadas. Utilizando a eletrotipia ou galvanotipia, modelos da natureza podiam ser exatamente duplicados em um processo que se colocava para a escultura do mesmo modo que a fotografia para a pintura. Trabalhos em madeira entalhada podiam ser reproduzidos tornando-se “indistinguíveis” de peças entalhadas pela ação humana e, ainda que se fizesse necessário o acabamento manual, soava mais 588
BENJAMIN, Walter. agens... p. 191. [F 1a,2].
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interessante adquirir uma peça barata com detalhes produzidos industrialmente do que uma peça desinteressante produzida artesanalmente e pelo mesmo valor.
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Figura 212. Figura e molde em barro. Museu Nacional de Antropologia, Arqueologia e História. Lima, Peru. Arquivo Pessoal.
Deste modo, observa-se que a invenção da fotografia como técnica de reprodução de imagens não consistiu um caso isolado. Na verdade, a divulgação de sua descoberta em 1839 deu-se em um momento onde diversas outras invenções eram tornadas públicas, algumas para desaparecer, em seguida, ando a constituir conhecimento básico para desenvolvimentos posteriores e, deste modo, tornando-se obsoletas. A idéia de que os processos de reprodução gráfica aproximavam a arte utilitária do público é amplamente reforçada pela crescente tiragem dos jornais ilustrados que no caso do Ilustrated London News alcançou 60.000 exemplares em 1850.589 John Ruskin, ao voltar-se para uma arte que se mostrassse edificante, questionava em que medida a arte barata reproduzida em massa não estaria criando apenas uma arte efêmera e descartável mas, também, uma sensibilidade efêmera.590 Fazendo referência à divulgação de ilustrações em periódicos como o Ilustrated London News, Ruskin afirma que um bom gravado em madeira por um shilling vale mais do que doze gravados de má qualidade por um penny cada. Além disso, para Ruskin, a quantidade era por si só uma objeção. Muitas coisas, mesmo boas coisas, já seriam por si só uma forma de corrupção da percepção. 589
The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course material by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 93.
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Muitas coisas de má qualidade seriam tanto pior. Neste sentido, Ruskin discordava de que uma arte barata deveria ser posta ao alcance de todos591 embora, paradoxalmente, considerava que a arte não deveria ser mais uma prerrogativa dos privilegiados.592 Para ele a arte não poderá ser excessivamente barata, na medida em que “a quantidade de prazer que se pode receber de um certo trabalho, depende da quantidade de energia mental que se pode depositar sobre ele”.593 Com isso ele queria dizer que a nossa capacidade de apreciar uma obra de arte diminuía na medida em que este prazer tivesse que ser compartilhado por muitas obras, “fragmentos partidos de irações”.594 Deste modo, até mesmo uma boa obra de arte deixa de ser boa se ela tiver que ser usufruída sem pausa, em excesso. O posicionamento de Ruskin assume ares proféticos do debate sobre a Indústria Cultural desenvolvido quase um século depois, quando Adorno e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Horkheimer propõem-se a expor a mitificação das massas afirmando que sob o poder do monopólio econômico, toda cultura de massa é idêntica na medida em que se constitui fundamentalmente em um negócio.595 Deste modo, todo produto cultural seria criado segundo um modo onde as cifras se sobrepõem ao social. A cultura, transformada em objeto a ser consumido, acabaria por transformar o consumidor em objeto – infantilizado, ivo e acrítico - caracterizando uma forma autoritária e vertical de expansão da cultura. Também Walter Benjamin abordou esta questão por outro viés em seu conhecido texto A obra de arte na época sua reprodutibilidade técnica. Benjamin considerava que a reprodução técnica levantava a possibilidade de democratização na medida em que modificava a relação da massa com a arte. Discutindo a recepção da pintura e do cinema, Benjamin considerava que o senso crítico era favorecido pela “ligação direta e interna entre o prazer de ver e sentir, por um lado, e a atitude do especialista, por outro”,596 desde que respeitadas as
590 RUSKIN, John. Lecture in Manchester, 1857. Apud The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course material by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 93. 591 The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry…p. 93. 592 Ibid., p. 106. 593 Ibid., p. 93. 594 Ibid., p. 93. 595 ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 114. 596 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 187-188.
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especificidades técnicas. Benjamin, às vésperas da Segunda Guerra, considerava a massa como a matriz da qual emana “toda uma atitude nova com relação à obra de arte. A quantidade converteu-se em qualidade. O número substancialmente maior de participantes produziu um novo modo de participação”.597 Outro lado da questão da reprodutibilidade que era colocada e igualmente, ainda hoje se coloca, é o tema da divisão do trabalho. Os periódicos ilustrados, como o Illustrated London News, eram verdadeiras fábricas de imagens. Isso também não era exatamente novo, na medida em que Michelangelo na pintura da Capela Sistina contou com o trabalho de diversos ajudantes. Mas, no caso das gravuras produzidas no século XIX a divisão de trabalho levantava dúvidas em relação à uniformidade de estilo do gravado. Na Inglaterra, a maioria dos gravadores não assinava o seu trabalho, ao contrário do que acontecia na França, e como uma única ilustração era dividida em diversos blocos de madeira, nem todos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
tinham a noção do todo. No entanto, o fato de trabalharem juntos e de forma acelerada, compartilhando o mesmo ambiente cultural fazia com que um estilo semelhante fosse mantido. 1835-1845: “Não podemos esquecer... que a produção em grande escala, que ocorreu naquela época no setor das gravuras em madeira, conduziu-a muito rapidamente a uma forma de produção industrial. Um dos gravadores de uma fábrica se encarregava só das cabeças ou dos corpos; outro, dos menos habilidosos, ou um dos aprendizes, fazia os órios, os cenários de fundo etc. Com tal divisão de trabalho, não era possível alcançar uma uniformidade”. Eduard Fuchs, Honoré Daumier: Holzschnitte1833-1870, Munique, 1918, p. 16.598
Nesta parte do capítulo em que analisamos como o modo de olhar moderno serviu-se de uma pedagogia de divulgação, observamos duas importantes questões paralelas que influenciaram diretamente a construção deste olhar: a produção em massa e o trabalho visual de caráter coletivo. A divisão do trabalho, no caso da produção de gravuras para a imprensa diária, indica uma forma sinedótica de compreensão da execução da obra, na medida em que, ao trabalhar sobre determinada parte, não se pode perder a “visualização” do todo. Estendendo este raciocínio, podemos pensar que a compreensão na participação de um projeto mais amplo, mostrava-se condição essencial para que a expressão visual individual mantivesse coerência com o estilo particular da obra.
597 598
Ibid., p. 192. BENJAMIN, Walter. agens... p. 824. [i 1,8].
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4.5. Progresso, uma missão quase sagrada Apesar do termo “universal” não constar no nome da primeira grande Exposição, realizada em Londres em 1851, este conceito já se encontrava presente. Distante da conotação geográfica, “que abarca toda a Terra” ou “que advêm de todos”, a palavra “universal” deve ser compreendida a partir dos valores que congregam os países portadores e exportadores dos significados de progresso, certificando e consolidando a superioridade capitalista frente a outros povos e nações. Deste modo, estabelece-se uma correspondência entre o conceito de “progresso” e o termo “universal”. No contexto de uma concepção dogmática, positivista e universalizante do mundo, a indústria e seus efeitos tornam-se chave para o progresso e o desenvolvimento material. O termo progresso tomado
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inicialmente a partir da definição de Baudelaire, “dominação progressiva da matéria”599, associa-o diretamente à ostentação material evidenciada nas Exposições. Baudelaire, ao realizar a crítica de arte das obras exibidas na Exposição Universal de 1855, considera grotesca a idéia de um progresso crescente e teleológico, um “fanal obscuro”.600 Se uma nação concebe hoje a questão moral num sentido mais complexo do que o entendia no século precedente, há progresso, isso é evidente. Se um artista produz neste ano uma obra que manifesta mais saber ou força imaginativa do que demonstrou no ano ado, certamente ele progrediu. Se os víveres hoje são mais baratos e de melhor qualidade do que os de ontem, isso é um progresso incontestável na ordem material. Mas, por favor, onde está a garantia de progresso para o futuro?601
No século XIX, o progresso material evidencia a sugestão otimista de um futuro melhor. Benjamin reproduz o pensamento de Wiertz publicado em 1870, “por ocasião de uma Exposição Universal: O que de imediato surpreende não é o que os homens fazem hoje, mas o que farão mais tarde”.602 Embora, como questiona Baudelaire, não existam garantias quanto ao futuro, uma sucessão de avanços tecnológicos se mostrava como evidência – inclusive visual – de desenvolvimentos progressivos e sucessivos. Neste contexto, firmou-se uma 599
BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 801. 600 BAUDELAIRE, Charles. Exposição Universal (1855). Belas-Artes. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 775. 601 BAUDELAIRE, Charles. Exposição Universal (1855)... p. 775. 602 BENJAMIN, W. agens... p. 212. [G 2a, 4].
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conexão direta entre o mundo industrial e a civilização ocidental, onde as Exposições que apresentavam e divulgavam as novidades da produção industrial eram compreendidas como cartão de visitas desta formulação. O período de 1851 a 1915 demarca uma fase em que as Exposições Universais mostram-se como vitrines do binômio progresso-civilização.603 A abrangência dos itens expostos reforçava a pretensão “universal” das exposições de englobar tudo o que se relacionasse à atividade humana, apresentando “todo o universo, numa extensão do sentido enciclopédico do século XVIII”.604 O cosmopolitismo iluminista articulava-se às ambições enciclopédicas para estimular a freqüência às exposições. O público que comparecia a estes eventos de culto ao progresso maravilhava-se com as novidades do mundo dos bens. Não obstante, é provável que sentimentos conflitantes assomassem os visitantes na alternância entre sensações de prazer e de fadiga, produzida pela PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
superestimulação sensorial. Neste contexto, é possível localizar nas Exposições evidências do primeiro grito do excesso de informação e de imagens que hoje assombra a humanidade. Para Benjamin, a indústria do entretenimento refina e multiplica as variedades de comportamento reativo das massas, preparando-o para o adestramento da publicidade. Deste modo, fundamenta-se a ligação entre a indústria publicitária e as Exposições.605 Desde a primeira, The Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations, as Exposições apresentavam-se revestidas “de uma missão quase sagrada: dar oportunidade de congraçamento aos povos e estreitar os laços de solidariedade das nações dentro dos novos tempos de progresso e civilização”.606 Este conceito apareceu no discurso do príncipe Albert que em 1849 anunciou o evento. Albert acreditava que as Exposições poderiam contribuir para a unidade dos povos - a grande finalidade da história. Na medida em que as distâncias entre as nações estariam rapidamente encolhendo graças às invenções modernas,607 as criações da arte e da indústria não seriam privilégio de uma nação, mas
603
NEVES, M. op. cit. BARBUY, H. op. cit., p. 18. 605 BENJAMIN, Walter. agens... op. cit., p. 236. [G 16,7]. 606 PESAVENTO, S. op. cit., p. 73. 607 The Exhibition of 1851. The Speech of H.R.H. The Prince Albert, K.G., F.R.S., at The Lord Mayor's Banquet, in the City of London, October 1849. The Illustrated London News, 11 October 1849. [1849-10-11] http://pages.zoom.co.uk/leveridge/albert.html o em 1 de fevereiro de 2008 às 21:19h. 604
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pertenciam ao mundo inteiro.608 Em seu discurso, o Príncipe também exaltou a divisão do trabalho na produção, como um motor da civilização em expansão para outros ramos.609 Ciência, indústria e arte seriam aliadas do homem - instrumento divino - em sua conquista da natureza. A ciência descobre as leis que regem o poder, o movimento e a transformação; a indústria as aplica à matéria prima crua que a terra cede em abundância, mas que se torna valiosa apenas com o conhecimento; a arte ensina-nos as leis imutáveis da beleza e da simetria, e com elas dá forma às produções do homem.610 Neste contexto, estabelece-se, segundo Werner Plum, uma das funções cumpridas pelas feiras mundiais, ou seja, sua contribuição no sentido de intensificar a fé no aperfeiçoamento do homem e “na meta final de uma civilização mundial unitária”.611 Aparentemente a idéia de união entre os povos apenas mascarava uma rivalidade crescente, principalmente entre França e Inglaterra. A primeira, embora PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
não alcançando o mesmo patamar de desenvolvimento industrial, afirmava-se pelos artigos de luxo: “as porcelanas de Sèvres e Limoges, os tapetes de Aubusson, as sedas de Lião, os perfumes e os trabalhos de ourivesaria”.612 A Inglaterra, dizia-se, “prepara produtos para o consumo popular”.613 Esta crítica talvez escondesse a morosidade da industrialização sa que teria permanecido mais relacionada à atividade manual. Utilizando a noção de campo, criada por Bourdieu614, é possível analisar as feiras universais como campos onde culturas artísticas e cientificas das principais nações e culturas competiam pela validação e legitimação do padrão simbólico dominante de progresso e modernidade. De fato, a unidade entre os povos mostrava-se menos evidente do que a ascensão de um capital globalizado. Plum observa que Marx e Engels consideraram a exposição de 1851 uma “prova contundente do poder concentrado, com o qual a grande indústria moderna rompe as barreiras nacionais e confunde cada vez mais as peculiaridades locais da
608 Le Livre des Expositions Universelles. 1851-1989. Paris, Ed. Des Arts Décoratifs/Herscher, 1983 (Journal”Récits et Témoignages, 1851, p. 17. apud PESAVENTO, S. op. cit., p. 73. 609 The Exhibition of 1851. The Speech of H.R.H. The Prince Albert, K.G., F.R.S., at The Lord Mayor's Banquet, in the City of London, October 1849. The Illustrated London News, 11 October 1849. [1849-10-11] http://pages.zoom.co.uk/leveridge/albert.html o em 1 de fevereiro de 2008 às 21:19h. 610 Id. 611 PLUM, W. op. cit., p. 61. 612 PESAVENTO, S. op. cit., p. 82. 613 PESAVENTO, S. op. cit., p. 83. 614 BOURDIEU, Pierre. Campo do Poder, Campo Intelectual e Habitus de Classe. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Editora Perspectiva: 2004. p. 183-202.
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produção, as condições sociais, o caráter de cada povo em particular”.615 Para Harvey, a organização de uma série de Exposições Mundiais celebrou o “globalismo” 616, ao mesmo tempo em que fornecia um arcabouço no âmbito do qual se poderia entender aquilo que Benjamin denomina “a fantasmagoria” do mundo das mercadorias e da competição entre nações-Estado e sistemas territoriais de produção. Não há dúvida de que o maior objetivo da Exposição Mundial de Londres era industrial e comercial, mas ela não pode simplesmente ser compreendida como espaço para venda de produtos e intercâmbio de mercadorias.617 Um olhar que se distancie deste posicionamento é sugerido pela historiadora Madeleine Reberioux, em seu estudo sobre as Exposições, ao propor que se coloque temporariamente “entre parênteses, a dimensão explicitamente econômica da pesquisa”618 como forma de não perder de vista a dimensão cultural do trabalho. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Neste contexto, observamos, por exemplo, a atuação da publicidade gerada a partir do sucesso e dos prêmios obtidos. As premiações outorgadas por júris internacionais conceituados constituíam-se em um incentivo decisivo para a participação de empresários nas exposições. Além de aumentar o prestígio em seus países de origem, também influíam na expansão das vendas. Em alguns casos, a simples presença de produtos e máquinas nas feiras industriais e exposições universais era parâmetro do sucesso destes artefatos. Já em 1862, lemos no Traité theorique et pratique des moteurs à vapeurs que a importância das locomotivas a vapor pode ser julgada pelo número de peças encontradas nas exposições industriais e agrícolas.619 Uma medalha conquistada em uma Exposição Universal representava, ainda no século XX, um sinal de reconhecimento à qualidade do produto exibido620. Um conferencista na Exposição parisiense de 1867 considerava que: “Os livros, brochuras que tratam da questão da economia social são tirados em milhões de exemplares e são pouco lidos. As idéias que terão publicidade na
615
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, Werke, vol. 7. Berlim, 1969. p. 431. apud. PLUM, W. op. cit., p. 21. HARVEY, D. op. cit., p. 240-241. 617 PLUM, W. op. cit., p. 65. 618 REBERIOUX, M. op. cit., p. 3. 619 AINÉ, Armengaud. Traité theorique et pratique des moteurs a vapeurs. Paris: A. Morel et Ge. Libraires, 1862. p. 111. 620 PLUM, W. op. cit., p. 91. 616
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exposição serão vistas por milhões de olhos, estudadas e comentadas por milhões de inteligências”.621
De fato, mais do que espaço de exposição, as feiras eram santuários de culto ao progresso ou, ainda, como concluiu Benjamin “lugares de peregrinação ao fetiche da mercadoria”.622 Mais do que objetos, o que se expunha era a idéia de uma sociedade industrial, chave do progresso material que podia encaminhar grandes mudanças e o caminho da felicidade. É neste contexto que as Exposições colocam o olhar com algo que pode ser aprendido. Elas atuaram diretamente na “naturalização” do olhar moderno, na construção da cultura visual moderna, contribuindo, ao mesmo tempo, para sua padronização e realimentação.
As Exposições sucederam-se por diversos países, sempre em busca de
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superar a precedente em novidades ou em tamanho. A freqüência das exposições levava os países participantes a construírem pavilhões sempre mais opulentos com um custo que poderia ser desastroso na ausência de um investimento paralelo em publicidade. Após a Primeira Guerra, que abalou a fé no progresso da humanidade e o próprio sentido das Exposições Universais, encontram-se evidências de abusos políticos e comerciais e mesmo de boicotes deliberados a alguns eventos. Em 1928, um encontro em Paris estabeleceu parâmetros disciplinares relacionados à forma e a freqüência das Exposições. Antes que se pudesse verificar o cumprimento do acordo, o início da Segunda Guerra rompeu definitivamente com as características das Exposições, substituídas por eventos menores, mais especializados ou com menor projeção.
621
LAVOLÉE, C. Les expositions de l’industrie et l’exposition universelle de 1867. Paris, Hachette, 1867 (Conferences populaires faites à l’asile imperiale de Vincennes). p. 47. apud PESAVENTO, S. op. cit., p. 125. 622 BENJAMIN, Walter. Paris, a capital do século XIX. <Exposé de 1935>. In: agens... p. 43.
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5. Considerações finais
Neste trabalho buscamos compreender as transformações da cultura visual contemporânea a partir de um olhar em direção ao ado, um olhar inspirado no anjo da história de Walter Benjamin.623 A visão do Angelus Novus nos conduziu indicando a direção como um radar, abrindo caminho na tempestade de novidades oferecidas pelo progresso – as novas configurações materiais ou apenas as novas embalagens com as quais o mesmo é reciclado e oferecido como novo ao olhar. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
Ainda, de acordo com a visão que tem da história o anjo imaginado por Benjamin, nossa intenção não foi constituir uma cadeia de acontecimentos ou o traçado de uma continuidade sobre os modos de olhar do início da Idade Moderna até os dias atuais. O objetivo principal do nosso trabalho consistiu em “puxar um fio” da história para com ele constituir o eixo da presente discussão. Um fio que nos permitisse conduzir um olhar com os pés assentados sobre o presente, uma visão histórica que nos fornecesse subsídios para avaliar a participação de modelos de olhar anteriores. Recolhemos os elementos da história e o trouxemos para o presente, como forma de reavivá-los, de fazê-los ocupar o espaço que lhes cabe nas transformações do presente e de prepará-los para o diálogo com a cultura visual contemporânea. O momento atual traz em seu bojo uma enorme carga de excessos tecnológicos e estímulos sensoriais em uma construção simbiônica, algumas vezes percebida como ápice do projeto moderno, outras, compreendida como uma etapa posterior a este empreendimento - o pós-moderno. A cultura visual moderna, de um modo ou de outro, ainda se faz presente, até mesmo, na medida em que procura apagar os traços de tudo o que veio antes, inclusive as marcas de sua própria constituição moderna. Suprimir rastros da cultura é também apagar a história e colocar-se frente a tudo que é novo. É neste contexto que, ao pensar o 623
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 226.
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ado, o nosso objetivo específico é fornecer subsídios para a compreensão de como a cultura visual do presente vem sendo construída - suas continuidades e contradições. Este objetivo impõe-se de forma inequívoca ante a possibilidade de deixar-se arrastar irresistivelmente para o futuro. A cultura visual moderna não teria se construído sem que o olhar tivesse sido precedido por uma racionalização, fundamentada na convenção da perspectiva e divulgada pela invenção da gravura, como vimos no primeiro capítulo deste estudo. O olho, a partir da Era Moderna, é transformado em um instrumento que, em combinação com as funções racionais da mente, promete o “conhecimento verdadeiro”. O olho torna-se uma ferramenta que deve ser constantemente aperfeiçoada através do emprego de aparatos ópticos e tecnológicos. Este conceito de aprimoramento em bases científicas permanece atuante na prática das diversas profissões do século XXI - da medicina ao design. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
A sociedade ocidental, desde a chamada “revolução industrial”, vem dando destaque às mudanças trazidas pelo avanço das novas tecnologias. No segundo capítulo deste trabalho, vimos que a ascensão de um novo paradigma tecnológico trouxe modificações nas dimensões tempo-espaço, comprimindo distâncias, aproximando realidades, acelerando transformações, em resumo, alterando os percursos de uma sociedade. Apesar disso, a tecnologia não pode ser considerada como único critério de análise, mas como um critério de importância. Embora seja equivocado itir a influência da tecnologia como fator preponderante no ambiente social, não se pode relevar a extensão de sua atuação nas bases materiais da economia, da sociedade e da cultura. A nossa consideração é que tecnologias podem atuar como um agente catalisador de determinadas conseqüências, mas não chegam a caracterizar condição suficiente de possibilidade para que estas transformações se realizem em qualquer sociedade ou período. Além disso, há que estabelecer diferenças entre as influências diretas e as indiretas, geradas pelas tecnologias. Como exemplos de influências diretas, analisamos a ação das novas tecnologias de transporte e comunicação na compressão tempo-espaço e no aumento exponencial de informações visuais. A eletricidade também foi examinada como uma influência direta, mas de ação mais lenta. As transformações urbanas que produziram a cidade moderna podem ser apontadas como exemplo de influência indireta das novas tecnologias sobre o
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olhar na medida em que podem ser compreendidas, em última instância, como conseqüência dos novos processos de produção trazidos com a industrialização. Neste trabalho, mostramos que, a partir da segunda metade do século XIX, diversas tecnologias aram a atuar na compressão das dimensões tempoespaço, articulando a construção de um novo modo de olhar. Este novo ambiente tempo-espacial, acompanhado de modificações no tecido urbano e da multiplicação exponencial de imagens e objetos, influiu na necessidade permanente de produção do novo, do diferente, capaz de obter ressalto sobre a profusão de fatos visuais. Neste contexto, a impossibilidade de existência de um olhar inocente estabelece sua contrapartida na constante observação do novo. Na medida em que, o ado forneceu a estrutura para a padronização e a racionalização de um modo de olhar sobre o qual as novas tecnologias puderam atuar na transformação da visualidade, cabe ao presente a realimentação deste PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
processo. Ao longo do terceiro e último capítulo do nosso trabalho, demonstramos este processo na análise das primeiras Exposições Universais. Estas Exposições foram absolutas expressões da visualidade. A exibição de novos materiais, tecnologias e produtos produziu um caleidoscópio visual capaz de estimular alterações na experiência perceptiva. Atuaram reforçando a ascendência do sentido visual na sociedade burguesa do século XIX, tendo como fundamento a inculcação de um conceito de progresso intimamente relacionado à expansão da visualidade. A nossa pesquisa sugere que o olhar moderno foi construído sobre um tripé formado pelas tecnologias modeladoras das relações tempo-espaço, pelas convenções que contribuíram para a sua compreensão e naturalização e por uma pedagogia que inculcou a abertura para o novo, de modo a garantir a perpetuação deste modo de olhar. O presente trabalho sugere a formulação de dois modelos ou dois momentos construtores do olhar moderno. Diante desta consideração, ressaltamos que um modelo, ou momento, não se esgota simplesmente, mas fornece os fundamentos sobre os quais o novo modelo se constitui. A compreensão destes modelos em separado tem a intenção de destacar o que subsiste de cada um no modo de olhar contemporâneo. Assim, encontramos, de um lado, a racionalidade e a busca da verdade que, por mais que tenha sido revisada e contestada nos ambientes acadêmicos atuais, continua persistindo na manutenção de convenções que
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favorecem a troca signica. De outro, a produção industrial e o mundo de possibilidades materiais que é oferecido. O primeiro modelo, o olhar ciclópico estudado no segundo capítulo, preparou o olhar para a sociedade industrial, deu-lhe racionalidade e o estruturou com convenções, como a perspectiva, de modo a favorecer um ambiente de linguagem comum onde as representações podiam ser compartilhadas e compreendidas. O segundo modelo, o olhar panorâmico, analisado no terceiro capítulo, trata da adaptação do olhar às “mil coisas” para serem vistas, da reação do olhar à profusão de objetos e imagens produzidos a partir da industrialização. A nossa pesquisa sugere que, nesta etapa, o olhar teve que se tornar mais abrangente. O relance foi inaugurado e, com ele, tornou-se possível “captar”, ainda que de forma superficial, a pletora de formas que se oferecia. Em alguns casos, verificamos tentativas de repartição das formas visuais em elementos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
menores que permitissem visualização e interpretação. Neste contexto, o corpo foi dividido e arquivado na tentativa de retomar o controle social que existia anteriormente, quando havia um único foco de visão. O novo modo de olhar, construído no século XIX, buscou apoio na intenção, nascida no seio da vida moderna e patrocinada por seus produtores, de compartilhar este modelo de olhar. Não por bondade ou altruísmo, mas porque este modelo requer um compartilhamento de signos, aspirações e crença no progresso. Esta intenção pedagógica, que destacamos no capítulo quatro, na análise das Exposições Universais, segue seu caminho na mídia de hoje, na imprensa, na publicidade, nas novelas, no destaque de vida dos famosos, no lazer e, mesmo, nas relações interpessoais que também se constroem sobre os fundamentos de uma cultura visual. A restrição da pesquisa a meados do século XIX mostrou-se uma escolha adequada ao nosso objetivo de evidenciar a fundamentação de uma nova cultura visual nascida sobre a égide do moderno e nos permitiu analisar os primeiros momentos das transformações vividas pelo olhar. O século XIX fundou a ambição da totalização técnica. Não se tratava apenas de uma questão de substituir o trabalho do homem ou de fornecer-lhe melhores possibilidades de modificação do seu ambiente: as máquinas alcançaram a condição irável de semi-deuses, colaborando para a realização de um espetáculo. Para Guy Debord que cunhou a expressão “sociedade do espetáculo”, a sociedade baseada na indústria moderna é
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fundamentalmente espetaculoísta, onde o “desenrolar é tudo”.624
Segundo o
autor, o espetáculo serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa humana e não se trata simplesmente de um conjunto de imagens, “mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.625 Apesar de Debord ter estipulado a década de 1920 como o início da sociedade do espetáculo626, em nosso ponto de vista este processo é anterior. Iniciou-se no século XIX, predominantemente na sua segunda metade, quando têm início as Exposições Universais. As Exposições que se pretendiam universais, dentre outras coisas, pela amplidão e variedade do que costumavam mostrar, ofereciam um olhar para o futuro, uma visão de progresso sobre o deslumbre que a tecnologia tinha a oferecer. A profusão de imagens e objetos que ou a inundar a sociedade a partir do século XIX, continua avançando. Vimos como os espaços vêem sendo visualmente preenchidos. Cada olhar é disputado por alguma entidade que deseja PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
usar esta porta para imprimir uma marca em algum cérebro. É lugar comum afirmar que a sociedade atual é “a sociedade da imagem” como se a visualidade há muito não viesse atuando de forma direta em sua construção. Com esta afirmação não queremos levantar a bandeira de uma mera continuidade. Acreditamos estar vivendo em um momento de transformações tão profundas e tão fortemente ancoradas na visualidade como o foi a segunda metade do século XIX. No entanto, é importante observar como a sociedade digital, das redes e do ciberespaço freqüentemente pega de empréstimo suas principais características das tecnologias que a modifica. Os instrumentos tecnológicos não são objetos neutros. As tecnologias de comunicação e de produção de imagem trabalham “naturalizando” o olhar. Muitos dos estudos acadêmicos atuais partem essencialmente dos aparatos tecnológicos do presente para tentar compreender as mudanças sociais que são produzidas. Em nossa opinião, falta à maior parte destas pesquisas, a compreensão de uma ação permanente de naturalização dos processos tecnológicos respaldados por uma ideologia que, apesar das críticas em contrário, continua sendo alçada para frente por uma expectativa de progresso.
624
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2004. p. 17. Ibid., p. 14. 626 DEBORD, Guy. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2004. p. 168-169. 625
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As projeções das modificações futuras a partir das novas configurações oferecidas pelas novas tecnologias vão rapidamente tornando-se tão obsoletas quanto as próprias tecnologias. Estudos que evidenciam as influências das tecnologias de comunicação e de produção de imagem sem contextualizá-las, considerando apenas a absoluta novidade e o “nunca antes” experimentado esgotam-se em si próprios. A velocidade do processo tecnológico ilude a visão contemporânea do mesmo modo que os primeiros ageiros de trens, sufocados pela sensação de velocidade, não conseguiam fixar o olhar no primeiro plano fora de sua janela. Do mesmo modo que os nossos anteados tiveram que aprender a olhar para planos mais distantes, também temos que “recalibrar” o nosso ângulo de visão para que possamos ter uma dimensão mais concreta das modificações que estão sendo realizadas –de forma cada vez mais acelerada – em nossa sociedade. A nosso ver, a compreensão da constituição dos modos de olhar PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA
permite a percepção de uma nova realidade em formação e a explicitação das continuidades e contradições da experiência moderna em sua fase avançada. Neste contexto, as contradições se mostram ainda no escopo da modernidade. De um lado a eficiência da máquina, do ferro e das formas limpas, de outro, a ebulição de uma cultura fragmentada e efervescente, caótica e entrópica. O olhar moderno se constrói através dos rápidos movimentos sacádicos entre estas formulações contraditórias. Na complexidade da sociedade contemporânea, a cultura visual apresenta-se como um instrumento chave para a compreensão das relações entre homem e máquina. As relações entre produtores e consumidores merecem ser revistas. Flanêurs e badauds confundem-se em seus novos papéis. Não há dúvida de que este trabalho levanta algumas questões que não se pretende resolver em seu escopo. A nossa pesquisa sugere que as novíssimas tecnologias que encurtam ainda mais as distâncias, aumentam a velocidade das comunicações e permitem novas formas de contato humano, dentre uma enorme série de outras transformações, estão gerando um novo olhar, para além da aceleração e de um novo feixe de respostas rápidas. A principal questão que se coloca é em relação ao momento em que teremos a exata medida desta transformação de forma a utilizá-la na formulação de novas possibilidades estruturais. Um aprofundamento posterior nas continuidades e contradições que constroem o olhar contemporâneo mostra-se, mais do que uma sugestão, uma
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urgência para a compreensão das diretrizes de atuação daqueles que operam
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diretamente sobre esta capacidade perceptiva, como é o caso dos designers.
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