1. INTRODUÇÃO É notória a diversidade de interpretações das doutrinas na igreja cristã de hoje. Tal pluralidade advém, sem dúvida, de uma hermenêutica bíblica desenvolvida naturalmente no decorrer da história, que por um lado enriqueceu o debate teológico, por outro, trouxe divergências sobre alguns temas, tornando-os polêmicos e muitas vezes transformando-os em pontos de divisão entre comunidades cristãs. Partindo dessa visão, propomos uma análise cuidadosa referente à doutrina de dons espirituais, sendo utilizada como base literária o livro “Cessarem os dons espirituais? – quatro pontos de vista” de Wayne Grudem, onde o mesmo compila artigos de quatro autores, cada qual defendendo seu ponto de vista. É importante, no entanto, ressaltar a necessidade que componhamos este texto sem asseverações conclusivas, pois veremos que tal assunto vem consumindo tempo de estudo e considerações que exigem reflexões profícuas. Para tal assunto, conforme já foi mencionado, o cuidado deve ser relevante. Com esse intuito, começaremos por expressar alguns conceitos preliminares sobre termos que serão usados no decorrer do artigo: a) Dons espirituais: no NT tem-se a palavra em grego “charismata”, derivada da palavra “charis” (graça) e segundo José Roberto1, são “manifestações sobrenaturais provenientes do Espírito Santo para a edificação do corpo de Cristo”; b) Milagres: Milagre é o "extra-ordinário" (fora do comum/normal); "sobre-natural" (acima do natural); "ex-cepcional" (especial/ exceção). Se milagre fosse algo corriqueiro e comum, então não seria milagre! "A palavra milagre refere-se ao marcante e surpreendente evento que acontece pela direta intervenção de Deus, sem seguir as conhecidas leis da natureza. Um milagre é a suspensão temporária de leis comuns da natureza e a intervenção de um poder sobrenatural." Pr. D.Y.Cho2 c) Batismo no Espírito: “uma experiência dentro de um relacionamento, já existente com nova aliança, posto que todos os crentes recebem o Espírito quando se convertem. Essa nova experiência é o revistimento do poder...” Grudem, pg 171.
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Retirado do site ensinodominical em 12/06/2009, http:////ensinodominical.com.br/2009/06/04/os-donsespirituais-jose-roberto/ 2 Retirado do site www.sermão.com.br em 12/06/2009, http://www.sermao.com.br/sermao.asp?id=392
2 - QUATRO VISÕES 2.1 Cessacionismo Postuladas estas preliminares, pode-se expor o tema, iniciando-se da posição na qual foi escolhida como base para a discussão: a cessacionista. Segundo ensaio de Richard Gaffin Jr, caracteriza-se basicamente por crer que houve uma era apostólica e que essa foi específica e cessou; que os dons de expressão verbal (línguas e profecias) cessaram ao término da era apostólica; que o batismo no Espírito é dado ao crente no momento da conversão e que Jesus está presente hoje através do Espírito Santo. Como argumentos Gaffin trabalha respectivamente: o conceito de que os apóstolos e os profetas eram diferenciados e referenciando Efésios 2:11-21, que fazem parte do fundamento da igreja, sendo Jesus a pedra angular, não sendo aceitável realizar outro fundamento, em outras palavras, como não há outro redentor (Jesus, pedra angular), também não há outro fundamento (apóstolos e profetas); utiliza o termo “história da salvação” para definir o plano de Deus par redenção da humanidade, o qual foi completado no Pentecoste, portanto seus eventos não teriam necessidade de se repetirem e, ainda,
com mais ênfase lança uma discussão sobre a
necessidade da aceitação do fechamento do cânon, pois do contrário, teríamos uma constante renovação do mesmo, através de profecias hoje3; Com base em 1Coríntios 12:13, Gaffin expressa sua posição que o Espírito vem a todos os crentes, no momento da conversão, mas que nem todos falarão em línguas ou profetizarão, recebendo então, outros dons, conforme o Espírito escolher; e finalmente, que o pentecoste tem como objetivo a confirmação da descida do Espírito Santo, e vice-versa, autenticando a promessa de Jesus, ratificando sua presença hoje por meio Dele. Devido à imensa credibilidade desse autor (e dos outros aqui abordados), não se tem nesse artigo nenhum foco de crítica argumentativa, no entanto, pode-se trazer à tona algumas reflexões que contribuam ao tema: a) Gaffin deixa claro que está dissertando com foco nos dons de línguas e profecias; b) Aceita a soberania do Espírito Santo; c) Traça uma defesa do cessacionismo, histórica e literária, com lógica e coesão; e 3
Sobre esse assunto, optou-se por não tratá-lo neste artigo, pois aumentaria muito nosso espectro de discussão, havendo a necessidade de tratar conceitos da inerrância bíblica e infalibilidade das profecias, assuntos abordados em Grudem, pág .47-51
d) Esclarece aspectos, muitas vezes difusos, como a representação do Pentecoste como acontecimento único, a presença de Espírito Santo autenticando a promessa de Jesus, a supremacia da Revelação e o ministério diferenciado dos apóstolos, como marco e fato histórico. Posto estas afirmações, consideremos algumas observações: a) Ao defender a necessidade de se comprovar a ação do Espírito Santo no dia-adia do crente, através da sua transformação mediante a conversão, o autor não incompatibiliza a ação sobrenatural do Espírito, pelo contrário, nessa situação parece ser mais possível suas manifestações miraculosas; b) Tendo como princípio, que de maneira geral, na comunidade evangélica, aceitase a supremacia das escrituras, fica uma interrogação quanto a manifestação dos dons, de alguma forma contrariem a Revelação, pois tudo está debaixo do crivo da mesma; c) Ao colocar em dúvida a existência do dom de curas hoje “Tiago 5 contempla um tipo de cenário diferente. Ali, a cura não depende de um indivíduo com poderes para isso, nem por ele é levada a cabo, mas acontece mediante oração”, deixa claro seu cuidado a não se ter distinção nas igrejas, entre pessoas com mais ou menos poder, no entanto, novamente não incompatibiliza a ação do milagre em si.; e d) Finalmente, talvez a pergunta principal seja: por que a igreja primitiva não pode fornecer base para nossa expectativa nas igrejas hoje? 2.2 Pentecostal Sobre esta visão, dissertou Douglas Oss, defendendo a continuação dos dons, por completo, nos dias atuais. Seus argumentos partem do princípio do livro de Atos e todo o NT serem alicerces para a vida cristã, segue considerando que os dons são para edificação da igreja e de seus membros individualmente e define o segundo batismo como uma experiência dentro de um relacionamento já existente, adquirido na conversão. Vale, no entanto, destacar dois argumentos, não mencionados acima: a) Contrariando um dos argumentos cessacionista, Oss questiona a equalização do que se refere à história da igreja e as escrituras, apontando que não são iguais,
afinal o relato Bíblico é independente do que ou na igreja subsequentemente; e b) É possível ter comunhão e santidade sem os frutos do Espírito? Cabe, no entanto, semelhante à visão cessacionista, algumas observações: a) Ao defender as promessas e os sinais, Oss não deixa bem claro esses conceitos, pois o texto que usa com base, Atos 2:39, pode ser interpretado como a salvação intermediada por Jesus, sua aceitação (conversão) ou ainda a edificação da igreja; e b) Ao ratificar o dom de línguas com propósito para edificação, cabe um adendo para o uso desse sinal com outros propósitos, pois algumas interpretações apontam para esse dom para um momento ou situação de juízo. 2.3 Terceira Onda Posição representada por C. Samuel Storm, por definição, é um movimento que recebe esse nome por entender ser uma continuação da primeira e segunda onda (pentecostalismo e carismáticos). Quanto aos dons posiciona-se semelhante ao pentecostal, porém com a diferença essencial que usa o termo “encher-se” do Espírito como atribuído e principalmente controlado por Deus, desta maneira, a pessoa não teria o Dom, mas o receberia em alguns momentos ou em apenas um momento, conforme a soberania de Deus. Storm deixa claro sua posição a favor da falibilidade das profecias hoje, devendo estas serem sempre julgadas sob olhar das escrituras. Defende que o batismo no Espírito Santo é uma metáfora, podendo expressar-se com manifestações subseqüentes na vida do crente, o que denomina “encher-se do Espírito” e que Deus se revela de forma íntima a cada um. Sua principal crítica ao cessacionismo é que este tenha uma visão reducionista dos dons, encarcerando-os no primeiro século. Aos argumentos de Storm, podemos refletir: a) Storm aceita a idéia do livro de Atos identificar, através das ações manifestas do Espírito, a edificação da igreja associada ao seu crescimento, no entando é questionável essa paridade;
b) Se Deus continua falando depois das escrituras, como podemos refletir sobre o período interbíblico?; e c) Como poderíamos diferenciar (pois é muito tênue a linha divisória) entre relacionamento com Deus e revelação pessoal? 2.4 Aberto, porém cauteloso Segundo Robert Saucy, esta teoria estaria muito próxima do cessacionismo, assemelhando-se em alguns argumentos, dos quais, destacamos: o conceito da história salvifíca completada no pentecoste, a refutação da segunda experiência (segundo batismo) e os sinais, em conceito, serem expressões que apontam para outrem, no caso, Jesus Cristo. Algumas variações, no entanto, são importantes serem citadas: a)
Sinais serviram para autenticar a mensagem e o mensageiro
b)
Aconteceram em momentos crucias e não (diferindo do cessacionismo) em um ponto único de uma história salvífica
c)
Enfatiza a falta de normas para se obter, na era apostólica, os dons espirituais, apontando para a condição única: crer em Jesus
No entanto, um de seus destaques mais contundentes e oportunos para o presente artigo, sintetiza seu pensamento geral, abrangendo outros temas, como o Reino e sua natureza: “O propósito dos milagres como “sinais” sugere que semelhantes milagres não fazem parte da benção do Reino à disposição de todos os crentes durante a presente era. Os milagres de Jesus e dos discípulos, com sinais, apontam para além deles mesmos, para o poder de Deus e para a natureza do Reino (i.e., a inversão dos efeitos do pecado). Não fazem parte de um reino já inaugurado.” Apesar de nos determos num breve resumo sobre a posição de Saucy, algumas perguntas podem ser lançadas, como contribuição e desenvolvimento de seu raciocínio: a)
Sendo a história salvífica finalizada, e com ela, seus fundamentos (apóstolos), necessariamente indicaria término também dos dons por estes exercidos?
b)
Ao aceitar que os sinais ocorreram num ponto único da história, não se assume um risco da excelência daquelas igrejas, tornando-as especiais?
c)
Em seu comentário sobre a narração de Atos ser voltada para a era apostólica4, deve-se fazer um alerta sobre a interpretação dessas afirmação sucumbir numa conclusão espiritual, causando, mesmo que em primeira vista, uma possível falência da canonicidade de Atos
3. CONCLUSÃO: Tenho certeza que após um contato, mesmo breve, com visões distintas (e todas muito bem defendidas), há um crescimento no espectro de reflexões sobre o tema, resultando em um amadurecimento conceitual da questão abordada e título da obra base: “Cessaram os dons espirituais?”. Ao tratar o assunto com o zelo que merece, estruturando o debate de maneira meticulosa e ordeira, desde o recrutamento dos autores dos ensaios até sua finalização, confrontando-os, reforça não somente a importância do tema para a igreja atual, mas também um desafio à sua abordagem. Cabe, no entanto, um espaço para algumas considerações, não com intuito conclusivo, mas sim, motivador à continuidade da pesquisa. Impelido a sintetizar minhas impressões, decidi organizá-las, sequencialmente, pela ordem tratada no desenvolvimento. Gaffin ao discorrer sobre o cessacionismo, sem dúvida o fez de maneira brilhante, talvez por ter se tornado o alvo central, devido um posicionamento extremista, que o afastou, em conceito, dos outros textos. Essa condição desconfortável fez com que criasse um um sustentáculo de argumentos, os quais serviram de referência aos outros autores. Transpareceume, no entanto, em um plano geral, questões que poderiam ser melhor esclarecidas: todos os pontos listados vinculando os dons (leia-se aqui profecias e línguas) ao primeiro século, não foram conclusivos quanto à sua continuidade, isto é, ao mostrar sua aplicação especial para uma época, não contrariou sua aplicação para outras épocas; Seu argumento mais forte talvez estivesse implícito e só detectável num panorama geral: o problema não é aceitar a possibilidade dos dons, mas sim, como aplicá-los sem desfigurar a mensagem cristocêntrica, hoje já tão abalada. Estas mesmas observações podem ser aplicadas à posição de Saucy, que mostra-se mais cauteloso do que inicialmente aparenta, colocando e reafirmando muitos argumentos cessacionistas.
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Grudem, Wayne. Pág 123
Na outra ponta, encontramos as posições Pentecostal e Terceira Onda, sobre as quais, excetuando-se os detalhes, divergem sobremodo em relação á distribuição desses dons e sua continuidade pessoal, isto é, enquanto Oss reitera com ênfase, a necessidade do crente de expressar os dons miraculosos, como resultado do segundo batismo, Storms exime o convertido de tal prática, enfocando a superioridade do plano de Deus. Como resultado do contato com tais análises, devo acrescentar, irrefutavelmente, um crescimento pessoal no entendimento literário do assunto, que apontou-me para uma questão geral: se doutores em teologia, estudiosos e com experiência ministerial comprovada e, partindo da premissa, homens dedicados á obra, argumentam, cada qual, com brilhantismo sobre um mesmo tema, chegando a conclusões variadas, como podemos decidir e nos posicionar sobre o assunto? Ao refletir sobre isso, realizei uma rápida enquete numa sala de EBD na Igreja Batista Belo Horizonte, realizando a pergunta título do livro. Para minha surpresa e alívio, expressaram-se as quatro posições. Surpresa por ser uma igreja tradicional, e alívio, por saber que doutrinas “órias”5 podem conviver fraternamente. Com essa idéia em mente, sobre a necessidade de foco no fundamental, finalizo citando o evangelho de João, capítulo 3, verso 16: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha vida eterna.”6 Que este seja nosso fundamento e mola propulsora para o entendimento e aplicação de qualquer doutrina.
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Entenda-se aqui ório, tudo que não é fundamental na mensagem de Cristo: O pecado do homem, sua necessidade da Graça , a redenção realizada por Jesus na cruz e sua ressurreição. 6 Bíblia de Estudo de Genebra, São Paulo e Barueri, Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. 1728 p.